segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Um lugar próprio


São versos do poeta polonês Miron Białoszewski, na tradução de Aleksandar Jovanovic: "Carrego em mim/ uma espécie de/ lugar próprio./ Quando o perder/ não mais existirei". Achei uma linda representação do que é estar vivo em franca plenitude, interna ao menos – carregar em si um lugar próprio, tipo de autoabrigo emocional ou casa psicológica a que não se derruba com as grandes facilidades do universo físico; transportar uma certeza tão completa e tão sua a respeito da porção habitada no mundo (ou independentemente do mundo) que o ambiente exterior pode até constituir um coadjuvante de peso, mas a alma inteira é uma residência portátil.

Precisa-se, no matter what, carregar em si um lugar próprio. Convém que nos conheçamos até o ponto da self-portabilidade que nos torna mais maleáveis para fatos e, exatamente por isso, mais resistentes. Não se trata daquele papo detestável de resiliência com que frequentemente nos coachizam, e com que procuram disfarçar os efeitos da crueldade sistêmica – romantizando como mérito e esforço o que é basicamente a sobrevivência de quem não tem grande escolha. Trata-se de saber-se sem que isso esteja amarrado a uma utilidade de luta, um saber-se prévio, autossustentável, convicto, saber-se porque sim, porque alguém que não se sabe facilmente se desestrutura, ou antes: não chega a estruturar-se; não se estruturando, torna-se desmanchável numa foto, numa fala, numa comparação, num sopro. Uma pessoa que não carrega em si seu lugar, que não guarda a tiracolo uma integridade à prova de ventos – um núcleo mínimo, uma verdade essencial –, com forte probabilidade adotará qualquer raiz e ficará à deriva com qualquer perda, além de considerar como ofensa a integridade dos que se enraízam. Quem não aquieta seu tornado particular tende a levar tudo de arrasto.

Saber-se é ancorar-se no melhor sentido: acatar seu próprio tempo, olhar firme nos olhos do próprio desejo, estar confortável no silêncio externo porque o interno não estrondeia, proceder a uma autoleitura sem o medo que leva à condescendência e sem a ansiedade que conduz à implosão, acompanhar-se a todo momento com a satisfação de quem não receia o tédio. Uma vez que se transporta no peito todo um trailer mobiliado e embagajado de repertórios, pouco se teme a viagem; anda-se com um suprimento de si bastante farto de recursos contra a carência que sabota suas chances, contra o preconceito que materializa recalques, contra a insegurança invejosa que não fixa o olhar num trajeto futuro, contra o ódio que não perdoa realizações das quais não participa. Um lugar próprio é bem isto: refúgio e vacina, veículo e armadura, espaço mental que nos pertence invulnerável e dentro do qual o ego, crina ao vento, se abandona.

Um lugar onde o eu não é somente carona.

domingo, 30 de janeiro de 2022

De luvas e coelhos


Quem assistiu a Ataque dos cães, filme baseado no romance de Thomas Savage, dirigido/roteirizado por Jane Campion e protagonizado por Benedict Cumberbatch, foi constantemente atravessado pelas metáforas da luva e do coelho. É essencial e lindo que seja assim em histórias de muitos não ditos, de muitas denotações enviesadas na garganta, forçadas a não ver a luz pela total ausência de ambiente – pelo clima de estrangulamento ou cansaço emocional nascido do lugar e da época. São, no caso, os Estados Unidos caubóis de há quase cem anos, travados para quaisquer discussões que não fossem coisas de macho (ou superficialidades perfeitas) e bullyingadores de fraquezas, carências, necessidades, hesitações, solidões e demais profundezas humanas que o simplismo próprio da covardia achasse de considerar frescura.

Nesse contexto de mutismo doentio, é notável como a presença/ausência da luva grita eloquências sobre os três personagens mais atribulados do enredo (recomendo que os não assistiram e ainda pretendem assistir não prossigam na leitura): para Phil Burbank (Cumberbatch), a insistência em trabalhar com as mãos nuas é o mascaramento-mor de sua alma que, tanto quanto o restante do corpo, não se despe a não ser no isolamento mais completo – e em última instância é a nudez das mãos, a nudez encobridora e simbólica de seu recalque generalizado, que lhe custa a vida. Para Peter Gordon (Kodi Smit-McPhee), ao contrário, o vestir calculadíssimo da luva é o índice maior de autoconsciência, autolealdade com que se joga em seu plano, por mais que haja temporárias e apenas aparentes concessões dentro de sua verdadeira natureza. Finalmente, para Rose ex-Gordon, atual Burbank (Kirsten Dunst), o calçar das luvas dadas pelos indígenas é não uma deliberação – como no caso do filho –, mas um lembrete dessa verdadeira natureza, ou da verdadeira natureza do mundo sensível, macio, delicado, generoso a que ela espontaneamente pertence.

E os coelhos? esses são um comentário esperto sobre as ações de Peter a respeito dos homens que infernizam a alma aveludada de sua mãe. Sim, os homens; não se pode ignorar que a primeira fala do jovem no filme – "Quando meu pai faleceu, tudo que eu queria era a felicidade de minha mãe. Porque que tipo de homem eu seria se não ajudasse minha mãe? se eu não a salvasse?" – certamente não se refere somente ao plano futuro de livrá-la da influência de Phil, e a própria construção dúbia e ensaboada do que é dito sugere que o rapaz, tendo literalmente matado dois coelhos durante o longa, matou também dois metafóricos. Para deduzir que Peter tirou seu pai alcoólatra da vida de Rose, já nos eram suficientes os atos posteriores do moço com relação ao tio postiço, além da informação de ter sido ele mesmo a encontrar o pai suicidado; mas para corroborar há as circunstâncias da morte dos dois coelhinhos: o primeiro, morto para dissecação – remetendo ao fato de o falecido Sr. Gordon ser médico; o segundo, morto à maneira caubói, e para aliviar o sofrimento da pata quebrada – o que se relaciona com a situação de Phil, a presumível segunda vítima, que aliás também machucara a mão seriamente (e era também animal escondido, caçado por Pete numa espécie de toca). É narrativamente marcante que Peter, sem na realidade desmentir nunca sua essência e seus propósitos, se mostre capaz de ser a luva e apreender, e mimetizar cada um dos obstáculos mencionados em falas-chave; não é certamente à toa que se destaca sua fiel preferência por tênis brancos pouco adequados para um rancho, mas igualmente sua arte em trocá-los por botas durante o estrito período necessário.

Era preciso não haver tantas amarras internas em Phil Burbank para lhe ser possível perceber que não lidava com alguém que precisasse aprender a usar a corda.

sábado, 29 de janeiro de 2022

Não tem desculpa


No Dia da Visibilidade Trans/Travesti, basicamente o que há a ser dito é: não tem desculpa. Não tem desculpa para deixar de adequar os pronomes à identidade de gênero da pessoa em questão. Não tem desculpa para ignorar a identificação mais profunda do interlocutor. Não tem desculpa para não facilitar a vida de alguém fazendo um microesforço de adaptação linguística. Não tem desculpa.

"Ah, mas o mundo não era assim, eu não estou acostumado." Ainda que o mundo não fosse assim (o que me parece bastante inexato, já que pessoas trans sempre houve e, nem que fosse simplesmente no universo artístico, COM CERTEZA já foram "apresentadas" faz tempo aos olhos teimosos), pois bem, vejam só: agora é. O mundo até ontem não contava com internet, smartphones, redes sociais, e essa ausência em boa parte das juventudes de quem "não estava acostumado" aparentemente não impediu que fenômenos tais fossem incorporados como naturalíssimos – sendo que, ao contrário de experiências puramente humanas, as tecnológicas de fato não tinham precedentes. Ora, criaturas que conseguem apreender o funcionamento do Facebook e do WhatsApp conseguem também lidar com a transexualidade alheia, com muito maior fartura de informação aliás.

"Ah, mas é difícil trocar o pronome de uma hora para a outra." Concordo, quando é o caso de haver convivido por longos anos com uma pessoa antes da readequação de gênero – porém nada que um empenho sincero em acertar não resolva. Quando o convívio se estabelece já durante ou após o processo, entretanto, não existem memórias, hábitos, imagens que ancorem a insistência do falador no equívoco; um empacamento em nomes errados, em termos incorrespondentes denota quase sempre uma agressividade específica ou generalizada. É má-fé sim, beloved – uma DECISÃO de desautorizar a visão do outro sobre si mesmo, estapear a identidade alheia somente para não descabelar nem de leve sua própria versão da realidade; uma escolha enfim peculiar ao eu colonizador que habita os inseguros, normalmente portadores duma psiquê de joguinho de jenga.

"Ah, mas" – não tem mas, é simplinho, é inclusive bastante antigo e tradicional: a gente pergunta o nome, a pessoa diz, a gente passa a chamar a pessoa por aquele nome. Ponto. Tem sido muitíssimo assim desde que humanos passaram a se conhecer no mundo. Se o sujeito declara um substantivo e os convivas o denominam por outro, das duas uma: ou se está no universo do apelido, ou no de algum grau de demência, uma vez que não se trata de informação tão complexa que não possa ser imediatamente absorvida.

