Um dos
personagens principais do romance O
margal, de Georges Ohnet – esquecido autor francês do século XIX – é um
velho nobre arruinado que nada vê, nada sente, nada toca além de sua mania
ensandecida de invenções. Não importa o inimigo mortal que virou credor e o
quer expropriado e mendigo, não importa a família que o protege que nem criança
das dívidas que mastigam a casa; importa, exclusivamente, o forno moderníssimo
que ele tenta desenvolver há décadas e que (esperança!) levará seu sobrenome à
riqueza. O problema é a inconclusão doentia, eterna, porque “o aperfeiçoamento
era o vício do marquês. Uma invenção nenhum interesse tinha para ele senão em
estado de enigma. Uma vez decifrado, cessava de agradar-lhe. Seu espírito
inquieto punha-se à cata de um outro resultado. E raras vezes ficava no que
havia descoberto. Era-lhe sempre necessário o melhor, esse destruidor do bom”.
O
melhor, esse destruidor do bom. Quem nunca? Fomos criados para correr do
medíocre, fazer inglês, informática, balé, teatro, xadrez, faculdade, mestrado,
doutorado, Harvard, Sorbonne, MBA – em busca, sempre em busca. Às vezes o
salário nem cresce tanto, ou cresce 10% enquanto o serviço triplica, mas quem
somos nós para recusar uma promoção? a chance do milênio? a empresa de todas as
invejas? Quem somos nós para aceitar permanecer, credo!, mais de um ano no
mesmo cargo? Uma pista: somos gente que tem sonho erótico com feriado, que
capota em vez de brincar de treinamento jedi com os filhos, que no fundo só
queria uma bicicleta e uma plantação de tangerina. É pedir muito? Pior, é pedir
pouco, pouquíssimo, e nenhuma casinha com varanda pode nos interessar, a nós
que temos a obrigação lavrada em cartório de querer só o mais e o muito que
continuam em estado de futuro, em estado de enigma. Vivemos o inferno
compulsório de desbravar ou fracassar.
Call me
crazy, mas fracassar não parece tão ruim quando se tem horário flexível, não se
precisa dormir com 30% do olho porque a Bolsa pode ter um infarto fulminante,
há tempo para livros e séries, cinema em dia de semana e terra molhada. OK,
mediocridade deixou de ser in lá nos
mil e setecentos, e nem eu aconselho a ninguém que estacione na frustração e no
sofá. Aconselho, sim, que se escolha com pupilas sensatas o seu enigma perpétuo
– de preferência um que não envolva cifrões nem condices de Monte Cristo, nem
diplomas sem tesão, nem ambições de Nobel. De preferência um que a morte não leve,
e que, ficando, aumente perenemente e não bote os herdeiros em luta. De
preferência um mais abstrato e que empunhe sabre azul. Ou verde.
Se for
para ser fanático por enigma, que seja o modo de fazer a informação chegar às
sinapses de mais pessoas, que seja a forma de interrogar o Google sobre o
presente perfeito, que seja o projeto de extinguir a fome pelo menos da
multidão mais próxima. Que se fique insaciável por estratégias de colocar mais
gente feliz, por viagens a lugares subestimados, por jeitos simples de melhorar
o bairro, por maneiras de deixar a água amplamente acessível, por truques caseiros
e baratos para tirar mancha, por lares definitivos para bichinhos órfãos de
gente, por filmes que nunca imaginamos o quanto poderiam ensinar, por ideias bafo
de decoração prática, por doações de tempo e ombro e roupa e sangue e alimento
e medula, por coleções de amigos intermináveis. Que seja nosso enigma de
estimação a caça ao bom e ao belo, e a certeza de que haverá os melhores meios
de distribuição.
(Ao menos
os meios de distribuição possíveis no momento. Que ninguém fique sem o necessário porque um orgulho teimoso não desiste de enfiar um hipermercado no
caminhão de entregar.)
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