quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Gerança


Às vezes sai tudo tão atabalhoadamente arrumadinho que parece de propósito. Lá fui comentar no texto do querido amigo Tarlei Martins, que tratava de "defeitos" não exatamente defeituosos; a incerta altura de meu microtrecho, digitei ou quis digitar a palavra herança – no que o dedo, desconjuntado, esbarrou na tecla vizinha da letra muda e fez sair gerança. Corrigi, óbvio, porém não pude deixar de sorrir à ironia poética e abraçá-la: e não é que esse erro virou mesmo "contribuição milionária" (milionária é bondade financeira, mas rende uns trocadinhos, vai), conforme pregou Oswald e lembrou meu amigo no texto comentado? Gerança, vejam só. Um segundo de descuido e o teclado faz justiça linguística com minhas próprias mãos.

Porque – não sei se concordam – a versão equívoca do termo que o léxico registra, e que eu pretendia registrar, me parece bastante (ou mais) acertada. Herança é coisa que soa empacotada e pronta; chega fechada, rígida, inteiriça numa embalagem com fitinha, como uma caixinha de música da qual não se pode mudar a melodia, como uma empresa que tem determinado conceito e tradição a zelar, como um vestido de noiva que vai passando de mulher para mulher (Mariiiisaaaa!) sem que filha, neta, bisneta deem um cortezinho sequer no modelo de 1926. Gerança, diferentemente, se promete móvel feito seu nome: é recebida de um jeito sim, mas nem por isso para de ser constantemente gerada. Uma caixinha de música legada em gerança, por exemplo, pode manter a estrutura e a bailarina, tendo modificada sua alma sonora que não seja mais representativa de bons tempos, ou vice-versa (tive em casa um ótimo vice-versa: a boneca japonesa que girava no pedestal cantante – presente dado à minha mãe por seus alunos ou colegas – viu sua estrutura de tecido amarelar e deteriorar-se, e foi devidamente trocada por japinhas de madeira que mantiveram o espírito oriental da peça sem que a melodia precisasse ficar escrava do mofo). Uma empresa que sempre foi assim não tem a menor necessidade de continuar sendo exatamente assim, em especial se assim o bem-estar coletivo não estiver representado à altura; que mude com urgência, que as gerações herdeiras gerem consciência, evolução, inclusão, respeito, repensamento, sustentabilidade. Um vestido de noiva, só porque relíquia e elo familiar, nem por isso carece fazer refém uma casandinha que, coitada, já está se vendo no altar como um fantasma dos casamentos passados, celebrando o enlace no salão dourado do hotel Overlook. Pra que começar família com um trauma fashion? customiza, gente, customiza. Bota ou tira manga, tinge a saia, mete anágua, borda florzinha, cobre de renda, baixa o decote: gera novas, personalizadas memórias sobre a essência amorosa, a essência grupal; caminha um caminho próprio, reconstruído e fresco, que não minta à velha história nem à verdade recente.

Por sinal, reitero: o objetivo não é eliminar a velha história (ainda que, em alguns casos, sua presença seja só o totem do que não deve repetir-se). Sou megafã da restauração fiel, até da preservação de ruínas irrestauradas, em sua beleza bruta de ruínas. Mas a restauração fiel não deixa de ser restauração, justamente com a meta da continuidade por novas estradas; a obra herdada e restaurada é gerada mais uma vez para novos olhos, novos estudos, novas interpretações. Mesmo as ruínas que se mantêm aparentemente intocadas – por escolha, não por descaso – demandam, na realidade, uma intervenção sutil, constante, delicada, atenta dos herdeiros para que o tempo e seus agentes não devorem o que é perecível. A sermos sinceros, não existe herança bem administrada que não seja também gerança, esse nome incidental de alma muito mais verbal e gerúndia (feito dança, andança, comilança), muito mais ativa e zelosa. Heranças que não são ininterruptamente vigiadas, recriadas, essas sim caem na desgraça do tempo faminto, cúmplice da posse doentia e indiferente na mesma proporção. O bom herdeiro é grato e grávido: acolhe, semeia, aduba, gesta, multiplica.

Do que recebemos de nocivo, nossa função é cortar o fio. Do que recebemos de florente, nossa missão é manter o cio.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Turbinas de brisa


Ciência fofíssima: pesquisadores chineses criaram um minigerador eólico que não dispõe de hélices, e sim de uma turbinazinha onde duas fitas plásticas, acionáveis até a partir de um sopro, batem uma na outra e produzem eletricidade. Uma brisa basta, o balançar de um braço movendo o ar é suficiente – olhem que primor. Os cientistas, naturalmente animadíssimos, creem que a descoberta pode tanto ser empregada em seu tamanho micro, substituindo a bateria de pequenos aparelhos, quanto nas dimensões "normais", em locais onde as turbinas de praxe não funcionam. Mais uma lindeza de avanço rumo à energia plenamente sustentável. 