Se antes não se sabia, aprende-se – igual a tudo na vida.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

O preço


O poeta e revolucionário José Martí – hoje aniversariante de 169 anitos, e tão essencial para a independência de Cuba que é lá conhecido como El Apóstol – disse com toda sabedoria e experiência própria que "a liberdade custa muito caro, e temos ou de nos resignar a viver sem ela, ou de nos decidir a pagar o seu preço". Martí pagou seu preço, sacando o valor da imensidão de bravura de que era dotado: foi um dos grandes mártires na história da libertação do país natal – extremo de heroísmo que provavelmente nunca nos será exigido, mas que tem gordas chances de ser fragmentado em milhões de pequenas prestações de heroísmo a serem pagas por todos os buscadores de liberdade autêntica.

Naaaaada tem a ver com essa "liberdade" estereotipada, ridícula, estúpida dos antivax; nem nadíssima tem a ver com o direito legal de comprar/portar instrumentos de assassinato. Isso não é liberdade, é bateção de pé de criança mimada, de criança estragada que se joga no chão do mercado e berra porque quer porque quer porque quer (ou não quer não quer não quer). A liberdade legítima não tem o componente do egoísmo e é atravessada sempre pela dimensão coletiva: tudo que pertence a alguém pertence-lhe apenas se não tiver sido tomado de outrem – a não ser, claro, que esse outrem tenha sido o primeiro a tomar algo indevido e seja crucial uma devolução, não por vingança mas por justiça direta; libertar terras colonizadas, por exemplo, obviamente não significa tirar nada aos colonizadores, e sim reafirmar a posse dos nativos. A liberdade só concebe pegar algo que já lhe pertencia, o que se estapeia com o caso dos armamentistas e antivacineiros, que não têm forma de alcançar o que desejam sem ser surrupiando uma grande parcela da segurança alheia. A regra é clara: se arrancou algum naco da liberdade de outro, já cometeu pênalti, e vai ter de ser gentezinha grande pra segurar as pontas da cobrança.

Ah, a cobrança – preço que pesa mais salgado nas negociações da liberdade, porém não para os cobrados e sim para os cobradores. Os cobrados, afinal, estão necessariamente em vantagem: metem mesmo a mão grande na autonomia do outro, exploram, expulsam, exterminam, espoliam, escravizam, tudo mais ou menos sem delongas e seguramente sem escrúpulos; de modo geral se organizam em milícias e corporações que, ricas e poderosérrimas, legalizam seus feitos legislando em causa própria, e pronto, está criado um feudo de opressão que definitivamente não há de abrir mão de seus privilégios pelos belos olhos do oprimido que solicita sua liberdade de volta. Não haverá nunca, infelizmente, uma epifania de bondade nos exploradores, uma síncope de reconhecimento de suas próprias culpas; a liberdade SEMPRE deverá ser defendida por quem está na base da pirâmide, sob eterna ameaça de perdê-la. Justo não é, não foi jamais, mas é assim: toda liberdade assegurada a pobres, negros, mulheres, indígenas, sem-terra, pessoas LGBTQIA+ e demais grupos historicamente prejudicados em seus direitos – toda essa liberdade só pode firmar-se se souber que não chegará a estar firme o suficiente para abrir mão da vigilância ininterrupta. Cada conquista não é troféu garantido, é luta perene: voto, mobilização, abaixo-assinado, manifesto, palestra, boca trombonante nas redes sociais e demais mídias, insistência, teimosia, briga nos tribunais. Ainda que não cheguemos (como chegou José Martí) a dar a vida pela causa, não conseguiremos estar desobrigados de empregar nela boa parte da vida, como se engajados num revezamento de olhos que zelam dia e noite contra o bote do predador.

Opressores não dão liberdade, não vendem liberdade – ocasionalmente são forçados a alugá-la por temporada. Ai de nós se ficarmos com a guarda abaixada.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

O trabalho


No sagrado aniversário de libertação dos escravizados no mais famoso campo de concentração nazista, faço minha a observação de meu Fábio:

"Em Auschwitz e em outros campos de concentração, quem estivesse doente ou fosse fisicamente frágil acabava no crematório ou na câmara de gás.

Ganhavam sobrevida os mais fortes e saudáveis, aptos ao trabalho, capazes de ainda gerar lucro para o regime nazista.

A Alemanha não podia parar."

Precisamente, agudissimamente isso, sem tirar nem pôr a mesma lógica maldita, nojenta: a "lógica" que era levada a extremos inimagináveis pela perversidade de quem se tornou epítome do mal, mas que em linhas gerais já existia desde muito antes, e que em linhas gerais persevera muito depois – persevera HOJE, debaixo de nossos olhos domesticadamente habituados. O nazismo constituiu a manifestação torpe das torpes, a aberração de extrema-direita com que se vestiu o capitalismo naquele momento específico da história alemã; havia todo o discurso excludente, cruel, eugenista, arianocêntrico servindo de capa – e certamente não foi algo acessório ou periférico, foi a própria (ausência de) alma daquela década de horror –, porém o núcleo não era outro senão a má e velha lucromania, a péssima e idosa noção de que muitos devem fazer tudo até a morte para que poucos tenham tudo em vida. Por quê? Porque assim é; porque "o trabalho liberta", dizia a infame inscrição do campo de Auschwitz. Sim, liberta de ser considerado peça de descarte, liberta de uma morte imediata para outra mais à frente, liberta a chuva de barulhinhos na caixa registradora dos patrões: esse o ideal que, décadas mais tarde, ainda posa e pesa sorrindo sobre os ombros que esmaga.

Caiu oficialmente o regime nazista, que o diabo o conserve nas masmorras da História; mas nem por isso caiu a convicção de que humanos só prestam para alguma coisa enquanto fazem a economia girar, de que pessoas deveriam levantar as mãos pros céus de ter QUALQUER trabalho precário e humilhante em vez de morrerem de fome, de que é melhor contar com menos (ou nenhuns) direitos a fim de se conservar a atividade que tem muita gente querendo. Caiu o terror máximo, o terror icônico, e no entanto permanece a glorificação duma economia abstrata em detrimento de seres concretos; permanece a boi-de-piranhização da sociedade, a martirização de braços obrigados a não zelar pelo próprio bem-estar, a não parar nunca, nunca. Caiu a ideologia da crueldade escancarada, explícita, porém ficou a essência da perversidade que sempre aprende a camuflar-se pela própria sobrevivência: a perversidade empreendedorista que manda trabalhar enquanto eles dormem, que incentiva a se desvencilhar das "amarras" da CLT, que prega o masoquismo de se estar em atividade acompanhado de "um tubarão no tanque", que torna o funcionário paranoico com relação a tirar férias ou desligar o celular, que ensina a sacrificar a segurança e ignorar recomendações científicas em nome de um lucro que jamais chegará às pecinhas da engrenagem – se pecinhas quebram ou pifam, são trocadas e economia que segue. O nazismo pode ter sido enxotado sob a forma repulsiva de nazismo, mas o germe do mesmo Alien que morava em sua barriga estruturou a sociedade em cuja barriga moramos; é o mesmo vírus mutante, persuasivo, que nos faz triturar os verdadeiros produtores da riqueza e glorificar os empresários açougueiros, exploradores, vendedores de números, executivos de abstrações e executores de p#%$@ nenhuma.

O nazismo se foi (we wish), o capitalismo parasita que o sustentava continua. Que haja o dia em que a praga desigualitária seja finalmente esmigalhada, e em que todos os portões paulatinamente abertos esqueçam como se fechar.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Mais ou menos cinco curiosidades sobre mim


Atrasadamente como sempre, fiquei sabendo que rola no Instagram a brincadeirinha das "5 curiosidades sobre mim". Well, Instagram é coisa que não tenho, por falta absoluta de habilidade para dar de comer a mais de uma rede (eu DIGO que não sou feita para administrar seres dependentes, não digo?), porém o joguito me agrada pela aleatoriedade e leveza – modos que vou entrando por aqui mesmo na vibe atual, como se já não dissesse de minhas curiosidades o tempo inteiro:

1) Sou um restaurante de mosquito. Um banquete de quatrocentos talheres para mosquito. Jamais soube e provavelmente não virei a saber o que nham-nhamiza a tal ponto meu sangue, mas o fato é que desde criança atraio os zumbidores mesmo que pessoa alguma no ambiente sofra atentados desse nível – porque são atentados: quem me ataca não são mosquitos, são nanopiranhas voadoras que cravam suas dentaduras e deixam, como recibo, uma bolota sanguínea. Felicissimamente é provável que nunca nenhum Aedes aegypti tenha vindo para jantar, até o fechamento desta edição.

