Todo mundo pergunta o que a
gente faz nas horas vagas, e o impulso é forte de responder: mas como posso
fazer alguma coisa, se são vagas? Implicância; sei bem que “hora vaga” é o que
se supõe existir fora do tempo oficial de trabalho, o que é exclusivamente
instalado no campo do prazer e/ou – porque não remunerado – provavelmente
inútil. Se é esse o critério, lamento informar, mas não tenho horas vagas. Não
estou em hora vaga enquanto vejo Criminal
minds, porque as células cinzentas se sentam todas para aprender meandros
da alma e estruturas de roteiro. Não estou em hora vaga quando me deito com um
romance do século XIX, por motivos idênticos, ainda que com manifestações
opostas. Não estou em hora vaga quando vou ao cinema (é aula do mesmo jeito),
passeio no shopping (acha que não fico minhocando enquanto observo placas,
gestos, frases, costumes?) ou na praia (idem, ibidem). Não estou em hora vaga
quando me recosto no sofá, já que possivelmente rumino projetos e dúvidas; não
estou em hora vaga quando corro os dedinhos no Face, que tem sido fonte balofa
de informação; não estou em hora vaga quando durmo sequer, visto que o
subconsciente continua loading, rodando programas em segundo plano para melhor
servi-lo. Desconheço o conceito de “não fazer nada” ou de achar qualquer
inutilidade em trechos do dia. Não ganho por hora-sonho, é verdade, mas a
hora-sonho está para a efetividade da hora-aula assim como a construção da
nuvem está para o toró.
Então ninguém tem tempo vago?
Olhem, queridos: só creio que um ser humano esteja absolutamente vazio de ações
no coma e na morte – e mesmo assim, quanto ao primeiro, não tenho certeza. Sei
que, nestas eras de culto à produtividade e heretização do ócio, ser chamado
vagabundo é o cúmulo da ferida na honra (há coisa de duzentos anos, daria duelo
de morte), mas os supostos vagabundos se tranquilizem com o segredinho que a
gente só divide com os parças: nenhum de nós está desocupado. Pode estar bem ou
mal ocupado; desocupado não está. Brincando a criança elabora seus terrores, ouvindo
música acessamos nossas feras e administramos afinação e ritmo, debruçando na
janela pescamos uma bem-aventurança no cheiro da umidade fresquinha, boiando no
mar voltamos ao estado de comunhão primitiva. Sim, há o tempo que desensina em
vez de construir – tempo de fofoca, de programa de pegadinha, de anedota com
preconceito, de hinos de incitação a tantas violências, de briga, de bullying,
de páginas de lenda urbana ou apologia de ódio –, por isso mesmo devemos ser
gente que se vigia: ou evoluímos ou involuímos, não fomos feitos para
permanecer, para algum lado as horas nos levam e nos escoam. Somos cronicamente
incapazes de não aprender ou desaprender a cada braçada do ponteiro.
De mim para mim, abençoo
solenemente essas falsas horas vagas, em que o emergencial do trabalho não nos
impede de ser o que seríamos nas CNTP. O trabalho nos forma e sustenta, mas é
talvez o que mais nos mascara – no íntimo e no recíproco. Dele nos vem um ser
de contingência, uma natureza implantada e de adoção, que nos rouba pedaços do
percurso lento, elaborado, de nos transformarmos em quem já somos.
Trabalhar pelo cartão de ponto e pela linha de produção nos desgasta. Trabalhar-nos
ponto a ponto e nas entrelinhas nos desbasta. Nos refina. Nos aperfeiçoa. Nosso
lucro pessoal se amontoa num alguém que construímos devagar.
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