quinta-feira, 13 de junho de 2013

Onde pôr

Numa das cenas de narrativa estonteante que abrem A duquesa de Langeais, Balzac nos faz ouvir a febre musical da mulher-título. A cuja se esconde num convento e, tendo só o órgão da capela para servir de correio com o ex-amante, de repente entorna fogo e paixão no teclado e assusta de prazer a assembleia: “O francês adivinhou que, naquele deserto, naquele rochedo cercado pelo mar, a religiosa se apoderara da música para nela pôr o excesso de amor que a devorava”. É dos beijos mais sidos da literatura, entre os que nunca foram.

Cismei no tema. Onde andamos enfiando esse excesso de amor que a quase todos nos devora (porque a insônia descomunal dos dias e das noites, o incômodo horrível que se disfarça entre força e tédio, a perturbação sem nome que nos sacode do sossego equilátero não é senão um vazamento-surpresa de amor)? Normalmente fechamos a torneirinha amorosa com pudor, para não quebrar de ternura nossas criaturas preferidas. Não podemos, não devemos estalar costelas alheias na pura torrente da vontade. O resultado é que nos sobra uma horrorosa paixão acumulada, um ímpeto de fome e de carnaval que não deixamos esgotar-se nem no sexo nem no abraço, nem no estar com amigos nem no morder a bochecha do filho. Para onde canalizar o mar da libido assassina, a fim de evitar sermos banidos do mundo por troglodice?

Haverá os que digam para a música, para as artes, como a tal balzaquiana. Não discordo, desde que se empunhe direito a faca de corte duplo. A arte só nos desacumula, só nos liberta, só nos desarde de amor quando por nós produzida; quando nos exige o esforço do pensamento ou da catarse a ponto de exaurir-nos de existência. Arte vinda de fora é o contrário – é a atiçadora nervosíssima do amor que já nos afogueira. Quanta lenha no filme que nos semeia diálogos, na história que nos chupa para dentro de relações imprevistas, na música e no poema que nos botam em prontidão de ideia, no quadro que nos reacende a adoração da beleza possível! Se maior nosso contato com a ação do outro, tanto maior a faísca da nossa aflição de resposta. Que aquele amor vulcânico a chatear-nos e transbordar-nos nada mais é do que a sede de criação. A sede extrema de desengravidar do mundo que nos fecundou; a sede de replicar-lhe diariamente uma nova fornada de nós mesmos.

Liberamo-nos da gravidez dessa demasia de amor quando fazemos. Fundamentalmente, fazemos. Quando escrevemos com jorro, quando atravessamos o cego, quando pedalamos a orla, quando dançamos inteiro o salão, quando mastigamos com ênfase, quando ensinamos com som e fúria, quando vivemos pessoalmente a entrevista, quando colhemos sagradamente as flores, quando mutiramos a construção da casa, quando choramos nos dedos o corte da cebola, quando medicamos o outro até adormecê-lo no colo, quando lavamos o carro, quando sovamos o pão. Entramos em parto ao nos repartirmos em mil e uma fogueiras de eus que se combustem de entrega. Entramos em parto ao fazer delivery de cada nossa parte estimulada de afetos. Encegueirada de afetos. 

Entramos em parto quando nos vestimos de trabalho; quando alastramos o incêndio que nos habita antes de sufocarmos na autorredoma de oxigênio excessivo.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

De dentro

Em plena Itália, Clarice (sim, a Lispector) desabafou certa vez um seu destalento: “Na verdade não sei escrever cartas sobre viagens, na verdade nem mesmo sei viajar”.

Sei viajar, mas entendo Clarice. Também, como ela, não sou apegada a narrar de fora, canetando ou digitando aquelas miudezinhas do roteiro – quandos e ondes, estradas e hotéis, episódios e teatros, incidentes e museus – que quase todo leitor de viagens deseja beber, amantíssimo de detalhes. Não tenho a paciência científica de encadear dicas e registros, contar os tintins por tintins de cada hora de cada dia, especialmente tintins equivalentes a metros, anos ou cifrões. Não sou a olhadora objetiva, a correspondente de guerra que se há de demorar na reportagem; não sou a embaixadora de medidas, a enumeradora de lojas, a construidora de causos com muitos poréns e entãos e daís e por conseguintes, firmemente dedicada à vida como ela (parece que) é. O puro da peripécia não me encanta – e fatalmente morreria à fome se só fosse remunerada por altos jornalismos e agatha-christices exatas.

Porque me apaixona o voo absoluto, livre do antes e do depois, é que amo sobretudo contar sem compromisso de conto, historiar sem compromisso de história, sem a tecelagem dolorosa de enredos e o sofrer de suas inverossimilhanças. Não há inverossimilhança quando nos narramos de dentro. Por fora a coisa tem de ser impecavelmente lógica, com atos e consequências, e obediência bonitinha a nossos perfis. Por fora a Morena tem de ter razões poderosíssimas para não revelar à delegada sua condição de traficada humana; por fora a Nina há que nos explicar direitinho por que raios não salvou as fotos no próprio e-mail; por fora não se perdoam (nem se devem perdoar) nenhuns deslizes na trama, nenhuns furos irracionais que desmintam o fato razoável. Por dentro o esquema é outro. Na maciez libertária da crônica, por exemplo, o narrador se escarrapacha e não é intimado a dar satisfações caso resolva escrever balançando na rede – a respeito do balançar na rede. Não se desculpa se fala e desdiz, se afirma e desmente, ou com tanto açúcar se desdiz e se desmente que não causa maiores danos à paz mundial. Inexiste o medo de que uma ridiculice desmorone o prédio, por não haver prédio. Crônica e poema líricos são a literatura sem tijolos; literatura com argamassa de vontade e luz.

Não significa que, por preguiça de construir fatos, eu não os ame. Amo-os porque não suporto a cabecice dum filme ou livro sem enredo; tolero por trinta segundos (olhe lá) qualquer amofinação experimental. Mas também não faço boa digestão da história só fato, da faca só lâmina, da trama inteira de acontecências sem alma nem fôlego. Pior: sem uma quantidade generosa de amores. De (dis)sabores. Não me venham, pois, com não sei quantas léguas sub ou sobremarinas, com expedições ao éter ou ao magma, com maquinarias velozes e furiosas, com guerra poeirenta contra etês ou guerra marítima contra baleias assassinas. Não me venham com a testosterona assexuada dos episódios que explodem em dados, marcas, coordenadas, nomes científicos. Se há intrincamentos políticos, que haja também o desespero do jedi que quer salvar a única amada. Se há cruzares de capa e espada, que haja também alguém chorando na torre sob a revelação do segredo de família. Se há zumbis engolindo como tiranossauros tudo que se move, que haja também dramas humaníssimos de inteligência – mais do que armas, mais do que correrias. Que haja mais amizade que areia, mais beijo que engrenagem, mais trauma íntimo que fratura exposta, mais cotidiano que trincheira, mais conversa que discurso. Ficando assim – na umidade do viajante, não na secura da viagem – facilitada a mastigação da trama: com o bolo de fatos amolecido à base de suor, lágrima, linfa, seiva, saliva. 

Tanto melhor nos invade o texto quanto mais nos lubrifica de humanidade intransferível.

terça-feira, 11 de junho de 2013

A gente se desacostuma

Marina Colasanti, ainda ela, disse famosamente que a gente se acostuma. A gente se acostuma a não ter vista de janela, a não ter paisagem nem notícia verde, a chegar em casa tão soterrado que mal pisca de sono e já está amarrando a gravata no dia seguinte, a cambalear de maldormice em cima do ombro mais vizinho, em cima da parede de metrô menos povoada. A gente se acostuma a pernoitar no mesmo apê de marido e filhos, e só ligeirinhamente – num entressábado, num entredomingo – calhar de lhes ver a nova espinha ou tatuagem. A gente se acostuma; mas se acostuma em tom de sobrevivência, entre um ou outro escape de desespero enquanto o prato roda no micro-ondas, entre um ou dois dias de fúria que logo afogamos num tarja-preta e na programação normal. A gente, lenta e triste e dopadamente, sim, se acostuma. Só que, se não morre, no mínimo desvive. Não se acostuma porque comprou outra natureza: se acostuma porque perdeu na enchente a antiga.

