Corre
que a promoção termina hoje! Corre que são os últimos dias! Corre que todo
mundo já está na fila! Corre que quase tudo de ingresso já foi vendido! Corre,
infeliz da cidade, morador exasperado desse formigueiro de pedra, elemento
involuntário da maratona em que o nascimento nos inscreve; corre, o concorrente
vai acordar mais cedo, o rival vai pensar antes, o competidor vai bater
mais metas e tomar mais café e acertar mais questões e recolher mais diplomas e
viajar mais lugares e ter mais filhos (gorduchos, vermelhos, bochechudos) –
antes, sempre antes. Corre, vai ficar nesse segundo lugar absurdo? vai sentar
enquanto os outros estão patinando? vai ler coisa mofada enquanto a galera já
domina aparelhagem de astronauta? Corre, hamster sem reflexão, coelho da Alice,
bichinho de Pavlov: condenado, constante, urgente, imediato. Corre que não te
alcanço; não quero, não tento, nem peço zap (inclusive por eu não ter zap)
quando você supostamente chegar.
Eu fico.
Não sou mãe, não sou médica, ninguém tem emergência de mim. Fico na leitura do
livro amarelamente editado em 1936, folhas que dão alergia e exalam naftalina –
serenidade bem analógica. Fico com a parada pra ver a série querida em plena
noite útil, com a desobrigação do fim de semana. Fico com a desnecessidade
liberta de checar Face por mais de cinco minutos diários, se tantos, se todos; fico
principalmente com a inexistência de internet no celular – precisão de acessar
o quê? se tem o livro lento, amarelo, de fala oitocentista sorrindo na bolsa?
Fico com o vagar de descobrir flor que ninguém olha, de tentar aproximação com
borboleta, de rir sozinha da bobeira dos anúncios, de meter o nariz na varanda
para sugar a manhã nascendo orvalhosa, de dar uns pontinhos tortos mas firmes na
saia que descosturou, de lavar à mão as roupas de mais afeto, de tirar foto de
grafite urbano para usar como tela de celular, de pausar no hortifrúti para
farejar temperos, de cumprimentar o fruteiro que já é migo de infância, de
caçar possibilidades novas de lanchinho, de descobrir revistas nunca dantes
suspeitadas, de morrer de profundos amores com vídeo de coalas, gatildos,
porquinhos e outras avalanches de fofura explícita. Fico com a mastigação
demorada, sem eletrônicos à mesa; fico com o expediente cheio de preciosos
vácuos; fico com o passeio de bonde, a abolição do relógio em livraria, o
cinema sem contatos fora da sala, a trufa amiga no meio da tarde, o olhar vadio
na paisagem, o desroteiro, a curiosidade, a flânerie.
Não sou
e não me quero Ferrari, adversária, refém. Nem sou Roma de se fazer num dia,
nem mundo de ser (metaforicamente) feito em sete. Viver demora, é longo, é
largo, é pleno de detalhes, balofo de incompreensões a destrinchar, de
conflitos a digerir, de belezas a absorver. “Mas você topa ficar para trás?”
Querer, não quero – mas sem neuras se for o lugar do silêncio, do maior espaço,
da companhia de doces retardatários que se distraíram seguindo uma libélula ou
tricotando um casaquinho.
Levo fatalmente comigo minha adversária real. Se eu me passar a perna
para ver se suplanto o inimigo fictício – já estarei vencida.
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