Acho
no mínimo hilário quando qualquer mente generosa manifesta sua esperança em
igualdade e dignidade, aí vem outro ser com ar de PhD em mundologia aplicada e
decreta: “Ah! Você está muito iludida(o), querida(o). Isso nunca vai acontecer,
é uma utopia cor-de-rosa, tem sido do jeito que é desde o início dos tempos,
desde a descoberta do fogo”. Quanto a vocês não sei, mas a mim parece
absolutamente estapafúrdio que haja um certo consenso sobre como as coisas
deveriam ser (todos com casa e acolhida, alimento e família, medicina e roupa
lavada), uma geral concordância a respeito do básico que se deveria ter, uma
Declaração Universal dos Direitos Humanos louvada e replicada em verso e prosa
– e mesmo assim se considere ilusão tudo que aponta para o coletivamente
aceito, enquanto a “dura realidade” dos experientes seria composta pelo exato
erro que nos repugna. Me internem se for o caso, me avisem se perdi o bonde,
mas antes recapitulemos juntos: o correto, apesar de 90% do planeta admitirem
publicamente que é o correto, não passa de fantasia, e especificamente o que
esses 90% classificam como ruim/tosco/injusto/indesejável formam a parte
prática e efetiva de nossa existência – confere, produção? Ah, tá, era só para
confirmar que não sou a única insana in tha house.
Andamos,
de fato, terrivelmente iludidos; mas por excesso de utopia é que não é. Andamos
iludidos com a ideia de que um sistema que faz muito mais escravos do que
faraós possa se sustentar para sempre. Andamos desvairados pela crença de que
um mundo que tende a produzir mais mulheres do que homens (somos mais
resistentes à dor, precisamos de menos comida, nos viramos melhor, nos cuidamos
mais, vivemos mais) vai concordar em permanecer ad aeternum na mão dos machistas. Andamos falsamente persuadidos de
que bilhões de Homo sapiens cada vez
mais aperfeiçoados vão achar sempre normalíssimo matar alguém a pauladas por
não se gostar de sua cor, credo ou vida amorosa. Andamos – para mostrar que
somos sabiamente amargos na medida certa – orgulhosos da impressão de que
iremos emendar um apocalipse no outro, como se não soubéssemos que a ciência já
conseguiu reverter extinções, erradicar doenças, fazer carros voarem e mais um
trilhão de belezas impossíveis há cem anos. Andamos doidos, sei lá por quê,
para provar que seremos idiotas permanentes, carrascos inevitáveis, agressores,
exploradores, torturadores, racistas e misóginos, negando as evidências de
nossa própria evolução.
Não
há lógica em esperar o pior de nós: fomos projetados para crescer como espécie,
curar, inventar, criar estratégias. O fato de alguns terem estacionado
mentalmente em 1270 não impede os demais de seguirem seu 2017 compulsório,
progredindo com recém-descobertas consciências, tecnologias e informações; não
impede sequer uma ou outra cabeça iluminada de já frequentar os insights de
7210. Na média, pois, estamos bem – e os incrédulos que catem propagandas
nojentamente preconceituosas de décadas atrás e comprovem que seguimos, sim,
sempre adiante, embora dez passinhos à frente venham às vezes com um de recuo.
Só não se pode crer que, contra a nossa mais estomacal natureza, retrocedemos; não
se pode defender que o destino da caminhada seja lenda e os pântanos de onde
viemos, a meta. Não se pode supor que, eternamente, os mais numerosos se
deixarão espezinhar para cobrir oito ou nove de luxo. Não se pode raciocinar
que o ilusório seja a vontade de milhões – e que o pé-no-chão seja o capricho
de dois ou três meninos mimados. Fosse assim, estaria ainda a monarquia em
plena posse do mundo. Mas impérios não duram. Potestades humanas tropeçam. O
futuro é espontaneamente igualitário e republicano.
Da
próxima vez que alguém o chamar de sonhador, pode inflar: sou mesmo. É voando
que melhor se nivelam as mesquinharias do chão e se enxerga o todo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário