“E a
boca é apenas instrumento de segredos”, cantou um dos versos lindos e tristes
de Cecília. Sim, é nosso instrumento de segredos. Por isso os tímidos são às
vezes falastrões, anedotistas, quase espalhafatosos: cobrem de papel brilhante
o cofre, colocam pompom e neon, strass e purpurina, para que o verdadeiro
conteúdo a ninguém ocorra descobrir, ali encolhidinho no fundo do escuro. Atenção
aos que falam, falam, falam, falam muito, falam ininterruptamente, falam até
apaixonadamente de si e dos outros; é bem mania de quem se esconde.
Manifestar-se demais é, não raro, um salvo-conduto para pensar e expor-se de
menos – mas expor de menos não o vazio superficial (lamentavelmente, poucos têm
vergonha de exibi-lo), e sim a fragilidade que dói muito doída e muito dentro,
onde o que é fraco não tem vez.
A dor
legitimamente enorme não canta, não brinca, não fala. A dor enorme não fala,
inclusive, com o dono da dor, que a sabe ali mas não consegue estabelecer
negociação. Que faz então o dono da dor? Sem possibilidade de diálogo interno,
manda ver no externo, para testar a velharia de que quem-canta-seus-males-espanta
(quem canta e quem conta: causo, fofoca, piada, vantagem). Mas não adianta dar muito
acessório ao HD travado; o arquivo enterrado não abre, o programa oculto não
roda, o vírus silencioso mastiga as entranhas e, eventualmente, põe sem andar o
que andava. Enquanto não se mexe no núcleo que sangra, não há avanços, não há
intentos – há só barulhos.
A
excessiva necessidade do vizinho de espalhar suas compras aos ventos: medo,
provavelmente. Medo de não ser mais nada que aquilo; medo do que lhe resta ser
se a inveja alheia não o acompanhar; medo de admitir que preferia estar 17h na
sweet home a voltar às 22h para o home theater. Sua amiga que exalta malucamente
o atual namorado: medo, podes crer. Medo de ser tão idiota de paixão pelo
infeliz anterior, medo de não merecer nunca a perfeição deste ser humano, medo
de assumir para consigo que na verdade acha um saaaaco catar vaso no porão para
aconchegar tanta flor, acha uóóó notar que a família dele sabe até o ciclo menstrual
dela, acha o fiiiiiim aturar telefonema fofinho quando só se quer fazer
maratona de Netflix no sofá. O aluno que tem 8.974.992 seguidores em cada rede
e posta hashtag de 6,2 em 6,2 segundos – duas sílabas: me-do. Medo do que o
silêncio da matutação pessoal lhe provoca, medo de se ver sozinhamente entregue
aos próprios demônios, medo de repetir a rejeição que ainda não digeriu, medo de
as memórias o abordarem por baixo da porta, medo de não ter assunto consigo
mesmo. Quase sempre é um tipo de medo que nos rala, que não se encara, que se
sufoca sob decibéis e decibéis de construção individual – sob camadas e camadas
das automentiras sinceras que nos interessam. Medo de quem queremos ser. Medo
de quem morreríamos ao ser de novo.
Falar,
amigos, é nossa fantasia. Só não há carnaval que mate toda a cinza que vestimos
da boca para dentro.
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