quarta-feira, 30 de junho de 2021

Spin-offs


Mania clássica dos produtores de filmes e, principalmente, de séries: pegarem um personagem ou um fio narrativo no qual a audiência mostrou remoto interesse e PIMBA! tacar spin-off – uma mudinha da história original, um ramo que se destaca e bota as próprias raízes. Não que eu esteja dizendo qualquer novidade, óbvio; todo mundo que não habitou um quarto do pânico instalado em Verkhoyansk no decorrer das últimas décadas conhece perfeitamente a lógica da spin-offerie, e provavelmente já andou dando espiadas em algum Fear the walking dead, Better call Saul ou qualquer dos 8.934 CSIs, 6.907 NCISs e 15.642 Law & orders soltos nesse mundão sem porteira. Faz parte da experiência humana na Terra. Parece que agora é de Supernatural que vão construir um puxadinho, contando, se bem compreendi, a história dos pais dos protagonistas; entantomente, como jamais assisti a um só episódio da produção-tronco, não sou capaz de opinar. Estimo felicidades ao casal.

O que eu bem queria era – imaginem se! – a possibilidade redondinha de spin-offar coisas da vida real, desfiar enredos cá do nosso lado da tela e transformar em novos, com CEP ou CPF seu, todo seu, reinauguradamente seu. Montar um derivado do Rio de Janeiro, por exemplo; hein? Que lindo seria, numa versão em que os contrastes morro/asfalto se vissem eliminados – não como padronização, absolutamente, mas como equidade, como chance de recomeço do jogo, com gente de todas as classes (em havendo classes, que eu preferira eliminadas) povoando de maneira aleatória do Méier ao Leblon, da Gávea ao Alemão, de Realengo a Laranjeiras, da Barra ao Borel. Nada de tráfico, nada de milícia nessa releitura, que teria seu plot enraizado em tudo que fosse a alma da cidade, porém devidamente apurado e enfrascado como uma essência: o funk, o samba, o biscoito Globo, o carro do ovo, o olha-o-mate, os artistas adoçando o metrô, o subúrbio com cadeira na calçada, a feira de São Cristóvão, a Cinelândia, a Saens Peña, a Lapa, o Maraca, o doce balanço a caminho do mar. A irmandade, enfim – que era a vocação e o destino da cidade cuja baía tem jeito de abraço, cujo símbolo maior já o tem pronto. Não se deveria conceber que outra arma no Rio, do Rio, estivesse sempre engatilhada.

Ah, que delícia spin-offar também a Amazônia, deixando apenas o núcleo ecológico-indígena e cortando sumariamente todo o elenco grileiro, garimpeiro, madeireiro, fazendeiro. Spin-offar – e aqui volto rendida à ficção, que já cumpri o penoso expediente fora dela – meu Fantasma da Ópera, o musical, não o livro (e não, aquela continuação não basta), atirando enfim, nos braços do gênio recluso, a ocasião de ser amado inteiramente; pra-sempremente. Spin-offar Romeu e Julieta, acompanhando o desenvolvimento de várias famílias surgidas de casamentos Montecchio-Capuleto, depois de a desgraceira dos amantes originais inspirar o fim (embora ramerramento e custoso) da pendenga entre os dois sobrenomes. Aliás, que tal estabelecer o contrário do mote célebre e querer OBRIGAR jovens de ambas as casas – ele, agora, um Capuleto, e ela uma Montecchio – a casar-se para teoricamente selar um contrato e uma paz? Se alguém já teceu algo a partir desse fio invertido, perdoe de coração: realmente não pesquisei; se ainda não desbravaram trilha similar, olha que eu acho que dá um caldo. Depois me chamem para a prèmiere no coliseuzinho de Verona.

Geram spin-offs as irmãs ainda solteiras de Elizabeth Bennet em Orgulho e preconceito, a Penelope Garcia de Criminal minds, as mães biológica e adotiva de Beth Harmon nO gambito da rainha, um possível filho – ou, de preferência, filha – de Amélie Poulain e Nino, a looooonga vida de Paul Edgecomb em À espera de um milagre, as aventuras de Arya Stark pós-Game of thrones. Não sou fã de sequências, admito; porém, tomando como esperança e bandeira os dois últimos desdobramentos de Toy story – obras-primas doces, engraçadas, filosóficas bem superiores, até, a seu ponto de partida –, concebo que roteiristas mui veneradores e mui respeitosos possam, aprochegando-se com delicadeza, honrar o fato de que não faltam histórias férteis em paralelâncias, prequels, transversais, continuação.

(Só as boas histórias. Ele – pelo amor de todos os nossos futuros! – não.)

terça-feira, 29 de junho de 2021

Domicílios no tempo


Entre as mil belezas de frases atribuídas ao aniversariante de 121 anos-hoje, Antoine de Saint-Exupéry (não estou mais contando a xaropada do essencial invisível aos olhos nem a da eterna responsabilidade sobre o que cativamos – continuam coisas muito verdadeiras e bonitas, eu apenas NÃO SUPORTO mais um dia sequer de repetição), fico particularmente encantada com uma comparação agudíssima costurada pelo autor: "Os ritos são no tempo o mesmo que o domicílio é no espaço". Concordo bastantemente – o que não significa que eu aprove com irrestrição os ritos todos, ou pelo menos não todos os protocolos. Aqueles que assinalam com arrogância burrocrática qualquer diferença entre os participantes, por exemplo, comigo nem com a minha paciência contarão nunca: uma criatura ter de meter um Vossa Excelência ou Vossa Senhoria para se dirigir a alguém (como me IRRITAM as sessões da CPI por causa disso!), um ser da família real de alhures precisar andar tantos passos à frente ou atrás de outro ser, ter maneira certa de acenar, sapato certo para calçar, jeito determinado de viajar e assemelhados. Outros cerimoniais que me despertam o mais assomado ódio são os militares – aquele rigor, aquela secura de gestos inaturais, aquela automatização de corpos milimetricamente alinhados, passados, engomados, ritmadinhos num só compasso, mal respirantes para que o braço ou a perna não desenhe um ângulo dois graus a mais ou a menos que o prescrito pela norma. E as continências, os olhares que não encaram, as ordens gritadas, as respostas idem; oh, não, não! eu me transfiguraria em domadora de dragões, em vassoura do desenho do Pica-Pau ou num equinodermo antes de participar por nove segundos desse horror padronizado e profundamente violento.

Os rituais que, feito Saint-Exupéry, eu considero uma espécie de residência construída sobre o tempo (ou no mínimo um farol) são de outra ordem: são as marcas da mudança de fase, do êxodo particular, do atravessamento de uma qualquer fronteira. Há quem revire os olhos desconstruídos e ache de uma tolice robusta as becas e discursos duma cerimônia de formatura, digamos; ou ache cafona a mise-en-scène do casamento; ou se recuse a comemorar aniversário, Natal, virada de ano, Dia dos Namorados, Dia das Mães e tudo mais que integra nosso calendário de obrigações felizes. Convenho que ninguém é forçado a gostar ou participar de cada miniefeméride, ninguém é compelido por lei a ser arroz duma festa que só poderia frequentar em estado de hipocrisia – aliás, maldita seja a hipocrisia, praga carnívora dos corações frustrados –, porém sou da crença que balizas temporais devem sim ser fincadas de alguma forma, não necessariamente a mais tradicional do universo. Nada impede um casal de celebrar sua união com um luau ou um baile veneziano, uma excursão com a galera à Disney ou uma noite épica no karaokê (quer dizer, atualmente a pandemia impede, mas vocês me entenderam); nada impede que se empreguem os mesmíssimos exemplos para aniversário, colação de grau, réveillon; nada impede que um Dia dos Namorados tenha mil tsurus como presente, ou maratonação de Netflix, ou acampamento na sala, ou uma aula conjunta de lambaeróbica. O que não convém é deixarmos que a folhinha inteira se escoe igual, sem intervalos holidayros, plana, bege, indiferente; e a graça das fugas? e a engenharia de memórias? Como é que se criam álbuns e biografias internos, se não há bandeirinhas sinalizantes, se não existem divisas?

Durante a (infelizmente ainda operante) passagem desta covid dos horrores, milhares, milhões de mortes de amados ficaram assim como que em suspenso, por demais súbitas e irrealizáveis, exatamente porque a crueldade do contágio cancelou os últimos ritos, os velórios, as vivências essenciais aos viventes para que se apossem do momento e se despeçam com toda a materialidade terapêutica. Porque, sabiamente administrada, é isso a materialidade: não uma prisão, mas uma terapia; uma residência segura e definida para a catarse, para o extravasar do luto – por mais que este evidentemente transborde, e não deva ser recriminado até que o tempo acabe de dissolvê-lo com gentileza. Uma residência segura e definida, também, para o extravasar da alegria, quando é de alegria que se trata, porque (a não ser no carnaval, muito possantemente arrastador e coletivo) há inúmeros contentamentos tímidos demais para se crerem com direito à expansão. Há gente cuja cantareira de animação está perpetuamente cem, oitocentos, três mil litros mais cheia que a de seus pares – gente que necessita de passe livre para a loucura que a habita, esse saudabilíssimo apetite de vida que nos acomete entre os compromissos de trabalho inadiáveis e as idas ao mercado expressas.

Marcos no tempo acendem (alívio!) a luz verdinha: poesia, sim, numa hora dessas.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Todas as cores


Lavanda, orquídea, violeta, alamanda. Espírito que Anda (lembra, seu oitentista?). Ametista. Caminhada feminista. Suco de uva, geleia de amora, blueberry no shake, Daphne Blake, céu de dia indo embora, manacás, açaís. Olhos de Liz. Turmalina lilás. E mais, e mais.