2) Apesar de carioca nascida e vivida, não ando de chinelo na rua. Ever. Aliás, tenho ranço incontrolável de que se chame chinelo de sandália e sandália de chinelo; qual é a DIFICULDADE, gente, de perceber que sandália também é presa ao pé na parte de trás?... Chatice adjacente: chamar chinelo de chinela me irrita em igual proporção.

3) Não consigo cravar cor preferida tão convictamente quanto as nanopiranhas me cravam seus mordedouros; gosto de vermelho, amarelo, rosa, laranja, turquesa, tenho fortes relações com verde, mantenho camaradagem com lilás. Amo cores em geral e não me interesso por neutralidades.

4) Abomino camarão (muitos sabem) e adoro fígado, o que faz boa parcela da humanidade duvidar do meu caráter.

5) Curto muito os chapeuzinhos e boinas visualmente, e cheguei a aderir ao hype lá pelos vinte e tantos anos, por irrefletida fofura; BUT não demorou para que chegasse à triste conclusão de lesa-moda que chapéus em geral me torram os miolos, e que aprecio os cabelos libérrimos. Só consigo cobrir a cabeça em situação de Sibéria ou de Saara.

Bônus: chego a ficar mais de ano, molinho, sem vestir uma calça comprida. É o Rio – e é a vida.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Sobre o cujo


Um meu superqueridão comentou, na rede social, que a mãe sempre o aconselhou a não falar nada sobre a morte daqueles a respeito dos quais não há nada de bom a dizer. Acho um conselho fabulosamente elegante; puxo aqui de empréstimo e vou procurar segui-lo em termos, já que frequentemente existe muito a dizer inclusive do que convém não ser dito.

Primeiro, não usarei da hipocrisia de declarar que lamento; seria estapafúrdio lamentar a mudez de quem, falando, plantou a desinformação mais disparatada, mais incongruente, mais letal entre seus seguidores. Mas não afirmarei tampouco que comemoro – não em respeito ao morto e sim a mim; estou isenta de qualquer emoção a ser disponibilizada para o indivíduo em questão, mesmo de contentamento, porque seria muito forte me atribuir algum contentamento vindo dele. Eu lhe dedico indiferença (parcial, reconheço, por ser uma indiferença que escreve para declarar-se), e dedico pena não a ele, adultíssimo e privilegiado o bastante para se exercitar na maldade por escolha própria, mas pena de que haja criaturas a fazer essa escolha. Um réquiem para as sanidades e consciências que DESEJAM se perder no caminho.

Também sem propriamente comemorar, direi que é uma morte educativa. Não se trata de urubuzar "morra de covid, morra, seu antivax!", mesmo porque francamente desnecessário; um antivax idoso, fumante, com problemas de saúde pregressos se encaminha de maneira voluntária para qual destino? É, portanto, apenas um CQD (como queríamos demonstrar) matemático, útil ao emprego de todos os pró-vacineiros que contarão com o exemplo icônico dos icônicos. Qual a precisão de a gente perder tempo com textão citando lei do retorno, vingança, justiça cósmica e outras gigantices de tragédia grega, se basta fazer o gesto conjunto de mão e testa – o velho gesto em que a testa franze, a sobrancelha se ergue, os olhos se mais-abrem e a mão mostra sua palma, num sentido geral de "pronto, é lógico, taí a consequência, esperava o quê?" Atenho-me então ao gesto que podem me imaginar fazendo; é eloquente o bastante para discorrer, sem queima de calorias tripudiantes sobre o defunto, a respeito de fatos e seus efeitos. Nem carecemos de revanchismo: temos ciência.

E muito mais não digo; somente que, a todos os amigos e familiares não negacionistas das vítimas da covid e da ignorância, mando meus mais potentes sentimentos. E espero que a alma do falecido de hoje encontre seu lugar.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

A casa da histeria


"Por que chamamos todas as nossas ideias generosas de ilusões, e as cruéis de verdades?" É frase (em tradução aproximada) da escritora norte-americana Edith Wharton, hoje aniversariante de 160 anitos; está lá no romance The house of mirth (A casa da alegria). Infelizmente nunca cheguei a ler as obras de Wharton, nem o célebre A época da inocência, porém sou recorrentemente seduzida pelas citações da autora, sempre robin-hoodica na mira. Faço bem minha a angústia da questão: por que gabirobas fluorescentes tratamos o que temos de espontaneamente bom como tolice utópica, enquanto elegemos a indiferença, o sarcasmo e o cinismo para representantes da Terra na ONU dos planetas?

Sem dúvida há um grossíssimo componente de medo, e esse medo sempre havido na história humana anda ferozmente agravado pela virulência perdigota das redes sociais: ninguém da maioria (quero crer seja a maioria) propensa à generosidade deseja ser motor de deboche para a minoria ressentida e barulhenta; tanto os verdadeiros e poucos beneficiários do lema "o mundo é assim mesmo" quanto os burros de carga estocolmizados pela convicção de que "o mundo é assim mesmo" são bastante eficazes em bullyingar os questionadores, cravá-los como ameaças e crivá-los de ameaças, ridicularizá-los como infantis ou demonizá-los como comunistas. Particularmente considero uma honra ser chamada de comunista, mas convenhamos – para mim, integrante anônima e razoavelmente instruída duma classe média um pouco menos pobre, é fácil dizê-lo; difícil é afrontar o rótulo e a perseguição quando não se sabe do que se está sendo "acusado", ou quando se ouviu desde criancinha que isso aí é do mal, ou quando se pode por causa disso perder o emprego, os conhecidos, os familiares, a segurança, uma completa rede de apoio. É infelizmente compreensível que muitas indignações sejam sufocadas na nascente, que olhos por natureza abundantes de doação e observação acabem – exaustos e desencorajados – se fechando.

E não é só o medo de fora, embora o princípio envenenador tenda a nascer fora; uma vez que estamos (in)devidamente cabrestados pela pressão geral de "tudo ser assim mesmo", quase que nos apavora o apego à realidade que deveria ser. Uma possibilidade, uma VERDADE não realizada – e que se vê por hábito como irrealizável – espicaça em excesso nosso pobre ser cotidiano, que mal pode consigo durante a lida doméstica e o expediente, quanto mais doendo o tempo todo de forma aguda. Por temor às decepções em todos os níveis é que vamos nos permitindo esmagar pelas decepções em todos os níveis, dia após dia dessonhando, desreagindo; e eis que o planeta vai se amontoando de quaquilhões de seres coletivamente histéricos, convencidos de que é loucura fazer precisamente o que foram feitos para fazer. Seres persuadidos exatamente por quem mais teria a perder se eles o fizessem.

O mundo é louco sim, mas quase sempre ao contrário: é louco de regar sanidades que o dilaceram e enriquecer seriedades que o alopram. O mundo não olha pra cima para fingir, sensatíssimo, que está no comando.

(Felizmente não sabe até quando.)

domingo, 23 de janeiro de 2022

Mulher e moça


Faria hoje 190 anos o fabuloso Édouard Manet – que não é meu bem-amado Monet, mas que foi igualmente porreta e definitivo no Impressionismo, com obras iconiquérrimas como Olympia, O tocador de pífaro e Almoço na relva. Exatamente pelo peso célebre dessas telas que todo mundo conhece de enciclopédia, porém, me permitam namorar o gênio de Manet com base em outras não menos fascinantes, apesar de "anônimas": Mulher com um gato e Moça no jardim, ambas de 1880. É uma pena gigante que preciosidades assim andem mais na pipoca que no camarote da história, pelo menos em termos de reconhecimento público, quando ilustram tão maravilhosamente a alma do movimento impressionista – as pinceladas que parecem milagre e feitiço, a maneira extasiante de delinear fingindo que nem, a precisão formada por mil imprecisões, lançadas na superfície como um idioma que também alcança perfeitamente quem não o fala.

Abraço essas obras específicas por serem estreladas por mulheres, e de modos tão distintos: uma em cena interna, reconcentrada, intimista; a outra, numa exuberância colorida e solar, coberta de primavera. Em Mulher com um gato, apaixona-me muito como é construído o rosa do traje – na realidade um zigue-zague desde o tom alaranjado até o lilás –, assim como me choca docemente que consigamos ver o dourado vivo das molduras sem efetivamente vê-las. Mais extraordinária é a expressão da personagem que dá título ao quadro, infinitamente pesarosa e distante do gato que a acompanha no título e que nem sabemos se acaricia; o mais provável é que o bichano lhe tenha o máximo de confiança e amor, ou não se espapaçaria tão franco em seu colo (gatos: nós os sabemos), mas a despeito dessa relação de intimidade quase certa o olhar da felizarda viaja tenso, perplexo, gemendo também com a mão esquerda um "o que faço?" que por pouco não é audível. A personagem pode sem dúvida estar COM o gato e – na opinião do animal – pertencer-lhe, e no entanto PARA o gato ela certamente não se encontra, envolvida numa das mais palpáveis absorções de espírito existentes numa tela que deveria, supostamente, negar-nos o dom da minúcia.

