domingo, 6 de março de 2022

Também não gosto de


Muvuca, sinuca, chão com bituca, gente que cutuca. Gente que pergunta. Rede social conjunta. Bebida aguada com gelo. Vento no cabelo, cabelo no casaco. Puxa-saco. Medo ouriçando a nuca.

Mamão; discussão; ostentação; filme arrasa-quarteirão que come os cinema tudo; sonzito fino, agudo, que entra pelo dente. Aluno impaciente, insolente, intransigente. Roupa transparente. Parente abelhudo.

Saia que não é rodada. Manga molhada. Buraco na estrada. Cidadão que grita, irrita, palpita – sendo xiita e sabendo nada. Jornada que acaba nunca, hotel espelunca, espelho com mancha, motorista sem cancha. Sandália que desmancha se guardada.

Alpinismo; gratiluzismo; cinismo; eufemismo; elitismo em todo feitio e feito; todo modo de preconceito. Adrenalina pré-pleito. Ar rarefeito (que sou asmática). Matemática, função fática, criatura dramática. Tática de manipulação grosseira. Tranqueira zero prática.

Luz de sirene, cheiro de querosene, mitene, mitômano, megalômano. Megalópole que engarrafa. Caneta que não autografa. Estafa de tanto causo, de tanta treta; gente careta, picareta, safada que se safa.

Anúncio que pisca. Etiqueta que belisca. Isca de carne durona. Paisagem cafona. Testosterona. Azeitona de qualquer cor, rancor, terror, "doutor", papo conservador, papo de ricaço. Gente sem laço com a terra, gente-motosserra que só tira pedaço.

Cansaço.

sábado, 5 de março de 2022

Sinopses esquisitas que não sei se há, mas poderia haver


Um rapaz se apega à senhorinha fantasma com quem divide o apê; ao ser trampolinado, por questões de trabalho, para uma mudança de cidade, passa a mover mundos e fundos do além a fim de transportar consigo o espectro fofinho que está "preso" ao imóvel.

Uma jovem pesquisadora fica obcecada com o que acredita ser um Código Brás Cubas, intrincadamente distribuído por entre os capítulos escritos ou pontuados do defunto autor. Os vídeos da influencer bombam tantomente o assunto que a caça ao suposto "manuscrito perdido" de Machado chacoalha o país – até que a moça acaba visitada sem intenções amistosas por um suposto descendente oblíquo do Bruxo, interessado em manter casmurramente o segredo de sua existência.

Como herança do pai que não chegou a conhecer, uma mulher recebe um barquinho caidaço e a determinação gritante, sacramentada em cartório, de não vendê-lo ou desfazer-se dele dalgum outro modo sem antes adentrá-lo pes-so-al-men-te (sozinha) ao menos uma vez. Não muito impressionada mas curiosa com a condição excêntrica, a herdeira consente em visitar a embarcaçãozinha – e tem uma full queda de queixo ao descobrir que o minibarco é, da porta do capitão para dentro, um navio operante na época e nos moldes de um Titanic, que vem e vai transportando passageiros completamente ignorantes a respeito desse portal para outro século.

Uma moça se aproxima, no metrô, de outra que está usando um vestido vendido pela primeira num brechó de internet. Ambas acham graça da coincidência e engatam amizade; ao longuinho do tempo, porém, a ex-dona do vestido vai colhendo vários indícios de que o encontro com a atual proprietária não teve nadíssima de casual.

Fissuradaço na filha do vizinho fazendeiro, mas sem remota perspectiva de ser correspondido, um rapaz dá de stalkear seu alvo da maneira mais única e esdrúxula: alternando-se com o espantalho da fazenda, do qual imita perfeitamente o aspecto e o figurino. O pai da moça descobre e – transtornado com o que acredita ser alguma ação coordenada por inimigos – ameaça a vida do jovem, que só não é moído pelo vizinho porque sua musa fica com pena e se arrisca para salvá-lo, assumindo diante do fazendeiro a autoria da pegadinha. O moço entende erradamente que a crush agiu por amor a ele e dá vazão definitiva à sua bad trip; sequestra a guria para resgatá-la. Como o raptor se conserva vestido de espantalho, ocorre à vítima alimentar a fantasia de que ambos estão indo ao palácio do Mágico de Oz, a fim de manipular o deliroide com elementos da história e conseguir que ele a deixe "falar com seus outros amigos" no caminho. Em dado momento ela estabelece contato com a polícia, que vai monitorando virtualmente a jornada e interagindo com o espantalho ensandecido como se o guiasse a uma Cidade das Esmeraldas hospitalar.