Hortênsia, jacinto, cianita, sodalita, bioluminescência, céu de dia quase extinto; calça jeans; o tom dos timbós-mirins. Índigo de azulejos, ásteres, agapantos, lisiantos, lobélias, ipomeias, pavões, janelas coloniais. E mais:

Água-marinha, erva-de-santa-luzia, céu de meio-dia, saí-andorinha. Smurfs; piscinas; vestidos de Cinderela; florinhas de nigela; mares, larimares, íris felinas; safirinas; safiras. Saíras, zircônias e calcedônias, pedras de olho de gavião, águas do Jalapão – e em continuação:

Esmeraldas e malaquitas, tsavoritas, trevos e limões, pimentões, umbus, ingás, fêmeas tangarás; matas e cabeças-de-prata, frutas novatas e maritacas; Docinho, Sininho, Nojinho, Floquinho, Mestre Yoda, Hulk, Shun, Peter Pan, hortelã, o voo da maracanã. As festas de São Patrício; os fofos do Maurício – Horácio, Jotalhão. E ainda virão:

Girassóis; a estrada de Oz; acácias; pintassilvas; madressilvas; eupomácias; suiriris e bem-te-vis e Bumblebees e abacaxis, physalis e hemerocales, Poohs e Pikachus; minions (os fofos), prímulas, frésias, topázios, citrinos, táxis nova-iorquinos, coríndon, mel, mangas, maracujás – continua tendo mais;

Tangerina (bergamota? mexerica?), tritônia, helicônia, corrupião, açafrão, mamão, Tigrão, uniforme holandês, cabelos de Nando Reis, Weasleys, Merida, Anne with an E; caqui, caju, coral, columeia, Garfield, Nemo, Haroldo, Fanta, abóboras de Halloween. Não é o fim:

Morango, piranga, pitanga, rubi, russélia, romã, maçã, tomate, íbis-escarlate, lichia, melancia. Flor de outubro. Flor de cardeal. Joaninha. Capuchinha. Enfeite de Natal. Tiê. PT. Fraternité. Mário, Mônica, Chapeuzinho, pimenta biquinho. Wanda Maximoff – e seu bofe –, Thing One, Thing Two, colar de tuiuiú, corante carmim, Relâmpago McQueen, Ferraris. Sebastião animando os mares. O sol tombando em seus nadires.

Para todos os amores, todas as cores: um dia de pleno arco-íris.

domingo, 27 de junho de 2021

Envergonhamento utilitário


Sou notoriamente avessa a trotes, pegadinhas e coisas do gênero, mas tenho de admitir que ESTA em questão é da ordem do magistral. Diz que David Keene, ex-presidente da maldita Associação Nacional do Rifle (NRA) nos Estados Unidos, e John Lott, autor do livro More guns, less crime, foram chamados para discursar numa formatura de ensino médio, e incentivados a ensaiar seus discursos in loco, diante de mais ou menos 3 mil cadeiras vazias. Toparam; discursaram; Keene inclusive procurou engajar os "alunos" a estarem entre os que sempre defenderão a infame Segunda Emenda americana, aquela que garante o direito às armas. Acontece que o evento inteiro era fakaço, sequer a escola dos "formandos" existia; foi tudo joguíssimo de cena armado pelos pais de um garoto que havia sido assassinado junto a outras 16 pessoas, em 2018, quando um ex-aluno de uma high school de Parkland (Flórida) invadiu sua velha escola com um fuzil AR-15 em punho. Para seguirem em frente após o caso destroçante, Patricia e Manuel Oliver criaram uma ONG que, naturalmente, faz de tudo pela redução do acesso às armas – estando no balaio desse tudo a genial pegadinha do bem. Nem preciso dizer que as falas do autor e do lobista foram devidamente registradas em vídeo, para engrossarem de imagens altamente simbólicas o material de conscientização da ONG; até porque mesmo o número de assentos vazios que "ouviram" ambos os discursos mostrou-se minuciosamente significativo: 3.044 cadeiras para representar 3.044 jovens residentes dos EUA que se formariam no ensino médio este ano, se não tivessem sido mortos em várias dessas invasões tiroteias.

Evidentemente, os machões armamentistas ficaram fulos com a passada de perna; Lott chegou a declarar que a edição do vídeo distorceu sua fala (segundo Manuel Oliver, não houve edição do vídeo), e que – minha parte favorita – "ele foi incitado pelos organizadores a usar um tom mais incisivo, pois a mensagem seria direcionada a alunos conservadores". Não é fascinante? olha, me disseram para exagerar, aí eu exagerei, porém a culpa é da edição que exagerou. Afinal o paraninfake acredita ou não na papagaiada bélica que anda pregando? Por que pressente a necessidade de defender-se contra alguma repercussão negativa, se atribui a suas crenças um valor positivo? (Não resisto a lembrar um tal juiz que, pelas nossas bandas, negou que as mensagens fossem dele, mas também, se eram, não tinham nada de mais: same energy.) Partindo do princípio que as palavras gravadas tenham permanecido leais ao sentido original, parece um contrassenso fazer o ofendidinho só porque a plateia, que ali não estava, continuaria mais tarde não estando: havendo ou não uma cerimônia depois, o texto dito no "ensaio" já não se bastaria como uma afirmação livre, sincera, espontânea de convicções que TEORICAMENTE não deveriam envergonhá-lo?

É verdade que detesto ver pessoas se constrangendo ou (principalmente) sendo constrangidas, porém a resposta empática involuntária a que chamamos vergonha alheia não pode ficar acima da aprovação consciente ao método, quando o método é maravilhosamente aplicado como foi: para intimidar os poderosos, e não as vítimas dos poderosos. Para expor os que mercadeiam com a dor de outrem, o que se beneficiam do medo e do caos, e não os que carecem de proteção em meio à própria ignorância. Sim, de permitir que os especuladores, os exploradores, os parasitas, os vendedores de tudo que fere e mata embaracem a si mesmos, sou imensamente a favor – não tenho como não ser; sou a favor, no entanto, com a condição de que a criatura a ser exposta acabe por autoacusar-se da maneira mais natural possível, como aliás aconteceu na peça pregada pela ONG dos Oliver. Que a pessoa seja tapeada sem maiores consequências, ao estilo do plano da formatura (no qual os engabelados falaram o que já falariam em público de qualquer forma, pela própria vontade), va bene; mas que se arme uma espécie de cadafalso moral, uma armadilha totalmente fora das CNTP em que o cidadão seja manipulado por algum implantado desespero, e reaja portanto a uma ameaça artificial que "contamina" a amostra – aí não. Claro que não me refiro a confissões de casos policiais, obtidas à custa daquelas velhas táticas psicológicas que vemos em filmes e séries: good cop/ bad cop, "Fulanílton está ali naquela sala te entregando agora mesmo" etc. Isso é coisa completamente outra, que admite todas as mistificações (que NÃO envolvam tortura) em nome do bem coletivo. Aqui em nosso case, trata-se de produzir o cenário a fim de que a estrela vá lá e atue, e alguém vá lá e registre, simples; sem dizer que, sei lá, sua família foi sequestrada e só será liberada se você gravar esse vídeo – o que seria odioso de fazer até com o maior dos maiores psicopatas, e o que corromperia inteiramente o resultado, por sinal, já que tudo de que o nosso lado não necessita é de gente do dark side chorando pitangas e alegando que se tornou mártir.

E o pior: parecendo ter – ou tendo – razão.

sábado, 26 de junho de 2021

Margaret

Fiquei, de cara, apaixonada por Margaret, a extraordinária obra do britânico oitocentista Edward Burne-Jones que podem conferir acima, toda força e suavidade azul. Poucas vezes vi, em tela, expressão tão estarrecedora, justamente pelo derramamento de delicadeza que adoça ao extremo uma bem imensa amargura; espiem que tons etéreos, que leveza de céu nublado parece constituir a quase imaterialidade dessa mulher que sofre – que sofre até o ponto de praticamente nem sofrer. Como sabemos que sofre? Ora, ninguém há de se enganar com essa mansidão cromática, convenhamos; os braços defensivos e cruzados, o olhar focado no limbo deixam poucas frestas para dúvidas: Meg (pego intimidade fácil; permitem que eu a chame de Meg, não? gratíssima) está evidentemente, esvaziadamente, estraçalhadamente exausta.

Trata-se de uma esposa; ah, sim, é uma esposa. Uma esposa pequeno-burguesa, simples nos trajes, cabelos preeeesos para que não se desatem sobre a lida; o vestido é de trabalho, muito sóbrio, muito afeito ao que sua esposice aparentemente vem sendo: talvez azul de início, e agora dum acinzentado que cada vez a cobre de mais outono. Meg tem hoje 30, 31 anos; casou-se aos 26 – "tarde" para padrões século-dezenovos, mas muito em harmonia com sua juventude sobretudo calada e caseira, crescida entre os serões dos poucos e bons amigos intelectuais de seu pai jornalista. Ela ouviu sedenta e bastantemente, estudou em muitos livros noturnos e nunca se ocupou de fato com ânsias de casamento; nem da mãe nem do pai (amorosos e esclarecidos tanto quanto se podia ser há dois séculos) lhe veio qualquer pressão, quaisquer observações etárias daquele tipo que infernizou gerações e gerações de antepassadas. Mas enfim calhou de aparecer nos serões, munido de sorrisos sóbrios, moderados, um colega do pai sete anos mais velho que ela, bom de palavra como se espera da profissão, inglês mesclado de irlandês e italiano; falou-lhe da mãe, da irmã, do sobrinho, das dificuldades para completar os estudos e sustentar seus dependentes, das leituras também mui noturnas e roubadas ao sono – e a moça, admirando simpaticamente aquele comunicativo mas modesto, sério mas sociável rapaz de família, sentiu alguma coisa similar a apaixonar-se, passou mesmo a faiscar duas vezes mais seus olhos piscinissimamente azuis, a cantarolar durante o dia, até. O tal (um que chamaremos de Brogan) não se fez desentendido e a pediu em casamento dentro de duas semanas; cinco meses depois dos primeiros serões, estavam matrimoniados.

