Vocês
sabem: piruá é aquele milhinho teimoso que não explode em pipoca – fica lá no
saco ou no panelão, disfarçado no meio dos grãos que cumpriram sua metamorfose
(vem no bolo e quebra o nosso dente, o canalha). Não sei explicar por que essa
desgraça vegetal acontece; ignoro se existem milhos que simplesmente nasceram
gorados, sociopatas, de núcleo duro e ruim, ou se é um fenômeno do momento:
apenas calha de aquele grãozinho estar na posição errada, na hora errada, não
suficientemente exposto ao calor que o transformaria. Respostas para a redação.
O que sei é que, em nosso enorme saco de pipoca humana, não consigo acreditar
de verdade que haja elementos destinados à condição de piruá, no matter what. Será
possível que a natureza, tão precisa e econômica, iria se dar ao trabalho de
passar quase um ano juntando célula para fazer um cérebro
incrível-fantástico-divo-extraordinário como o nosso – somente para desperdiçar
tanta alma e tanto neurônio com um ser condenado à inutilidade?
Me chame
de Pollyanna terminal, mas não me conformo. Não me conformo em admitir que
alguém possa sair do útero unicamente para não servir pra nada. Não consigo
concordar que exista milho humano estragado de fábrica, imutável,
intransformável, inalcançável, fadado pela Moira. Prefiro crer na hipótese do
fogo insuficiente, do cerealzinho mal posicionado: gente para quem o amor não
chegou direito, gente que não teve a fortuna de cair numa família que lhe
aquecesse os talentos, gente que ficou num canto tão escuro da panela que nem
pôde pensar em talentos porque precisou ganhar a vida, gente até que recebeu
tanta quentura quanto os grãos estourados – mas que, por estrutura própria, careceria
de mais quentura ainda.
Estamos
falando de pipoca, porém gente, afinal, é mais carne que qualquer outra coisa
alimentícia, e cada carne tem seu ponto de cozimento. Há seres cujo potencial
brilha mais in natura: por mais que
vivam e recebam crueza, têm o coração espontaneamente macio e apetecem mesmo
sem tempero (não quero dizer, amizades, que alguns devam ser maltratados para poder
divar, é ÓBVIO; constato apenas que alguns conseguem divar no mundo apesar de
todos os perrengues, e isso é um relativo consenso). Há espíritos que já
atingem pleno gosto e suculência com uma seladinha rápida na frigideira; outros
dependem de um mar de cuidados, esforços, tentativas e abraços até que a
receita fique masterchef. Não se sabe, não tem padrão, não tem manual. O que se
sabe ou imagina: todos podem ser masterchefados. Todos têm sabor insubstituível,
único. Todos podem ir à mesa em seu próprio esplendor de erva, legume, fruto, especiaria,
proteína. O negócio é que todos achem alguém com ternura, visão, tempo,
tolerância, persistência, entendimento, desapego, entrega, respeito, empenho,
desvelo bastante para guiá-los à sua inteireza.
Naquele
serzinho desperdiçado na cracolândia, a gente talvez nunca saiba que mora um
Beethoven com ouvido absoluto. A aluna que mil vezes se repete burra e incapaz
talvez nunca tenha pilhado alguém que tivesse um estalo e lhe dissesse: você já
tentou assim? A menina que foi vendida pelo pai a se prostituir desde os onze –
quem pode jurar que não vive nela a capacidade de uma física nuclear, de uma
Jane Austen, de uma Fernanda Montenegro? O senhorzinho que espera a vez,
conformado, na fila imensa da aposentadoria – quem põe a mão no fogo se seus
quarenta anos de comércio morno não poderiam ter sido quarenta anos de gloriosa
vida de circo, de medicina revolucionária, de acompanhamento esportivo
lacrador? Os que vemos às vezes com desprezo, não raro com nojo, na maioria dos
casos com pena, vejamos – ainda, sempre – com expectativa. Mais que um ponto
fraco, o piruá tem sim um ponto forte, pode sim ser tocado em sua tecla power,
guarda sim o segredo de um incêndio que o ressuscitaria para si mesmo.
Tudo que eu queria desta vida: de propósito ou até inadvertidamente, ser
esse incêndio.
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