Para ele pôr o cérebro no lugar.

sexta-feira, 4 de março de 2022

Mátria


No ritmo do coração, um dos atuais concorrentes ao Oscar, é sem dúvida uma Sessão da Tarde fofinha, mas (aliás: por isso mesmo) seria um descalabro lhe dar a estatueta principal; trata-se dum azarão simpática e infinitamente previsível, 4.587 vezes inferior ao talvez favorito Ataque dos cães – este sim um filmaçaçaço em roteiro, petulância artística e destrinchamento humano. Claro, o desnível acachapante não significa que faltem ao filme sobre Ruby Rossi (única ouvinte numa família de surdos) umas tantas daquelas cenas de guardar na caixinha estética, como a sequência em que a cineasta nos faz ter a mesma experiência dos pais e irmão de Ruby, ou o trecho amorosíssimo no qual o pai da menina dá um jeito de "ouvi-la" cantando, ou o clímax que nos empurra para a emoção compulsória tanto quanto enternece um personagem casual da própria trama. Para quem é mais ligado no dito que no entoado, porém, uma partezinha específica tende a comover até a medula: o momento ardentemente silencioso em que Ruby, a pedido de seu professor, explica como se sente quando canta – e só consegue fazê-lo por meio da língua de sinais, embora seja usuária proficiente do inglês falado. Nenhuma tradução nos é dada, nem a nós nem ao interlocutor, sendo no entanto impossível não compreender a mensagem de delicadeza, plenitude, amor e desabrochamento que as mãos da protagonista recitam na tela.

Como pessoa de Letras, recebi a seta toda açucarmente fincada no peito: tinha acabado de "ouvir", mais nem menos, uma das mais lindas odes à língua materna, pouco importando se é de fonemas ou de gestos que é composta. Por que Ruby não deu conta de expressar de viva voz ao professor o teor de um de seus amores mais sagrados, se eram justamente os sons esses amores e se não havia nenhum abismo entre seu vocabulário e o dos demais praticantes do idioma? Porque o inglês falado não era a língua materna da jovem, a primeira, a primeiríssima língua, aquela aprendida no berço e usada no universo doméstico quando ainda era o único, quando ainda não havia escola ou vida social que não entre os afetos de origem. Apesar de ouvinte, a protagonista classifica sua fala nos primórdios escolares como "fala de surda" – uma vez que o inglês não gestual acabou chegando a ela já como língua madrasta, um acréscimo de recursos que se lhe incorporou com naturalidade, mas que não nana-nanou suas primeiras manifestações do pensar e sentir. E ah! podemos acabar de ser em qualquer idioma, qualquerzito ou zitos entre o céu e a terra; podemos nos completar e enriquecer com qualquer glossário de empréstimo; entantomente, toda vez que recomeçarmos a ser – toda vez que voltarmos ao telúrico de nós, ao âmago do âmago, ao próprio do próprio – só sentiremos e pensaremos na língua materna, só nos espelharemos nela, como companheira e testemunha inicial de todo o nosso capítulo de inaugurações.

A língua em que nos humanizamos é a caixinha de ferramentas do sistema de afetos; a não ser que um afastamento muito cortante e definitivo asfixie suas memórias, é com os instrumentos dessa bolsa emocional que visceralmente xingamos, que organizadamente nos compreendemos, que setorizadamente nomeamos; é com as serras da caixa que recortamos pedaços de mundo, com seus martelos que imprimimos nossas raivas e apegos, com seus pregos que rotulamos, com seus canivetes que torcemos, esculpimos, abrimos, fechamos, alargamos vias, estreitamos opções. A língua materna, ela apenas, nos fala e fala de nós quando tudo silencia e resta a narração das consciências e inconsciências que hospedamos, o bololô refletido ou impulsivo que nos forma, que nos molda, que nos habita.