O casal acomodou-se, porém, na mesminha casa onde Brogan vivia com sua família de três sustentados, e Margaret foi bem cedo compreendida como uma extensão do marido no que dizia respeito aos cuidados com seus in-laws: precisava acompanhar em quase alarmantemente tudo a sogra idosa, tratar do pequeno Devin enquanto a cunhada viúva realizava (com notório mau humor) seus vários serviços de costura, aturar as mal-agradecices sempre secas da mãe do menino, pouquíssimo apropriada para se transformar na irmã que Meg esperou ter. Curto período deu e sobrou para o breve lampejar romântico da recém-esposa ir mirrando e ressequindo na rotina que se provou vazia de horas para ler, para amar, para sonhar um filho seu, para até não imaginá-lo – caso viesse a ser concebido – como um possível intruso que só chegaria ali como um novo estômago. Brogan, que não era propriamente violento, não era gentil o suficiente tampouco; todas as suas leituras de travesseiro não o haviam tornado maciamente apto para compreendê-la, ele que (agora ela sabia com uma dor que doía agudo) confundira os modos discretos e inexpansivos da futura mulher com uma objetividade, uma praticidade, uma amelidade que ele buscava e ela não tinha. Sob a desculpa de muito trabalho, deixou quase imediatamente de estimular na esposa qualquer pretensão dum cotidiano mais florido, mais terno – daí o estiolamento atual dos olhos de Meg, que já há quatro ou cinco anos são olhos assim constantemente submersos no que seria, no que deveria ser. Arde mais por não ser um desespero que grita, e sim um que lentamente enlouquece, como as febres que minam sem manifestar-se; o que ainda vive, vive exclusivo para dentro, enquanto todas as paredes não se fecham e todo o azul não desbota.

(Quantas Margarets não são drenadas até da última faísca de ajustar a rota.)

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Todo o tempo é de poesia


"Todo o tempo é de poesia": assim um poema de António Gedeão, lindo, lindo, principia. "Desde a névoa da manhã/ à névoa do outro dia.// Desde a quentura do ventre/ à frigidez da agonia// Todo o tempo é de poesia// Entre bombas que deflagram./ Corolas que se desdobram./ Corpos que em sangue soçobram./ Vidas que a amar se consagram.// Sob a cúpula sombria/ das mãos que pedem vingança./ Sob o arco da aliança/ da celeste alegoria.// Todo o tempo é de poesia.// Desde a arrumação ao caos/ à confusão da harmonia".

Todo o tempo é de poesia.

Na saúde, na doença, plenitude e pandemia; no equinócio de primavera, na escola ou na Guerra Fria; em museu, biblioteca, carrossel, academia – são dela os momentos todos; vêm dela razão e alegria.

Todo o tempo é de poesia.

Do instante que nos desperta, em que o dia é agenda aberta e não diz como se desfia, ao horário de já ver lua e voltar da rua de alma alerta, deserta, liberta ou nua, com ou sem companhia: tempo de poesia. Nos primeiros Advils, nos últimos Greg news, nos amanheceres de sol ou ventania, na TPM ou no Leme ou no meme, na Galinha Pintadinha, no Pedro e o lobo, no Jornal da Globo, na reprise do Chacrinha, no RJ-TV ou no Hoje, ninguém foge – nem você: tempo de poesia, chefia.

Todo o tempo é de poesia.

Formaturas, videochamadas, esquinas pouco dobradas, jardins de nossas ternuras, doçuras, rebeldia: poesia. Ovos de caracóis, pesquisa de outros sóis, máscaras pintadas à mão, distribuídas na praça, distribuídas de graça, cosidas de coração por uma Dona Maria: poesia. Ânsias de vacina, saudades dilacerantes, doses que deviam ser antes, dores que deviam ser nunca, palavras que a lágrima trunca, lágrimas que nada extermina: imensidão que não cabia nem na poesia – mas que ela, a seu modo, alivia.

Todo o tempo é de poesia.

Na gastrite, na azia, na gritaria, no limite, no abraço, no laço, no terraço, na cortesia, no passo da romaria, na apatia ao mormaço – há dela, renitente, ardente ou sombria. Há dela nos olhos dos gatos, nos velhos sapatos, nos pratos do meio-dia, na filosofia e nos fatos, nos atos e em quem noticia; há dela nas cartas ridículas, no craquelar das películas, no corroer salobro de maresia, na cotovia tão Romeu e Julieta, no filme do Casseta & Planeta, nas cores de confeitaria, nos roxos de Halloween, nos contos de Grimm, no arlequim com meia fantasia, desfeito da festa, tornado à melancolia; há dela: é via que não desvia.

Se fosse flor, era todas; se baile, infinitas bodas; se cor, tudo coloria – flicts, caleidoscópio, cronópio, ourivesaria; se forma, clepsidra, ou hidra, ou medusa, ou musa, ou harpia, pena, açucena, bilhete fresco de loteria. Em ver Psicose, em ver Mamma mia!, se encher de euforia ou glicose, do que é seco ou romântico, transatlântico ou beco, impulso e atonia: lá vai ela, lá tem ela, gol de bola vadia.

Qualquer um pode. Qualquer um fazia.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Para cantar no São João


O Plantão vem surgindo,
ai que lindo ele soa:
ministro caindo,
notícia tão boa!

São João, São João,
apaga a fogueira
e impede a extinção!

🎵🎵🎵

Eu pedi numa oração
ao querido São João
que acabasse o pandemônio;
que houvesse proteção
que houvesse proteção
da camada de ozônio.
Eu pedi numa oração
ao querido São João
que acabasse o pandemônio –
pandemônio, pandemônio
na camada de ozônio.

Implorei a São João
que enviasse um esquadrão
pro resgate amazônio;
já chegaram São Conrado,
São Francisco, Frei Galvão,
São Tarcísio e Santo Amado.
Implorei a São João
que enviasse um esquadrão
pro resgate amazônio:
Santa Clara, São Sinfrônio,
Irmã Dulce e Santo Antônio.

São João veio trazendo
de São Pedro a São Rosendo
pra equipe de improviso,
pra salvar o paraíso
desse tanto de grileiro,
traficante e garimpeiro.
São João veio trazendo
de São Pedro a São Rosendo
pra equipe de improviso
contra o povo sem neurônio
que só pensa em patrimônio!

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Minha tribo


Tenho revisto A vida da gente por motivos de Lícia Manzo, e me soou particularmente quentinho quando ontem a doutora Celina (personagem de Leona Cavalli) exclamou feliz para o amigo Lúcio (Thiago Lacerda), a respeito do reencontro deste com uma ex-colega de escola, também médica, que assim como ele andava sempre engajada em projetos sociais: "Ah! mas é tão bom quando a gente encontra alguém da nossa tribo, não é?" Sim, é tão bom, assenti de imediato aqui no revestrés da tela; é tão bom e é o que tem nos salvado. Diante dum ensandecer cada vez mais explícito de um dark side cloroquiner, terra-planer e antivaciner, diante dumas salivações hidrófobas que ameaçam golpes e mortes em plena luz da democracia, diante de uma onda estapafúrdia de desequilibrados que se sentem espantosamente à vontade para dar na cara de quem lhes solicita o uso da máscara, ou para desfilar de suástica no shopping, faleceríamos por dentro se não respirássemos o ar de nossa tribo – ainda que por meio de redes sociais e semelhantes recursos, que afinal somos os primeiros a honrar todos os cuidados, todos os saudáveis distanciamentos. Há nesse contato (mesmo virtual) o reconforto indizível de retornar ao humano, ao idealmente humano ao menos, talvez não tão barulhento quanto os histéricos que precisam berrar sua reafirmação pessoal, mas certamente três bilhões de vezes mais poderoso quando nos mergulha em sua existência oceânica.

Não tenho, óbvio, a pretensão de estar permanentemente certa – céus, que sei eu?? –, porém em termos de lado certo da História posso dizer que me agarântio, que não vejo muito espaço para dúvidas ou para sequer nenhumas, em contemplando nas trincheiras opostas uns seres que orbitam outro ser como aquele que não preciso mencionar. Basta-me a certeza de que minha tribo acolhe diferenças (diferenças lealmente consideradas: não o "direito" de ser nazista ou de achar que "pessoas morrem mesmo, vou fazer o quê?"), de que minha tribo acredita forte na palavra científica, sabe muito bem que é orientação e não opção sexual, adora festivais de cinema porque os considera uma ode à beleza da diversidade, vigia a própria linguagem por estar ciente de que ela chegou a nós impregnada de termos machistas, racistas etc. que devem ser limados, destruídos, extintos. Minha tribo é apaixonada por arte, permanece aberta a novas estéticas mesmo tendo suas favoritas, pode seguir sua própria religião e exatamente por isso não oprime nenhuma outra, de jeito nenhum fica quieta diante de injustiças e descalabros, não vê problema algum em ser chamada de "comunista" dia-sim-dia-sim, inclusive adora (apenas revira os olhos, enfastiada de impaciência, ao obter abundantes provas de que o interlocutor em questão não faz a MAIS VAGA IDEIA do que seja comunismo). Minha tribo cheira livros, cheira a livro e tem veneração por bibliotecas.