Incrivelmente, a Moça no jardim é tão adivinhável, em sua postura relaxada de quintal florido, quanto sua irmã o é no cômodo de molduras douradas – e vejam que sobre a fisionomia da jovem leitora pesa o chapeuzinho disfarçante, além do fato de os olhos estarem repousados no livro. Em tese nada contribui para que adivinhemos e distensão e a suavidade do rosto, porém as adivinhamos alto e claro; e da mesma forma adivinhamos uma leitura a tal ponto ardente (aliás, como não comentar a perfeição minimalista dos traços que estruturam as páginas?) que são justamente as flores de maior calor a vir beijá-la. Algumas rosas – que alegria reconhecer a perícia do pintor em afirmar com poucas linhas que SÃO rosas! – contornam de inocência a personagem, mas são as não-rosas vermelhas que denunciam o incêndio embutido na ação de ler. Em contraste com esse fogo simbólico, a moça é vestuariamente confundida com a água, a placidez que é entretanto fluida, fértil e mutável; e não deve ser à toa que a fonte-regador (pintada nos tons da roupa da jovem) está posicionada para as flores como a leitora para o livro, numa sugestão do derramar-se recíproco entre receptor e obra. Ambos se fecundam e são fecundados: tanto o texto adentra seu público como semente quanto passa a pertencer àquele que o completa.

Édouard Manet disse isso tudo? Possivelmente não, mas foi direitinho o que me pareceu ter ouvido. Saramagueando, sugiro que "se podes olhar, vê; se podes ver, repara"; qualquer construção dum gênio em serviço é palestra rara.

sábado, 22 de janeiro de 2022

A tal filha


Afinal, quem é A filha perdida do longa dirigido e roteirizado por Maggie Gyllenhaal (com base no livro homônimo de Elena Ferrante)? Não me parece que a história tenha sido feita para dar respostas cravadas, sobre nada aliás; o que há – e a partir daqui evoco elementos que spoileiam a trama a torto e a direito – são milhões de pedacitos de mais duma realidade feminina dentro do filme mesmo, fragmentos de inúmeras vivências da mulherice, várias delas atravessadas pela presença/ausência do relacionamento materno.

O mais natural é que relacionemos imediatamente o título a Elena – não a autora, mas a filhinha da personagem Nina (Dakota Johnson) que se perde da família na praia duma ilha grega, e é encontrada pela protagonista Leda (Olivia Colman), que passa ensolaradas férias no local (por sinal é quase esperado que em algum momento uma Helena se perca em plena Grécia, mas a tendência mítica é que retornem depois de certo furdunço). No ato de se chamar e catar a menina, somos apresentados à segunda possibilidade de filha perdida, já que o episódio evoca em Leda a busca de sua Bianca – também extraviada na praia, décadas antes –, e assim que a primeira guria pródiga volta aos braços da mãe se abre uma terceira possibilidade de interpretação: Elena reaparece, porém sua filha, a bonequinha de estimação, é "sequestrada" por Leda. Trata-se portanto duma tríade de perdas maternas no mesmo cenário, ou quase; Leda é a maternidade que resgata a dor do passado, Nina é a maternidade jovem que a vivencia no presente e Elena é, com grandes probabilidades, o ensaio das dores de maternidade futuras – uma vez que o ar mafiosérrimo da família em que nasceu faz supor que a garota, na realidade, pertence a um clã tradicional, controlador e machista no qual tornar-se esposa e mãe há de ser possivelmente compulsório.

Mas é em Leda que o buraco é mais embaixo. A aparentemente inexplicável ação de roubar a boneca duma criança que mostra ter ao brinquedo um apego doentio (e a longa insistência em não devolvê-la) amplia o foco: sim, talvez aquela seja também a filha perdida da protagonista, de tão semelhante à que ganhou da mãe em sua própria infância e perdeu na infância de sua filha literal – visto que a desafiadora Bianca barbarizou com a bonequinha de Leda (Jessie Buckley, na versão mais jovem) e esta, frustrada, acabou defenestrando o brinquedo, provavelmente pela inviabilidade de defenestrar a menina. Na destruição da primeira boneca, destruiu-se um pouco dela mesma, Leda-filha, e outra parte sua como mãe; quebrou-se um vínculo entre gerações, e eis mais duas filhas perdidas. Expurgar a bonequinha de Elena de sua sujeira, seu conteúdo nojento, suas roupas desarranjadas parece ser, para a personagem principal, um comprido resgate desse vínculo, com todas as lutas e contradições contidas no resgate e ilustradas pelo ir e vir com a boneca – guardá-la aqui e lá, perdê-la (hum), reencontrá-la, quase entregá-la, jogá-la fora, pegá-la de novo, abraçá-la, acalentá-la. O brinquedo é ao mesmo tempo um ícone de infância e de maternidade, duas situações que Leda tanto preza quanto rejeita: ama a lembrança de sua mãe, porém a coloca em último lugar na escala de quem poderia cuidar de suas filhas, despreza o fato de ela ter baixa escolaridade e se refere a suas origens como "àquele buraco de onde eu vim"; ama sinceramente suas filhas e as conhece nos detalhes, e no entanto considera terem sido maravilhosos os anos em que (por opção) esteve longe delas.

A filha perdida, por que não? também pode ser Nina em sua relação com Leda. Afinal é com Nina que a protagonista estabelece um elo de empatia desde o início de suas férias na praia, e há um nítido espelhamento da jovem e sobrecarregada mãe na mãe madura que parece ser a única a compreender seus dilemas; é para Nina que a viajante dá um presente, assim como dera à sua filha Bianca, e é por Nina que ela é ferida com o mesmo presente – o que remete ao episódio em que Bianca a "feriu" com o ataque à boneca, além de outro no qual a menina a agrediu fisicamente repetidas vezes. Curiosamente, de toda a família mafiosa cuja ameaça paira sobre Leda no período inteiro de sua viagem, apenas a criatura que de certo modo adotara chega a machucá-la efetivamente; uma sugestão, talvez, de que as verdadeiras feridas costumam vir dos mais próximos, o que Leda vivenciou passiva e ativamente em sua maternidade.

Qual a filha perdida planejada por Maggie Gyllenhaal e Elena Ferrante? Aquela que, entre todas as pistas espraiadas no enredo, cada um encontrar.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

A saúde essencial


Agudíssima a fala do escritor mexicano Marco Antonio Montes de Oca, ao cravar que "o amor é a enfermidade que nos devolve à saúde essencial". Olha que não cabem no mundo os ensaios de definição desse pequeno saci dos sentimentos, desse geniozinho mistamente melancólico e serelepe que nos confunde até a medula; mas não é que Marco Antonio conseguiu engaiolar em palavra uma porção gigante? Amor é enfermidade porque nos tira sem cerimônias da programação de fábrica – nosso default egoísta até segunda ordem –, e, em nos desviando do que a carne animal nos programa para ser, consagra o diferencial que nascemos para carregar, tornando o mundo não só possível: tornando-o compensatório.

O amor nos arranca a lógica dos escambos. Certo, numa sociedade eminentemente comercial vira loucura, vira aberração deixar-se de alguma forma espoliar, não por ausência de voz mas por escolha; e se apresenta ainda menos sã, na visão dum mundo organicamente orientado para a supremacia do mais forte, a subversão amorosa de pôr aquele que tem mais a serviço do que tem menos, aquele mais preparado ou rico ou potente ou sábio sob o chamado e as necessidades daquele menos estruturado, mais indefeso. O amor é o anticapitalismo, o antirreinado do poder, a antisselva, o anticomércio. Quanto mais sólido for, mais saberá inclinar-se; quanto mais avultado, mais disponível; quanto mais acumulante, mais distribuidor; quanto mais favorecido, mais concedente. O amor, lembram? é basicamente o codinome dum Deus que aceitou partilhar de nossa miséria, e quando se manifesta não se sabe manifestar senão com essa mesma generosidade escandalosa.

Sim, o amor é doido sob nossos parâmetros muito horizontais: topa doar-se a uma causa, ainda quando "não tem nada com isso"; adota incondicionalmente seres que não gerou, seres em que portanto não grita a demandante transmissão de genes – seres inclusive de outras espécies; adota também incondicionalmente os seres que gerou, e que nem por isso são de lida mais fácil, com suas individualidades não raro atordoantes; arrisca-se fisicamente para salvar quem não conhece, passa uma vida em pesquisa para curar quem nunca viu, larga família e continente para cuidar de quem nunca tornará a ver. O amor é absolutamente diagonal, oblíquo, descosido, estapafúrdio, e não porque egocentricamente queira chover rosas sobre uma casa amada, mas antes por querer plantá-las em todas. O amor é uma piada para os que conformam, um obstáculo para os que desistem, uma doença para os que só creem no que é calculável e medível.