Com muitos códigos, dizemos; um só código nos grita.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Glossarices alternativas 4


Aleatópico: preparação do improviso.

Arcabolso: estrutura financeira que dá sustento à tese.

Bicicreta: veículo empregado pelo herói Teseu para mover-se na residência do Minotauro.

Desdesenhar: desvalorizar, por insegurança, as próprias produções artísticas.

Dialétrica: dúvida penetrante na grafia de determinadas palavras.

Gambiarma: instrumento de defesa utilizado por Angus MacGyver.

Geminiantro: ambiente frequentado por indivíduos que se comunicam compulsivamente.

Larbirinto: residência bagunçada e feliz.

Longomarca: comercial que atormenta usuários do YouTube com a impossibilidade de ser pulado.

Loucatário: inquilino de personalidade problemática, tendente a fingir demência quando questionado a respeito de atividades clandestinas e aluguéis vencidos.

Peripétia: aventura de circunstâncias duvidosas vivida por bichinhos de estimação avessos à tranquilidade e à ordem.

Telepatinha: sistema de comunicação estabelecido entre humanos e seus pets.

Trampolimbo: elemento motivador de mudança para não se sabe exatamente o quê.

Depois a gente vê.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Glossarices alternativas 3


Ancestralha: antepassado que (os céus nos poupem dessa desgraça) chegou a tomar parte em atos de opressão contra povos ou indivíduos.

Aprendizaga: treinamento de defesa.

Arrependimesmo: tipo de remorso que tende a ser trocado na primeira curva pela recorrência do vacilo.

Especialírico: indivíduo fortemente dedicado ao estudo da poesia.

Fantasmagótico: referente a uma decoração de Halloween chiquérrima.

Incompetenso: indivíduo que disfarça a mediocridade profissional tocando o terror ansioso no ambiente de trabalho.

Integridádiva: presente selecionado com o único e singular intuito de banhar de felicidade o ser presenteado.

Nebina: estado de incerteza comunicativa ocasionado pela ausência de identificador de chamadas.

Neoclacinismo: escola artístico-filosófica que ri de canto de boca ao pensar quem é que vai pagar as contas se ela realmente for aproveitar o dia.

Parsageiro: casal destinado à efemeridade.

Polvoar: aumentar consideravelmente a quantidade de moluscos existentes numa região.

Tryção: ato de infidelidade que consiste na mera tentativa de consumar uma ação desleal.

(Não me diga que é normal.)

terça-feira, 1 de março de 2022

Outro bocadão de coisas que você não pode morrer sem saber


O grasnido de um pato não faz eco (que seja perceptível).

Por falar em quacks: na Suécia, existe o chamado "Efeito Pato Donald", que tradicionalmente diminui a ocorrência de crimes e acidentes na tarde da véspera de Natal. O motivo é a mania familiar sueca de, em todo dia 24 de dezembro, assistir pela TV a um especial de desenhos antigos da Disney, transmitidos sem intervalos comerciais. A queda nas ligações para a emergência é tão sensível nesse período que o nome do pato rabugento chegou a integrar o subtítulo do livro de uma exposição – realizada no Museu Nórdico de Estocolmo – sobre tradições natalinas.

Compartilhamos cerca de 50% de nossos genes com as bananas (o que NÃO equivale à metade do DNA, já que os genes são apenas segmentos da molécula do bonitinho; marromeno 2% de nosso DNA são semelhantes ao da fruta fabulosa).

Amendoins não são castanhas, e sim le-gu-mes aparentados com ervilhas e lentilhas.

Rouxinóis podem cantar em volumes mais altos que o de motosserras.

O coração de uma baleia-azul é tão imenso que nós caberíamos inteiros em suas artérias, e sua linguinha pode pesar duas singelas toneladas – ou seja: uns dois hipopótamos.

(O leite da hipopótama, aliás, é rosa. Acho fofíssimo.)

