Não demora nada e lá vem ele
de novo: dilema. Topar ou não topar o emprego, aceitar ou não aceitar o pedido,
trocar ou não de vizinhança, encarar chá ou café, frango ou pasta. Algumas
gangorras são ridicularias cujo efeito não ultrapassa dez minutos, mas outras
se espraiam e geram consequências que emprenham de outras consequencinhas, e
assim se tricota uma trama de xadrez mental para especular futuros e juros e
implicações e opiniões e subcomentários do tio-avô do chefe – antes de fechar
contrato com a resolução definitiva. E quando o contrato está lavrado ainda não
se sabe: prestou? Seguiu-se o melhor critério, tomou-se a melhor estrada,
optou-se pelo melhormente razoável? Pois tio Gandhi deu dica bafo outro dia
mesmo, quando cruzei com uma sua citação particularmente luminosa: “Sempre que
tiveres dúvidas, ou quando o teu eu te pesar em excesso, experimenta o seguinte
recurso: lembra-te do rosto do homem mais pobre e mais desamparado que alguma
vez tenhas visto e pergunta-te se o passo que pretendes dar lhe vai ser de
alguma utilidade. Poderá [ele] ganhar alguma coisa com isso? Fará com que
recupere o controle da sua vida e do seu destino? Por outras palavras,
conduzirá à autonomia espiritual e física dos milhões de pessoas que morrem de fome?
Verás, então, como as tuas dúvidas e o teu eu se desvanecem”.
É evidente e ululante que
ninguém espera consertar a fome mundial ao decidir comprar camiseta numa loja e
não em outra, mas aí é o ponto de considerar, amados, a velha teoria do efeito
borboleta: o leve bater d’asas dum insetinho aqui vai ecoando, se ampliando, se
engrandecendo até gerar a corrente que causará um tufão na China. Uma das lojas
frequentadas pode ter tido denúncias sérias de trabalho escravo, então recebe
seu boicote – e do seu irmão – e da sua prima – e do tio-avô do chefe – e de
todos os seus contatos, que têm outros contatos, que têm outros contatos. Um
movimento que começou formiguinho vira epidêmico, a empresa sente o rabo de
arraia da borboleta e o “seu” homem desamparado ganha alforria. Utópico? Tão
utópico quanto qualquer gesto histórico de se recusar a saber o seu lugar no ônibus, organizar marcha de uma cidade a
outra, teimar em estudar quando todos os colegas são diferentes, ficar parado
na frente de um canhão. Utópico até que, ovo-colombomente, alguém foi lá e fez.
E alguma coisa ruim da História desemperrou.
Se eu denuncio o crime, pode
ser que “meu” homem desamparado se salve do criminoso – inclusive sendo o
próprio criminoso. Se decido ensinar esta matéria e não aquela, “meu” homem
(que é ainda menino) talvez já não esteja tão desamparado ao chegar a hora de
reclamar seus direitos. Se voto no PSOL e não no PSDB, há esperança de que o
homem desamparado seja contemplado em suas premências, no lugar do alto empresário.
Se não jogo nunca o lixo no chão, tem boa chance de a casa do homem ser poupada
da água infecta que não encontra escape nos bueiros. Se faço a faculdade que
quero e não o curso que a família e a indolência de pensar escolheram para mim,
é bastante provável que eu tenha – porque com asas desfraldadas em toda a
envergadura – condições profissionais de ajudar o homem. O homem precisa de mim
plena em quaisquer opções; inteira, consciente, racional, informada, coerente,
convicta – feliz, de preferência. Não é de sacrifício nosso que o homem
seguramente necessita, e sim de compromisso: que meus interesses e os dele se
integrem, unifiquem, confundam sem que a ameaça de morte os separe.
Se existíssemos para nós, nos
gestaríamos em cápsulas. Nascemos do ventre para lembrar que só existimos a
partir da vivência em alguém.
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