Eu diria que a gente melhor se desacostuma. Tão fácil e espontaneamente tira a cangalha, por um instante mesmo, que pronto: vira habituê do paraíso, como se não houvesse conhecido senão ventura. A gente se desacostuma, com alegria rápida e fluida, do que leva anos para engolir sem água. Férias, por exemplo; meu estado de nascença. É pisar no primeiro minuto de recesso e não sei o que seja tédio aflito, não sei o que seja vida de não viver horas livres, espreguiçadas de verão, limpas da angústia repetitiva. Na falta de férias, fim de semana cumpre largamente a função de me fazer nunca ter sofrido, nunca ter tido rotina que não aquela, de caseirice e lazer inalterável. Voltar ao trabalho é que é então o susto; é o chute estranho no meio duma tão dogmática eternidade – de modo que cada reprincípio de semana desaba como um antiBig Bang. Não é o retorno ao cotidiano como dizem, por simples maioria de dias: é a saída da paz mais orgânica para o mais artificial dos violentamentos, quando a profissão fere nossa cisma de querer respeito. Nada tão esdrúxulo e tão antinatural quanto o professor pisoteado tapetemente, o motorista buzinado até a náusea, o policial atacado à traição, o jornalista sprayzado de pimenta, o gari e o carteiro tornados invisíveis pela pressa das gentes. Nada mais desrotineiro, nada mais incotidiano, nada mais alienígena do que o tapa não merecido, o xingamento que não está no contracheque ou no contrato. Nada mais anormal que a facadinha comum.

Não à toa é tão fácil! que a gente se desacostuma de não ser absurdamente amado, assim que adentra a porta dos pais. A gente se desacostuma – salve, salve o mp3 – de todas as músicas que não adora. A gente se desacostuma de barulho e fumaceira tão logo se perde nas aleias do Jardim Botânico. A gente se desacostuma de burrice e preconceito na primeira palestra de Flip ou Bienal. A gente se desacostuma de educação porca no trânsito ao primeiro carro que nos dá passagem em Gramado, só de se pisar na faixa. A gente se desacostuma do computador lentium só de roçar no mais guepardo dos processadores. A gente se desacostuma de todas as matérias odientas no minuto em que lê o nome na lista do vestibular. A gente se desacostuma de novela ruim no instante em que o personagem da nova trama nos faz (voluntariamente) libertar uma gargalhada. A gente se desacostuma de trauma, de soco, de grito, de cansaço, de sandice, de remédio, de rangido, de barata, de poeira; desacostuma como um pluft, como um raio macio, na velocidade da luz – e para quem diz que não: divã já e já, pra tratar a síndrome de Estocolmo. Divã já, para dizer xô à única coisa que impede o descostume: o pânico de ter de abrir mão duma agonia por outra maior.

Construir felicidade é veludo. Infelicidade é que dá trabalho.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Impotentes

Fico para cuspir o coração quando o Fábio me conta de uma sua aluna de sexto ano, tão analfabeta que se limita – nos bons dias – a copiar algumice do quadro, sem ideia nem esperança de resolver a questão proposta. Ainda por cima cheira mal, a pobre, em seu analfabetismo indigente; mora à margem, descuidada de governo e família, sem quem lhe alimente os olhos vagos, quem lhe desembarace pensamentos e tranças, quem lhe providencie o bocado de limpa dignidade que acompanha os cidadãos inclusos. E como é que chega ao sexto ano analfabeta? pergunta a indignação distraída de uns e outros. Digo como: sendo trambolhada de uma série para a seguinte, entre estatísticas que posam lindas na capa das revistas de pedagogia e varrem os dados remelentos para a cozinha. Sendo ignorada pelos fatos e arrastada na onda de aprovações, para engrossar porcentagens – até congelar em seus limites, repetir cinco ou seis vezes a série impossível e ser enfiada num qualquer “projeto educativo” fazedor de milagres. Eis como. Virando joguete da burocracia nojosa, que passa anos sem condenar nem salvar de vez uma aluna; e, para cúmulo, caindo num lar cruelmente passivo, de onde nossos ais de compaixão não podem resgatá-la tampouco. Fica cuspido fora meu coração, solidário, penalizado, e nem por isso mais apto para erguer um dedo de solução.
 
Como nos fere a incapacidade de trazer luz aos refugiados da guerra invisível!, aos desabrigados do teto impalpável, aos vitimados pela desgraça que não grita no Jornal nacional. Como dói a dor que não alcançamos com o estender do braço, a dor que ri do nosso orgulho de ajudar; como dói a dor alheia que temos a infelicidade de entender, sem que nossa vaidosa importância possa arranjar-lhe remédio. Como dói a dor que anda por aí assim, indiferente à nossa boa vontade, indiferente à culpa que martelamos no travesseiro. Dói com doer duplo: o da piedade em si e o do debater-nos em nossas limitações. O da empatia em carne viva e o da humilhação de não sermos tão indispensáveis. O doer de amarmos e o doer de que todas as gerações, pelos séculos dos séculos, não nos amem em retorno. Como heróis da atitude. Como anjos da iniciativa. Como deuses da providência.
 
Dói-me com terror, por exemplo, a decepção alheia; daria uma boa metade do fígado para nunquinha enxergar o desapontamento nascendo, profundo, em olhos nenhuns. Dói-me como assassinato a cena do pai, do filho, do marido que não chegou a tempo da despedida última, e permanece num sofrer aturdido e suspenso, sem fecho, sem direção. Dói-me bofetadamente o transplante que perdeu validade por causa do atraso de aviões. Dói-me com certo exagero assistir às memórias do pós-ponto final das relações. Dói-me com dor impressionante a mãe que, no meio de longo esforço e sozinhez, não encontra o nome do filho na lista dos aprovados ou dos sobreviventes. Dói-me de punhal a matéria que mostra velhinhos de asilo conformados à solidão que não acende a TV na novela, não passa lenço úmido nem troca o lençol. Dói-me de navalha aquele olhar, qualquer olhar de gente que foi embora de si mesma e deixou o corpo, abandonou o corpo num desarvoramento melancólico, sem mapa nem data. O olhar da alma que debandou sem cumprir aviso prévio, da ânima que voou sem voar. Da vida indiferente a viver.
 
Dói-me toda acumulada culpa do não-martírio; todo despoder de desejar que a dor abismante do mundo nos carregue em compensação.


domingo, 9 de junho de 2013

O passado de presente

Toca-me o falado por Marina Colasanti numa sua crônica, “Cada vida é um romance”: “Uma pintora me conta que o passado começou a refluir na sua alma. E ela decidiu dá-lo de presente aos filhos. Está escrevendo, em vez de pintar. Não apenas o passado dela, mas o da família, fatos que presenciou, histórias que a mãe lhe contou, que os avós e os tios lhe contavam quando ainda menina. E porque sabem que está escrevendo, os parentes lhe contam mais. E quanto mais escreve, mais o passado cresce, mais se torna o documento de uma época, mais ela tem a sensação de que pode vir a interessar a alguém além dos filhos”.
 
Dar o passado de presente: eis uma beleza que nunca me ocorreu, eu que de presentes tanto gosto. Já croniquei o quanto me encantam o ato da escolha carinhosa e o do embalamento colorido, se bem que sejam processos coroadinhos de angústia: é do tamanho, é da cor certa? será do agrado? será repassado? será repetido? Só nunca me dei conta, suficientemente, da necessidade tão linda de embrulhar o que talvez mais importa, além de nosso amor e tempo mesmo; da necessidade de empacotar, a certa altura, o que fomos e vivemos, o mais fielmente possível à narrativa original. A cada momento nos relatamos pela boca, pelo Face, por orgulho – por ancestral orgulho de nos ver enxergados –, e nem sempre sem a photoshopada básica no fim de semana real, na ideia crua de terra batida. Nos contamos muito ao sabor do vento, muito no lá-e-cá das novas opiniões se erodindo e se brigando, muito no meio do som e da fúria. Nos contamos de fora, no ímpeto, com enfeite; pouco paramos para nos narrar de dentro. Pouco paramos para nos entregar como álbum de fotos verbal a quem interessar possa.
 
É raro confessarmos com nudez o quanto, de nosso pequenino ponto de vista, foi dolorosíssimo o voltar à escola após o corte de cabelo; o quanto de ciúme havia naquele riso pelo tropeço do primo; o quanto de ressentimento, naquela proibição de correr no recreio. É raro dizermos mais que – “tudo bem” – quando Mãe nos pergunta sobre o dia, é raro vencermos a preguiça emocional de expor a confusa ansiedade do trabalho de grupo, de admitir a tentativa de ingresso no grupo da garota bonita (ou do guapo mancebo), só para ter a discreta alegria de roçar-lhe os pelitos do braço não mais que de vez em quando. É tão preciosamente raro deixarmos cair o mistério enfim, ao menos no fim; ao menos então revelarmos que legamos diários e cartas, recortes e agendas, papelões e envelopes cheinhos das velhas respostas, cheinhos de nossa velha pessoa. Assumirmos então que, na falta de anterior competência ou coragem, nos colocamos em testamento. Nos estampamos ali como realmente éramos, com os pensamentos insuspeitos, com as simpatias inconfessas, com as esquisitas manias dos intervalos de convivência, com os falares e cantares sozinhos, com as dores que não comentávamos para não nos apontarem hipocondria, com as cismas adolescentes de nos dissecar em listas, com os gaps de indefinição de existência, com os imensos remorsos de atos minúsculos, com os desesperos minuciosos do trabalho, com as impaciências sociais, com os instantes absolutamente apolíticos, com os preconceitos que tentávamos extirpar a canhão, com os sofreres miúdos que escondemos dos pais para não ouvirmos deles sobre a fome na Somália, com os sorrisos que distribuímos amarelamente para só pedirmos solidão. Tão desejável e impossível: o documento definitivo que nos permita (dar a) conhecer afinal, jogar luz na biografia autêntica que tanto morre sem escrita e leitura. O raio-X. O portal. O Graal. A paparazzice última. O gabarito comentado. O roteiro do enigma, cena a cena.
 