Na Idade Média, animais eram julgados por crimes e podiam inclusive receber a pena de execução. Os julgamentos foram mais comuns entre os séculos XV e XVII, mas o primeiro registro encontrado pelo americano Edward Payson Evans – que escreveu um livro sobre o assunto – vem já do ano de 824, quando toupeiras foram excomungadas no Vale de Aosta, na Itália.

A pelagem dos ursos-polares não é branca, é transparente; já a pele desses fofinhos é preta.

Antes da invenção das geladeiras, alguns russos e finlandeses colocavam um SAPO no leite a fim de conservá-lo (conservar o leite, naturalmente, não o sapo).

Tema é que não falta para o próximo bate-papo.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Ode ao desromantismo


A verdade é que renunciamos sempre, sempre, grande ou minusculamente, esteja a consciência ou não em plena vigília. Se é de uma viagem dos sonhos que se trata, por exemplo, afora o emagrecimento da conta bancária em níveis anoréxicos há a excruciante preparação da bagagem – que só não é excruciante para os que não têm de calcular desde o momento menstrual até a menorzita alteração de saúde possível, para fins de estoque farmacêutico (e isso porque não sou mãe; por essas e semelhantes outras é que não quero). Se a viagem já está de vento em popa, podes crer que ao alumbramento do passeio há de se mixar também a garganta excessivamente seca sob o clima (digamos) europeu, a tentativa dessa garganta de evitar imensas hidratações – para que a busca do banheiro não seja tão eterna quanto Roma –, as onipresentes filas, as discussões de grupo, os desencontros, os calos, as bolhas, o cansaço que não repousa porque caminha o dia inteiro e madruga no seguinte. Estou reclamando? de modo algum, listando apenas; e não sei para vocês, mas a lista desglamourizada e consciente de todas as aborrenúncias me ajuda muitíssimo quando é forçosa a renúncia contrária: se posso viajar, maravilha, que espetáculo, vamos em frente; se não posso (e por enquanto não posso), tudo igualmente bom, é um tempo de descanso de bolhas e malas e sede insaciável. Saber todas as desvantagens me empurra também a ver vantagem em tudo.

Dar aula presencial esgota a voz e os nervos, porém diminui a carga de preparações da versão remota – além do quê, vejam que fabulosidade, o almoço na escola é tão presencial quanto as perrenguices. O calor do Rio nos obriga ao ar-condicionado e nos esgota até a medula, e no entanto eu simplesmente ADORO não ter de abrir a água quente durante o banho. Certo, andar de saia me deixa ainda mais vulnerável à mosquitada que me lancha diariamente, e saia é às vezes indomável, saia voa; mas não é extraordinário passar o ano in-tei-ri-to sem me enfiar no abafamento duma calça comprida? Caminhar de sandália é certamente mais desconfortável do que de tênis – o que não impede de ser notavelmente mais fresco, com o bônus interessantíssimo de não acrescentar meias ao cesto de roupa suja. Estar enfiado no escritório num dia quente e azul não é exatamente o ideal paradisíaco de cidadão nenhum; apesar disso, há grandes chances de se estar aproveitando uma gorda refrigeração do ar sem pagar por ela, e bebericando uma aguinha gelada sem gastar a própria.

Não assistir ao filme no cinema – templo sagrado – é muimente mais caído, desprovido de som profissa, telãozão e cheiro de pipoca; mas em casa não há gente comentadeira e checadora de celular, e há a oportunidade linda de pausar a história se a natureza chamar inelutavelmente. Ter bichinhos é explosão certa de amor e fofura, porém não tê-los é garantia redonda de casa mais limpa, despesas menores e sapatos desroídos (extensivo a filhotes humanos). Não escrever é uma liberdade da qual já sinto falta; escrever é uma liberdade outra, um jeito de passar a mão no idioma de maneira permissiva e quase sensual. Estar na infância é bom com sua ausência de boletos, sua fantasia galopante e seus Natais embrinquedados; ser adulto, no entanto, é fantasticamente insubstituível se existe um mínimo de autonomia e ciência das próprias forças, das próprias asas que batem sem autorização e sem tutela.

Desromantizar é minha romantização assegurada: há paisagem em toda janela.