Realmente
não sei o que dá (se é que dá alguma coisa) na cabeça de quem defende que
bandido bom é bandido morto. Considerando o detalhe de que o bandido por
coincidência é gente, equivale, consequentemente, a dizer que gente boa é gente
morta. E não me venha um rebotalho da SS “argumentar” que quem mata, estupra,
rouba não é gente – até porque, se não fosse, não estaria submetido aos
sistemas judiciário e penal, e por conseguinte não poderia ser julgado por
crimes, que são prerrogativa, adivinha? de gente. Ainda que não se encaixassem
na categoria humana, criminosos teriam sua organização protetora, como
criaturas móveis e ativas que são. Mas não vai rolar fuga do óbvio, amados:
bandidos são muitomente da nossa espécie, e a sociedade vai ter de se conformar
em fazer o dever de casa lidando com patologias, distúrbios, destrambelhamentos
de vida, psicopatias e disfunções biográficas demasiadamente humanos.
“Ah,
você não diria isso se tivesse uma pessoa amada atacada por criminosos.” Em
primeiro lugar: a classificação de seres como Homo sapiens independe de casos e percepções individuais; ou são,
ou não são. Ninguém será humano até o meio-dia porque nunca me fez nada e,
meio-dia e sete, já terá sido rebaixado ao reino monera por ter me causado
danos. Em segundo lugar, por mais que seja perfeitamente natural e cabível
revoltar-se ao ver alguém próximo ser atingido, quem se revolta e (por um
momento) saliva por vingança é nossa parte selvagem, irracional, puro id e puro
instinto; quem grita em nós é a besta, que, se completamente solta, não duvido
fosse capaz de brutalidades até piores em retribuição. Mas não somos a besta – porque
não queremos, devemos nem escolhemos sê-la; somos basicamente nossa porção
racional e civilizada, que geme, chora, clama, porém não devolve o mal ao mal
por saber que não é inteligente aumentá-lo. Em terceiro: quem “acusa” o outro
de ser leniente por não ter tido uma pessoa amada atacada por criminosos, bem –
nem sempre teve, por sua vez, uma pessoa amada atacada por criminosos. E é no
mínimo feião, além de bárbaro e hipócrita, dar vazão à sua bloodlust travestida de justiça (que seria ao menos compreensível,
embora não aceitável, se houvesse dor pessoal no meio) agourando uma dor
pessoal aos demais. Desejar a chancela de um suposto bem a partir de um mal
alheio me parece, sei lá. Até coisa de bandido.
Então
comparo os justiceiros aos próprios criminosos? Sim, e com os primeiros em
desvantagem. Afinal um fora da lei, como a expressão mesma indica, saiu da lei
e quebrou-a, desreconhece sua obrigação de segui-la. Se fizermos movimento
igual – nós que temos estudo, esclarecimento, vida equilibrada, boa família,
boas influências –, não somos iguais: somos piores. Se com mais iluminação
mental também matamos, descemos a um nível inferior aos desafetos. Não há nisso
a menor tolerância com o crime: há a simples constatação de que o crime não vai
embora se todos nós o cometermos, mas de que, ao contrário, ele só começa a se
desvanecer se houver adultos na sala suficientemente lúcidos para o tratarem.
Da última vez que vi, não se curava uma epidemia deixando todos doentes; é
fundamental que haja os saudáveis, que haja os sóbrios, os resilientes, os
pesquisadores, os médicos, os cuidadores. Os cuidadosos. Os amorosos. Os que
permanecem de pé.
E não me
venham com “ah, então leva esses marginaizinhos pra casa”. Dizer isso é
chilique de criança incapaz de raciocinar que, se alguém sensatamente afirma
que um remédio perigoso de fundo de quintal não é a cura para o câncer, isso
não significa que esse alguém seja automaticamente responsável por assumir o
paciente e descobrir a cura do câncer. Sim, as crianças física e moralmente
abandonadas que por aí pivetam, os adolescentes abortados pelo sistema que
perseguem finalidades retorcidas, carecem de uma casa no pleno verbete, casa
que não seja mera fundação ou recolhimento, casa não de depósito – casa de
família e abraço e dever da escola e devidos puxões de orelha, acompanhados do
bolo que está no forno. Se não tenho espaço, tempo, formação ou disponibilidade
emocional para ser essa casa, não quer dizer que eu seja, ao contrário, a
rejeição, a pedrada e o chicote. Há extensões múltiplas de vocação e jeitos
múltiplos de cuidar: pregar empatia, educar alunos, sustentar causas, condenar
revanchismo, argumentar contra a sanha do vigilantismo. O fazer melhor é o
fazer concreto, mas – Platão que me desculpe – ideias são bem concretas: são
elas a gasolina que empurra a massa, que a orienta à civilidade ou à
selvageria. São elas a receita; alguns de nós (em certo caso) somos melhores
ingredientes; outros de nós (em diferente caso) são boas mãos.
É
necessária a força de toda uma aldeia para tornar um bandido bom. Para matá-lo,
basta a fraqueza de um só preguiçoso que ache mais cômodo nivelar-nos por
baixo.
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