Pode se
horrorizar, irmão: gosto de programas de psicopata, tanto verídicos quanto
ficcionais. Evidentemente (espero que evidentemente) não tenho a menor
tendência para a psicopatia; sou pouco sentimentaleira por motivos de
introspecção, desajeitamento e superego, mas não CONCEBO como alguém possa
desamar gratuitamente – e o que há de mais pavoroso: ter gratuito prazer em
causar dor. Céus, fico um dia inteiro me açoitando mentalmente se falo mais
grosso com um aluno. O simples fato de não conceber atrocidades, porém, é a
exata garantia para curtir essas séries, como um salvo-conduto (“oooolha como
eu e meus amigos somos legais, nunca seríamos capazes de cometer umas tais
aberrações”). Mas há outros porquês. Um deles: prefiro esperar o melhor sem
deixar de conhecer o pior de nossa espécie, para entender, para identificar os
prenúncios. Um segundo motivo, e mais assustador que os monstros mesmos: vendo
programas de psicopatas longínquos – que matam lááááá nos Estados Unidos ou mataram
há muuuuuitas décadas –, a gente deixa o terror igualmente distanciado,
canalizado, redomizado. É tanta e tão extrema a malvadeza desse povo que vira
troço irreal, e mesmo o que não é ficcional parece sê-lo. Aí vem a razão
essencial: assistimos a tudo sob a promessa de segurança das paredes
ar-condicionadas que nos abraçam.
Não se
assustem, portanto, de eu não me assustar com episódios (televisivos) de gente
mergulhando gente em ácido, fazendo peruca com cabelo de gurias assassinadas ou
enucleando os outros por esporte (sim, tem psicopatia que cisma até de arrancar
os olhos alheios). São estapafurdices isoladas, improváveis, coisas de Jigsaws
específicos. Mas quer me deixar 100% doente d’alma? No Brasil atual, tá moleza:
me exponha à perversão sinistra, kafkiana, enraizada e coletiva que se tornou
esta distopia de fazer Orwell babar de inveja. Me mostre a náusea de um sistema
criminalizando ex-presidentes – legítimos – por um certo manejo e aplaudindo “presidentes”
golpistas pelo mesmo manejo. Me esfregue na cara um projeto sugerindo ensinos
em que História e Geografia não sejam perenemente obrigatórias (e uma
propaganda exibindo vítimas que vão para o abate sorrindo de orelha a
orelha). Me obrigue a ver manifestações em que aposentados apanham por não
receber, em que professores e médicos levam bala e gás por não quererem ser
duplamente descontados. Me soque no queixo com uma chantagem emocional pública,
falsa, repugnante, nojenta, um pretexto imundo para privatizar apenas a água – a.k.a. o maior bem e maior recurso do terceiro
milênio. Me faça vomitar com campanhas em que trabalhadores de ar-condicionado
(e de expediente terça-quarta-quinta, e de auxílio-paletó, e de gorda
aposentadoria após menos de uma década) convencem fofamente o lavrador que
trabalha desde os onze a achar top se
aposentar depois dos 65. Me ponha diante desse nível repelente, torpe,
asqueroso de deformidade humana, próxima e pairante, e aí sim – aí sim encarnarei
a mocinha de Thriller, com gargalhada
em off mas sem fim de pesadelo.
Vou te contar: o que os meus e os seus olhos já não podem ver é
exatamente o que devem. O que precisam. Não tem FBI que resolva coisas que só
nossa união pode deter. Fundamental, infelizmente, é que seja generalizado o
horror: é impossível fazer a revolução sozinho.
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