Outra de
escritor português – desta vez, Miguel Esteves Cardoso: “Ninguém tem pena das
pessoas felizes. Os portugueses adoram ter angústias, inseguranças, dúvidas
existenciais dilacerantes, porque é isso que funciona na nossa sociedade. [...]
E, no entanto, as pessoas felizes também sofrem muito. Sofrem, sobretudo, de ‘culpa’.
Se elas estão felizes, rodeadas de pessoas tristes, é lógico que pensem que há
ali qualquer coisa que não bate certo. As infelizes acusam sempre os felizes de
terem a culpa. É como a polícia que vai à procura de quem roubou as joias e
chega à taberna e prende o meliante com ar mais bem disposto”.
Apesar
de a disposição dos brasileiros ser mais solar que a de nossos ascendentes
melancólicos, a hilária observação de Cardoso casa conosco às maravilhas:
levamos no sangue o irritante remorso da felicidade – pelo menos da felicidade
entre pessoas urbanas, informadas e instruídas. Achamos liiiiiinda aquela
reportagem que mostra um senhorzinho ou uma senhorinha do interior dos
interiores, plenamente realizadx com sua terra florida, a netarada reunida no
Natal e a rotina bucólica; suspiramos pelo locus
amoenus, pensamos em largar tudo pela vida à beira-mar depois da
aposentadoria, mas na primeira consulta médica vamos fazer torneio de dores na
sala de espera. Na primeira reunião de colegas, ficaremos constrangidxs por não
ter grandes sofrimentos a desabafar. Estamos bem resolvidxs no trabalho, o amor
segue alegre e cúmplice, a parte espiritual caminha serena e firme, a situação
financeira não é das piores, a saúde está dando pro gasto, não há filhos ou
pais doentes, não há dívidas, não há hipotecas. Ou seja: não somos
interessantes, e evidentemente temos algo de errado.
Gente de
classe média, cidade grande, corada e nutrida precisa de uns bons dramas com
vinho tinto para ser alguém, ou então é jogada na geena dos medíocres e
inexperientes. Precisamos suar mares para conseguir o mestrado, chorar sangues
na tese de doutorado, batalhar um Vietnã pela promoção, estacionar num dilema
horrível sobre a maternidade, encarar jornada tripla sobre salto agulha, ter
uma ou outra distensão após as cinco horas de academia, enfrentar um péssimo
síndico no condomínio – ou seja: sofrer. Sofrer explicitamente,
indiscutivelmente, em voz alta. Sofrer é o cartão de visitas da decência e
consideração. Não sofrer o suficiente é afrontar o esforçaholic que em tudo vê
(com horror) fraqueza e comodismo; é debochar dos que empenham fortunas no
personal, no coaching, no terapeuta. “Você
é que é feliz”, sibilam os eternos angustiados ante os satisfeitos, mas no tom
que é mais desprezo e acusação do que inveja propriamente – como quem resmunga:
“Ó ser limitado e vil que não tens bocas a alimentar, que não lutas na justiça
contra o inquilino que não sai, que jamais quebraste a perna ou te perdeste na
mata, que em nenhum momento vês tiroteio ou assalto, que todo ano viajas com
esse salário de fome sem ambicionares aumentá-lo, que assumes unicamente os
encargos que te dão na empresa, arreda-te de mim! Desvia tua casta da minha!”.
O feliz evidentemente é belo porque fez plástica, é hippie porque papaizinho
sustenta, comprou carro novo porque arranjou falcatrua, tem um casamento lindo mas
vai ver quantas brigas o prédio escuta? O feliz é um suspeito, o feliz é o
mordomo, o feliz está indubitavelmente escondendo o jogo. O feliz é uma ofensa.
Terceirizar o desconforto com nossa infelicidade urbana, chique,
neurastênica e obrigatória: quão brasileiro, quão humano. Somos filhos da
Inquisição, do beija-mão, do coronelismo, do americanismo. Nascemos fartos de
todo lirismo que seja libertação.
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