Eles, no
caso, somos nós – os rebeldes. Os que se recusam a precisar apenas porque os
outros precisam. Não é teimosia pura e gratuita, não é (só) manifesto político,
não é bater pé na diferença; sou prática, e, passarinhamente, tenho motivos
sólidos e livres para não usar smartphone: 1) não curto; 2) como as minhas boas
décadas de vida atestam, nunca tive a menor necessidade dele para manter a
existência e a saúde. Por sinal, é um ao-contrário bem balofo: tenho a maior
necessidade da ausência dele para manter a existência e a saúde.
Vejamos.
Sou fanática por privacidade e sossego, abomino ser constantemente solicitada e
interrompida (por aí se vê que a vida materna ou a faculdade de Medicina seriam
as mais crazy e homicidas opções); qualquer barulhinho, chamadinha, apitinho,
zunzunzinho eletrônico é meu lex luthor, e mesmo o toque do telefone fixo me dá
impulsos defenestradores, psicopáticos. Não lembro quem inventou o e-mail, mas
espero que a alma da criatura já esteja no paraíso, por serviços prestados à
humanidade. “Ah, mas no WhatsApp você também pode escrever, não precisa falar”
– sim, fofurinha; é o que lhe disse ou sugeri, porém, linhas acima: não quero
urgências me pesando no ombro. Já sou ansiosa sem equipe, sem torcida.
Despreciso completamente de alguém ofegando do outro lado da mensagem, xingando
lagartos e javalis enquanto os Vzinhos azuis não aparecem e a resposta não
surge. Não adianta ser escrito e ser emergencial, pra ontem, pra dois anos
atrás; é a quase idêntica sensação de o telefone de casa tocar durante o banho
ou a série favorita, quando você não está, quando você não responde, quando
você é só seu. E, sem ser médica nem mãe, não careço justificar a demora. Não
careço alimentar o doentio de um mundo onde todos se fazem, para todos, filhos
ou pacientes. Ávidos. Sôfregos.
Fique
claríssimo: não defendo a indisponibilidade para o outro, defendo o exato
oposto – a disponibilidade mais sincera. Mas a disponibilidade no que é
fundamental, na tristeza, na ajuda para a festa, na doação de sangue, na
orientação de trabalho, na companhia ao médico, na assessoria de currículo, na declaração
do imposto, na declaração de amor eterno plus
pedido de casamento com a participação de toda a turma; disponibilidade no que conta,
no que move, no que acrescenta. Minha alergia e recusa são reservadas à aflição
que pode esperar: contar fofoca (já não basta ser fofoca?), falar coisa adiável
do serviço (já não basta o horário de serviço?), espalhar meme, perguntar
bobagem para quem se encontrará ao vivo dali a 47 minutos, esclarecer qual o
nome mesmo daquele ator?, comentar uma besteiragem que não paga a irritação de
tirar alguém de suas prioridades, de seus lazeres. Aí é a vez de nós, os
rebeldes, protestarmos: não custa ao amiguinho carente e imediatista entender que,
se nossa ausência momentânea o incomoda, mil vezes mais uma presença importuna
nos pesa. Questão de empatia quanto ao espaço alheio – espaço sonoro, inclusive
–, seu tempo, sua vontade. Uma vez adultos, mental e fisicamente saudáveis, não
somos mais cruciais uns aos outros (momento a momento) do que nos é crucial o
convívio silencioso em nós mesmos.
E não,
não vou abrir mão do celular com botõezinhos, mais estáveis de abordar e menos
sujeitos ao temperamento da máquina e à promiscuidade gordurosa dos dedos
passando na tela. Também não vou empregar dinheiro (labutado) em brinquedo que
não quero; que as moedas fiquem para a viagem e o livro que me lavam, não para a
chateação que me enlouquece. Já somos taludinhos, vivemos bem até aqui e com
pressão mais baixa até agora; se for para escolhermos ansiedades, que seja o
olho vivo na política, no golpe, no assalto que nos planejam, nas mentiras que
nos engendram. Se for para baixarmos a vista, que seja para fugir às armadilhas
plantadas. Se for para nadar em mundo alternativo, que seja em páginas de
ficção assumida. Se for para cruzarmos comunicações, que seja entre pessoas e
não entre caprichos.
Passou
da hora de reassumirmos o cabresto. Quanto mais nos curvamos ao soberano da
tela, mais ficamos fáceis de montar.
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