Hoje é
um daqueles dias: preguiça de realidade. Não quero dizer que esteja ainda mais
desiludida ou enraivecida com os mais recentes estupros ao Brasil (estou tão
desiludida e enraivecida como sempre), nem que deseje me afastar dos
noticiários mais do que de costume (desejo me afastar dos noticiários com a
persistência rotineira). É, em todos os sentidos, mais prosaico: a realidade
mais pratiquinha, mais imediata que me chama não está sendo convincente; estou
embotada, apalermada diante do cesto gordo de roupa suja, das redações que
solicitam correção, do bolo de notas fiscais que já anda fazendo rave na zoeira
da bolsa, das provas a serem malevolamente feitas, dos projetos de aula a serem
averiguados, das toalhas a serem engavetadas. Hoje quero engavetar tudo, mas na
metáfora. Quero ignorar – mais que isso; nada posso além de ignorar, já que o
olhar está exausto, zumbizado, perde o foco sozinho, escorrega para o nada,
parado e inútil. Por quê? Porque há um romance a ser lido, grande, suculento, e
não muitas vezes acontece de a paixão por quem habita a história ser tão
profunda a ponto de nossa bateria mental ali se dissipar.
Agarrei
o Norte e Sul de Elizabeth Gaskell –
escritora inglesa dos mil e oitocentos, BFF de Charlotte Brontë – e fui tão ou
mais agarrada por ele, especialmente pelo amor febril mas até então
desesperançado de John Thornton. É fato: se nos apaixonamos pelo herói, não é
que isso simplesmente nos leve a ignorar tudo o mais e sucumbir à história; é
sinal, sim, de que a história é bem contada, ou do contrário não haveria
sofrimento artificial que nos seduzisse. Temo pelo terço final da narração, uma
vez que a autora se desculpa de antemão pelo desfecho meio precipitado
(produzido originalmente para urgências de folhetim), porém tenho passado deliciosos
dois terços junto ao pensamento cristalino de quem descreve tons emocionais com
precisão, deita em palavras puras os cantinhos que nos povoam. Nas frases de
Mrs. Gaskell raramente me distraio, dificilmente careço relê-las, porque são
limpas logo à primeira vista e me convidam à frente em vez de servir de âncora.
A desvantagem é que todo o interesse prático da vida se esvai, a mente
consciente entra em motim contra os afazeres que assombram; pouco somos nós e
estamos em nós num affair literário assim, doce, explosivo, desagradavelmente
capaz de esfumaçar todos os prazos reais.
Sei da
bagunça funcional que isso acarreta, mas hoje é Dia dos Namorados simulado,
como acontece todos os dias em que um entusiasmo artístico nos dementa. Hoje –
no restinho de hoje – recuso chamadas, não brinco no Face, faço careta pras
decisões que peçam mais de 11 neurônios, não escolho nem a cor da próxima
esponja da cozinha. Hoje quero me espreguiçar nessa languidez de férias, nesse
intervalo sonolento mas ardente, porque arde de afetos em outras eras.
Hoje não haja verdades. Só as que se esqueceram de acontecer.
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