E é a única saúde possível.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Para Elza


Dia de nosso guerreiro,
vai-se a guerreira; milhares
de ecos do chão brasileiro
vão-se com Elza Soares.

Vinda do planeta fome,
só nos servia manjares
de arte e de voz; o seu nome,
música, é Elza Soares.

Como apagar, se é verdade
que ícones são estelares?
Salve a imortal mocidade
de nossa Elza Soares.

Voz de denúncia e potência,
sustentação de seus pares,
força na essência da essência:
eis tudo em Elza Soares.

Não só do fim deste mundo;
de quaisquer tempos, lugares,
é seu engenho fecundo.
Valha-nos, Elza Soares!

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Do poema pelo poema


Edgar Allan Poe, célebre interlocutor de corvos e cultor de histórias extraordinárias nascido num 19 de janeiro (de 1809), foi um dos únicos escritores lá do Tio Sam que me caíram no gosto (sim, não tenho paciência para a literatura estadunidense, desculpem). Do querido e descabelado Poe é que dizem ser a frase: "E nenhum poema será tão grande, tão nobre, tão verdadeiramente digno do nome de poema quanto aquele que foi escrito tão somente pelo prazer de escrever um poema". Não sei se concordo na prática – por total impossibilidade de averiguar o que motivou cada obra imensamente poética do mundo –, mas concordo na teoria, dado que a linguagem da poesia é, de per si, um inebriamento consigo mesma. Não é assim que aprendemos a função poética na escola? "o foco está na mensagem", decoramos bonitinho; o foco está na construção sacrossanta do texto como quem nada num ritual sagrado, como um pai ou mãe que penteia com solenidade o filho ou filha sem nenhum compromisso de exibição em casa de parentes, apenas pelo amor da lindeza.

Amor, disso é que se trata um poema (qualquer manifestação literária na realidade, mas ESPECIALMENTE um poema): trata-se de fazer amor vocabulária e estruturalmente, de amar por amar a língua, de – só pelo prazer de amá-la – kama-sutrá-la toda, explorar-lhe as possibilidades sem nenhumas obrigações de tempo ou de meta ou de encomenda, ainda mesmo que as haja. Um poeta não é poeta porque o forçam a ser, tanto quanto um apaixonado não se manifesta apaixonado porque é intimado a; se por acaso acontecem pressões de qualquer tipo, que pelo menos no ato da construção, da procura, do enredamento, da dinâmica, da relação entre autor e obra ou entre amante e amada(o) tudo que é exterior se secundarize, tudo que é peso se esvaia, a fim de que se plenifique o que é essencial. Existe a urgência da felicidade verbal na poesia como existe a do suspiro no amor (suspiro, metonímia da sinceridade feliz).

E os autores que sofrem horrivelmente o ato de escrever, declarando-se satisfeitos unicamente com o de haver escrito? Estão falando a verdade, não tenho dúvida: escrever é quase o tempo inteiro doloroso. Mas e o praz...? – Sssssh, a banda toca assim mesmo; o poeta é um fingidor, favor não esquecer. Simula inclusive para si uma angústia que no entanto o vicia, por ser mais ânsia que descontentamento, mais cansaço e frustração que desgosto; o autor sofre no desejar vencer-se, no desejar fazer mais, e não no desejar não fazer. Só se torna automentira e doença se a ansiedade da superação vira fobia, paralisia, e o medo (sempre ele, senhor das desgraças) engole a diversão por completo; aí a poesia já se terá esvaído para ficar exclusivamente o comércio do mundo, que tudo dispõe em termos de competição e negócio. O gozo sincero da arte pode sustentar-se com o mercado, porém não se realiza, não se executa pensando nele: criar sem nenhuma alegria gera o mesmo vazio prostituído de amar sem nenhum amor.

Não é que poesia desconheça a venda – mas a melhor se faz sob sua própria encomenda.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

A hora do pesadelo


Sonho muito (no sentido do delírio inconsciente mesmo, não no da querência) com imóveis que não são meus nem nunca foram, mas que no sonho são, e tanto têm um quê de esquisitamente familiar como representam um susto: então é aqui que estou morando agora? Outro dia passeei com tão longos detalhes numa casa em que oniricamente residia – visitei tantos cômodos bizarros, ora envidraçados aos pés da praia, ora entremeados por pequenos pátios decadentes semelhantes a depósitos, ora escondiditos em forma de sótãos que aparecem quando precisamos de guardadouros –, que acordei francamente tonta, geograficamente desorganizada, sem lembrar as minúcias de onde o eu-daqui residia. Tem isso e tem versões mais perturbadoras: releituras da moradia atual ou da anterior, quase sempre traspassadas por um de meus pesadelos maiores, que é a privacidade devassada. Com frequência as janelas surgem excessivamente próximas do mundo exterior, ou a rua vira uma espécie de quintal do imóvel, ou transeuntes têm acesso a alguma parte dele por se conectar com determinada loja, ou irrompem visitas que não sei donde chegaram, ou se passa algum evento bisonho com participação de gente desconhecida... Eu, a rainha do retiro e do encapsulamento doméstico (que já me sinto profundamente desconfortável até se um vizinho está visível da janela, quanto mais se há presenças de fora em meu recesso sacrossanto), fico louca; pra que fantasmas e demais assombrações, se já conto com manifestações tão porretas de terror noturno?

Outro horror dos horrores que VIVO sonhando: estar devendo alguma disciplina no ensino médio ou no superior e precisar voltar. Não que meus tempos de escola e de facul tenham sido plúmbeos (adoro plúmbeos), longe disso, mas olha pra mim, baby – PELAMOR; cê acha mesmo que eu estaria remotamente no clima de voltar um passo atrás, no que quer que fosse da vida pessoal? MAR NUNQUINHA. Me dá um negócio agoniento de pensar que, nesses sonhos, estou eternamente desinformada do que acontece na aula, aturdida, última-horing descobridora de que tem um trabalho pramanhã que foi passado na primeira semana. Pode ser prova também, invariavelmente de Matemática, Geografia (não sei por que Geografia) ou qualquer matéria cujo professor não conheço, a cujas aulas não assisti jamé. Olha: sufoco, viu. Fui uma boa aluna no universo acordado, ignoro o motivo de ter essa caveira de burro enterrada nas memórias acadêmicas.

Não menos importantemente, há os subsonhos atrozes de banheiro, em geral posicionados nos momentos do sonho principal em que devemos vida-realmente ir ao cujo. No pesadelo, porém, é quase impossível conseguirmos – e é bom, por motivos óbvios, que assim seja –, mas precisava aparecer esse tanto de banheiro horrrrrrendo durante a busca onírica? Às vezes são apenas durões de encontrar e vêm com muita fila, só que em outras o reservado chega a ser acessado e é simplesmente INFECTO, minúsculo, com lixeira e vaso nojentos e logística impossível. Ou então volta o perrengue da privacidade invadida e brotam configurações esdrúxulas de banheiro: sem divisórias, com gente entrando e desentrando no quadrado duzoto, o próprio inferno dos introvertidos. Era talvez necessária essa mixórdia toda para gostarmos de acordar, suponho – e olhem que comigo funciona, já que durmo desde sempre não por boniteza e sim por percisão, como diria Rosa. Verdade que é melhor despertar no varejo, espantando os delírios absurdos, do que no atacado, entrando na consciência do tudão a ser feito no dia;

(mas antes ter compras aguardantes que uma prova de Geografia.)

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Lava story


Sou carioca e, como espécime tradicional da cidade, gosto nadinha de frio. Não fomos organicamente preparados, não temos roupa para o evento. Mas sinceramente: não entendo tampouquíssimo a TARA de alguns pelo calor – e, quando falo de calor em termos de Rio de Janeiro, falo das montanhas de Mordor, da lava incandescente do Etna, com sensação térmica só experimentada pelos residentes do astro-rei. A não ser que se seja requiéééssemo de botar ar-condicionado central em casa e deixar ligado 24 horas, pagando-se uma conta de um bilhão e trezentos millhões de reais, não vejo vantagem: ventiladores mandam ar quente, dão dor de garganta e alergia por causa da disseminação miserenta de poeira e de ácaros que wheeeee! por todos os cômodos; 87 banhos diários são custosos, antiecológicos e não necessariamente resolvem a parada, uma vez que caixas d'água muito expostas ao sol enviam o líquido já pronto para receber saquinhos de chá; piscinas são para poucos afortunados (afortunados em amplo sentido); idas ao shopping são modos eficazes de contágio, e à praia tafulhada de calor (também) humano, não menos – fora que a areia refrescante parece vomitada do Vesúvio e, lamentavelmente, ainda não providenciaram formas de acessar o mar sem ser via inferno de Dante. Em suma: o verão do Rio é para revistas, milionários e masoquistas talvez ainda inconfessos e não diagnosticados, mas que precisam analisar isso daí.

