A gente sempre ainda quer – se não quer, está morto
fatalmente. E menos complexo talvez fosse querer o óbvio, mesmo que caro; o
óbvio é definível, buscável com endereço, está exposto em vitrine, demanda
tantos reais, tantos dólares, tudo pretonobrancomente. Você entra no site,
googla no trabalho, descobre, planeja: metas, metas. Só que o muito que se quer
nem sempre cabe. Tem pacote turístico para voar de balão, tem escola de francês
para quem se dispõe à mensalidade; mas onde se conhece, onde se alcança aquele
que lhe vai apresentar uma dúzia de passagens secretas palpitantes num castelo
medieval somente seu? onde o agente de turismo que vai descobrir o melhor sebo
da mais ladeirosa rua do Porto – sendo que naquele sebo necessariamente estará
o livro que você caça há décadas, não porque o queira ler, mas porque sua
dedicatória é a pista de uma história ou um tesouro? onde a fada madrinha que
lhe concederá uma centena de pandas para esmagar de fofura? onde o organizador
do tour que o levará a cada cenário de cada frame de cada filme que você mais
amou desde o princípio dos tempos?
A gente finge que se limita
ao ainda-quero previsível e domesticado: quero morar fora por seis meses, quero
visitar todas as Disneys, quero estar na abertura de uma Olimpíada, quero fazer
dança de salão. Porém não é (só) isso que somos, não é o que nos basta. O que
ainda queremos – diz Clarice – não tem nome. Na verdade, antes de morrer
desejamos acessar o absoluto sossego, a mais plena independência de ponteiros,
alarmes, agendas, obrigações. Sonhamos ver a espécie de tal forma harmonizada
consigo mesma, que os opostos não serão adversários e argumentarão por longos
minutos e em pouquíssimos decibéis. Pretendemos decorar a coreografia de “Thriller”
ou Chicago e bailar publicamente com
parceiros, datas, espaços aleatórios. Esperamos adquirir nosso
teletransportador particular e tomar café, almoço e janta em países diferentes.
Andamos nos adiantando no controle da Força e tencionamos usá-la para desinfetar
alguns cérebros. Planejamos virar o tipo de gente que larga tudo para fazer
origami ou cantar num restô de Paris. Fantasiamos tecer e distribuir casas,
espalhar pão, botar todo mundo na escola para ser visto e amado. Temos o
fetiche de desburocratizar tudo e todos, de limpar as mentes de complicadores, de
varrer o nhenhenhém que gera demoras. Ambicionamos, pessoal e coletivamente, causar – verbo intransitivo.
E, mesmo se causarmos,
continuaremos querendo: vamos querer o simples incomprável. Recuperar
igualzinhamente um sabor de infância, reconquistar a proximidade da família,
fazer maratona da série preferida sem que o telefone toque e toque e toque.
Particularmente, ainda quero atrair os beija-flores; quero juntar o povo da
turma de faculdade numa reunião decente; quero ficar livre do domínio mental de
músicas persistentes, obsessoras; quero dormir e acordar sem pena tanto de
acordar quanto de dormir; quero reconhecer constelações; quero aprender
bicicleta (pois é, não sei andar de bicicleta); quero algumoutra vez tomar
banho de chuva; quero retomar o relacionamento (infantil) com o patinete; quero
reagir melhor ao frio do ar-condicionado; quero alcançar o desapego. Quero
chegar à sabedoria de não me amofinar com ruídos. Quero ser uma forma de paz.
E quero descobrir sozinha uma
dúzia de passagens secretas palpitantes, se alguém aí tiver um castelo medieval
que não esteja usando.
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