Manuel
Bandeira desmancha corações em seu poema “Minha grande ternura”, verdadeiro
totem da doçura de sua obra, dada ao amor pelas pequenices. O final,
especialmente, é de não deixar pedra sobre pedra cá por dentro: “Minha grande
ternura/ Pelas gotas de orvalho que/ São o único enfeite/ De um túmulo”. Como
isso é lindo, como isso é triste: saber que existem ou existiram aqueles cujos
amados o tempo varreu, exilou, libertou de sentirem a ausência, e então
sobraram só as menores delicadezas da vida a homenageá-los – gotinhas diamânticas,
folhinhas chovidas pelo vento, borboletas que pousam quase de pantufas sobre
seu sono de granito. É belo e doloroso, e muito mais isto que aquilo, conhecer
essa lei do mundo inóspito; conhecer que há/houve almas respirando nas
esquinas, dando história às sepulturas, guardando verdades bombásticas, e no
entanto vem a pressa curiosa de viver e delas se desapega, ficando só o orgânico da natureza para embalá-las em seu ciclo hospedador.
Na
impossibilidade de lembrar todos os que não sei nem nunca soube, e mesmo os que
vi sem deles reter memória, mando então, aqui, minha sincera e coletiva ternura
aos esquecidos. Mando na brisa, na asa da borboleta de pantufas, todo o amor
abraçante aos velhinhos que aguardam silenciosamente a visita que não chegará.
Mando toda a solidariedade quentinha às crianças que esperam inutilmente na
saída da escola. Mando toda a brandura compassiva aos presidiários que jamais reencontraram
os olhos da família. Todo o meu afeto aos que, encarcerados num qualquer vício,
soltaram-se até da noção de que existiu família. Toda a minha fraternura aos
artistas vistos um momento e, depois, lançados ao limbo dos poemas, vozes,
imagens descartáveis. Toda a minha esforçada compreensão aos jovens
desperdiçados que vingam, no crime, a indiferença que os cobriu no berço. Toda
a minha empatia carinhosa aos pequenos que chamaram os coleguinhas para a festa
e não foram prestigiados. Toda a minha afeição irmã aos pedintes que já não
acham ânimo senão para estender o olhar aos impassíveis que passam.
Toda a
minha chocada piedade aos vizinhos que morrem tão, tão solitários que só os
bombeiros os descobrem, e só após semanas de decomposição abandonada. Toda a
minha amizade camarada aos que atravessam sozinhos os recreios no colégio, aos
que não são incluídos nos trabalhos de grupo, aos que surgem na foto da turma
mas ninguém recorda, aos que são escolhidos por últimos nos times da Educação
Física. Todo o meu carinho comovido aos que mofam nos hospitais sem o abrigo ou
a consciência de um rosto familiar. Toda a minha estima sorridente aos que são
empurrados do centro da conversa, aos que são alijados da piada e do mistério
cúmplice, aos que são isolados no canto do almoço, aos que dormem sem
perspectivas na ceia de Natal. Toda a possível fofura aos que, por uma
insanidade de motivos, ninguém namora, ninguém vê, ninguém afaga, elege, prefere,
mima, serve, escuta, preza, reconhece, fotografa, distingue. Toda a minha simpatia
prioritária a esses órfãos de mundo, a essas vítimas da preguiça coletiva, da
obviedade aguda de quem só busca gente alfa.
Irmãs e
irmãos esquecidos, irmãs e irmãos deixados no cesto das vidas recicláveis: a
vocês minha grande, minha imensa ternura de pequenina. Eu em verdade não os
sei, vocês não me sabem, mas espero que nos esbarremos por aí numa amorosa
festa de não nos sabermos juntos – num
programa de sociedade do qual não se possa viver nem morrer à beira. Numa sonhada,
suspirada e melhor terceira margem.
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