Piores são alguns dos lazeres lazarentos associados à ideia de verão, porém evidentemente instituídos por vilões de desenho animado, daqueles que gargalham tombando pra trás. Churrasco, por exemplo. Conseguem imaginar uma época PIOR para agitar um churrasco?... A sensação térmica natural de 78 graus somada à de 825 da churrasqueira, o responsável pela carne em visível estado de desidratação, quiçá insolação (o que ainda tem o inconveniente de pesar sobre o sistema de saúde); e com o quê ele se "hidrata"? com o quê? com o quê? Álcool, obviamente – um dos grandes desidratadores de nossa humanidade absurda. Além do absurdo que mora no prato principal em si: QUEM, em sã consciência, põe pra dentro QUILOS de carne vermelha, sujeita a milênios de atividade digestiva, em pleno verão rigorosérrimo que já deixa a gente mole feito dobradinha mesmo comendo alface? E claro – claaaaro! –, ainda tem a sobremesa, de preferência um pavê com 56 camadas de chocolate que abrilhanta mais a alegre rave estomacal (aguçada pelo ódio do tio que passou mais um ano sem perder a piada).

E a praia? Misericórdia, Senhor. Naquela mesma areia vomitada pelo Vesúvio, pessoas em aparente situação de sanidade não se limitam a passar como passam aqueles orientais sobre brasas; pessoas estendem cangas e SE ESTENDEM no solo de Mordor, a fim de providenciar a combustão da pele e exibi-la em sinal de juventude e frescor. Pessoas também emendam capirinhas AND assemelhados, num esforço tocante de autoflagelação, e praticam esportes por horas debaixo de sóis individuais, garantindo insolações que matam e têm o inconveniente de pesar sobre o sistema de saúde. Um lazer adorável, em especial se amarradinho com boas intoxicações alimentares provindas dos camarões e maioneses vendidos na areia, sob o aprazível meio-dia do magma terrestre. Ah, que lendários os dias de verão carioca. Daqui a cadinho vem o carnaval, naturalmente, e então ocorrerão bailes lícitos e ilícitos em que o corpo será obrigado a pular até os estertores do sol (ou do corpo), e desidratará, e desmaiará, e tomará soro na veia enquanto pesa sobre o sistema de saúde, mas OK – um calor no coração, essa magia colorida, coisas da vida.

Auriverde verão de minha terra, que nenhuma brisa do Brasil beija nem balança: não quero te ter todo se ardendo só pra mim. Aguardo o fim.

domingo, 16 de janeiro de 2022

Em tudo há um sentimento vigilante


Num poema de Maria Lúcia Alvim: "Em tudo há um sentimento/ vigilante/ que procura vir à luz do dia". Não pensamos nisso, ou ao menos não pensamos nisso a respeito de tudo, mas é fatão – de tal forma impomos silêncio social a cada pequeninice pressentida, sentida, imaginada, num (necessário) esforço em prol da aceitação e da viabilidade de convívio, que cedo ou mais cedo estrangulamos a verdade basilar, o sentimento vigilante que anda no fundo de todas as coisas. É o amor que não tem mais a coragem desorgulhosa de vir à tona, é o desprezo visceral que reprova terminantemente a si mesmo, é o ressentimento que não se assume no controle, é a exaustão física e moral que tudo perpassa e nunca se dá o direito de gritar sua urgência; são as essências, a nudez simplíssima de quem somos e de quem os demais nos são, a que basicamente não se concede a graça de existir, quase que desde o dia zero-um.

Não significa, é certo, que em nome dum suposto autorrespeito vamos sair pelas estradas cuspindo marimbondos em todas as fuças, ou agarrando e beijando quem nos apraz, ou metendo eye-rolling desde a apresentação no trabalho até a reunião de condomínio. Seria o caminho mais fácil para praticarmos ou sofrermos homicídio antes dos dez anos de idade, ou seja, nada menos apetecível para a sobrevivência da espécie do que a mais sincera onipresença do id – egoísta, desorganizada, potencialmente violadora, rapineira e fadada a impossibilitar qualquer relação humana. Já falei e repito, e trepito, que honestidade não há que ser usada como álibi para a falta de educação dos preguiçosos; honestidade legítima aprende a ter palavras suficientes para não precisar ser brutal, e se em última instância tiver de ser brutal (com um fascista, por exemplo) ao menos saberá não ser cruel. É justamente essa, a limpa sinceridade forte o bastante para se constituir translúcida sem grosseria e reativa sem vingança, que carecíamos cultivar já no berço – porém nos escapa já no berço, onde aprendemos a sufocar de colchões cada uma de nossas ervilhas em vez de suavemente dar-lhes terra.

Precisamos de terra. Precisamos nos fincar, nos plantar, espraiar raízes tão genuínas que toda manifestação externa venha a ser consequente, e como que sobressalente. Se nossa História com agazão e nossas histórias com agazinho nos facilitassem a vida, caules e ramos e copas e etcéteras teriam o mais alongado tempo de mostrar-se ou não mostrar-se, exibir-se ou não exibir-se conforme suas tendências; mas não, somos como que forçados a já alardear flores suspensas quando sequer passamos a limpo as raízes, impelidos a um comportamento todo exterior sem que antes as bases se tenham firmado. O resultado é que, postos no palco sem suficiente ensaio e condicionados por treinamento e não por autoconhecimento, ignoramos o que nos nutre e focamos em participar da floresta. Participar da floresta é bom, essencial inclusive; não há, no entanto, como entrelaçar galhos em outros galhos se no chãozão andamos bambos, incertos, prestes a sucumbir por excesso de peso depositado num alicerce que não pousa.

Flores são excelentes, asas são ótimas, mas em geral o que primeiro nos falta é: repouso em nós. Se nosso sentimento vigilante não tem estrutura de vir à luz do dia germinando em sossego, há de vir inevitavelmente nem que feito enfarte, burnout, raiva, fobia, melancolia, vulcânico de algum modo; e há de ir queimando o entorno onde, cada vez mais, menos coisa brota.

sábado, 15 de janeiro de 2022

Coisas realmente irritantes (musical edition)


Gente que "anuncia" a letra da música verso por verso.

Gente que grava novas versões de seu clássico, mas não deposita as pausas nem lança as palavras como há 32 anos estamos acostumados a fazer.

Gente que estica os termos 837 vezes mais que o necessário.

Gente que solta a voz com sofrimento tal que, mui preferencialmente a um microfone, pediria um antialérgico ou um Buscopan.

Lentidão excessiva no ritmo, ou desritmização quase completa – a ponto de a melodia deixar de ser reconhecível.

Mudanças sapecadas nas canções durante realities, a ponto de a melodia deixar de ser reconhecível.

Escolha sempre dos meeeeeeeeeesmos títulos nesses realities.

Gritos, gritos, gritos. The-voicização da música, como se só a histeria do estilo americano carimbasse um bom vocal.

Pagodização de qualquer obra.

Solo de guitarra.

Heavy metal.

Musicais em que não se consegue perguntar café ou chá, senhor sem ser cantando.

Gravação de faixas para o público infantil com vozes de crianças de quatro meses (quatro meses de gravidez).

Dublagem de canções em filmes. Já não era tempo, gente, de isso estar tipificado na Constituição?

Uso do "não" e do aumentativo como muletas de métrica e rima em musiquinhas infantis.

Fones de ouvido que ou não fixam nos buraquinhos da orelha, ou esmagam o crânio como apetrechos de Jigsaw.

Transformação da tonicidade das palavras A SANGUE-FRIO.

Vizinho assassinando, também a sangue-frio, um meeeeeee and Mrs... Mrs. Joooooooooones... Mrs. Joooooooooooones!... (música a que já dedico meu ódio mais recôndito nas CNTP).

Ruma de agroboy cantando basicamente que: baladei, bebi, beijei.

Temas e jingles viciantes, que assentam na memória desconvidados.

Compassos (históricos) atrasados.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Incondicionalidades


Vi há pouco o vídeo de uma moça cuja gatinha de estimação simplesmente ODEIA tudo que respire, gente ou bicho – com menção honrosa para crianças (que segundo a tutora estão sempre felizes, e a peluda detesta felicidade). Não estou exagerando; a bichana é um capiroto que mia, o demo de quatro patas, o felino de Rosemary. Considera a casa, a rua e basicamente o planeta como seu espaço pessoal, fica constante e profundamente ofendida se a dona OUSA estar no mesmo cômodo (não raro o atravessa apenas para atacá-la), persegue inclusive outros gatos durante o passeio, estraga qualquer tentativa de confraternização de seus humanos, ataca, arranha, morde – enfim, é o Jason manifestado em Garfield, a Miranda Priestly dos Jellicles. O único e exclusivo objeto de seus amores é o pai da tutora; fora esse alvo aleatório de devoção, o universo pode acabar em Whiskas para ela morrer devorando todos os seres viventes.