O passaporte para a insustentável leveza do ter sido.


sábado, 8 de junho de 2013

Cerimônia

O cara que perdeu há um tempo o filho de treze anos diz, na entrevista, que ainda tem alguma cerimônia nas horas de se mostrar feliz. Megacompreensível: é a culpa entranhada das grandes dores. A tonelada que somos obrigados a carregar socialmente, feito sinetinha de leproso, no caso de nos ter assinalado a tragédia. Pega meio malzão – ainda que o luto fechado, agendado e escuríssimo haja permanecido nos idos do século XIX – sorrir assim limpamente, em praça pública, quando todos continuam forçados a nos olhar com piedade. Quebra a estrutura. Quem viu/vê a morte de frente ou de banda, quem foi derrotado na batalha pelo filho ou está na iminência de ser abatido pelo câncer, não tem condições de ser flagrado de repente pirando ao som de “Mamma mia!”. Quem desceu ou descerá ao que combinamos chamar carinhosamente de fundo do poço não pode me vir com uma dessa, de circular por aí happy-hourizando com os amigos e dando pinta de feliz. Onde é que nós estamos. Por mais que nosso pós-modernismo iconoclaste as instituições – ou exatinhamente porque nosso pós-modernismo iconoclaste as instituições –, entramos em desespero de causa quando se ameaça a última fronteira de crença e solidez, a sagrada tristeza que vem com a indesejada das gentes. Temos horror à gafe, pisamos em ovos de avestruz perto de pessoa que muito sofreu com a Cuja, e tudo que pedimos em troca é que a dita pessoa se comporte condignamente em relação a nosso ar compungido, de preferência com sorriso amarelo e lágrima indisfarçada durante a conversa. Só faltava mesmo essa de ela nos dizer, animadíssima, que está superplanejando uma incursão pela Broadway no próximo ano. A primeira investida é Mamma mia!.

Não só a morte continua assim, entabuzada. Momentos de convulsão social como este que nos fala geram patrulha da felicidade mais (digamos) espontânea. Efemérides são bicho ciumento. Ai de quem atravessar esses dias com outro contentamento n’alma que não o de ver o país finalmente revolucionado. Ai de quem for flechado pelo amor burguês, de quem se vir inebriado pela leitura – ou feitura – do desejado romance, de quem se achar arrebatado dos pés pelo novo filme preferido, pelo emprego recém-tomado, pelo filho recém-retomado. Ai de quem roçar a timeline do Face com aquilo que lhe abarrota os olhos: a viagem tão longamente paga, o livro tão dificilmente lançado, as alcançadas bodas de prata, a bem-sucedida casa própria. Acusarão o desavisado feliz de alienação, no mínimo; de desrespeito, talvez; de falta de timing, certamente. Como se houvera timing histórico capaz de censurar as pequeno-enormes revoluções nossas, as discretas e de estufa sob Olhar Coletivo, mas comuns à ternura dos revolucionários mesmos. Como se o manifesto de um sucesso íntimo sujasse a necessidade de gritas maiores, quando, em verdade, é tudo la même chose.

São parecidos os quereres e conseguires, apenas momentos diversos de igual pulsão; e é um crime tolher alegrias honestas – não acintosas nem debochadas – como se enfraquecedoras da politização geral, tanto quanto seria crime tolher a politização honesta para não nublar o céu da alegria geral. Como é chato e démodé o mundo de marcadas antíteses, de contrastes fixos e comportados, ensaiados e inflexíveis. Como é entediante o assunto que se proclama único, seja qual seja – que nem vida nem país se fazem de homens de uma nota só, enquanto desdiálogos perigosos, sim, se fazem de homens de uma nota só. Alegria numa hora dessas? sim, numa hora dessas: a sempre melhor e mais própria. A alegria não basbaque é, tão ou mais que a tristeza, sagrada. A alegria não é o contra, não é o anti, não é o pavio, não é o inimigo, não é a Globo. A alegria é a ânsia. A alegria é a meta. A alegria é a face pronta da busca iniciada, o retrato final da prontidão. A alegria é o motor e o motivo. O amor e o cimento. A alegria é o carimbo do trajeto. A alegria é a prova. 

A alegria é à prova.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Gente feliz

Li no Face, algumas vezes, uma bem-humorada observância: “desejo que todos sejam felizes – gente feliz não enche o saco”. Fatão. Gente feliz mesmo (não daquela felicidade fajutamente de plástico, sempre ligada ao insucesso de outrem e, portanto, desvinculada da serenice de consciência que acompanha a Felicidade com efezão) se diverte e garante dentro da própria vida, sem por distração ou raiva amofinar a dos outros. Gente feli-li-liz – não apenas contente – fica até sem graça de causar qualquer perturbação, como se levasse vergonha de tanta felicidade estar desligada do mínimo de merecimento. Gente contentinha mora num estado de alegria vago e transitório, por isso mesmo invejoso de outras alegrias que supõe maiores ou mais firmes; gente feliz não ousa nem concebe invejas, bem ao contrário: tem nojo de manchar-se de ingratidão e, antes, convidaria todos os infelizes a lanchar no seu nirvana. Gente feliz automaticamente se sacraliza.

Gente feliz passou da temporada de provas; está com o coração assentado no sossego de sua própria casinha branca, dívidas morais quitadas, sem inadimplência emocional. Não há mal-resolvices de juventude ou infância entulhando e desperfumando o espaço. Não há velhas ansiedades corrompendo as relações de adrenalina inútil. Felicidade é a faxina grande de cada semestre, aquela de quando se cria bravura para encarar os cantinhos que viram tabus de bagunça e mofo. Felicidade tira a poeira das esquinas, evita o trauma alérgico das raivas não espanadas; é limpa, ensolarada, frontal, sem esqueletos, sem caixa-preta. Gente feliz já matou suas bruxas más e se tornou o castelo do final do desenho, novamente claro e florido, isento dos espinheiros que tornavam proibitiva a aproximação. Gente feliz não tem – ou não tem mais – os pensamentos de desperdão que eram sua sala intocável, medonha. Em consequência, não guarda mais necessidade de permanente defesa pela fofoca, cismância, impertinência desviadoras de foco. Gente que carrega felicidade legítima está indiferente ao ataque. Blindada. Excessivamente acostumada à continuidade de seu paraíso para se dar ao trabalho de procurar destruição no olho do outro. 

Gente já com derramado vício de venturança não perde mania de a colecionar.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

O espelho

Me perguntaram dia desses por que eu escrevia. Adianta nada dizer que gosto – ora, gosto; vai-se muito bem ao cinema porque se gosta, assiste-se a musicais porque se gosta. Porque se gosta, abrem-se gibis e demais revistices; joga-se golfe, passeia-se no Parque Lage, compram-se bijus, devoram-se quindins. Gostar é unicamente o prazer criança, o id livre das cobranças de dar, mergulhado na água limpidazinha do receber. Gozo puro do momento sem contrato, sem aplicação íntima, sem sofrida retribuição. Não se escreve porque se gosta; escreve-se, inclusive, apesar dos pequeninos desgostos colhidos no texto – que ele, como filho parido, exige renúncias vitais, sofrimentos de tempo, maus sonos, dramas de vocabulário e vírgula. No texto já criado e adulto, há um passado de choro e ranger de dentes.
 
Não, não se escreve porque se gosta. Também não se escreve (fora de remuneração) porque se precisa, considerando o que existe de emergencial e faminto no precisar. Tanto que em viagem, em meio à realidade alterada da viagem, não bate fissura alguma pelos dias de afastamento do computador. A vida vira outra e acabou-se: sem sedes, sem saudades, com diferentes plenitudes. Escrever é precisão, como pão, legume, amor, dinheiro? Não é precisão. Nem escrever, nem musicar, nem pintar, nem bordar, nem tecer, nem esculpir, quando não rola pagamento necessariamente envolvido – não são precisões. Preciso é tudo que nos sustenta como ar: sem férias. Que mata pela ausência. Ininterrupto.
 
