A valente
Jane Fonda revelou ter sofrido abuso sexual na juventude. O “jornalista”
Alexandre Garcia, lutando pelo troféu Perdi a Chance de Ficar Calado da década,
retuitou a notícia comentando: “E eu com isso?”. Nós seguimos assombrados com
os dois horrores, que na verdade são um só.
O Brasil
nasceu de um imenso estupro, de um manual de atrocidades com largura de lista
telefônica, e dessa história desgraçadamente violenta e oportunista veio a
naturalização da falta de empatia: cuido do meu pirãozinho primeiro e depois a
gente vê. Fomos desde cedo empurrados ao autocentro, à malandragem em causa
própria, ao lambe-bota e ao beija-mão. Machuca admitir, mas por séculos e
séculos nos gestaram com espírito de capitão do mato – aquele que, alçado a um
nivelzito superior ao dos escravos, persegue e chicoteia sua gente mesma,
fundindo-se mentalmente com quem o explora. Por isso é horrível sem ser
surpreendente que um Alexandre Garcia (que apoiou o golpe de 64, que apoia o
golpe de 16, que faz piada com o feminicídio dizendo ser uma “invenção de quem
pensa que homicídio é matar ‘hômi’”) se mostre incapaz de solidariedade com
quem é de outro gênero e mora nos longes. Mal damos amor a quem nos é
semelhante e vive ao lado. Um espécime homem-branco-cis-hétero exibindo desdém
pelo outro é o início dessa herança maldita de meio milênio; seguidorxs com
potenciais características de vítima CONCORDANDO com o espécime é o fim da
picada.
Porque é
com a gente, sim. É muito com a gente. Tudo que é problema humano é direta e
irrestritamente com a gente. Quem diz “e eu com isso?” diante do abuso da filha
de alguém não pode estranhar que lhe devolvam “e eu com isso?” quando essa
filha de alguém for a sua própria. Quem não concebe levantar-se pelos direitos
de outrem tem de estar de boa com o fato de nenhum outrem se levantar pelos
seus. Não se esforçar para fechar uma porta de maldade pode não ser tão doloso,
mas é no mínimo tão culposo quanto abri-la; não tentar segurar a mão que bate é
espancar por procuração; não engrossar o coro de nãos é estar na turma do sim.
Óbvio
que não penso em botar o dedo na cara dos tão oprimidos, despojados, agredidos
e desorientados quanto quaisquer outras vítimas a serem defendidas. Aponto a
nossa cara, a nossa!, a de quem teve esclarecimento de estudo e situação
familiar satisfatória, quem se criou sem ratos e sem monstros em casa (que não
fossem aqueles plantados pelo filme e espantáveis com uma luzinha acesa), quem
recebeu alimento e aula de Geografia, quem circula pela rua receoso mas não
apavorado, quem está no banco de reserva das vítimas mas não cresceu como uma. Não
se pode ter a condição de reagir e de se importar sem ter a obrigação de fazê-lo. A felicidade que temos,
todos deveriam ter; o sofrimento que vemos para ninguém deveria existir. Ou paramos a
erosão ou permitimos que ocorra, ou votamos contra o corrupto ou concordamos
que se eleja, ou instruímos o indefeso ou deixamos que se engane, ou exaltamos
a voz contra a injustiça ou consentimos que ela torture seu mártir com
privacidade. Para o mal, ou somos meio – ou somos termo.
Não são “eles”: somos elos. Somos nós.
2 comentários:
Talvez a diferença de biografias do ser humano de verdade, ativista política, que se posicionado contra a Guerra do Vietnam, entre outros, e o ser de mentira que e'Alexandre Garcia, porta voz do último ditador que pousa de legalista para quem não lê ou não o conhece, seja suficiente para explicar tão infeliz comentário, e tão condizente com o seu autor.
Pois é. Aliás, eu gostaria montão de concordar que o Alexandre não representaria um "ser humano de verdade", mas infelizmente temos de admitir que isso também é uma face humaníssima -- do que temos de pior. Fiquei muito enojada com a situação. :'-(
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