Minha tribo se informa minimamente antes de dar opinião sobre o assunto. Minha tribo ama ternamente o padre Júlio Lancellotti. Minha tribo não hesita em apoiar Lula e Boulos de maneira escancarada. Minha tribo é contríssima as privatizações, não discute: FOI GOLPE, quer que a bolsa de valores se daaaaaane, sonha com um mundo quentinhamente alimentado três vezes ao dia, acha que não deveria existir bilionário (é uma aberração, convenhamos), apoia as cotas como uma medida viável de promoção da igualdade, fica revoltada com a perseguição aos professores, aplaude de pé a doutora Natalia Pasternak falando sobre a pandemia, encontra-se em desespero por ver o Salles passando a boiada, não consegue sequer ouvir a voz do coisonildo-em-chefe sem ter seríssimos engulhos que nem Dramin dá jeito. Minha tribo anseia, dia e noite, por assistir pipocamente ao julgamento dessa criatura láááá na Holanda, e por ver seus horrores desaparecerem daqui sem deixar traço.

Se você se irmanou com a descrição: a carteirinha de admissão na tribo é um abraço.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Existe (mas não digo qual é)


Um romance policial no qual o assassino é o narrador.

Outro romance policial em que só a polícia sobrevive (sim, tooodo o resto vai para as cucuias).

Um animal que, apesar de não ter estômago, come mais do que os seres humanos: cerca de um quinto de seu próprio peso, diariamente.

Uma flor que abre à noite, permanece branquinha até as 9h da manhã seguinte e depois roseia. Roseia lindo.

Um inseto vesgo.

Um órgão do corpo humano que não sente dor.

Uma bebida alcoólica que (por garrafa) contém a essência de 62 formigas.

Um mamífero que produz seus poops em forma de cubo – acredita-se que, não sendo rolantes, as sujices quadradas dos bichinhos ajudam a marcar território.

Uma rede social cujo logotipo se chama Larry.

Dois filmes com 31 anos de separação nos quais o MESMO ator toca banjo.

Uma cidade na qual é proibido vender uma casa mal-assombrada sem avisar desse palpitante detalhe os compradores.

Uma cidade na qual latas de lixo ficam inclinadas, a fim de que ciclistas possam usá-las mais facinhamente.

Um animal marinho dotado de três corações e nove cérebros. QUANTOS problemas resolvidos no mundo, se a criatura em questão fosse terrestre, bípede, portadora de polegar opositor e usuária do WhatsApp!

Um bichengo que, em compensação, pode sobreviver alguns dias sem cabeça, o que se aproxima bem mais do que temos para hoje em termos de humanidade.

Um time de futebol em que chegou a jogar um goleiro de 73 anos.

Uma autora fabulosa que curtia escrever deitada na banheira.

Aves que, devidamente instruídas, conseguem distinguir entre um Monet e um Picasso.

E uma ave cujo olho é maior do que o cérebro.

Uma ilha do litoral paulista onde há cinco cobras por metro quadrado.

Um grande autor de nossa literatura que multou o próprio pai.

Quem é, quem são, não conto; pero que los hay – los hay.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Pescaria


Achei lindinho que a poeta, cantora e paisagista Natalia Barros tenha dito, num dos poemas de seu livro Nuvens ornamentais (aliás, que título adorável): "escrever é uma pescaria/ se voltar com o peixe,/ escrever é isso/ se não voltar com nada,/ escrever é isso". Tão simples, tão real; escrever é exatamente isso, ou seja, exatamente nada exato, nada garantido, nenhuma ciência de seguir fórmulas e ajuntar quantias – salvo, talvez, na produção de redações de Enem, que são sim mui constantemente medidas, pesadas, roteirizadas como um cálculo estequiométrico (ah, quantas saudades NÃO tenho desses terrores químicos!). Em textos assim pendentes para o técnico, não há que esperar o peixito abocanhar a isca: têm-se os dados, organizam-se os dados, aplicam-se os dados, sem necessariamente a expectativa da beleza e apenas com a da coerência; é o escrever-tarefa, o escrever-função – desvinculado de prazeres e lazeres, resolvido na base da rede utilitária e não na do caniço paciente, demoroso. O escrever literário já é distinto e adota o caniço, visto que teoricamente não é obrigatório nem demanda imediatismo e volume; se retorna com o samburá abastecido e muitas linhas escritas/fisgadas, muito bem, e se retorna com o cesto e o arquivo vazios após um longo silêncio à beira d'água, faz parte. Tende apenas a ser muito mais doloroso o silêncio da página vazia, considerando que a pesca não configura um esforço de criação e, por isso, pesam consideravelmente menos suas ausências.

Mesmo o silêncio da página vazia é gritante no processo, entretanto, porque a ausência que representa é ilusória; nem sempre os peixinhos do escritor se dignam fazer-se visíveis. Escrever literariamente é um derramamento de tempo, ninguém pode evitá-lo, e ninguém pode evitar que se continue escrevendo longe do lápis, da caneta, do teclado – que se digite mentalmente no banho, que se anote sem mãos uma ideia pinçada num filme, que se voe para milhas away durante uma conversa a fim de amadurecer um embriãozinho ocasionalmente inserido. Na realidade a pesca escritora mal chega a ser ir e voltar: é uma situação de permanência. De residência. De demência, quase – uma vez que o infeliz sujeito a essa sisifidade não raro passa o dia subindo pedras, ainda que pedras imaginárias, para à noite vê-las ruir. E que não se suponha menos desoladora essa perda de presas imateriais; ser obrigado a renunciar ao que ainda não se escreveu, mas que por algum motivo recaiu de luminoso em desanimador, escapa bem pouco de ser uma espécie de miniluto mental, um vácuo duma parte nossa que poderia ter sido.

O escritor brinca de e trabalha em querer e fugir ao querer – o tempo todo. Verdadeiramente o tempo todo. Tem vontades de temas, luta intimamente contra temas que não deseja fisgar mas que o abocanham (sim, não faltam Jonas temáticos sendo arrastados por essas Moby Dicks), sonha ver-se roteirizado mas se arrepia de pensar em roteirizar-se – e se arrepia mais de pensar em infiéis que o roteirizem –, cansa de escrever e quer só lerlerlerler, sendo porém que no leeeeer acaba pescando mil e tantos outros motes e enredos que o atormentarão e puxarão a linha até materializar-se. Vive enfim tanto na busca quanto no ser buscado, aproximando-se afinal (se é de pesca que se trata) muito mais de um Tubarão way of life do que daqueles filmes-de-fazer-as-pazes-com-papai-na-casa-do-lago em que se senta placidamente na margem ou no barquinho e se sustentam conversas profundas entre o farfalhar de árvores ensolaradas.

Seja onde for que o escritor navegue atrás de seus tesouros brutos e líquidos, vamos sempre precisar de um barco maior.

domingo, 20 de junho de 2021

Mãos ao alto


Faria hoje 116 anos a corajosa escritora norte-americana Lillian Hellman, que na juventude chegou a trabalhar como crítica literária no jornal New York Herald Tribune e como leitora de roteiro (ou seja: selecionadora dos roteiros a serem lidos pelos produtores) na MGM. Seu primeiro texto para teatro estreou na Broadway – com grande sucesso, embora a peça sobre duas professoras duma escola feminina falsamente acusadas de viver um namoro tenha sido proibida, por exemplo, em Boston, Chicago e Londres – quando a autora contava frescos 29 anos. Por aí já se via a força da guria, que, junto com outros cabeçudos como Dashiell Hammett (seu conje por três décadas), Ernest Hemingway e Arthur Miller, lutou firme contra o nazismo; Hellman inclusive escreveu duas peças antinazistas, em 1941 e em 1944. Nos anos 50, Dashiell e Lillian entraram para a lista de caça às bruxas de Joseph McCarthy, aquele escroque sobre o qual me faltam palavras; ambos depuseram na CPI de "atividades antiamericanas", e o escritor foi preso por seis meses após se negar a delatar colegas. Como é que os escritores reagem a episódios importantes e traumáticos? – escrevendo, naturalmente: em 1976, décadas mais tarde portanto, Lillian lançou o livro Scoundrel time, "Tempo canalha" em tradução literal e A caça às bruxas na adaptação oficial para o português; é dessa obra o trecho que destaco como extrema e infelizmente resumitivo do que temos encarado (vai aqui uma versão aproximada): "Vidas estavam sendo arruinadas e muito poucas mãos se levantavam para ajudar. Desde quando você tem de concordar com as pessoas para defendê-las da injustiça?".

Pois é, Lillian: desde quando? Estranhissimamente, parece que desde sempre, ao menos na concepção dos que não sofrem ou raramente sofrem injustiças – em geral por andarem na calçada do status quo, abraçando a passividade na base da convicção ou da covardia. Até entendo de coração aqueles que o fazem porque são fáceis vidraças, porque estariam na linha de frente (como vítimas, claro) da paulada, execração e tortura a qualquer oscilação do "equilíbrio" social, a qualquer entornadinha de caldo; é legítima defesa que não se pode deixar de compreender empaticamente. Mas aqueles que gozam de alguns privilégios de cor, classe e afins? aqueles que costumam permanecer ao abrigo de perseguições, que tendem a não ser enxergados como alvos preferenciais, que teriam maiores oportunidades de influir contra decisões problemáticas e de brigar por soluções mais globalmente decentes? Como não babar de indignação voltadamente para essas criaturas que assentam, moram e se balançam em berço esplêndido, fingindo tralalalá que o mundo são cotidianos de Instagram e séries de Netflix, e vai girando hi-lili-hi-lili-hi-lo, e não existem nele gritos a serem atendidos nem barbaridades a serem combatidas ANTEONTEM?