Como quase qualquer representante de nossa espécie que busca essencialmente feedback e validação, eu já me perguntava como a mãe da felina aguenta morar com uma gremlin que a odeia de forma tão explícita, quando às tantas do vídeo a própria santa respondeu, para meu vexame (respondeu em inglês, so relevem a adaptação improvisada): "Muitas vezes sou questionada sobre o porquê de não desistir dela. Eu não acho que gatos devem necessariamente amar você para que você tome conta deles, porque eles são família. Eu amo minha gata ainda que ela não me corresponda. Gatos como Nanoos [o nome da monstra] normalmente não são adotados. Meu objetivo é apenas fazer com que ela tenha uma vida feliz. Lá no fundo, talvez ela seja um pouquinho grata pelo fato de ser eu a sua dona". Embarguei-me inteira e tropecei em mim; é isso, é exatamente isso, é precisamente ESSA a incondicionalidade do amor cuja apologia fazemos tanto mas que limitamos a um post bonito, sem aplicação prática. Com poucas frases e ações em série, a mãe de Nanoos samba no nariz de séculos de teoria amorosa, pisa firme, esmaga fundo a pretensão que temos de saber do amor – nós que não conseguimos conviver com a rejeição de quadrúpedes irracionais movidos a sachê.

Nem preciso dizer que, neste caso, não está contemplado o tipo de amor que SÓ se constrói recíproco, o amor de duas pessoas que se elegem e se dão e se recebem em pé de igualdade; numa relação de casal não há espaço para patadas e arranhões mansamente aceitos porque o outro, tadinho, não sabe o que faz. A aceitação incondicional exemplificada pela tutora da the mônia felina apoia-se na premissa (como me parece claro) de que há um amor no qual uma das partes é dependente da outra e, ao mesmo tempo, imatura demais – ou privada demais de consciência – para responder-lhe à altura. Nessa vibe sim, cabe a unilateralidade na entrega, o afeto resignado a derramar-se sem retorno; é fenômeno possível entre pais e filhos, humanos e pets, cuidadores e cuidados, ensinantes e ensinandos, pressupondo-se sempre, portanto, um desnível de condições. E uma vez que esse tipo de vínculo se estabeleça – que alguma adoção se tenha realizado por parte do mais adulto, mais capaz, mais autônomo –, pronto, o sarrafo é exatamente o colocado pela mãe de Nanoos: não se fala em devolutiva, não se exige gratidão nem correspondência em moeda similar, doa-se somente o que existe a ser doado, já que o objetivo é a doação em si mesma. Nessa espécie de amor o parágrafo da incondicionalidade pisca desde os primórdios no contrato; não sabe brincar de fazer com que o outro tenha uma vida feliz (o que, obviamente, NÃO QUER DIZER descontrolada e insana), nem desce pro play.

Amor de doadores é preciso que baste em si, parnasianamente. Ou é meríssimo egocentrismo o que se deveras sente.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Joões, Marias e um Brasil mais rico (com licença do amado Chico)


Agora o que nos dói
é que este ano só tem meio mês,
e o bando de playboy
só vai cair quando faltarem três...
Demoram tanto as eleições
pra que o Brasil e seus milhões
se livrem desse escroque
(e leve ele a reboque
a coleção de rês)!

Eu bem que já tentei
ficar de boa como eu sempre fiz –
deixar o astro-rei
contar os dias para ser feliz;
qual o quê:
quero um DeLorean para acelerar,
marcar a data de poder votar
e pôr o Lula à frente do país!

Não, não guento não,
finjo que outubro há de chegar mais cedo;
me dá consumição
ter um ano tão comprido.
Vem logo, eleição;
mesmo que a gente ainda sinta medo,
o tempo da maldade
está bem perto, já, de ser vencido.

Vai ser monumental
se vinte e dois puder chegar ao fim
varrendo o pessoal
que se alimenta de fake e capim;
– há de ser
voltar ao mundo cheio de alma e ar,
girar o leme pra recomeçar,
deixar o império do coisa-ruim!

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Pró-vocações


Não sei como (ou sei, porque as pessoas são substantivos necessariamente compostos), mas tenho ao mesmo tempo um espírito cansado e tendente à aventura.

Duvidam, claro; pois tenho. Minh'alma é avessa por exemplo a arrumações definitivas, dessas que rasgam, que suam, que encaram; simultaneamente, se agarra à tarefa (qual? qualquer) que HÁ DE SER feita e a faz, ou muito mais do que a faz – é traspassada por ela, atravessada e possuída pelo interesse ou pela urgência. Hesito longos & longos & longos dias em resolver cada pendência burocrática, e no entanto sou bastante capaz de desenvolver habilidades inéditas que levem à solução de-repenta do que ficou meses parado. Enrolo excessivamente para cumprir obrigações me-transmitidas e TAMBÉM posso, num impulso, ir aonde nunca supuseram e realizar o que nunca esperaram. Não é para ser do contra, não é para coisa alguma, é sem elaboração nem propósito: quero apenas produzir o quanto dá com a menor tonelada de compromisso.

Sublinhe-se que não sou irresponsável, aliás sempre fui das melhores alunas, conforme já disse e redisse – mas o era por brio e não por amor, por adaptação e não por devoção; e saber-me assim tão pronta e resiliente a desafios específicos quanto sonolenta e arredia a enxurrada de deveres acabou alertando: criatura, ai dos teus dependentes, se os tiveres. É isso, conheço-me com suficiência para saber que filhos, pets, plantas e até carros hão que ser evitados, o que espero não me desenhe como um monstro de egoísmo; carrego, repito, um espírito cansado e inteiramente refratário a dependências totais, embora apta a devotamentos extremos. Sou, coloquemos assim, uma alma feita para afilhados, para sobrinhos: muito dada a zelar por fora, financiar se possível, mimar às vezes, estar presente se necessário, mas sem a integralidade, a incondicionalidade das mães (OK, das mães idealizadas – óbvio não serem também super-heroínas ou mulheres de ferro). Não me choveu nunca a vocação materna; arranjaria no máximo um estágio de sub-anjo da guarda interino isento de dedicação exclusiva.

"Ahn, mas assim até eu." Certo, é a parte "fácil", porém notem que autodirecionada e pré-escolhida como se escolhe uma profissão pelas aptidões que acontecem ou não acontecem; não me aconteceu de nascer necessitada de – ou qualificada para – afeições de algum modo maternais, e ter disso a plena ciência antes de qualquer empreitada no ramo me parece ao menos sensato e evitador de sofrimentos múltiplos. Como tenho o maior horror do universo a causar sofrimento a quem quer que seja, fatalmente seria aquela que se força além do limite e nem chorar chora, por total aversão à ideia de arrependimento ligado à existência duma vida; ou seja, eu faria o impossível para dar conta emocional e adoeceria sério, sem a menor dúvida. De que maneira fugir ao estranhamento, ao olhar-de-través social que acalenta expectativas e aguarda padrões? Conhecendo-se muito e o mais razoavelmente cedo; observando, observando-se, forçando-se a atentar para questões diversissimamente alheias e entender-se naquele lugar mui previamente a assumi-lo como seu; não romantizar nunca, não romantizar nada. Inspecionar quais seriam as frustrações mais prováveis, quais as mais lidáveis, quais as menos dilacerantes.

Mas tudo antes.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Manifesto do livro livre


Acompanhamos sempre essas irmão-à-obrices que reformam cômodos ou imóveis inteiros, e há tempos observamos com perplexidade que muitos decoradores, ao arrumarem os livros na prateleira, deixam os bichos com as páginas à mostra e a lombada para dentro. Ora, isso naturalmente me dá a agonia mais doida; QUEM catapimbas arruma as obras assim em sã consciência, se é impossível achar qualquer título que se queira num mar de páginas brancas (amarelas, no meu caso) praticamente idênticas? Eu cá comigo achava: vai ver que é alguma coisa de direitos autorais, de não querer fazer propaganda de um ou outro autor, só pode ser – e, assim que as câmeras virarem, os livros também voltarão às condições normais de temperatura e pressão, balançando a lombadinha na cara dos residentes. Era a única explicação a que esperançosamente se agarrava minha ansiedade livresca.

Mas eis me apareceu uma postagem retuitada que comentava justo essa "nova mania" do design: esconder as laterais coloridas e intituladas das obras a fim de se obter "uma decoração mais neutra". Oi? stop o planeta que meu ponto é aqui. Então quer dizer mesmo que a neutrite aguda dos donzelos chega ao ponto de tratar LIVROS como EMPECILHOS para um visual clean, limpo, básico?? Será possível que os douradinhos elegantes de algumas capas duras, a variedade lindona de tons e fontes, de tempos e estéticas sejam elementos desarmonizadores de ambientes em que livros deveriam ser reis? Mal acreditei no disparate dessa concepção que, sobretudo, trata peças literárias e afins como bibelôs, lustres, cortinas, enfeitadores de cômodo, em vez de respeitá-los no que são de fato: reflexos vivos e diretos de seus donos, embaixadores do pensamento que ali habita. Calar quem o livro é, visual e nominalmente, não difere muito de sair abaixando todos os porta-retratos ou voltando-os para a parede, porque a cor do vestido usado na foto não está no universo cromático do sofá, do tapete, da almofada. Muitíssimo em desacordo com os profetas do igualzinho, eu diria que não há nada mais absurdamente cafona em decoração do que padronizar, impessoalizar, deixar claro que aquele é um cômodo grifado e não vivido, arrumado para a matéria na Caras e não para uso das gentes – eternamente vestido para sair como pessoas de novela, e não para andar em casa.

