Passou por
mim um videozinho em inglês que conta, com ilustrações simpáticas, pontos
importantes da biografia de uma determinada mulher. Pontos barra-pesada,
especialmente. Segundo o vídeo, a pessoa em questão foi rejeitada pela
faculdade aos 17 anos; aos 25, perdeu a mãe para uma doença; aos 26, sofreu um
aborto; aos 27, entrou num casamento violento e abusivo, do qual nasceu uma
filha. Um ano mais tarde, divorciou-se e foi diagnosticada com depressão
hardcore – não admira, já que, aos 29 anos, só conseguia criar sua bebê
sozinhamente com o auxílio do governo. Aos 30, enfim, culminou o quadro
considerando a possibilidade do suicídio. Mas não sei que forças tirou, e de
onde, para colocar toda a genialidade e energia no que sabia fazer de melhor:
escrever, e escrever porreta. Aos 31,
deu à luz o primeiro livro (o vídeo não diz, mas a gente sabe que a pérola foi antes
rejeitada por montes de editoras); aos 35, já tinha lançado quatro, e foi
eleita Autora do Ano. Com 42zão, vendeu 11 milhões de cópias de uma nova obra –
atenção, respire – APENAS NO DIA DO LANÇAMENTO.
A essa
altura a gente, hiperventilada e carecida de um desfibrilador, já adivinhou o
que o videozinho revela em seguida: “Essa mulher é J. K. Rowling”. E em letras
menores: “Lembra que ela pensou em suicídio aos 30 anos?”. Sim, lembramos; e de
tal forma estamos paralisados de horror, ante a chance de uma realidade
alternativa em que Harry Potter nunca
tivesse existido, que não lemos mais nada das mensagens autoajudantes do
vídeo. Harry Potter – HARRY! POTTER! – jamais teria jogado quadribol, voado num
hipogrifo, recebido carta-coruja se J. K. houvesse sucumbido às dores e
entregado os pontos. E eu jamais usaria como chaveiro o brasão de Hogwarts. Jamais
visitaria Hogsmeade. Jamais poria na prateleira uma caneca de cerveja
amanteigada.
Não sei
se todas as informações do vídeo procedem, mas o alvo certamente foi atingido: já
estamos acachapados pela vibe A
felicidade não se compra e aflitos com a percepção do quanto a ausência de
uma vida pode representar. Claro, a probabilidade de haver por aí muitas outras
Jotacás em embrião é infelizmente pequena; não se deve realisticamente supor
que todos, tendo força e chance e
amor e cuidados, seriam tão fabulosos a ponto de se desdobrar em milhões de
leitores, gerar trilhares de empregos, desenvolver vacinas que salvassem outros
tantos quinzilhões de vidas, criar tecnologias que se tornassem dramaticamente
indispensáveis. Alguns, porém, o fariam: alguns dariam abraços quentinhos em
parte considerável da humanidade – instruindo, curando, estimulando –, se as
CNTP lhes permitissem levar a cúmulo seu potencial. A maioria nunca seria gênio,
nunca seria tão unânime e tentacular. Mas tenho a audácia de afirmar que mesmo
cada um desses, se aproveitado com engenho e arte, levaria fácil um rótulo
igualzinho: dramaticamente indispensável.
A
natureza é por si econômica, não se desperdiça, não faz excessos. Nessa crença
fico: quem chega a ter oportunidade de existir, ainda que por enquanto num
montinho de células, já é fundamental por algum motivo. Já preenche o mundo de
um jeito que só elx pode. O desperdício acontece quando a bagaceira social nos
extravia, a burocracia nos achata, o braço do crime puxa mais forte que o da
educação, o amor não chega e a droga compensa. Aí damos errado, mas darmos
errado não é o natural, darmos errado é o desvio. Aquela criança na rua (mas
não da rua) tem em si um germe de
metáforas, um olho crônico para a poesia, abafado pelo entorpecimento do crack;
poucos suspeitam, mas em doze anos ela conheceria o amor de sua vida, teria
três filhos e o caçula viria a ser um dos melhores dramaturgos de sua geração.
Aquele rapaz que mofa no presídio por ter participado de um assalto pretendia,
na verdade, uma zoeira entre amigos, porque é a primeira vez que um grupo o
aceita desde que o pai abortou sua existência e a mãe começou a beber; está
agora aprendendo novos truques com novos amigos,
em vez de ter entrado para o curso técnico que sonhava – ele que era
craquérrimo em Matemática na escola e (ninguém sabe) viraria um engenheiro com
participação essencial na ampliação do metrô. Aquela senhorinha que morreu
ontem no corredor do hospital era mestra no origami, fazia oficinas com
crianças de um outro hospital, porém não resistiu ao não recebimento (por cinco
meses) de sua aposentadoria – ela que ainda ensinaria a dobradura dos tsurus a
uma garotinha com leucemia, que descobriria uma paixão e comoveria a mídia com
sua persistência em criar centenas e centenas de tsurus coloridos, o que
levaria milhares de pessoas enternecidas a entrarem no cadastro de doação de medula.
Alguém
que lhe apresentaria seu melhor amigo não chegará a apresentar, porque uma
depressão não percebida nem acompanhada o roubará aos 23 anos. Alguém que lhe
emprestaria o filme decisivo para sua escolha de fazer Cinema não chegará a
emprestar, porque a perda de um filho em um tiroteio o afastará
progressivamente de qualquer convívio. Alguém que se tornaria seu professor
favorito na faculdade não chegará a se tornar, porque o bullying severo na
escola o fará largar os estudos na adolescência. Uma ruma de excelentes
pesquisadores, pintores, pedreiros, médicos, músicos, líderes comunitários, funcionários
da Pixar, Doutores da Alegria, parceiros de chopada, colegas de fandom, comadres,
amores – não está sendo, não está vingando, porque não está havendo
suficientemente quem enxergue, ajude, ampare, adivinhe, reforce, empodere, oriente,
defenda, compreenda esses corpos e essas psiquês que nem sabem gritar socorro,
que são frágeis diante do vácuo imenso, que dançam ou são jogados no abismo por
causa da incompetência coletiva em lidar com a necessidade humana. O governo
não os nota. Os familiares não dão conta. Está todo mundo ocupado com sua
abacaxice interna e distraído dos investimentos melhores, os mais insuspeitos.
Onde há gente que não vemos, há pequenas magias e milagres que estão
deixando de acontecer.
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