O belo e
oscarizado Moonlight se divide em
três atos que correspondem a diferentes idades do protagonista: infância,
adolescência e adultice. Em cada ato o personagem é identificado por um nome em
especial, o que rima com sua busca nunca terminada pela identidade verdadeira.
Uma coisa, porém, não só não muda jamais como é justamente a marca maior dessa
batalha inglória: o silêncio. Chiron, o protagonista, tem uma terrível e
agonienta incapacidade de se botar em palavras – em parte por defesa, em parte
por bug de digestão mental. Dez minutos de projeção e a gente já quer sacudir a
criatura de nervoso e desembuchar-lhe as dores. Mas eis a pergunta do milhão:
que dores? Não que o menino não as tenha reais e imensas; é o exato oposto –
tão reais e imensas são elas (mãe drogada que se prostitui, perseguição na
escola, ausência paterna, falta de perspectivas, questões de sexualidade
incompreendidas e penosas) que Chiron simplesmente não sabe por onde se começar.
Sofre, cala e evita a eloquência até dos olhos sempre baixos.
Muito
infelizmente, não são raros os meninos e meninas – em diversos atos e idades – tão
habituês do caos que não conseguem achar a trilha de pão que os retome de seu
abandono. Gente muda de perplexa consigo mesma, gente tonta de sua ferida que
tudo perpassa, como um tumor que devora os órgãos sem radar. E não descobrir a
ponta do fio de Ariadne no meio da nuvem de pasmo é apenas fragmento; o pior é
que dói a procura. Dói a própria tentativa de verbalização, como dói qualquer
limpeza de machucado. Mencionar o que nos aflige não é só difícil, é
arranhante; enquanto a dor gira confusa, numa grande massa cósmica, há uma
chance remota de fingirmos que não existe, tal qual negação de doença não
diagnosticada. Quando é finalmente dito ou escrito, porém, há materialidade, realidade,
registro – um trabalho a enfrentar, uma saga a cumprir. Verbalizar nem sempre
melhora, mas ao menos guia; tira o pesadelo da sombra e traz para a prosa;
arranca o místico da dor, faz o éter virar plástico, faz o estritamente pessoal
virar comum e reconhecível. É isso que também (às vezes) nos impede de pelejar
pelo fim do nevoeiro: um certo ciúme do que era só nosso e vai ficar universal.
De que
jeito medicar o silêncio alheio? Com amor e escuta se medica tudo que há para
ser tratado (claro que falo aqui dos primeiros socorros, soro caseiro d’alma,
já que o ideal é poder incluir ajuda profissional no cardápio). Nunca se sabe
onde está a chavinha, mas se sabe perfeitamente onde não está: gritos,
insistências, ameaças, julgamentos não abrem a ostra, que só se entrega depois
de muita estrada pavimentada. É o balançar reprovador de cabeça que não se dá,
é o comentário generoso que se faz do caso fictício, é o acolhimento sem
relógio, é o quitute favorito fora de aniversário, é o abraço que não desbota. O
amigo com acesso à dor do amigo é aquele que oferece as mãos como base para que
o outro organize o novelo: é insuficiente e é muito, muito, muito.
O amor
disponível nem sempre vai conseguir ensinar a nadar, mas em 100% das correntes
vai servir de boia.
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