Morri de
bem-querença ao ler a história publicada há três dias no site The Dodo. Uma
clínica veterinária de Tel-Aviv, Israel, recebeu o pacientezinho mais insólito:
o infortunado caracol que teve sua concha quebrada quando uma mulher
acidentalmente o pisou. O mais maravilhoso é que a ré, em vez de largar à morte
a pobre lesminha sem-teto (quantos se comoveriam com uma vida tão gosmenta?),
foi bater com ela na tal clínica, em busca de conserto. E os doutores
providenciaram fofamente o conserto com afeto e cola, pedacinho a pedacinho,
mãos firmes e espertas para não deixar o grude escorrer concha adentro. Sucesso
total na cirurgia. O paciente aprovou o resultado da plástica e não parece
temer as semanas ou meses de recuperação: instalou-se pimpão em seu spa forrado
de alfaces e legumes fresquinhos – com sorriso de antena a antena.
Quero
crer que só psicopatas de grau 22 também não sorririam diante da notícia. E no
entanto quantas conchas, tantas!, não estraçalhamos inconsideradamente pelo
caminho, sem voltarmos com alívio e reparo? Quantas proteções – frágeis mas
essenciais – não detonamos em nossa brutalidade sem tempo, sem papo, sem
atenção? Quantas defesas não quebramos no mau sentido, baixando escudos sem
devolvermos, em troca, alguma ternura de lã? Quantas autoestimas lentas, lentas
não rachamos num chute, numa pisada, no peteleco de um comentário que a vítima
não digere nem com boldo, mas que para a gente já virou brisa duas esquinas
depois?
Não há
clínica para reconstrução imediata de conchas emotivas, mas há delicadezas, há
perdões, há retornos. Existe o abraço chorado do filho que nunca quis realmente
dizer “te odeio”, existe o “me desculpa” público para a alfinetada também
pública, o elogio enfático que corrige a crítica desastrada, a alegria
espontânea do encontro que substitui um qualquer muxoxo, o remorso legítimo que
apaga o sarcasmo momentâneo, a guerra de travesseiros que mata o clima de
distância. Não existe médico que desfibrile um pequeno enfarte d’alma, mas há
tato, empatia, buquê, chocolate, cafezinho, cartão de papel, cartão virtual, mão
na mão, olho no olho, companhia pro estudo, apoio na hora de contar aos pais, presente
escrito pelo autor preferido, dedicatória no presente escrito pelo autor
preferido, baby-sittice voluntária, quebra-galhice na troca de turno, diálogo
com silêncio, luar e vinho. Existe tudo que é cola para a pequena paz, mais ou
menos forte, onde mora o outro; e existe tudo que é cola para a segurança
interrompida entre o outro e nós. Pode cicatrizar de todo, pode não sumir nunca
a sombra da arranhadura interna – mas a cola garante nossa funcionalidade,
nossa estrutura possível, nosso mínimo de esqueleto, a não perda do ponto de
fuga localizado em nossa solidão portátil.
Da próxima vez que suspeitar ter atropelado uma concha, volte. Socorra.
Abrigue. Talvez o coração de sua vítima não tenha para onde ir.
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