Livros não são estorvos nem objetos friamente decorativos, são lembranças de nós, extensões de nós, pedacitos de formação e interesse que semeamos onde andamos plantados; sua presença é instigante, cúmplice, reveladora, jamais vergonhosa ou inimiga. É para se espalharem mesmo, brincarem exibindo suas true colors, seus nomes e feitios, e se afrontarem visitas há que escolher melhor as visitas, e se causarem vergonha há que escolher melhor as leituras. Let them be, deixem que livros sejam livres para ostentar as celuloses e mostrarem quem somos; toda a moradia (como todas as moradias) deve se acomodar em torno de seus viventes. Nóóóós e os transbordamentos de nós habitamos e ocupamos nossos espaços – quem não gosta que vá neutralizar outra freguesia.

E pegue dicas de design na livraria.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Para deixar de ser ontem


Eu lia poemas, porque vez em quando leio poemas, preferencialmente aleatórios (disciplina em literatura, argh); num de Marcos Samuel Costa – "O tesouro guardado de Celton" – gritou-me uma estrofe que sozinhamente já seria um haikai e curiosamente não é, é apenas parte do todo: "ainda não amanheceu/ o dia já acordou/ mas a noite não morreu". Pensei que sim, não raro ocorre; é nada incomum que se adentre um dia sem parecer que deixou de ser ontem, sem parecer que não estamos caminhando apenas na parte 2, mais ou menos como 2020 e 2021 que se amalgamaram na (in)consciência coletiva. Quando acontece? quando a noite não morreu, ou antes quando não colocamos um sono no meio para cerimoniar o tempo. A sensação do tempo é em tudo cerimoniosa; sem seus marcos coloridos de avanço maratônico, empaca na cabeça e não nos deixa à vontade para arrancar papéis da folhinha.

Sem uma formatura nem que simbólica para nos botar fora de qualquer estágio acadêmico, sem uma foto, um capelo, um canudo vazio que seja, um cartaz escrito "Turma de 2004", um painel de bolas, qualquer ícone demarcante da etapa concluída – a etapa seguinte hesita em seguir, como aguardando autorização para decolagem interna. Sem uma trocazinha mínima de alianças e/ou votos, uma celebração que grita aos ventos religiosa ou laica ou ecumênica, um buquê para ir ao cartório, uma filmagem, um beijo motivado e testemunhado, um almoço de amigos – a união tende a guardar a frustraçãozita de não se ver oficialmente iniciada, assinalada, assumida, festejada pública. Sem a despedida mística ou civil, física ou emblemática da pessoa que desapareceu da vida, sem o relembrar da trajetória, o enterro ou a cremação, a oração e o choro enlaçado, o envio de balões ao céu ou cinzas ao mar – é sempre como que duvidosa, interminada, indeterminada a morte; sempre uma vírgula, uma reticência pendente e estranha, ainda que após anos e anos de por enquanto, feito história que vira vira vira sem capítulo que acabe. Se um ato não cai com cortina e tudo, o outro se engasga, se adia; é preciso que uma noite morra em nós para que outra data se fixe, decididamente inebulosa.

É preciso que o que quer que seja antigo adormeça – já que nada amanhece com propriedade na jurisdição das horas anteriores –, que adormeça de uma pequena ou maior morte, de qualquer falecimento suficiente para que o enredo se veja recomeçável. Os olhos já sem o subpeso roxo dos cansaços velhos, os neurônios devidamente frescos para tarefas inéditas, os suores lavados para pousarem em novos esforços, tudo limpo, tudo pronto, tudo livre de pesos naturalmente arquiváveis, mas não carregáveis ad infinitum. Que a natureza se tenha constituído cíclica e nos tenha feito dependentes do sono não passa de ultimato: dorme, criatura, dorme, ou nada de tuas novidades acordará nunca, nem por um momento sequer arriarás o fardo da própria companhia.

Dorme – para elaborar outro dia.

domingo, 9 de janeiro de 2022

Poemalíndromo


Tive no Twitter a experiência linda, linda de ler um poema inteiramente palindromado – presente do perfil @OPalindromista, um gênio não preciso dizer do quê –, e aqui reproduzo, porque uns achados tais não devem ficar abafados na gaveta; é "Viagem" o título: "Ave laica, maré breve/ Ramos, aula e ácido/ Mera maresia// Cai do leme/ Melodia// Cais// Era maré módica/ E a lua soma/ Reverbera/ Macia/ Leva". Sim, podem conferir: as mesmelelessíssimas letras com o texto lido num sentido ou no outro, o que é mais árduo de fazer que de imaginar. Eu de curiosa quis brincar também, e já peço mil perdões chão-beijados pelo primitivismo da tentativa, mas seja válido o recreiozito (de rudimentar que é, nem consigo dar nome a esta bobagem palíndroma):

Roma. O dia
será seco
será meu.

Ecoa
"ó!" dum ai;

ia mudo
ao céu e mares.

Ó, césares:
ai do amor.

sábado, 8 de janeiro de 2022

Universo paralelo


Estou constantemente assistindo àquelas programices psicopatas do Investigação Discovery e me chocando com a simultaneidade das vidas, das coisas. Como assim: observo as datas em que pessoas se casaram, sumiram, foram sequestradas, já andavam procurando outras criaturas sequestradas, e é inevitável – se o evento se deu posterior à minha data de nascimento, tropeço na comparação. Olha, foi o dia da missa de quinze anos; nesse mês aí eu tive as primeiras aulas na faculdade; eu estava então na sexta série; eita, ela desapareceu bem naquele aniversário em que fui ao boliche. Enquanto eu fazia trabalho sobre a Rio92, essa família pregava cartazes em busca do garotinho. Enquanto eu começava a namorar, essa moça inaugurava trabalho no mesmo local de seu futuro agressor. Não é algo que me amarre por minutos sequer, é um flash, um blink de consciência dupla, a rememorada e a projetada; mas é uma brevidade estranha, a do esbarrão com as multiversidades que povoam um planeta que parece galáxia.

Preciso nem estar assistindo a nada, é vero, o assistir traz meramente datas e imagens que exemplificam a trombada – porém a trombada se providencia às vezes só em noção virtual, só em hipótese que flutua no dia; sabem como? lembram a querida Amélie Poulain parando para adivinhar quantas pessoas estariam tendo um orgasmo naquele momento? Mais ou menos assim, somente com mais ambição no diâmetro: céus, quantas gentes no mundo estão nascendo agorinha mesmo, ou morrendo agora mesmo, de forma talvez violenta ou doméstica ou sozinha, ou tudo isso. Quantos olharam HOJE primeira-vezmente para o amor com quem permanecerão até o apocalipse – inda que seja o apocalipse desse amor. Quantos estão sendo contratados, passando pelo frisson estranho de virarem adultos que saem de casa, visitando apês para se casarem ou dividirem com besties, visitando abrigos de pets para adotarem um doguito, dando entrada em papéis para adoção dum filho, escolhendo o nome do filho, decorando o quarto do filho, fazendo tratamento para ter filho, estudando para o Enem (ou vestibular correspondente em seu pedaço do mundo), pichando um muro, bebendo na boate, cantando no karaokê. Quantos, agora, choram subindo na Torre Eiffel ou olhando o Castelo da Cinderela, primeira-comunhando, batizando um afilhadito, casando o caçula, sofrendo uma injustiça amarga, amarga, daquelas que não formarão cicatriz em nenhum agora-mesmo futuro.

Não fico pensando nisso com nenhuma espécie de teimosia, ou francamente enlouqueço (quem não?), mas me ocorre. Me espanta. Necessidade nenhuma de se assombrar com dimensões paralelas da Marvel, quando nestazinha em que coabitamos dá-se justamente isso – coabitamos, traçando cada qual um infinito particular exótico demais em outra linha do tempo que, por sinal, tem a chave do apartamento vizinho, ou aparece vez em quando na janela em frente. É uma realidade doida que não nos diferencia: nos irmana; nos irmana na certeza de que todos possuem uma unidadezinha contada de biografia, de linha temporal, e (não havendo maneira possível de monetizar outra) o esperado é que se arrumem as prateleiras do mundo de forma que exista espaço para TODAS as bagagens, sem benefícios de classe executiva. Uma época, uma ficha, um ticket to ride – é o que os trilhões de cada-uns sempre tiveram em sua hora.

Que seja feliz cada versão de agora.