Não, os isentões que estão longe de se encontrar em situação de lesa-pescoço (na hipótese de levantarem a voz contra desmandos) não têm desculpa. Sei que as coisas andam polarizadíssimas, que muitos raciocínios foram inutilizados no processo e que por isso, lastimavelmente, qualquer nuance passou a ser inenxergável pelos fanatizados, o que basicamente torna "comunista" todo ser humano favorável às vacinas, à ciência, à máscara, ao isolamento, ao auxílio emergencial e à série de assemelhados que deveriam ser simples consenso humano. Pouco importa. Sério MESMO que pessoas em tese escolarizadas, com todos os recursos e informações disponíveis, podem sentir-se no direito de não se pronunciar contra um genocídio, de não criticar uma política assassina de gentes e ecossistemas, de não espumar de ódio público diante de morticínios promovidos por agentes do Estado, diante de ataques à saúde, à educação e a tudo de mais sagradamente humano – porque não querem ser acusadas de esquerdistas? É isso? Então esse ridículo pudor, esse receio poltrão da opinião de outrens desconhecidos até, tem licença de sobrepor-se à defesa da vida, da justiça, da lógica?? Sorry; que os privilegiados isentões tentem justificar-se até rebentarem de ficar roucos: não há justificativa. NÃO HÁ passação de pano cabível para gente que finge demência ante a realidade acachapante e passa os dias de cara enfiada em vídeos de bichinhos fofos, como se não estivéssemos vivenciando a maior tragédia coletiva da história brasileira; como se ALGUÉM dotado do mínimo de instrução e sanidade não conseguisse ver a desgraça, a miséria, o desemprego, o desmatamento, a destruição que acenam com holofotes de LED na janela de nossa casa, debaixo de nossos olhos.

"Âââin, mas se fosse um governo de esquerda eu queria ver você criticar também, até parece." Oi?? Amorildes, a esquerda se critica até demais, mete escrúpulos inclusive onde não devia – "discute" consigo mesma, por exemplo, se a doutora Nise não foi vítima de machismo, ó céus (hum, deixa eu pensar: não) –, quem dera se tivesse UM graminha a mais de corporativismo. Se eu criticaria abertamente possíveis desmandos de um governo de esquerda? óbvio que sim, pipocas; e continuaria sendo de esquerda pleníssima, sem o menor receio de que me confundissem com alguma direitosa por aí, o que eu saberia de antemão absurdo. O que é certo é certo, o que é da Constituição é da Constituição, e eu realmente não sei como pitombas pode haver dúvida a respeito do que devemos proteger; sempre esteve tudo límpido, translúcido, para quem quisesse se entregar ao bom senso. Dando-se o caso de aquilo que é pró-humano começar a oscilar conforme as conveniências, já temos um problema de fábrica.

MUITO nos separa – fato; porém a natureza, o planeta e o nome científico da espécie nos juntam o suficiente para que todos estejamos nas mãos de todos, e todos tenhamos os demais nas mãos.

sábado, 19 de junho de 2021

Pelas 500 mil perdas (e com a licença de Castro Alves)


Existe um povo que a bandeira empresta
Pra cobrir tanta infâmia e covardia!...
E deixa-a transformar-se na funesta
Mortalha de um país em pandemia!
Já foi um nosso símbolo; só resta
Ser, hoje, de homicídio alegoria.
Tragédia. O povo chora, chora tanto,
E o mundo nos contempla com espanto.

Auriverde pendão de minha terra
Que abraça um breu brutal e sem bonança;
Que às mãos desses facínoras se aferra
– Às mãos que patrocinam a matança:
Tu, que não ouves mais quem clama e berra
Contra o carrasco que entre mortos dança,
Antes virasses resto, cinza, tralha
Que servires de escudo a essa gentalha!...

Mortalidade atroz que um povo esmaga!
Desaba sobre nós o plano imundo
De quem se mostra a verdadeira praga,
Matando-nos segundo por segundo.
Mas é horror de mais!... e nada apaga
Perder os que adoramos mais que o mundo!
Haia! leva o bufão para o julgares!
Brasil! vamos honrar nossos milhares!

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Poeira de estrela


Há exatinhos 85 anos falecia o romancista, contista, dramaturgo e ativista político russo Máximo Gorki, fábrica ambulante de citações, entre as quais destaco uma que me diverte imenso: "Deixar os outros espantados é uma coisa que alegra, se somos diferentes deles". Há mesmo sempre quem tenha falado ou venha a falar dos menores desdobrares de sentimento que carregamos em nossos cantinhos psicológicos, e devo agradecer ao agudíssimo russinho o haver iluminado essa esquina, essa espécie de vaidade engraçada – o desejo de boquiabrir, até se possível escandalizar, pessoas de quem diferimos prazerosamente. Ou o leitor queridão vai dizer que está imune a essa farrinha da autoestima? No lo creo. Somos parece que todos assim, adolescentes expandidos; gente normalmente apavorada de chocar seus pares e, em simultâneo, animadíssima de sapatear os próprios valores na cara da sociedade oposta. Gostando ou não, algo em nós acaba se legitimando, se afirmando pelo contraste – particularidade que já terá dado o empurrãozito definitivo, para bem e para mal, de muita subjetividade que caminhava no muro.

Não posso deixar de confessar: apesar de ser pouquissimomente dada a enfrentamentos e bastante inimiga de embates, tenho lá meu contentamento muito íntimo quando o povo com quem me identifico ZERO, e a quem não admiro, me aponta, pensa, menciona, "acusa" comunista, petista ou similares. É na realidade uma honra, e me encanta não só pelos títulos lindões que acaba me rendendo como pela sensação (sensafato) de que estou dando na cara de todas as concepções tortas e egocêntricas de humanidade que os acusadores adoram/adotam. Claro, QUEM sou eu para abalar em algum mísero milímetro todo um sistema estrunchado de pensamento (não, não é arrogância, é obviedade: dizer que, ou agir considerando que uma parte dos seres tem mais direitos que outra e deve receber privilégios dispensa qualquer consideração; não há debate possível). QUEM sou eu para desmontar convicções cretinas que só Freud e Chomsky explicam. Não sou ninguém além duma poeirita desse universalhão – e entretanto, naquele glorioso momento de ser tachada comunista petralha esquerdalha mortadela, sinto-me a designada representante da Força e sou todos os jedi, todos os passados e futuros defensores de uma ordem global igualitária. Não sou absolutamente eu (OK, sou eu um bocadinho) abalando Bangu e chocando opiniões, e sim um fragmento da Causa falando pela Causa e ajudando a que não haja nenhum instante em que ela não esteja por aí, absoluta, vaga-lumeando.

A coisa se torna mais divertida pelo fato de eu não ser exatamente o que se espera de uma, digamos, guerrilheira: jeito de boa aluna, de quem vai morar discreta e docemente no status quo com um sorriso de obediência, sem se atrever a questionar The man. Pois não me lembro de um milissegundo em que não o tenha questionado, de um microperíodo em que não tenha sido rebelde insuspeita e inquieta por trás do sossego que nunca foi sossego – foi sempre introspecção, apenas –, e lamento retoricamente que os péssimos profilers costumem julgar com tanta preguiça; em compensação, o profilerismo capenga dos que não esperam achar uma "comunista" sob a blusa do Mickey e a saia rodada propicia muitos nunca-pensei-que no mínimo interessantes. Só gostaria, admito, de ser vista como a ovelha vermelha da família mais às escâncaras; acho francamente uma vergonha não ter nenhum parente que seja me mandando para Cuba.

(Interessados, aliás, tenham a gentileza de me enviar a passagem; se não rolar de conhecer a terra de Fidel, troco por um voo para Brasília nos últimos dias de 2022 – para já amanhecer 2023 assistindo, coladinhamente, à chegada do Lula lá.)

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Amar um leão é não poder amá-lo


Estava aqui lendo e sorrindo de boniteza o poema de Eucanaã Ferraz, "Sob a luz feroz do teu rosto", do qual destaco um trecho para que compartilhem o sorriso: "[...] amar// um leão é só distância: tê-lo ao lado,/ não poder beijá-lo, o deserto/ que habita em torno dele;// era mais certo amar um barco,/ era mais fácil amar um cavalo;/ amar um leão é não poder amá-lo;// e nada que façamos adoça/ o que nele nos ameaça se/ amar um leão nos acontece:// à visão de nosso coração/ ofertado, tudo nele se eriça,/ seu desprezo cresce". Abençoada seja a poesia e perenes sejam os poetas, que nos presenteiam com a dissecação mais extraordinária das entranhas do mundo e derramam beleza sobre as maiores excruciâncias, como certamente deve ser esta aqui: amar um leão. Amar alguém impossível, não porque as famílias sejam inimigas ou os países guerreantes, não porque o ser amado esteja prometido a outrem ou ameaçado de morte matada e decapitada, não porque elaele tenha vocação para o celibato ou resida numa dimensão paralela; amar alguém que, simples, não deseja ser amado. Ou antes (porque não acredito que exista esse negócio daí de não querer ser amado, o que seria o correspondente emocional a uma criatura biologicamente rejeitar oxigênio): amar alguém incapaz de se deixar amar.

Imagine-se, imagine-se! alimentar toda a concebível ternura por um ser em torno do qual o deserto habita; um coração tão obstinadamente árido que não junta duas palavras menos secas, esfacela-se a qualquer toque, qualquer contato; uma natureza tão duramente constituída que nem uma sombra de sentimento úmido a permeia, e ao mesmo tempo tão arenosa que deixa escoar em desperdício tudo de doçura que a atinge, deixa morrerem as raízes que nela não logram fixar-se. Dói uma agonia hipotética no meio do peito ao considerar esse que deve ser um dos maiores enredos de terrores – ver-se sob a profundidade pré-salina dum olhar assim de desprezo, olhar de quem não veio à terra "para essas frescuras" e no máximo se utiliza física e socialmente do outro para as contingências (ainda assim, com o ar desdenhoso e carnívoro dos que preferiam não estar submetidos a essas misérias dos fracos).

