Segundo
tio Freud, “a felicidade é a realização de um desejo pré-histórico da infância.
É por isso que a riqueza contribui em tão pequena medida para ela. O dinheiro
não é objeto de um desejo infantil”. Bem, tio Freud não disse isso exatamente
ontem, mas li com a mesma admiração inédita de uma descoberta de cura, uma
ultranovidade tecnológica. Como é que, embora sabendo essa verdade, nunca a
tinha visto vestida desses termos? Como é que, com toda a superfície terrestre
cantilenando que “dinheiro não traz felicidade”, não se repete também que é
porque criança – nosso id eterno – está mais interessada em desenho, abraço e
brigadeiro?
Esta
é nossa pré-história emocional: querer a maciez de quem nos cuide, nos
organize, nos providencie a certeza do fim da dor e da febre; querer morar onde
se brinque e se corra, onde se estenda a mão e se acesse o verde e o vivo; querer
a luz sem fantasmas, mas querer igualmente o bocadinho de fantasma e mistério que
banhe as férias de amor aventureiro. Querer o tempo livre de inseguranças,
limpo de obrigações que não sejam o trato de quem se adora – como o estonteante
coelhinho de estimação. Querer o belo enfim, o especial, o só-nosso, e uma
banana para o preço não existente: nosso
clubinho made in sala com lençol e
mesa, nosso trenó de tábua, nossa boneca de papel, nossa casa de embalagem de sabonete em
que fica divando a boneca de papel. Tudo purissimamente simples, mais essência
que objeto, menos matéria que sensação, mais símbolo que posse. A existência
anterior ao monólito das etiquetas, à percepção das castas em forma de
logotipo. A vida interior a.C. – antes do consumo.
Então
crescemos; mesmo nosso resto de infância acaba poluído de marcas e grifes, de
um grande implante de necessidades. Cada vez mais logo, mais cedo, parece que
deixa de bastar o ar, o parque, o passeio sem rumo, o biscoito lanchado na
varanda. Engolimos metas no café da manhã: é preciso manusear seu próprio
drone, é fundamental dominar o novo game, é obrigatório bater selfie na loja bombada
do shopping, é caso de vida ou morte mastigar 432 McLanches Felizes para
completar a coleção. E a felicidade morre no nome dos McLanches. Não fomos
planejados para tê-la; quem é feliz compra menos. Fomos educados ano a ano para
seguir estafados e histéricos, exaustos e explorados, decepcionados e em
desalento; afinal, nosso dever de casa não é (nos) realizar, é adquirir. Nenhum
relatório alertava que vez ou outra, por acaso, seríamos gente.
E
já que o somos com certa inevitabilidade, a essência volta, chora, fica.
Chafurdamos nos paraísos artificiais o quanto nossa resistência aguenta, porém
aquele ser que deixa as pantufas ao lado da cama, à meia-noite, entra em si com
pés e alma descalços, e se encolhe na pré-história pessoal sobre o útero da
madrugada. Ali somos nós, os de berço, os de fábrica: os que continuam querendo
a maciez de quem nos cuide – o amigo eterno, o colo do amor certeiro, a
gratidão do filho – ; os que continuam querendo agarrar a saúde definitiva; os
que continuam querendo sítios, naturezas, viagens, bosques e quintais, querendo
a paz onde não se estenda a mão e se acesse o cinza e o fastio; os que
continuam querendo sol da manhã na sala e descobertas literárias na poeira do
sótão; os que continuam querendo ócios e liberdades, mas também vidinhas
adoradas para sufocar de amor. Ali sem pantufas, descalços em nós, ainda somos
o mais primitivo que nos pulsa nas artérias – desde o primeiro útero. Já não
somos a criança, mas somos nossa fiel linha melódica em outro (nem sempre
melhor) arranjo.
Em
geral evoluímos, sim, e sou constante em defendê-lo; que evoluamos, no entanto,
sem soterrar nem destruir os fósseis que nos explicam. Nós o descobrimos e
controlamos na pré-história – mas viramos brasa morta se não alimentamos nosso
estonteante fogo de estimação.
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