Li em
algum lugar que as últimas palavras de Sir Arthur Conan Doyle, ao morrer, foram
dirigidas à esposa Jean Elizabeth: “Você é maravilhosa”. Nem posso dizer o
quanto fiquei tomada de ternura. Era o pai de Sherlock Holmes que se ia, e
podia muito bem ter cunhado e guardado alguma literatice para a posteridade,
algum “saio da vida para entrar na História”, algum “a morte é a coisa mais
elementar, meu caro Watson” (eu sei, eu sei que essa expressão não é dos livros
de Sir Arthur, mas vai que?), um troço qualquer que lhe dourasse o epitáfio de
escritor. Conan Doyle, porém, tinha morrido segundos antes, e naquele momento
do ataque cardíaco foi apenas Arthur, e o último eixo do homem resumiu-se em
amor, gratidão e saudade. O essencial de nós é o que parte mais no fim.
Pois
então, já que temos em nós aquilo que sabe o que diríamos na morte, não podemos
acessar mais sempremente o arquivo durante a vida? Se é certo que nosso último “ai”
não será – “O senhor viu, Doutor Peçanha, as cotações de hoje?” –, por que
topamos conviver com a mania dos cifrões 87 horas por dia? Se acharíamos
ridículo que nossa declaração final fosse – “Menina do céu, você não adivinha
quem o Gustavo Lima tá pegando!” –, por que boiamos tanto tempo precioso nesse
marzão besta, besta de informações nulas? Se os filhos são mesmo a alegria mais
linda e não prisão domiciliar, se o trabalho se limita a uma fonte de renda e
não virou ração de um orgulho doido, se as selfies são brincadeirinha dispensável
e não alimento de uma vaidade ensandecida, se o amor é a pérola querida e não o
ser que intimamente se empurra e despreza, que estamos nós fazendo aqui,
jogando esse tantão de vida fora – na ausência de casa, no expediente infinito,
no correr solitário da infância dos pequenos, nas partidas intermináveis no
celular, nas milhares de poses coreografadas no espelho – com o que não
desejamos que nos represente e nos sobreviva?
Conan
Doyle só dirigiu as últimas palavras à esposa porque estava com a esposa. Não somente diante dos olhos: mais junto, mais
perto, mais fundo, mais sempre. Jean estava no altar do que é importante o
suficiente para ser nossa urna, para nos receber como ideia e lembrança quando
deixamos de ser corpo. Últimas palavras são restos mortais do que escolhemos, cinzas
da motivação que tivemos, semente caçula das crenças que levamos. Aos nossos
césares o que é desses césares, e ainda em plena vida, para que a linha final
do script não seja senão um (bom) arremate do que já lhes é mui visto e sabido.
“Você é maravilhosa”: uma fofura – mas, eu espero, não uma novidade. “Você é
maravilhosa”, digam os olhos na contemplação diária. “Você é maravilhoso”,
digam as mãos ao desenformarem o doce preferido, just because. “Vocês são
maravilhosos”, diga o sorriso de quem alerta com paciência para os erros no
dever de casa. Sem agenda, sem limite, sem voz até: o você-é-maravilhosa de
Conan Doyle tanto nos acompanhe e se manifeste que, no último capítulo, nada
mais tenha a fazer do que nos acompanhar e manifestar-se, fechando todas as
questões sobre os quês que mais nos
importam.
E os quens – elementar, meu
maravilhoso Watson.
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