Foi mesmo generosíssimo o eu lírico de Eucanaã Ferraz, ao atribuir leonidade a uns tais indivíduos inamáveis, incomovíveis. Eu os chamaria hienas, abutres, metáforas definitivamente isentas de qualquer esperança romântica – e no entanto compreendo no fundo d'alma a escolha do leão, precisamente pelo halo com que nosso imaginário o glamouriza; não faz assim o coração que, amando, espera pelo melhor e reveste de cores bem mais ricas o que é pó, pedra e fim do caminho, num movimento de aflita sobrevivência emocional? O amador, o amante projeta sobre a ave de rapina oca que tem ao lado, sobre a personalidade comedora de carniça à qual se sente preso, toda a ilusão de amar um leão majestoso, arredio, indócil, porque é fato: dói menos. Machuca bem menos (a autoestima inclusive, ou principalmente) imaginar que estamos atados a uma espécie de gênio incompreendido, de herói atormentado, de personagem bravio e temperamental, quando a realidade crua aponta um serzinho mal-educado, egoísta, frio, bruto, indiferente, perverso, sádico, ruim; um serzinho cronicamente inacessível ao amor, manco daquela partícula que aconchega e humaniza, controlador e tirânico de qualquer respeito próprio que o conje possa remotamente alimentar. "Ah, um dia ele muda" – não muda (ou muda sem dúvida para pior); "um dia ele vai reconhecer tudo que faço por ele" – não vai (e ainda vai declarar que o outro, a outra não era ninguém antes de conhecê-lo, e não seria ninguém depois de deixá-lo). Só um reboot, impossível para quem não é o bichinho de estimação do velho Dumbledore, formataria essa criatura do pântano; - 987% de chance de acontecer, portanto, o que só lega como alternativa um gordo game over.

Sem síndromes absurdas de onipotência, mores: no aquém das páginas de carochinha, considerar-se uma Bela destinada a "resgatar" a Fera é o meio mais rápido de a vida, encastelando-se, definhar.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Povo do bem


"O bem. Mostre-me um homem que pensa que sabe o que é 'o bem', e eu provavelmente poderei mostrar-lhe um horror de pessoa. Mostre-me uma pessoa que realmente saiba o que é 'o bem', e eu lhe mostrarei que ela quase nunca usa [ess]a palavra." Fiquei passada de como a citação do hipotético aniversariante Idries Shah, mestre da tradição Sufi que hoje completaria 97 anos, veste estes nossos dias feito roupa de alfaiate. Tem sido – e provavelmente sempre foi – forte e precisamente assim: não há traje portado com tanta constância pelos fãs de violências e atrocidades quanto os gritos histéricos, ostensivos, em favor de uma determinada cepa humana (humanos direitos, digamos, apenas como ilustração aleatória). Não há look tão exibido por amigos virulentos da tortura quanto a bio ultrapiedosa, ultrarreligiosa, ultramístico-perfumada nas redes sociais. Não há modelito tão orgulhosamente desfilado pelos carcarás que esvurmam gritos de guerra e posam com fuzis quanto bandeiras tremulantes pela Pátria, pela Família. Por Deus.

O que me vem inevitavelmente à memória são aqueles assassinos do Investigação Discovery e adjacências que, para melhor disfarçarem sua culpa monumental (não a que sentem, já que não a sentem, e sim a que carregam), são os primeiros a acompanhar de pertinho a investigação, oferecer ajuda à polícia, auxiliar nas buscas, preparar lanchito para os voluntários e bombeiros. Numa sede e num gozo de manipularem mais fielmente olhos que não aprofundam a análise para além da superfície, exageram-se; pintam-se com um histrionismo de palhaços da bondade, outdoors da virtude, painéis luminosos da retidão, muito à moda dos sepulcros caiados bíblicos – lindinhos fora, podres dentro –, muito como os proverbiais fariseus que anunciavam com trombeta suas benfeitorias. A gente fica pasmado que essa farsa ridícula siga dando certo, e assombrosamente dá; até porque, na entourage dos tais pilares da comunidade, acolhem-se não somente vítimas ingênuas, mas outros tantos do mesmíssimo naipe – outros tantos que satelitizam os cidadãos de bem com sua própria cidadão-de-bência; parasitas de hipocrisia, ou hipocrisias jagunças. Um povo que, satisfeitão de achar um guarda-chuva de desfaçatez onde se abrigue, serve aos mentirosos-mor com seus rebanhos particulares e aluga sua lealdade por temporada.

Pode crer: o bem verdadeiro é discreto; uma vez que é, e sabe ou sente que é, sente pouquinha necessidade de parecer que é. Também costuma andar sempre em autoquestionamentos, em desconstruções e análises íntimas de seus motores, de suas atitudes; os representantes do "bem" original de fábrica são humildes, cultivadores natos de empatia, organicamente avessos a meterem o dedo na cara de outrem por considerarem que não são ninguém para julgar – A NÃO SER QUE esse outrem seja fascista machista racista homofóbico explorador safado, que aí o senso de proteção dos demais outrens grita mil tons mais alto que qualquer escrúpulo. Aliás, a galera do beeeeem sabe perfeitamente que escrúpulo não é direitinho o termo: o que impera é um equilíbrio mui claro e consciente entre o respeito devido às individualidades e a voadora que se deve meter no plexo solar dos que agridem e matam as individualidades. Povo do bem pode ser tranquilo, de coração inquietamente filósofo, perseguidor da evolução – porém não é trouxa; conserva discernimento suficiente para saber onde amansar e onde mandar o seu hadouken, embora sua natureza justa e analítica o leve constantemente a demorar um tiquinho. O que lasca é que os autointitulados Detentores do Bem não demoram nem um tiquito para arrasar quarteirões, algo salomonicamente compreensível, visto que quem não ama não teme destruir. Enfim está tudo nisto: cidadãos do bem, ao contrário daqueles de bem, tardam às vezes em responder porque receiam destruir qualquer sementinha germinada no processo, qualquer ensaio de conquista, qualquer sinal de vida insinuada ou brotada. Não concebem que se possa trocar o que quer que talvez haja pelo pássaro que há, esteja ele na mão ou voando.

Dos que berram ameaças e eliminariam tudo pela "causa", fuja: o bem, mesmo, pisa de pantufas para nenhuma formiguita desavisada acordar.

terça-feira, 15 de junho de 2021

Shippados


Shippar tem sido, há mais de década, uma distração incontrolável de pessoinhas que andam chafurdando na arte de amalgamar, sob um mesmo nome, duas individualidades que são ou DEVERIAM SER um casal, uma equipe, uma dupla de bromance ou de sisteridade, sei lá mais o quê. Normalmente é um casal que se transforma em pacote – como Bruna Marquezine e Neymar, no já expirado ship Brumar, e Brad Pitt e Angelina Jolie no clássico Brangelina, também expiradíssimo –, o que me incomoda um monte por motivos óbvios: amor nenhum, nem de séculos ou milênios, faz as criaturas se tornarem um McLanche Feliz com itens que não podem ser entendidos ou vendidos separadamente; e é mesmo este o objetivo, que o amor faça os eus aperfeiçoados, aprimorados pelo convívio, não dissolvidos num combo de dependência que só opera e só é compreendido em conjunto. Sim, sim, é muito lindo o êxtase amoroso de que falei aqui apaixonadamente há alguns dias – e sustento tudo, tudíssimo –, porém é uma ilusão de unidade platônica para uso exclusivo, interno e recreativo do casal; fora da intimidade, é extremamente fundamental que ambos se percebam sim como parceiros incondicionais, mas não como um ship, um puxadinho recíproco, uma espécie de venda casada. E é igualmente fundamental que olhos externos, alheios, também não se acostumem a ver como um perfil unívoco o que são duas subjetividades contíguas, semelhantes talvez, harmônicas de preferência, e ainda assim isoláveis em suas necessidades específicas.

Mas isso tudo são observações sisudas que cabem para gente de carne e osso; com personagens podemos livremente brincar (para isso mesmo eles servem, ora pílulas) e bancar os maiores alcoviteiros do multiverso, sem dramas alguns. Deixem-me, pois, me divertir aqui correio-eleganteando umas duplas improváveis da ficção, que o mês é dos namorados, das grudadices, das santo-antonices e não há maneira mais segura de exercitar o Eros flecheiro que vive em nós:

💗 B.E.N., o robozinho desmemoriado de Planeta do tesouro, e Úrsula, a vilã de A pequena sereia: casal B.E.N.-Ur, claro. Concordo que existe um certo conflito entre ele ser metálico e ela ser marítima, porém esse exatinho detalhe pode render um relacionamento moderno e fresco, com encontros fortuitos e um quê de perigo esquentando as máquinas. Além do mais, quem melhor que um galã de memória desparafusada para lidar com o passado trevosíssimo da bruxona?

💗 Joe Gardner, protagonista de Soul, e a rainha Elsa de Frozen: casal Gardel – que ali pode faltar fogo; paixão, não. O rapaz certamente amaria acompanhar ao piano os lerigous de sua diva, ela certamente amaria aquecer de jazz as noitadas de sua Arendelle; de quebra ela ganharia uma mãe postiça, e ele uma irmã com cunhado a tiracolo – mais a alminha 22 e Olaf juntildos, produzindo fofura.

💗 Namor, o Príncipe Submarino, e Ororo Munroe, a Tempestade dos X-Men: casal Namoro, muito evidentemente. Vamos combinar que a química dos bonitinhos seria tornádica e maremótica, apenas talvez não perfeitamente adequada para navegantes desavisados.

