A amiga
posta no Face uma foto risonha, deliciosa de seu suculento bebê de quatro
meses. Diz que não se lembra de sua vida sem aquela ternura, questiona como
pode ter vivido sem aquele amor. Tudo que não é verbal no mundo vem plasmado em
poucos termos seus: “parece que ele esteve comigo desde sempre”.
E não
esteve? meu coração assopra.
Não, não
acredito em reencarnação. Falo dessa misteriosa e já tão esquecida pessoa que
éramos antes de sabermos o amor de agora. Soa impossível lidar com a memória de
uma vida em que não tínhamos nosso vínculo mais natural e definitivo – e, até
porque não pretendo filhos, nem me limito aqui ao amor do sangue, ao amor de
uma geração que cuida de outra; cito a grandeza em si do encontro especial, de
qualquer ligação tão sem fim que parece não ter tido início. Pode ser (meu
caso) o amor do cúmplice de vida, pode ser o da irmandade indissolúvel que se
reconhece no amigo repentino, pode ser sim o filho que vem ou não vem das
entranhas, pode ser a afinidade quase sobrenatural de quem é gêmeo no trabalho,
pode ser o descobrimento de um escritor-guru-guia-filósofo que lhe causou uma
tempestade, pode ser a tempestade mesma – ou seja: o esbarrão decisivo de nós
para conosco. Tanto isso foi um Equador em nossa cronologia que já suspeitamos
nunca ter havido outro hemisfério. Pois houve: houve aquele tempo em que a
gente, sem saber, arrumava a casa para a adivinhada visita.
Quem
éramos antes de amar quem amamos? Éramos o embrião de hoje, a fruta dentro da
casca, como diria Machado. Éramos o salão de festa que amadurecia e se
aprontava, éramos a decoração sendo feita, o quarto sendo formado para o
inquilino que não sabíamos ainda quem era, mas que pressagiávamos como seria. Éramos
a pessoa que primeiro se conhecia, para finalmente vir a reconhecer. Éramos não
o que somos, porém o ensaio, as fundações, os andaimes, as possibilidades, os
sonhos, as apostas, o foreshadowing das cenas futuras, o spoiler mais ou menos detalhado
do agora, mas sempre um spoiler ambulante. Tínhamos vida? prestava? sim e sim:
sem aqueles anos iniciais, seríamos capengas, não estaríamos preparados. Cada
solidão inquieta nos fazia atinar com as características que preencheriam
corretamente as lacunas. Cada situação vivida ou observada nos punha mais
atentos ao que nos convinha. Cada pedaço de incompletude foi essencial para decifrarmos
o que se aproxima do completo, e que não receberá o último bocado enquanto
vivermos. Éramos um puzzle recém-iniciado; por causa das margens e dos
primeiros traços montados, pudemos em certo momento receber nossas peças
centrais. Aqui estamos, imagem principal já delineada, e ainda e sempre mais
aptos para maior beleza, para o quadro total.
Quem éramos? Alguém que nos apresentou o amor de toda uma vida. Querido
eu do passado, você fez certo; te devo muitas. Te instalo quente e confortável
na lembrança e prometo casa, comida e pijaminha da gratidão.
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