Foi bem
este o verso de Ricardo Reis: “Prefiro rosas, meu amor, à pátria”. E não posso
deixar de concordar com Ricardo Reis. Abraço minha terra natal não com a
canção-do-exilite aguda, exaltada e furiosa que dominou os românticos, muito
menos com o impulso besta que levanta a galera em Copas do Mundo, mas com o
afeto medido, moderado, de quem vê as encrencas de alguém da família e mesmo
assim muito lhe quer, embora sem ilusões. Isto posto, se vierem me estender
bandeirinhas verde-amarelas para sacolejar na rua ou espetar na varanda,
recusarei com um terminante “obrigada, eu passo”. Me nego a replicar o
patriotismo de vitrine, o patriotismo de comercial de banco, o patriotismo
superficial das manifestações que pintam a cara como o seu mestre manda. Sou
decididamente arredia ao verde-amarelamento de nossa lealdade, como se o Brasil
fosse emoção, medula, time. Prefiro rosas.
Se a
pátria que me mostram é a que nos encosta na parede com a chantagem do “ame-a
ou deixe-a”, se a pátria que me empurram é a dominatrix que espanca mas exige
obediência de cachorrinho – mal aí, gente: prefiro rosas. Minha pátria real não
foi forjada nos livros de Moral e Cívica; nasceu vermelha de urucum e
pau-brasil, vermelha de pitanga, vermelha do que sangrou nas tabas e senzalas,
nos hospitais e nas revoluções. Minha pátria é feita de flores encarnadas, de
guaraná e argila, da morenice-jambo de Gabriela e Narizinho. Não é mansinha nem
tola não, não tem a proclamada paz que
é somente escravidão amordaçada; é amazona guerreira, é Chiquinha Gonzaga, é
Anita Malfatti, é Anita Garibaldi. Meu país de verdade transcende a masculinização
violenta que não topa liderança feminina, que não sabe conviver com a recusa
feminina, que se garante esmagando a reputação feminina. Minha terra nasceu Pindorama
com matriarcado na veia; tem curvas, gingados e quadris, é útero, é telúrica.
Se a sua é dura, cinza e militar, sinto muito: prefiro rosas.
Se o que
se entende por pátria é o perfilamento diário para entoar um hino tão líquido e
doce (não era melhor cantá-lo batucando, mordiscando manga, fazendo carinho na
viola?), so sorry: prefiro rosas. Meu país é moleque no passinho e no pagode,
sim, mas na vida não usa jeitinho, não aprendeu malandragem; vovó ensinou desde
cedo que, se a caneta que não é sua tem de voltar ao estojo do coleguinha,
quanto mais dinheiro público. Não quero dizer que essa pátria macia e inzoneira
não erre; erra por demais, foi mal-educadinha, malcriada, de propósito
esquecida. Só que tem memória sim, aprende sim, e não merece ser xingada hora
por hora, ameaçada de troca por Miami. A danada tem jeito. Quem tem humor, tem
jeito; e ela é esperta, materna, sabe embalar com música suave, sabe os versos
mais lindos, sabe juntar línguas em todos os melhores sentidos. Essa
pátria-jambo não gosta sempre de sapatos, como a menina de cravo e canela,
porque tem (ainda) muita grama para pisar. Não gosta da paleta acanhada de só
duas cores, que lhe deram para vestir com intenções e memórias europeias: quer
dançar com todos os vestidos, quer usar roupa de todos os folclores, quer
erguer todas as (justas) bandeiras, quer ser amiga de todos os times, quer
abraçar todos os países – nada de boicotar tons, lindezas; nada de boicotar
ninguém. Essa pátria-Narizinho pode ter andado com príncipes, mas pertence
mesmo aos sítios, às viagens, aos sonhos, à escuta, à luta. Não é da guerra,
mas peleja; não é do coturno, mas desfila; não ataca, mas resiste. E nunca,
nunca há de negar sua história à força enterrada, mexida, desviada – sua história
estuprada pela sujeira das versões. Não há de estancar seu rumo chorando pela beleza derramada.
Prefere
risos. E rosas.
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