Escreve-se, sim (pelo menos eu escrevo), porque não há alternativa. Porque não se quer ou não se deve ou não se consegue resistir ao refluxo, ao vomitório de vida ou de morte que vez em quando nos assalta. Porque nos depura ou nos compensa, nos alivia da incapacidade de dar a cara a gás no protesto das ruas, nos absolve parcialmente da sofrência ou contentamento extremos, nos liberta de ter opinião sozinhos, nos salva do incômodo demasiadamente engolido, do sapo longo tempo aguentado, da beleza de insuportável excesso. Porque escrever nos desesmaga, nos distrai de uma criação muito interna, muito eterna; porque nos organiza às avessas, nos reconstrói de-foramente, nos verte em espelho traduzível. Nos permite cumprimentar a gente mesma transformada em fotografia de ideia. A alma adaptada em tinta verbal.
 
Escrever nos faz toleráveis para dentro e existentes em público.


quarta-feira, 5 de junho de 2013

Inimigos do rei

Acho uma graça, sabe? quando alguém ergue o cetro e declara que você é um traidor da pátria. Provavelmente por ter sido você o único cidadão que escarafunchou a sem-vergonheira oficial da União e tacou no ventilador. Você foi o único que se lembrou de avisar aos conterrâneos que eles estão tendo mails e ligações hackeados pelo governo – digamos hipoteticamente. Você, por consequência ultralógica, é o mais aguerrido e safado traidor da pátria. Afinal, feriu o contrato de confidencialidade. Desonrou os princípios do seu cargo (digamos hipoteticamente que você batia ponto na CIA). Arriscou a segurança da nação ao revelar estratégias de supervisão do governo. Que feio, que feio, que bobo: aiaiai.

Pois acho uma graça horrível ao constatar o quanto as palavras-apenas podem ser grudadas no dorso de qualquer sujeito que comete o despautério de ser mais pelo justo que pelo estabelecido, mais da ordem que do ordenado. Acho uma graça escabrosa ao ver que ainda não caiu de modinha condenar a criatura que questionou a divindade do faraó, que cuspiu no faraó para dar uma alertada básica nos escravos suentos. Acho uma graça mórbida ao considerar que ainda e sempre servimos a César; somos crucificados – agora em cruz verbal – se nos rotulam inimigos de César; somos fogueirados – agora em fogueira internauta – se fazemos fora do penico da Inquisição; somos marcados de letra escarlate se nos apontam adúlteros! adúlteros! da safadeza do reino. Acho uma graça azeda ao admitir que países ainda são presidentes. Povos ainda são seus governos. Nações ainda se acomodam pintinhamente debaixo de asas absoluto-populistas. Gente de bem ainda é somente assim considerada se não aborrece os planos de suas agências de inteligência, de sua Grande Mãe. L’état, desgraçadamente, ainda c’est moi. Le roi.

Recuso. Recuso a honraria de fiel da pátria se me querem a fidelidade falsa, prostituída, de bater palminha para a lindeza dos estádios e aparecer de blusa da seleção num bar do RJ-TV. Recuso-me a ser americana leal se I’m supposed to descobrir uma velhacaria interplanetária e fechar a boca, que senão o big boss fica mal na fita. Recuso-me a ganhar qualquer chave de cidade se para isso tiver de chamá-la linda, Maravilhosa, absoluta, a despeito do esgoto das vontades correndo a céu aberto, da podridão das obras sepultando muitas chances de libertação verdadeira, da lepra de saúde e educação enganando trouxas que se julgam tratados e felizes com a pomadinha paliativa. Ser patriota é estender bandeira na varanda enquanto o coração se hemorrage de nojo por uns e outros que votam o próprio aumento salarial? Ser patriota é defender que a revolta nas ruas não se deve estender à classe média capaz de pegar um táxi? Ser patriota é colocar pedra fria, monumento mudo, Bastilhas coroadas pelo hábito acima da real necessidade de grito, acima da urgência viva, quente, pela primeira vez (em tempos moderníssimos) lindamente sangrante? Se é – recuso. Recuso a chave, rasgo o título, piso o rótulo. Não quero a honra infeliz de cidadã exemplar, se o cidadão exemplar da cartilha deve se manter chapando de crack, balançando caxirola no estádio, fazendo campanha ensolarada de creche da família – qualquer coisa cúmplice e sossegada, que nos distraia caladitos no sofá enquanto papai, na sala, bajula a visita.

Abaixo a lealdade de filme e fórmula. Avante a lealdade suprema que berra, que denuncia, que incomoda, que ralha, que taca no ventilador, que não se dobra a conveniências de cargo mas a ditames de ética, que não vê a conjuntura mas o eterno, que não obedece a opiniões de Globo mas a valores globais. Abaixo as fronteiras inventadas, abaixo o muxoxo alheio que nos reprova por reprovar o lodo onde não escolhemos nascer, mas que ainda conseguimos escolher mudar. Avante a fidelidade a todos, não a quem já tem gordinho o cofre, não a quem está com o dedo no botão da bomba atômica, não a quem enverga a faixa presidencial. Mesmo porque quem enverga a faixa presidencial, não sendo de modo algum patrão, é o primeiro e mais humilde servidor – que contratamos a preço altíssimo de esperança para colocar o joelho no chão e ser o faxineiro-mor, maior responsável de todos por abrir a caixa de gordura e arrancar-lhe o ninho de barata pelas tripas. E, se ali no meio é ele que vira Gregor Samsa ou que cultiva baratas de estimação, temos nóóóóóós o dever patrioticíssimo de botar pra fora, mostrar a cara e arranjar outro que realmente saiba quem é que manda nessa joça.

Aiaiai.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Alma na janela

Minha diretora é também fã de escrita, mas admite não estar praticando quanto gostaria porque tem necessidade, para essas ocasiões, de botar a alma na janela. Expressão sua, que sorvi encantadamente e sem pergunta. Botar a alma na janela; como não entender? se é trecho de frescor autoexplicativo, se é uma ideia que venta na gente, grávida de poesice e urgência. Nada, nada de necessariamente belo no mundo é nascido de alma que não tenha se postado a namorar na janela, mão no queixo, afeto pensativo no olho, atenção triste ou venturosa ao sol e às demais estrelarias. Precisa nem de abertura no recinto: pode-se, deve-se botar a alma na janela enquanto o pulmão aspira cafofos mofadíssimos, enquanto se trabalha no fundão da loja centenária de ferragens, enquanto se dá plantão como recepcionista de consultório que sabe só pelo paciente se andou chovendo nas 18 horas últimas. Deve-se botar a alma na janela principalmente em instâncias mais abafadas; com especial presteza nos momentos mais fechados à chave. Deve-se aí mesmo com mais pressa, mais ênfase, até mais saudável desespero botar a alma para fazer fotossíntese, antes que morra de bolor irremediável. Mais janela para quem mais estiver com anemia de janela.

E como é que se pendura alma em janela? Soprando nela qualquer alegria – ou dor escolhidamente delicada – que lhe espane a camada de hábito mais ou menos grossa. Alma nenhuma inventa bulhufas soterrada de hábito. Há que dar um susto na alma, revolver-lhe alguma casca, abrir duto de ventilação. Coisa batata para isso é livro, de preferência não o mesmozito de sempre: livro de outras mãos, com outras falas e outros cheiros, que de repente ponha ares inesperados no pensamento engordurado de limo. Esbarrar em outras cabeças é, aliás, remédio certo. Entrevista com que se tope na Globonews, matéria de revista que inaugure opinião inesperada, poesia de cair o queixo pintada no muro, comentário surpreendentemente inflado de coragem no jornal – são algos que lustram, que desembotam, que denunciam mundo vivo penetrando pela fresta. Se o mundo penetra com o que tem de melhor, também fecunda; pessoa fecundada de possibilidades tende a ser aquela que não negará carona, que arriscará paquera, que mandará o manuscrito, que trará criatividades para o manifesto, que se limitará à mala pequena, que organizará o grupo voluntário. Pessoa com alma janeleira se deixa bafejar de pólen, se permite fragilizar por mudanças, se abre à humildade das desculpas que brotam de recém-opiniões. Pessoa de coração janeleiro, ainda que sofra, não fica manzanzando no quarto até atrofiar de câimbra: encosta-se em silêncio à beira do mundo nem que seja pra ver a banda passar, tocando coisas de amor. Nunca apodrece na justificativa da pena de si mesma. Nunca resseca. Nunca se esgota.

Botar a alma na janela é morar em estado de véspera. Gostar de se amanhecer – mesmo doendo.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

O bicho

Mas o pessoal de Juazeiro do Norte está certíssimo, gente. Vereador ganhando 10 mil e blá para duas votaçõezinhas na semana e professor esmolando 800 e bocadito para dar um rumo nas cabeças do Brasil – atividade de todos os dias e sempre. Tem mais é que diminuir salário de professor mesmo. Imagina! deixar professor se criar. Deixar comer bem, para todos aqueles nutrientes tão horrivelmente essenciais piorarem a condição pensante do professor. Deixar comprar livro – vade retro: livro! –, para todas aquelas letrinhas tão encadeadas agravarem a mania de ideia do professor. Deixar ter grana pra filho, para mais tarde a gente aturar aí uns eleitorezinhos malcriados atinando com as coisas, herdando opinião de professor. Considera então se professor pilha tempo livre, se consegue abrir mão de uma das cinco escolas e garra o costume de frequentar cinema, beber teatro, dar rolé em museu: é alimentar no quintal a Hidra de Lerna. Se o sujeito arranja período maior (arrepia a medula) para aprofundar conteúdo! se consulta! se estuda!... Ave: quero nem cogitar um desacerto desses. Professor de tititi por aí, muito fagueiramente se desenvolvendo para depois encher cabeça pobre de história. Só faltava essa.