💗 Salsicha, de Scooby-Doo, e Arya Stark, de Game of thrones: o casal Salarya parece e é absurdo, mas alguém vai negar que o moço seria o menos empata-luta possível na vida da menina, e que adoraria ver todos os seres aterrorizantes sendo devidamente eliminados por sua crusha?

💗 Emília, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, e Pinóquio: casal Empino, unido por motivos ululantes; nenhum deles tem um histórico exatamente angelical e, entre macelas & madeiras, sobra a ambos a experiência de ser brinquedo e virar gente, ou bem quase.

💗 Hebe Marreca, a "Pata Feia" de O galinho Chicken Little, e Tio Patinhas: dentro do casal Marretinhas, duvido que o avarento em questão ousasse não fazer a coisa certa; diveeeeeersos papolitizados encheriam o ninho do empresário sobre a importância de redistribuir patacas.

Duvidareis com certeza, e no entanto jurarei que não, não fiz uso de nenhuma substância ilícita antes de delirar essas loucuras tamanhas – salvo se o Brasil já estiver sendo listado pelas entidades competentes como alucinógeno. Caso contrário, garanto-me em total sobriedade, total posse de minhas (cof, cof) faculdades mentais. E acrescento: aceito de bom grado mais uns ships lokões em contribuição.

Cartinhas de amor para a redação.

segunda-feira, 14 de junho de 2021

O dia da canja


Passei mal, até a dor e a náusea, com alguma coisa consumida no dia anterior, ou nos dias anteriores, o que me pôs em modo de canja, chá, banana cozida. Desanimadamente? é curioso, mas não: desde que recuperada do mais desagradável, que são os movimentos para descomer o elemento intruso, não sou capaz de me ressentir do estado excepcional; eu estranhamente gosto dos estados excepcionais, ou gosto de uma forma torta e confusa de me ver, vez por outra, sequestrada de mim mesma. Dificilmente me dou folga de alguma necessidade, dever, apetite (até a tendência de adiar adiar adiar me serve como um sequestro funcional: em algum momento o tempo urge a ponto de eu não mais me pertencer, e pertencer provisoriamente ao que deve ser feito), o que significa que, tardando ou não, vou acabar me lascando inteira por e para realizar a tarefa – ainda que a tarefa seja devorar o que há na mesa para ser devorado. Visto que provavelmente não chegarei a me interromper, não me oponho a que forças maiores do organismo volta e meia me interrompam, em motim; que o estômago, os olhos, a cabeça, o fígado se revoltem e mandem um stop! de amorosa intervenção e me carreguem à minha revelia da tormenta para a boia.

Sou espontaneamente avessa a comidas excessivas e gordurentas, mas ainda assim as fronteiras do corpo se fazem perceber irritadas, de quando em quando: menos, menos, olha, tem lactose de mais, EI, ESTOU FALANDO COM VOCÊ, NÃO ABUSE! E aí vou lá e abuso, e que nem criança aprecio secretamente que os limites sejam impostos, que o orgânico me salve do consciente, que o real me salve do irresponsável, que o enjoo me salve de mim. Porque, no estado de enjoo, já não há qualquer sacrifício na renúncia; toda a conjuntura do corpo torna a renúncia sincera, voluntária, e o que apetecia deixa de apetecer. Não é que puxa, caramba, não posso comer um biscoitito amanteigado, uma pizza, um estrogonofe: o negócio é que NÃO QUERO biscoito amanteigado nem pizza nem estrogonofe, a náusea e a memória da náusea me dominam acima do apetite e fazem legitimamente atraentes a canja e a gelatina. Claro, tamanha sensatez gastronômica não dura – assim que se pilha consertado, o time da digestão flexibiliza feliz as medidas de isolamento e lentamente escorrega para a temeridade; mas, enquanto dura, o amor pela vida light é infinitamente honesto e as comidas de perdição são vistas com infinita repugnância.

Curto ter de me adaptar a algumas – eu disse ALGUMAS – inconveniências, confesso; buscar alternativas para probleminhas descartáveis, ser empurrada para a criatividade queira ou não queira, fazer o que meu proporcional apego à acomodação não faria. Evidentemente prefiro que tudo sempre dê certíssimo, quem não?, porém já me fui apresentada o bastante para saber que uma parte inconsciente, espoleta, aventureira, inquieta não se abala tanto quanto seria razoável com os eventuais desvios, e que, pelo contrário, tem uma levíssima atração fatal pelas situações novas, enviesadas (não deve ser à toa que amo tanto os "vilões" oblíquos, portadores de alguns porões e sótãos de onde acaba saindo coisa boa). Como a minha praticidade incontrolável me impede de procurar problema, casos em que os problemas me acham acabam sendo os únicos encontros fortuitos com o resolvômetro que me habita, com a manifestação real do e se ao qual nenhuma criatura foge. Uma parte(zinhazinha que seja) de nós quer ser ocasionalmente desafiada, não a sair de sua zona de conforto como pregam os sádicos e maníacos que parasitam a boa-fé dessa nossa parte(zinhazinha), mas sim a expandir sem maiores traumas a zona de conforto mesma; somos bem um grande músculo mais ou menos preguiçoso que estoura se pressionado em excesso e que, por outro lado, caso seja abandonado à própria e eterna pasmaceira – atrofia.

O equilíbrio está na linha de sabermos reagir às dores sem abraçar aquilo ou aquele que as causa. Mais fácil de dizer que de providenciar: como não raro temos uma queda para ou uma dívida com aquiloquele que nos provoca e espicaça, construir um crescimento sem endossar o sofrimento definitivamente não é sopa.

domingo, 13 de junho de 2021

Questão de sobrevivência


Lembro, nestes 120 anos de morte do escritor espanhol Leopoldo Alas "Clarín", uma sua frase talhada para nos aquecer em meio aos tempos que aí vão: "Apenas a virtude tem argumentos poderosos contra o pessimismo". Devo confessar que fico grata pela parte que me toca, ou pela carona que Clarín se dignou a me conceder, já que, bem, costumo ter argumentos poderosos contra o pessimismo – embora seja a primeira a reconhecer: no meu caso é questão de sobrevivência, assim muito diretazinha e prática; sei lá se há qualquer virtude numa legítima defesa. Minha pobre psiquê absolutamente refratária ao pessimismo não é, creio, mais virtuosa por se agarrar à lógica que a impede de esfacelar-se, e se alguma qualidade tem é a de não se supor nunca sem alternativas nem se deixar esmigalhar sem uma surda e teimosíssima resistência.

Em termos de vida pública, pelo menos, simplesmente ME RECUSO a ser emocionalmente achatada sob efeito dos vermes que neste momento têm o cetro na mão, ainda que se empenhem com toda a fibra em tornar o país irrespirável (literalmente, inclusive), ainda que nos façam estalar todos os dias de raiva sufocante, engasgadora. É raiva justificada e reativa, inteiramente diferente da que habita os pudins de ódio ora sentados no poder; é raiva aliás do próprio ódio que representam – e por isso, apesar de fumegar e borbulhar em lava incandescente a cada novo atentado, a cada novo ACINTE, é uma gana mui capaz de esperar e disciplinar-se, e até se deixar amenizar pelas cotidianices enquanto trabalha em segundo plano. Tão poderoso é o desejo de recuperar o mínimo estado de civilidade, o mínimo respeito coletivo ao bom senso, que essa rrrrraiva dos atuais absurdos – na impossibilidade de resolver as tretas à maneira de Carrie, a Estranha – se sublima em confiança e racionalidade: o reinado do terror não dura, nunca dura, nunca dá certo, nunca se estabelece perpetuamente, SEMPRE cai. Que Alas "Clarín" chame a isso um pensamento virtuoso, se prefere; eu chamo (talvez tendo diante dos olhos o mesmo objeto que ele) de uma percepção histórica equilibrada.

O que a História nos segreda muito arrazoadamente? Fascismos despencam cedo ou tarde, como dois e dois são quatro; excessivas maldades e excessivos narcisismos implodem fatalmente suas bases, já que, com seu invertido toque de Midas, destroem tudo que lhes cai no entorno; os maus não captam lealdades, compram parcerias – e um dia as perdem, quando não podem ou não querem pagar; países que não se ajustam à vibe internacional de sustentabilidade viram lugares insustentáveis, proscritos, párias, o que desagrada bastante a empresários nacionais que ficam sem amiguinhos para brincar e fazem tuuuudo para recuperar esses amiguinhos; os livros didáticos são escritos por gente com a cabeça razoavelmente organizada sobre os ombros, e vai daí que a posteridade não perdoa os piores chacais que já respiraram sobre o planeta – sua memória e a de seus apoiadores há de ser inexoravelmente infame pelos séculos dos séculos, motivo de vergonha profunda e desgostosa. Isso são certezas gerais, temos também as específicas: de que a CPI da covid continuará rendendo baciadas de material para Haia, de que as pesquisas são claríssimas quanto ao resultado do segundo turno no ano que vem, de que as manifestações pró-coiso andam brochando a olhos vistos e só podem ser marcadas numa cidade de cada vez, do contrário o vexame é ainda maior – enquanto as REAIS manifestações populares anticoiso tomam o país inteiro simultaneamente, pujantes, aumentadouras. Não é questão de otimismo, é questão de ter olhos para o factual e confiar no processo, confiar que os movimentos lógicos da História se farão caso nós os façamos. É de virtude que se trata? talvez, visto ser ela quem se dispõe aos protocolos básicos para chegar a cumprir a "profecia" histórica; seu impulso de realizar o coletivo é que torna verdadeira a verdade, seu esforço de aplicar as regras da democracia e da República é que cria o ambiente ótimo para que democracia e República se robusteçam. Se é virtude (e é) entender que a espécie foi projetada para funcionar em conjunto, que tudo em contrário está fadado ao fracasso e, portanto, é idiotice apoiar o que opera numa ilogicidade arbitrária, voilà: eis explicada a fala de Clarín, que certamente não se referia a nenhuma virtude de conto de fadas, alienada e etérea. Na real, etéreo é o pessimismo, que não sabe fazer escolhas baseadas na experiência.

