Não é
que eu não goste de criança, gente. Acho o conceito ótimo; acho que resultam em
trouxinhas fofas e aveludadas, têm dedinhos deslumbrantes de minúsculos,
pezinhos mastigáveis e o filé dos mignons: bochechas. Mas para mim a coisa fica
nesses termos – um ímpeto de fofúria
homicida e, depois, a devolução do pequeno ser humano (estraçalhado de ternura)
aos responsáveis. Daí não passo, daí ninguém me tira. Todo o encanto do
universo por um bebê gorducho não me levaria a produzir um para consumo próprio
– até porque, se o bichinho conseguisse sobreviver a meus furores de amor, em
pouquíssimo tempo já teria deixado de ser um bebê gorducho, cometendo a
desagradável mania de crescer.
A
verdade mais plana e mais prática é que criança fere pelo menos duas de minhas
necessidades: a de privacidade e a de silêncio. Criança (com toda justiça,
aliás, já que não tem culpa de ter sido jogada no mundo cheia de urgências) é
naturalmente carente e barulhenta em suas descobertas, dá gritinhos felizes e
desesperados, precisa ter por perto a quem perguntar, a quem pedir água, a quem
entregar uma flor. Precisa elaborar suas angústias numa nuvem de decibéis,
precisa chamar “mamãe!” 48 mil vezes por segundo – e ter como resposta a mesma
paciência sorridente –, precisa às vezes acompanhar o genitor na última
fronteira da intimidade que é o banheiro. Criança precisa de um tempo que se
desvela, que se debruça, que se conforma em não terminar o livro nem ver a série
quando há um vácuo de trabalho, que se entrega todo em brincadeiras que não
escolheu, que finge se espantar de novo com as menores banalidades, que não faz
cara de tédio porque está todo completo de êxtase. Não sou esse sorriso, esse
tempo, essa paciência; sou o eu-passarinho que a muito custo se resigna às
obrigações inevitáveis, que necessita tanto quanto a criança de ar e céu e luz
(mesmo que no quintal da literatura), que tem também um amadurecimento mental
em progresso destrambelhado. Sou incapaz de me ver roubando a um inocente o que
desejo para mim mesma.
E, pois –
não é que eu não goste –, mas prefiro ter todo o cuidado de não chamar nunca
esse inocente, de nunca me arriscar a fazer uma vidinha para a qual eu não
seria inteira. Me horroriza pensar que, por mea
maxima culpa, uma qualquer criatura se suspeitasse indesejada, ainda que
num deslize de voz ou de olhar, de sangue, de toque, de pensamento, de minuto. E
existe, poderosa, a eloquência das vidas já feitas – dos amigos a quem damos
menos que a fundamental atenção, dos alunos que transpiram a carência de um
afeto adulto, da família (original) a quem furtamos o que foge ao tempo de
convívio regulamentar. Existe um mundo já produzido de amores que escapam aos
dedos, amores para os quais desde há muito me falta suficiência e mais decidida
coragem. Docemente incompetente e exausta no jogo de relações já sendo jogado,
não me vejo, em sã consciência, levando a coisa para os acréscimos.
Bochechas,
entretanto, continuam bem-vindas. Para massacrá-las, não preciso mais que um
intervalinho de almoço.
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