Filho, professor é na rédea curta e salário proporcional ao cabresto. Se der trela, se vier com palhaçada de dar valor presse povo, a alunada percebe e é bem capaz de prestar atenção à aula só de sacanagem. E aí já viu, porque professor tem cisma tenebrosa de ensinar a fazer conta. Agora você conceba um país entregue a 200 milhões de pessoas fazendo conta. E o que petrifica é que é gente de ler entrelinha – t’esconjuro, canhoto! aí danou-se. Professor é bicho tão arrenegado que insiste em industriar a moçada para querer faculdade, podendo essa turminha estar muito sossegada em sua subsistência honesta de 17 bolsas-família. Que é para isso que elas têm útero, ora pitombas. E olha que até do raio das drogas professor fala mal. Prega o apocalipse antizumbi – durma-se com barulho desses! Diacho de raça.

Taí por que a coronelada das antigas botava escravo de uma língua junto com escravo de outra: não haver perrengue. Vê se professor pode se entender com professor. Ia tudo pras cucuias. Se um sozinhamente é cabra matreiro, em bando era o caos. Menos mal que a disputazinha de décimos quartos salários distraia a corja; negócio de amizadice entre professor não presta pra ninguém. Professor bom é professor isolado em seu sem-vergonhismo crítico até o chilique passar. Professor é elefante branco que se educa desde pirralho para ficar amarrado no pauzinho. Professor é o Tiradentes perfeito para enforcamento imediato e midiático. Professor é epidemia pensando que é gente. Professor tem de ser aos poucos substituído pelo Google. Antes que seja visto. Antes que seja tarde. Professor, como diria Drummond, é dangerosíssimo.

Aliás: que Drummond o quê.

domingo, 2 de junho de 2013

Fica

Um Skank antiguinho soando na rua, sempre a propósito: “Ficou pra trás também o que nos juntou”. Opa, o coração rebolou-me. Rebelou-se. Como é que o que junta dois transeuntes deste mundo imensão – dois específicos num universo de aleatórios, dois sins num coletivo de nãos – apenas fica para trás, apenas se dissolve na negativa, apenas morre em vala indigente? Como é que o que existiu tanto, o que certa vez preencheu uma dupla de criaturas, o que foi raio estrela luar iaiá ioiô na vida de dois CPFs, de repente inexiste feito mágica retroativa? Nah. Descreio por princípio em paraíso evaporável. Não acredito em bem que tenha deixado de haver por desistência nossa.

Não acredito que a vontade brutal de dançar noites a fio, aquela vontade descoberta na primeira festa do primeiro encontro, aquela vontade comum de dançar e dançar e dançar que uniu duas rotinas desacompanhadas – não acredito que essa vontade furiosa tenha erguido uma relação e, meia década depois, se desfeito na atmosfera. Não acredito que a admiração violenta ao jeito de o outro segurar nenê, plantar jasmim, fazer trança, distrair cachorro, distrair sobrinho, tenha grudado duas realidades para depois ser arrancada do calendário. Não acredito que a cor de mel intransferível do olho dele, a quebrada de corpo irreprodutível da ginga dela, a doçura estranha dele cantando Chico, a força iluminada dela defendendo alheios, tenha tão palpavelmente sido escutada e vista, sorvida e presenciada, para depois ser pó e ao pó voltar. Não acredito no que era um tudo enorme e desceu pela pia como se não. Não acredito no que não era vidro e se quebrou.

Acredito que fica. Que se pode não querer, que se pode ter fantasia de reescrever passados e verdades – mas, bem ou malgrado nosso, fica. De tudo fica não um pouco, como diria Drummond; fica o tudo inteiro, ainda que enjeitado por nossa escolha ressentida. Fica, se não fingida (porque aqui não falo de amores farsantes), a ternura do perfume original, a comoção do diálogo xis mentalmente repetido, a lindeza da tarde xis mentalmente reencenada. Fica, marcada a fogo, a impressão inaugural; fica o respeito amoroso ao caráter que já se tomou por referência; fica, mesmo entre decepção, a memória indelével do primeiro link, e fica guardado o primeiro arrepio nalguma funda caixinha. Não fica para trás a parte que fomos, arquivada à revelia. Não fica para trás o tijolo da base, não fica para trás o componente do motor, não fica para trás a pedra angular que inevitavelmente nos pariu no formato de hoje. O que doeu com alegria, o que assinalou com brasa, o que nos fez cicatriz de flechada, o que nos subiu a pressão, o que nos definiu como desejantes, o que nos revelou quem seriam os desejados, o que nos desbastou e limou toda possível aresta: não fica para trás de nós, pois que é cartão de visita de nós. É-nos. 

O que nos ensina nos representa.

sábado, 1 de junho de 2013

Mundos diferentes

Pronto: mal começaram as novelas – sete e nove – e já tem mãe de protagonista rica passando sabão na herdeira por causa de escolha amorosa. “Ele não é para você, minha filha; é um pé-rapado, é um pouca-roupa, é um bicho-grilo, é um usador de havaianas, é um ganhador de salário mínimo, é um interesseiro que só está de olho no seu cofrinho, não é frequentador das mesmas salas e bailes e terminais aéreos e Daslus.” Engole em seco a matriarca devotadíssima, afiando o argumento fatal, mexicanamente atirado: “Vocês são de mundos diferentes!”.

É velha a história, em todas as acepções. Ser “de mundos diferentes”, no reino encantado de novelas de fada e semelhantes fabulices, significa que uma desfila Gucci e o outro salta todo dia na Central; um não estranha a conta de 846 reais no restaurante e a outra sustenta cinco filhos com a metade – por dois meses. Realidades extremas, concordo. Alta improbabilidade de uns tais opostos conseguirem (após o gozo que os reduz ao simplesmente humano) ajustar os assuntos na mesma frequência. Alta improbabilidade, não impossibilidade decidida: vai que calha, como um raio, de duas biografias tão distantemente corridas terem passado no caminho pelo mesmo ponto nevrálgico – terem um dia atropelado a mesma música, o mesmo cheiro, o mesmo amor de cinema, a mesma encrenca de família. Vai que acontece de um dos corações ecoar com a prece antiga do outro, responder secretamente ao sonar invisível; encaixar-lhe no ritmo mais do que no conteúdo; corresponder-lhe à essência mais que à minúcia. Assim: porque sim. Vai que. Não acredito firmemente em cinderelices, nem duvido por inteiro; considero que harmonias de amor impensável se criam misteriosas, e que las hay, las hay.  

Mas o que hay também, e que mães de protagonista rica esquecem necessariamente, é a chance não muito remota do contrário: os dois elementos de um casal possível foram criados nos bancos da mesma praça, fizeram aula no mesmo cursito, receberam bronca da mesma professora de piano, marcaram na praia com a mesma tchurma, pegaram pra Dubai a mesma primeira classe – mas são de mundos galacticamente diferentes. Uma principiou a crer que o universo é seu mordomo, o outro agarrou nojo às colunas sociais e se alistou missionário na África. Um sonha ser paizão desde a segunda série primária, a outra vomita só de lembrar que existem criaturas com menos de 16 anos. Uma é dark gótica e cultua indícios de morte, o outro é apolíneo e passa o dia irritantemente solar. Um é primata consumado e mal sabe grunhir duas frases, a outra quer que o apocalipse chegue em forma de biblioteca. Que tem que hajam compartilhado tios, escolas, sítios e colos de babá? se são, estes sim, de dimensões irreconciliáveis – divorciadas não por incidente financeiro, mas por abismo de gênio, caráter, psiquê, sistema de saúde moral, crença de futuro. Eis a sólida das diferenças: quando deixa o atrito contornável e vira guerra entre espécies.

Para o outro não ser polo intangível, há que haver a mínima corda de sintonia – a mínima –, aquele terraço mental aonde os dois sobem simultâneos, aquele canal afetivo de que ambos têm exclusiva assinatura, aquela senha compartilhada de wi-fi repentino. Pra quem gritou “sexo!”: não mesmo; não suficientemente. Há que haver, muito por dentro, a semelhança indizível, de tudo desculpante, clássica, fundamental, eterna. A semelhança xis onde as almas se beijam de beijo inquestionável, onde se tocam no nervo cuja supremacia compartilham, onde fazem amor no cimento da palavra, erguendo, construindo. A semelhança. Aquela que não obedece a alheias nem universais teorias, nem a impressões de revista, nem a capítulos de Freud. Aquela que a cada dupla se apresenta numa felicidade de prêmio. De susto. 

