“Viver é
ser outro”, geme o fascinante Livro do
desassossego de Bernardo [Fernando Pessoa] Soares. “Nem sentir é possível
se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é
sentir – é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que
ontem foi a vida perdida.”
É uma
doideira pessoana, mas como discordar? Se dia por dia não cresci meio
milímetro, não me nutri de nenhuma fatiazinha de mundo, não aprendi o nome de
nenhuma cor, não fiquei mais exasperada ou esperançosa ou melancólica por causa
de nenhuma notícia, não atravessei em outro ponto da rua e finalmente namorei
de longe a casa sempre amorfa de perto – que raio fiz eu em certa data, que
raio ela fez em mim? Para que serviu comparecer àquelas 24 horas se não me
acrescentaram uma página, um argumento, um nome, o inédito de um biscoito ou
esquina ou perfume?
É essa, entretanto,
a beleza: ainda que de ontem para hoje não tenhamos decidido fugir com um
bandoleiro espanhol, nos converter ao hinduísmo ou comprar um apartamento na
Etiópia, é impossível não termos mudado. Fomos ao mercado e resolvemos levar
queijo branco em vez de manteiga, e ali, no corredor onde teoricamente não
estaríamos, nos sensibilizamos com uma bochecha da mais espantosa suculência
infantil, e então o relógio biológico bradou com pulmões que nem tinha; ou, ao
contrário, nos aterrorizamos com a pirraça de um gremlin que bateu a cabeça no
chão até a mãe comprar o iogurte, e nosso trauma foi tão definitivo que demoliu
décadas e décadas sonhando com bebês. Se bem que – OK – desejo ou ojeriza de
filhos é transformação ainda muito grande, e a ida ao corredor do queijo branco
poderia simplesmente ter frutificado no esbarrão com um colega de escola, no
acréscimo de um abraço à lembrança, no acesso à lembrança de um brinquedo ou
aroma que hoje vemos tão novo. A ida ao corredor do queijo branco poderia ter
rendido a mera descoberta da marca que passaria a nos fornecer a melhor comfort food. Poderia ter trazido um
nojinho invencível de corredores de queijo, porque lá havia peças embolorando
em plena luz do dia. Poderia ter gerado o encontro com a gôndola de revistas no
caminho, e a gôndola poderia ter segredado a ultimate receita de suflê para o sábado, alguma pré-revelação de
novela, o nome do ator que tentamos lembrar há dois meses, o tema da próxima
aula. Por qualquer forma ou rota, com qualquer lucro ou arranhão, não sairia do
mercado a mesma pessoa que nele entrou.
Raul
cantou como desejo a metamorfice ambulante, mas o que o barbudão apresentou
como escolha é, em verdade, nossa exata natureza: a gente vê um filme pela 84ª.
vez e se encanta com um detalhe que 83 vezes nos escapulira, a gente volta do
salão com outros olhos sobre aquele esmalte, a gente de repente se dá conta de
que nunca (ou sempre) gostou de azul, a gente sente a velha simpatia escoar
quando vê o vizinho bonachudo descompondo o porteiro. A não ser por motivos de
coma afincado (e mesmo assim não podemos jurar que alguma atividade cerebral
não nos agite lá por dentro), não atravessamos dia ou hora impunes de mutação.
O imutável, sim, teria de ser nossa exceção escolhida; a mudança é compulsória.
A gente
fica pelejando em nossa oficina interna para garantir que ela seja para melhor.
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