E malandro é o otimismo: navega no fluxo e ainda se veste da fama de olhar generosamente o mar.

sábado, 12 de junho de 2021

Amor e medo


Como eu (rosianamente) quase que de nada sei, mas desconfio de muita coisa, desconfio que os namorados, se enamorados realmente, têm sempre uma qualqueridade de medo.

Ei, não é do medo narcisista e odiosamente ciumento que falo, vade retro: suma-se esse um nas profundezas da história, no pântano do mundo. Falo do medo quase bom que dói e não se sente, da doçura que arrepia as penas feito passarinho assustado – porque um troço com a envergadura do amor não tem como não ser um susto –, do pequeno e caricioso pavor dos eventos importantes, aquele como no soneto de Neruda, "amo-te como se amam certas coisas obscuras,/ secretamente, entre a sombra e a alma". Sabem? é desse delicioso pânico que falo, o de estar vivendo em algo e para algo obscuro, sempre secreto, sempre intocável, porque simplesmente não se consegue compreender à luz do dia como fomos parar nele, como ele veio parar em nós; não se consegue lidar de uma vez com uma efeméride tamanha e tão insustentável, não se sabe em qual prateleira nova ajeitá-la, não se tem certeza se é objeto a se exibir ou a se acomodar em veludo, e ficamos nós perplexos segurando-o entre a sombra e a alma, suspirando de boa febre. That medo.

Parece, no amor namorado composto de uns derramamentos muito vivos de felicidade, que sempre se é culpado não sei de quê, em especial quando a inocência é pleníssima; efeito provável da avalanche de que continua falando Neruda: "amo-te assim porque não sei amar de outra maneira,// a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és,/ tão perto que a tua mão no meu peito é minha,/ tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono". Como é que se emerge dessa confusão adorável e aterrorizante sem algum desespero correndo nas veias? Como é que – não direi em sã consciência, tratando-se duma tal evisceração emocional, mas – num estado de mínima coerência interna se pode encarar esse tanto de abismo, esse tanto de voragem sem um calafrio passeando no sangue e a impressão de que o coração não devia se meter mesmo onde foi chamado? Sim, o atar do nó(s) é estarrecedor e deve sê-lo, direitinho como o radicalismo dum esporte: ou se pratica com a cota sensata de inquietação, aquela que garante a prudência de não aniquilar nem ser aniquilado, ou se pratica temerariamente. E mal.

É preciso algum apavoramento decente perante a imensidão, crianças. O apavoramento (saudável, não fóbico) que se tem diante do mar, no qual se mergulha com respeito ou danou-se. O apavoramento de voar de ultraleve – curtindo como o quê, mas com o miocárdio alojado na garganta. É preciso ir caindo em namoro entre todos os sparks que iluminam os acontecimentos célebres, ir descendo ao amor com a mesma solenidade de descer ao oceano, ir atravessando o trajeto de chegar ao outro maravilhadamente como numa trilha, minuciosamente como numa escalada, mensuradamente como numa gruta. É fundamental a delícia entontecedora que bambeia as pernas e nos faz redobrar de delicadeza (nada como um bom enleiozinho para domar um orgulho afoito): paixões que tateiam, que se abeiram do amado com a alma de quem vai dar seu primeiro mortal no trapézio, muito improvavelmente ferem e mais provavelmente (a)colhem; têm a mais fiel noção da beleza na qual estão prestes a imergir e, por isso, se permitem viver tudo com a longa ternura duma véspera.

Ninguém está verdadeiramente apto para atirar-se se não temer a queda; tanto mais pesa o receio, tanto maior o esforço de leveza que se emprega em pertencer ao ar.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Êxtase


Novidade nenhuma eu me declarar eventualmente apaixonada por pinturas com que tenho a alegria artística de esbarrar; ontem foi dia de cair de amores por esse belíssimo Ecstasy produzido, em 1908, pelo húngaro Lajos Gulacsy – cuja obra, caso tenham a delicada curiosidade de perseguir, é farta nesses traços mágicos e místicos como a própria Hungria, a fascinante Hungria. Era, eu sei, uma tela mais adequada para amanhã, nossa data enamorada; mas é fato que esses transbordares não cabem nem devem ficar presos num só dia, e seria bem um desperdício e um contrassenso conhecer uma lindeza chamada Êxtase e reagir estática em vez de extática, focada e não tocada, mais tino que instinto. Arrebata-me, beleza, eu lhe disse – sendo também o que os apaixonados do quadro parecem dizer-se –; a vida é sempre curta demais para a gente não se alumbrar agora.

Foi aliás inevitável dar de olhos no êxtase de Gulacsy e lembrar um alumbramento de Mia Couto, aqueles extraordinários versos que adoro tanto: "Não quero o primeiro beijo:/ basta-me/ o instante antes do beijo.// Quero-me/ corpo ante o abismo,/ terra no rasgão do sismo.// O lábio ardendo/ entre tremor e temor,/ o escurecer da luz/ no desaguar dos corpos:/ o amor/ não tem depois.// Quero o vulcão/ que na terra não toca:/ o beijo antes de ser boca". Isso é tão, TÃO imensamente bonito e tão palpavelmente enamorado que o arrepio de compreensão nos percorre inteiros; o instante antes do beijo, esse vivido com gana e arroubo e hipnose e fissura pelos personagens retratados, – ESSE é o da exata felicidade congelada, a definição mesma do céu do amor, não sendo certamente à toa que nosso casal parece ser coroado de flores-quase-estrelas sem que elas se justifiquem por qualquer denotação. O êxtase mesmo do paradis à deux não é o desenlace, é a espera, o percurso, o perfume, o presságio, é a longa percepção das pulsações síncronas, a doce demorosa análise do que os outros olhos dizem e aguardam; não é o ir, é o desejo de ir; é o vem: o suspenso, o pedido, a promessa. O haver formigamento sem haver pressa.

Vejam, vejam como quase que não há outra ilustração para o poema de Mia Couto; "o lábio ardendo entre tremor e temor" – percebem a ansiedade vermelha no espaço que separa ou une as bocas, feito emanação do fogo interno? –, "o escurecer da luz no desaguar dos corpos" – veem como ele e ela se desaguam mutuamente, se confundem num mar de físicos indistinguíveis, se misturam (ele especialmente) ao ambiente que também os abraça, como quem no tudo de todos os tempos se dissolve, se derrete? Ela se funde a ele, ele se entorna nela e no entorno; são ambos lava escorredoura, meio brasa, meio cinza, meio fluida e brandamente invasiva, meio flutuante e dissipada em cada palmo que a toca. Os centros mesmos dos vulcões não se tocam, e os amantes se beijam com os braços, com os olhos, com a postura e o peito, a contemplação e a entrega, todo um corpo e todo o outro corpo ante o abismo recíproco, muito antes de o beijo virar boca. O beijo, para sê-lo pleno, não é o princípio: o beijo é a constatação.

E o amor – esse – não tem depois, nasceu integralmente sem o cronômetro do jogo. Habita simultâneo o já e o logo.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Melhores aventuras para as salas escuras


Pessoas se apaixonando improvavelmente, e mui melhor: considerando como improvavelmente extraordinário que uns olhos se tenham apaixonado por elas (sim, sim, Bela e Fera são my people).

Pessoas fazendo nazistas de idiotas bem debaixo-lhes das barbas.

Truqueiros e trapaceiros fazendo ricaços de idiotas bem dentro-lhes dos cofres.

Genialidades principiando a assombrar o mundo.

Equipes atingindo algo blasterestupendo.

Fugas de cadeias tenebrosas.

Julgamentos intrincados que acabam achando o rumo certo quando advogados – ou promotores – acachapam os verdadeiros culpados com o arrepio das melhores provas e das mais frissônicas argumentações.

Investigadores inabalavelmente teimosíssimos que sabem que alguém desaparecido está alive e (não necessariamente) well. Marminino, não é que está?

Caçadores de tesouros históricos que vão pulando de pista-com-versinho em pista-com-versinho, de monumento em monumento, de biblioteca em biblioteca, de artefato esdrúxulo em artefato esdrúxulo, até se apossarem lindamente da Mega-Sena buscada.

Mistérios no século XIX, casarões, fantasmas inquietos, segreduchos de família: I'm in.

(Nos outros séculos também.)

Paris. Como não ser feliz?

Charles Dickens. Agatha Christie. Jane Austen. Charlotte Brontë. J.K. Rowling.

Enredos em que só no final descobrimos que não estávamos vendo o que estávamos vendo.

Professores que amaremos pelos séculos dos séculos.

Imersões em mentes assassinas (não consigo evitar a curiosidade, gente – mas sei que não ando só, cola aí um psicostê: a psicóloga frustrada que há em mim saúda o psicólogo frustrado que há em você).

Transtornos dissociativos da personalidade.

Fugitivos que conseguem provar a seus Javerts particulares que não foram eles, caramba, foram seus ex-supostos-melhores-amigos.

Mulheres que conseguem cair fora de relações abusivas e fazer seus stalkers se darem mal com abundância.

"Oh, céus, eles vão nos matar" e suas devidas soluções.

Horrores úmidos, azedoces, fantásticos, com crianças amadurecentes e estranhas criaturas incompreendidas, falados em espanhol.

Romeus e Julietas avassaladores, de preferência não fatais.

Musicais. Pra que mais?