O muito equilibrado ponto em que existe mais facilidade que esforço de perdão.

domingo, 31 de março de 2013

Por desfolhar-me

Em seu “4º. motivo da rosa” (todos os motivos da rosa são leves e bailarinos que só), Cecília epiloga lindamente com um “por desfolhar-me é que não tenho fim”. É como termina um poemeto de oito versos e duzentas léguas de extensão moral; um poemeto com cara de libélula e calibre de bate-estaca, que convida suavemente ao desapego de si mesmo.   

Porque a gente anda por aí com uma autoeconomia insana, com passo de maciez calculada e quinze toneladas de medo neurótico de entrega. A gente anda por aí aparecendo com o corpo, visitando com as pernas, trabalhando com os braços, paquerando com os olhos, consolando com os ditos, mas sonegando alma que é uma sem-vergonhice. A gente anda por aí sem escrever cartão de aniversário, pra fazer estoque de bons dizeres a serem empregados em mais gordas ocasiões. Anda por aí sem ter minuto nem tolerância de ouvir a eternésima repetição da história dos avós, pra não cansar o sorriso a ser gasto no coquetel da empresa. Anda por aí sem guardar um teco de simpatia ao caixa do mercado, pra não esvaziar o tanque de gentilezas com quem não pode garantir encaixe no médico nem desconto de IPI. A gente anda por aí fazendo o minusculamente necessário, pagando a cota mínima para assegurar a não expulsão da vida social, sem amor nem passarice nos movimentos. Sem luz nem propósito nas vísceras. Não vivendo especificamente: levando.

A gente escoa pelos dias com uma avareza de brutos, poupando o ingresso do museu para ter gorjeta pra manicure, evitando o excelente filme triiiiiste para não chegar sem rímel à reunião, desviando do carinho aos cães para não recolher micróbios, escapando ao abraço para não se onerar de amigos, jogando fora o beijo no 11 de junho para não fazer contrato de presente no 12, fugindo ao livro de agruras ficcionais para não sofrer mais do que pela tese de doutorado. A gente não quer se derramar um milímetro além, que assim diminui o ridículo pós-traição; não quer levar amanteigados pra velhinha que divide o quarto com vovó na clínica, que assim já corta o afeto destinado ao breve; não quer aninhar o pardal que está quietito de dores no jardim, que assim a filha não morre de paixão quando a vidinha se romper de todo. A gente não quer risco de ferida, não quer chance de arranhão, perigo de furar a crosta protetora, probabilidade de detonar nossa camada de ozônio. Temos horror a que vaze uma existência inteira de energia vital pelo mais ínfimo buraquinho no dique.

E no entanto é no gastar-se, é no distribuir-se que essa gasolina se pereniza. Outra é a lógica, que não a do cofre; faz-se preciso esgotar-se para render, numa poupança às avessas. Por nos desfolharmos em ajuda a mais constante, em amanteigados o mais presentes, em memória preenchida pelo aniversário do filho da secretária, em agenda tomada pela brincadeira voluntária na ala de câncer infantil, em caixinhas de papelão que ninam pardais feridos, em choros de ternura que enterram pardais desistentes, em paciências infinitas que dão help na montagem dos bem-casados da sobrinha, em flores gratuitas, em cartões de boas-sortes, em atenções de lavanda no travesseiro e massagem nas têmporas, em torcida solidária pelo time, em ombro consolante pelo time – por nos desfolharmos em pedaços, em pequenezas representantes de nós, em polens de boa vontade, é que nos plantamos em lugares múltiplos; fazemo-nos franquias, nos reproduzimos, nos semeamos. Só excedemos nossa linha particular de tempo quando voamos do pedestal, evaporamos do açude e nos caímos em chuva.

Perdura quem perde a dureza de existir sem ser interrompido.

sábado, 30 de março de 2013

A maçã no escuro

Sei lá se é sinal desses tempos em que ninguém guarda mais rigor e silêncio ou se sempre foi assim, e eu já não notava de tapada. Mas, vendo minhas alunas adolescentinhas, comecei a cismar que meninas de 13 anos não amam mais como outrora. E sustente-se que não falo de ser peguete, ser fiquete, ser qualquer coisete com urgência e sem apego; falo de amor mesmo, amorice sonhada e exclusiva, que pode mudar de feição mas está sempre lá, recolhendo suspiros de garota antes de o último abajur da casa apagar a luz. Pois até esse amor julieto, com suas qualidades tão propriamente ditas, anda mudando de cara ou de voz. Antes, na classe, era a paixão obrigatória dos meninos que se gritava e se difundia, como que forçada a empavoar-se para passar comprovante de testosterona: o João Pedro é homenzito oficial, está gostando da Gisela e a escola inteirinha sabe – da professora de Geografia ao Chuí. O gostar feminino era, usualmente, mais restrito a brincadeiras de “verdade ou consequência” feitas em fins (inícios, meios) de trabalho de grupo na casa da Carla ou da Luciana; mesmo ao explodir era sutil, dito à socapa ou proclamado não oralmente nos cadernos de pergunta que as gurias passavam uma à outra, e que eram primórdios de Facebook. Até para cair em boca de Matilde o gostar das meninas se fazia elegante, demoroso, valorizado como informação que se arranca com propina, disfarçado entre risitos e outros tudos-nadas que selam cumplicidades de décadas.

O mais delicado: tantas vezes os amorinhos das pequenas simplesmente não vinham à tona. Eram mastigados fruta-proibidamente na solidão do recreio, espiantes, insuspeitos, ou talvez suspeitos mas nunca confirmados, pois que algumas de nós tratavam aquele jovem querer com a sacralidade necessária. Para confidentes havia os diários com chavinha e essência de boneca, havia o cantarolamento no banho, os momentos de vitrola e os andares no jardim. Não era preciso nem pensável que toda a gente estivesse informada e comentosa, que de uma parte à outra da sala fossem bradados os amores como estes de minhas alunas; não era de modo algum essencial a publicidade como marco de existência, sabia-se existir invisivelmente ou quase, sem dar satisfações a cada pardal que nos filmasse os passos e nos pedisse contas. Não havia blogs que berrassem o que as chavinhas de diário mantinham calmo e intacto, não havia (se não explicitamente provocássemos) fórum tão público de parcela tão privada, tão isenta de impostos. Nem havia, que eu me lembre, detalhes palpitantes tão narrados aos professores com tanta discrição de polichinelo.

Ninguém vá pensar que eu compactue dos cantares-de-galo masculinos e ache que esses “não são modos” de mocinha. Ninguém vá risivelmente acreditar que eu tolere a prosápia dos boys e imponha freirices às senhoritas. Longe disso. Sempre lamentei o desassombro com que os rapazes divulgavam seus segredilhos, e, se lamento o mesmo nelas agora, é por ver cair uma última trincheira. Não lastimo pelo gênero de quem exibe seu amor nascente, lastimo pelo amor itself, pouco a pouco menos parecido com seu rosto próprio. Independentemente do gritador, sinto pelo amor que não é coisa de ser gritada dos telhados, como bem dizia Quintana; sinto pelo amor que perde força sem o tempo devido de reconhecimento e estufa, sem o berçário da reflexão, sem andaimes de intimidade, sem o altar das noites sorridas ou choradas só entre janela e travesseiro. E sinto pelo menino ou menina que perde em idade e poesia com esse amor muito verde, muito pele, muito cedo para tanta propaganda. Sinto pelo garoto ou garota que expõe o querer à luz depressa demais, que lhe queima com susto e sol as pétalas só crescíveis em remanso, que força a saída das asas só construíveis em recato. Amor começa sozinho, põe cimento sozinho, para depois de muita sozinhez evoluir, docemente, do um para o dois – antes, tão antes de passar ao vinte e ao mil.

Pobre do amor esturricado de olhos quando mesmo o seu não se abriu.

sexta-feira, 29 de março de 2013

De um lado só

Foi isso – “Argh, passei o dia chorando de um lado só!” – que exclamei finalmente, depois de mais uma crise aquífera do olho direito. Sim, meu olho direito às vezes dá a louca e toca de doer, doer e chorar, chorar que não é bolinho, especialmente por claridade maior. Eis que a exclamação foi, pois, denotativa, e só passados segundos é que me dei conta do teor figurado. Chorar de um lado só? ora pitombas, é o que mais fazemos rotina afora; e abençoados somos quando assim se passa a coisa. Sortudos (de loteria acumulada) somos quando o contexto nos restringe a chorar por via de mão única.

