A brincadeirinha tomou a rede há dias, irritando até a loucura: "Quis
me dar um gelo. Logo eu, a rainha Elsa"; "Achou que eu ia ligar. Logo
eu, que tô sem crédito"; "Tentou me iludir. Logo eu, pote de sorvete
com feijão dentro" – e uns milhares de bobagices tais. Não é que não
pareça engraçadinho sustentar os jogos verbais por 24, 48 horas, exercitando a
criatividade da palhaçada e convidando neurônios alheios a fazer o mesmo. São
memes que surgem feito virose de clube: paciência, uma hora se vão e deixam outro
micróbio. Mas é que esse, esse... Esse, especialmente, diz um
bocadão de nós e resume infernalmente bem nossa cultura de exceções fofinhas,
de inocência desculposa.
Me acusou de racista (ou homofóbico) – logo eu, que até tenho
amigos negros (ou gays)! (Não sei dizer o quanto me fere a lança desse até,
dessa condescendência por si só excludente, dessa justificativa que tenta
purificar a forma geral com o ponto particular, a atitude coletiva com o
exemplo de estimação.) Me chamou de coxinha – logo eu, que estudei em
escola pública (e estou aqui sentado na doçura de meu esquecimento, tachando de
vagabundos os alunos das ocupações). Me falou que eu deveria me informar –
logo eu, que assisto a todos os principais jornais (de uma grande mídia que
monopoliza os canais e vive dos mesmos anunciantes que financiam nossos
amadíssimos políticos). Me disse que eu tinha de pensar mais nos outros –
logo eu, que distribuo sopão nas madrugadas de quarta (mas defendo que os
refugiados não venham tirar nosso emprego, nem que família de preso assassinado
venha comer do nosso imposto).
Somos a lamentável terra do "logo eu". Os impulsivamente
cordiais, os boas-praças, os dadores de tapinhas superficiais e levadores de
criança para ver Papai do Céu no presépio. Somos o malandro sorridente que quer
se eximir do fundo pecado com uma crosta de ternura. Mas sim, sim, logo nós, e
que não haja desculpas ou máscaras para a posteridade: logo nós, país fruto de
um estupro imenso, ousamos questionar se é vítima a menina que passa por uma
roda de violência; logo nós, todos descendentes de gente arrancada (pelos
europeus) à liberdade e escravizada a um novo clima, temos a audácia de afirmar
que os refugiados estão acabando com a Europa; logo nós, manipulados até a
medula pelo sistema que nos suga e dementa, caímos na esparrela de defender a
censura e ser contra a regulação da mídia; logo nós – filhos de bruxas
queimadas, cristãos-novos perseguidos, pajés massacrados, africanos de cultos
amordaçados –, logo nós sustentamos, com nariz petulante, que possa
existir perseguição de Deus contra religiões do diabo. Logo nós, operários,
bradamos pelo interesse do senhor de engenho; trabalhadores de três horas de
condução, aplaudimos a reforma da Previdência; batedores de panela pela lei e a
ordem, pouco ligamos que a lei esvazie outras tantas panelas;
cidadãos do país coberto de vermelho-sangue no nome e na história, nos
verdeamarelamos de indignação seletiva.
E depois de nos prestarmos ao show e ao circo, miquinhos amestrados que
somos – a conta chega logo para nós.
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