O
escritor português Vergílio Ferreira tem um texto lindo de negativas que assim
começa: “Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que
ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua não passa pelo decreto
arbitrário dos outros”.
Me calha
demasiadamente, nos calha cada vez mais. Não é que a liberdade nos seja algo
puramente individual e não deva levar em conta as crenças e orientações do
grupo em que nos inserimos; o que fere é alguém ignorar o fato de que nosso
compromisso com o grupo foi, também, livremente assumido na integridade de seu
pacote, e por isso cabe a nós mesmos (se maiores de idade, cumpridores da lei e
plenos de sanidade mental) nos administrar, e não a um feitor que nos mantenha
em vigilância. Se casamos, se trabalhamos, se nos convertemos, o arbítrio de
nossa lealdade é exclusivamente interno, diz respeito apenas a nós – no máximo
a mais um ou dois diretamente envolvidos. Não há Inquisições, familiares, vizinhanças,
direções, generais, presidências, rádio-corredor, rádio-Whats capazes de reger,
todos juntos, uma consciência que seja. Nem capazes de diagnosticar se uma
escolha de profissão, de país, de vestuário nos convém. Não há pressão exterior
que nos saiba e nos molde; só a nós compete o sim, o abraço, o I do. Somos uma portinha que abre
unicamente por dentro.
A
portinha pode eventualmente, claro, ser chutada para escancarar-se – mas a
liberdade em si já vai ter se evadido como um sopro por entre a violência, ou
ter escorregado para trás de outra e outra e outra portinha, até ir morar num
cofrezito de adamantium inviolável. A liberdade autêntica não cede, não morre, não
sucumbe a comentários e fofocas, assédios e propinas, ameaças e barganhas. Por
isso mesmo o livre verdadeiro é criatura de tamanho perigo: sabe lindamente os
produtos de que não precisa, por mais que o encurralem e atormentem; é
inarrastável para vícios, então não há nada que o desfoque nem abstinências que
sirvam de chantagem; é flexível sem ser volúvel, é deliberadamente fiel, é
inteligente de propósito. O livre conhece as melhores defesas contra
ingerências em seus negócios (normalmente passam por papos retíssimos) e contra
julgamentos temerários (em geral cruzam pela indiferença). O livre é sensato o
bastante para não se constranger por ser livre: raciocina de tal forma que está
imune à vergonha com que o manipulam. O livre não anda acorrentado à superfície
das coisas. O livre enxerga.
A
indefinível liberdade é o humano em estado de inteireza: talvez não faça o que
quer (porque o querer é bruta flor carnívora que só pega em nossa terra de
dentro), porém quer muito exatamente o que faz. Liberdade chega sempre com uma
espécie compulsória de sabedoria.
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