Eu mesma. Numa floresta urbana de famílias despencadas, violentas, confusas, separadas, doentias, indiferentes, viciadas, gritosas, fragmentadas de excesso ou de falta, de herança ou de vácuo – como não ser grata pela infância sólida, normal, classe-mediamente brincada, sem brigas domésticas, sem mimos nem murros, com livros e filmes à penca, sem ciúme nem conflito de irmão? como não agradecer um mundo de Fábios fabulosos e sogras fofas, estavelmente puro de qualquer esfera nociva? Pelo lado emocional que choram muitos, não choro eu. Em contrapartida, remo há quase cinco anos nas galés do município e há oito nas do estado, e, por mais que não tenha (ainda) me calhado o pior dos mundos profissionais, parquinho de diversão é que isso não é; nem são raras as datas de profundo azedume, fome de competência, pasmaceira de ideias, desesperança de resultados. Dar aula é penoso por vocação. Dar aula em nome do governo, porém, para aqueles que o governo mesmo encaminha à burrice, para aqueles que o governo prefere superficiais e manipuláveis, para aqueles que o governo deseja estragadinhos e precocemente grávidos (alguém tem de embarrigar de eleitores para o futuro e mesmo governo), é fazer de giz e pilot os únicos soldaditos dum exército de Brancaleone previamente vencido. Eu choro desse lado só, bastante e sempre: remo nas galés tendo por antagonistas os ajudados. Remo duro e remo na contramão.

Há os profissionalmente felicíssimos que fazem guerra perpétua contra a fobia de infância. Há os realizados no casamento que despejam no travesseiro a ausência emocional do filho. Há os pais de filhos-modelo que despejam no divã a agonia do chefe perseguidor. Há os crescidos entre moedas de ouro que lacrimejam doenças. Há os búfalos de saúde que se embananam em dívidas. Há os residentes no Vale do Loire que se atormentam em dúvidas. Há os respeitados que se tomam como feios, os belos que se analisam como burros, os sábios que se amarguram de sozinhos, os populares que têm úlcera de perdões não dados, os pacíficos que se afligem de anos não estudados. Há todos, há tudo; há, sobretudo, necessidade de visão corajosa e compensante com o olho que resta.

Viver: dançar a possível festa.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Em berço esplêndido

Reli a entrevista de Stella Maris Rezende, autora infantojuvenil de A mocinha do Mercado Central. Não, não li A mocinha do Mercado Central (de 2011), mas a reportagem resgatada de 2012 não economizou incentivo: há uma protagonista de 18 anos que sai de sua pequena e mineira Dores do Indaiá para aléns cidades, e vai acrescentando nomes ao seu próprio. Vai somando trabalhos, amigos e até um personagem Selton Mello (sim, ele).  Mais interessante ainda me pareceu a linguagem da autora, pintadíssima de riquezas mineiras, gírias, brinquedos sonoros; uns críticos a dizem “a Guimarães Rosa de crianças e adolescentes”. Mais-mais interessante ainda me soou a resposta de Stella Maris à questão “como sofisticar a leitura dos jovens?”: “A juventude, ao atiçar a imaginação e a sensibilidade, se apaixona por textos mais elaborados. O jovem leitor pode ser sofisticado, exigir mais da vida, ler literatura de fato, porque o ser humano nasceu para a sofisticação, para o mais bonito e bem-feito. [...]”.

Emoção. Alguém também acha que o ser humano nasceu para o sofisticado, sobretudo e fielmente para o sofisticado. Alguém concorda que, sim, há níveis; há diferenciações para além da uniformização politicamente correta; há leituras e leituras, canções e canções, vocabulários e vocabulários. Assim não fosse, não principiaríamos a vida cultural lendo A borboleta Lilica e seu laço de fita para mais tarde levar Machado pra cama, devorando-lhe os sarcasmos. Não ouviríamos Galinha Pintadinha no berço para, anos depois, carregar o mp3 com Beatles. Não passaríamos da cartilha, não chegaríamos a Lobato, não evoluiríamos da beleza rítmica e fácil do chocalho para uma sutileza macia de violoncelo. Nunca seríamos gente de distinguir entre Biancas e Júlias de banca de jornal e um Flaubert ou Balzac na Travessa. Uma coisa é melhor que a outra? sem pudores: é melhor que a outra. Negar uma tão limpa verdade seria corroborar uma demagogia eficientíssima em nivelar-nos o mais possivelmente por baixo.

Não quer dizer que eu rejeite a arte (digamos) mais primeira; sou mesmo amiga de umas necessárias bobices em festa, dancei o tchan como toda mortal de minha adolescência, curto umas tolices kitsch pelo menos pra dar risada. Ninguém perde 5 pontos de Q.I. toda vez que grunhe “ai, se eu te pego” lavando roupa. Mas a questão está na variedade. Na variação. O que não é possível, gente, é a criatura de 34, 46 anos conservar Teló como ícone supremo e vaiar um infeliz que lhe queira fazer a caridade de tocar Vinícius. O que não pode é o sujeito, na existência toda de seis décadas, lembrar-se só e vagamente de uma fotonovela Whatever do coração que saía no Cruzeiro e bater pé que aquilo, sim, era literatura. O que não pode é o cinquentão pseudoevoluído bocejar perante Monet e declarar que a tia-avó entrou para um cursito de pintura e anda produzindo iguais rabiscos. O que não pode é não ter olho, é não ter cabeça, é não ter outros sentidos nem vísceras bastantes para diferenciar a palha da lenha, a ideia do engenho, a fogueira do incêndio. Não pode igualar as fases da criação; não pode confundir os dois acordes do hit chicletoso com as dissonâncias estudadas da rapsódia; não pode nivelar o filmeco-Disney-para-a-família e o oscarizável de tanto roteiro e polimento. Durma com essa: não-po-de. A turma do “pode” quer só cobrir de álibi ideológico (esburacado) o mau e velho populismo, a péssima e idosa preguiça.  

Somos feitos sim para a sofisticação. Feitos para atravessar fases, ter olhos progressivamente desbastados, constantemente abertos, despertados, instruídos. Somos feitos para aceitar ligeiramente o entretenimento de produção ligeira, e cair de joelhos ante a composição meticulosa. Somos feitos para, também em termos de maturidade crítica, passar da infância à juventude e à adultice, sendo mais e mais seduzidos para os detalhamentos que antes nos achavam cegos; que antes achávamos chatos. Somos feitos para construir camadas umas sobre outras, empilhando experiência – que, se tira um pouco o prazer mais inocentinho, retribui com silêncio mais feliz. Somos feitos para não gargalhar sempre das mesmas piadas. Somos feitos para pilhar furos no roteiro. Feitos para identificar músculos e artérias na escultura de Rodin. Feitos para gastar horas embevecidas xeretando os enigmas de Escher. Feitos para ir enjoando de quadrinhos e passar à graphic novel. Feitos para sentir pelitos eriçando ao ler Castro Alves em voz alta. Feitos para – enxergando sombras, enxergando degraus, tons, entonações, nuances, ironias, demais figuras de linguagem, âmbitos, níveis – feitos para ser conquistados pelo muito e não engabelados pelo pouco. Feitos para ser público perigoso e atento, eleitor matreiro. Feitos para ser só muito artisticamente impressionáveis. Docemente difíceis.

Somos (astronautas) feitos para ver o chão muito de cima. Azul.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Quero um dia

“Quero um dia para chorar./ Mas a vida vai tão depressa!” – escreve Cecília Meireles em doçura e lamento, resumindo-nos todos. Eu também, Cecília. A vida vai tão angustiosamente depressa quando não escolhemos o tempo; quando o recebemos empacotado de afazerinhos e afazerões que, sem pergunta nem paixão nem verdadeira posse, lhe calharam. A vida vai tão depressa quando os meses passam a se amontoar, os doze, nos arredores do Natal; quando as semanas escorrem gêmeas a ponto de não se distinguir o dia vivido no início desta do experimentado no final da retrasada, a ponto de não se recordar o último filme, os fatos do último filme, o período que nos separa do último filme. A vida vai tão depressa. Quanto mais preenchida a manhã, quanto maior a são silvestre de cada 24 horas, quanto mais acarpetada de tarefas a agenda que parece estufar por conta própria – menos o tempo rende, menos brota, menos oferece. Quanto mais há no tempo, menos tempo há, digno e lembrável como se precisa. A vida vai tão, tão, tão depressa em suas urgências (que crescem quando atendidas), vai tão corrida em suas ocorrências, vai tão afoita em suas importâncias, que só se deixa possuir inteira naqueles segundinhos em que nos passa diante dos olhos, agarrada a nós pela ameaça de virar o seu contrário. A vida anda besta, anda vaidosa, anda prosa demais de si mesma, crendo-se eterna feito poesia.

É por isso que quero um dia.

Quero um dia desagendado, desorário, um dia-bônus, um dia inexistente; um 30 de fevereiro, um 45 de março, um 82 de julho que desabe sem querer na folhinha, que a gente perceba mas seja impegável pelo trabalho, inquantificável pelos boletos de conta, indescobrível para efeitos de prazo, imponderável por compromissos de toda sorte. Inclassificavelmente imprevisível. Quero esse dia livre, livre para carpir a vida sem telefones; quero o dia de solidões opcionais, sem nariz torcido de aluno nem obrigação de novela. Um dia sem jornais. Um dia sem capítulos. O dia-mar no qual se lembra de cheirar e tocar a vida como ser presente que é, não o quiabo que finge estar sendo. O dia sem notícias no qual se sofre à larga pelas notícias constantes e anteriores, o dia em que a gente não precisa virar a cara por não ter tempo, o dia de 9 mil horas no qual se tem todo o tempo suposto, renovável por igual período. O dia sem pragmática, psicodélico para os que quiserem, árcade para os que assim o desejarem; o dia sem vontade de sumir nem morrer, porque ele mesmo já é brincadeira de morte e sumiço; o dia sem aspirador, dia sem louça, dia sem Omo Progress, dia com salário próprio, dia no qual todos os restaurantes estão disponíveis. Quero um dia com inacabáveis horas para fazer tantas necessárias listas, ou dia sem listas necessárias para todo o lindo sempre. Quero um dia com outros assim posteriores dias, e outro e outro, até um diferente dia seguinte desistir de haver. Até um diferente dia seguinte abdicar, por cansaço, de atas e assinaturas e despertadores. Quero um dia humilde de suas horas infindas, um dia que mesmo intérmino não fique prosa de ir além do dia. 

Um dia-poesia.

terça-feira, 26 de março de 2013

Criar repertório

Na época do carnaval, a Revista dO Globo fez matéria de capa com a recém-eleita Musa dos Blocos do prêmio Serpentina de Ouro: Daniela Bahiense. Linda e leve, a menina de 26. Lembro que elogiou alegremente o ato de caminhar pelo Centro do Rio, onde trabalha, e para justificar o entusiasmo meteu essa: “Gosto de andar, de ver os prédios antigos. Se você fica em casa esperando as coisas acontecerem, não cria repertório”. 

“Não cria repertório”, fiquei mastigando o conceito. Concordo à-beçamente com Daniela; é preciso criar repertório. Só não sou partidária do método. Detesto, admito, ser levada a me enfiar naquelas multidões do Centro – inandáveis se você não vai de tênis com amortecedor para triunfar de paralelepípedos, irrespiráveis se você percorre minicalçada que não deixa desviar do cigarro à frente, chovíveis em excesso se você pega outra minicalçada que não deixa desviar de ar-condicionado mijão. Adoro o Centro espiritualmente e não lhe aturo o corpo. Mas a sorte é que ir ao Centro é metonímia. Até sair de casa é metonímia. O que Daniela quis dizer, aprofundando as camadas, foi que a inércia mental e cultural de uma criatura que fica vendo a banda passar impede-a de crescer, amanhecer e dar fruto. Pouco importa se o ser humano em questão caminha como um alucinado do Largo do Machado ao da Carioca, do Catumbi à Cinelândia, conhecendo todas as bodegas e bibocas na maratona. Se é com janela trancada que caminha, ar fresco não entra. Se é com olhar vidrado e ouvido mouco que caminha, todo possível repertório bate e volta.

Criar repertório é uma olimpíada sobretudo interna. Demanda estado de prontidão, fervor de atenção, mais do que quilometragem rodada. Já vi gente classe-média, professora, com uma década de vida a mais do que eu e total ignorância a respeito dA noviça rebelde e Mary Poppins – para ficar em dois batidões de Sessão da tarde. Por quê? porque é pessoa que seguiu os anos sem tomar posse deles, distraída dos arredores, isenta de apropriação dos vários tipos de inteligência espalhados na rotina. Para se criar repertório colaboram gordamente os livros, os filmes, os jornais bebidos com suficiente devoção. Colaboram as histórias colhidas na padaria, os comentários pilhados no shopping, as cenas garimpadas no YouTube, os causos entredescobertos no ônibus, os acintes presenciados na esquina, os assaltos narrados na portaria, as piadas fisgadas no elevador, os sintomas relatados por senhorinhas de metrô, as tendências semeadas e brotadas de novela. A flor que você não sabia que era a do mês, a cor que você ignorava que era a da hora, o santo que você não desconfiava que era o do dia, a informação de rádio-relógio que te fez finalmente entender a questão árabe-israelense, a aula gratuita de yoga que te apresentou músculos perdidos na faxina, a revirada de gavetas que te retornou um eudolescente perdido na mudança, a colega de seção que te vendeu com elogios o amaciante perfeito – todas essas miudezinhas de vida, esses cacos de tempo que andam aí salpicados na vida mesma e no tempo mesmo, equivalem a criar o mais sólido repertório, quando há respeito e ternura bastantes pelos microconteúdos que nos constroem. Excetuo, naturalmente, os conteúdos que crescem vira-latas, erva-daninhos: fofocas e boatos e mexericos de toda sorte, além de aprendizados perfeitamente envenenantes, como a feitura de uma bomba. Esses não são repertório, são lixo hospitalar a ser incinerado com outros tantos, outros similares efeitos colaterais de estar vivo.

Mas se houver uma só escolha de método repertorial: viagens. Sem dúvida, as viagens – que é quando você finalmente mora nas leituras e filmes, ou quando melhor os metaboliza. Aí não é andar no Centro, é abdicar do centro e andar no mundo, engolfado pela instrutivíssima constatação da própria ignorância.

Entender-se vazio é véspera faminta de aprender.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Coisas nossas

Dias atrás vi uma forma de morte: quadros no lixo.

Se eram, se deixavam de ser belos; se eram ou não jovens picassos e monets, magrittes e rembrandts; se mil ou ninguém mataria para tê-los no cofre ou no lugar de honra sobre o piano de cauda – importa pouco. Importa nada. Havia quadros no lixo; quadros em si, nus de assinatura ou de adjunto adnominal. Filhos de arte tosca ou excelente, flores de habilidade ou inexperiência, manifestos ou sussurros, obras-primíssimas ou tentativas: importa nada. Havia quadros no lixo. E subitamente o entorno suspirou, magoado de decepções; o mundo se provou um bocadinho mais pobre e ignorante porque havia quadros no lixo.

Por que não pode haver quadros no lixo? Porque há coisas, simplesmente há coisas e seres envolvidos em metáfora e dogma, por lei imunes ao incêndio, ao mofo, ao esquecimento, ao desprezo, ao rasgo, ao consumado abandono. Há coisas que descem à raiz de nós, nos essencialmente abraçam e pegam aura de sagradas por empréstimo da gente. Assim os quadros – sempre, com ou sem técnica, nascidos de uma visão ou de um rojo. Cada vez que se deitam quadros à lixeira (a não ser que injuriosos), joga-se fora um momento de escolha, um grito pessoal de cor, de opinião, de necessidade mesma. Cada vez que se taca na indiferença uma imagem que alguém elaborou pelas artes que tinha, sobra um mundo menos disponível, menos disposto a encontrar um olhar alma-gêmeo para qualquer versão de beleza. Sobra um tantinho mais de cinismo plástico, que não deixa de secar mais um galhito da árvore gorda de possibilidades.

Também os livros. Que assassino quem dispensa, para todo o sempre, livros! Livros não são entes que desçam à caçamba da Comlurb, livros são amostras d’alma que até fisicamente ganham alma própria, com seu cheiro e sua amorável tinta, e sua-tão-sua textura singular ao tato. Livros são excertos de pessoa, quase humanoides com cara e voz, bebês que não se desperdiçam ao léu sem antes providenciar-se adoção. Livros são tão úmidos de vida quanto o cachorrito que rói a cortina e a velha samambaia que transformou a cabeceira em franquia da Amazônia. São igualmente indispensáveis sem ter futuro assegurado, quente e macio em outra mão, em outro seio. Livros não são bicho de lixo. São filhos eternamente em processo, amores chegantes pela própria natureza.    

Também as bonecas de pano (nem as digo industrializadas, de plástico substituível). Também os DVDs de filme que apenas não nos encontram mais em modo de palpitação. Também as cartas convenientemente idosas e ridículas. Também os álbuns de figurinha que nos moveram meses a fio numa sofreguidão de Copa do Mundo. Também as caixas de lata ou madeira descascante com relíquias do que fomos – não relíquias somente cacarecas, mas daquelas que dão laço escoteiro em alguma esquina do miocárdio, de tão estreitamente coladas àquele período de apaixonamento, àquela esperança, àquele dia. Também a coleção de futebol de botão, de desenhos do filho na creche, de desenhos seus na creche, de redações na escola, de poemas distraídos em aula, de diários com essência de morango socados na gaveta. Metonímias demasiado cheias, demasiado nossas, para de repente irem acabar no limbo do como se nunca. Como se nunca, nelas, alguém houvesse por determinado tempo existido.

Jogar fora é preciso. Mas a vida, a vida, a vida – também só existe reavivada.