Aproveito o ensejo, aliás, para chatear os cientistas num apelo: que sigam o embalo do dispositivo recém-desenvolvido e vejam se conseguem, por gentilezinha, tornar os mecanismos humanos sustentáveis na mesma proporção. Se conseguem (estamos TÃO carecidos!) arranjar aquele jeitinho esperto de fazer-nos operar às maravilhas com baixíssimo estímulo, movimentar-nos nas direções necessárias com um qualquer peteleco. Especialmente aqui por nossas bandas, em que sucessivas mãos históricas têm procurado esganar no berço boa parte das resistências e encorajar ao máximo uma perplexidade pastosa, viria a calharzíssimo uma turbina de brisa – um acessório acoplável à fatia pasmada de nossa gente, a que apanha na cara 50 dias por mês com projetos variados de destruição do país, porém dá de ombros sem grandes sustos, vira pro lado, comenta resignadamente A fazenda. Com uma centena que fosse dessas maquininhas de eletrizar (se distribuídas com estratégia pelo território nacional), cada leve mugido da boiada do Salles, cada murmúrio do Guedes, cada tilintar do recorde de lucro dos bancos seria o fósforo na gasolina, e o Brasil se levantaria atiçado como pólvora. Meia dúzia de combustões populares depois, quero ver qual malandro se atrevia a respirar dois decibéis mais alto no cangote do Gigante. Pois sim.

Não precisamos, claro, nos ater aos turbinões ou turbilhões coletivos: geradores de miniempurrões individuais são igualmente bem-vindos, como os substitutos de bateria pensados pelos chineses. Imagina! se de um perfume de café fresco a gente tirasse a faxina de um dia inteiro, se de um beijo soprado longe viesse o bem-estar de uma semana no corpo todo, se uma piscadinha diária renovasse a amizade por décadas. Imagina o farfalhar dumas páginas segurar a motivação durante meses; um ventilador caseiro nos garantir a gana de maratonistas; um aceno na rodoviária consolar a saudade por anos; uma cantigazinha de ninar acalentar toda uma infância de aconchego; um arzito de cachoeira pôr frescor indelével n'alma; uma corrente salgada de mar impelir virações de vida. Imagina quantas bafagens subestimadas e mansas não ganhariam potencial de ciclone, quantos minutos de zéfiro-bebê não se revelariam alimentos e respostas, se fôssemos equipados com a tecnologia de reciclar instantes – se nos tornássemos capazes de engrandecer em vez de amesquinhar, de trocar tempestades em copos d'água por águas (futuras) que movem moinhos. Nossa maquinaria invertida tende a aumentar pequenezas em correntes que atam, não que voam: uma lástima. Eis-me desde já na fila para as invenções chinesas, se em algum momento incluírem esse conversor fabuloso de atritos em impulsos.

Turbinem-nos, irmãos orientais. Que, para os próximos bons velejadores, meia lufada baste.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Ô de casa

Foi ontem o dia de espalhar doçurices, porém deixo ainda aqui meu saquinho virtual de Cosme e Damião, recomendando vivissimamente que assistam a Um lindo dia na vizinhança – produção do ano passado, dirigida por Marielle Heller e estrelada por Tom Hanks e Matthew Rhys, que acaba de entrar na grade da HBO. Confesso que não pretendia sentar na noite de sábado para conferir a estreia, nem esperava grande coisa da 1 hora e 49 minutos adiante; mas que dizer? às vezes é maravilhoso estar redondamente enganada. O filme, curto e mesmo assim sem pressa al-gu-ma de fazer andar diálogos e sentimentos, é nada menos que um edredom emocional, acolchoado, quentinho, que para desenrolar-se (e enrolar-nos) em seu ritmo suave atém-se a um plot simplíssimo: o jornalista Lloyd Vogel – esquentado, pessimista, acostumado a reportagens hardcore e nada simpático aos olhos de seus entrevistados, ao menos após publicar as matérias – recebe a missão de escrever sobre Fred Rogers para uma edição especial (sobre heróis) da revista na qual trabalha. Quem é Fred Rogers? O apresentador de um dos mais populares programas infantis americanos, Mister Rogers' neighborhood, e provavelmente uma das pessoas mais adoráveis e compassivas que já pisaram no planeta. Ah, sim: também a única celebridade da lista de entrevistáveis que topa conversar com o mal-afamado Vogel – a quem trata como amigo desde logo e, obviamente, acaba conquistando por inteiro. 

O resumo promete cafonice, mas empenho minha palavra que não: assim como o desacreditante Lloyd se aproxima de Mr. Rogers sem nenhuma expectativa e se vê mansa e perplexamente seduzido por seu universo de ternura, vamos nós direitinhamente caindo nos braços do filme, baixando qualquer possível guarda e lhe tombando lentamente a cabeça no peito. Um lindo dia na vizinhança é a exatíssima sensação de um abraço em que a gente dói por dentro de amor. Pelo menos no meu caso, não só pela figura inacreditavelmente generosa (e real!) de Fred Rogers – vivido por Tom Hanks com bondade e minúcia encantadoras –, mas com igual intensidade pela figura (fictícia) psicologicamente quebrada de Vogel, a cuja dificuldade de comunicação interpessoal (irônica para um jornalista) e a cuja raiva latente os olhos tristes, perdidos e intensos de Matthew Rhys emprestam uma veracidade incrível. Sim, eu adoro Matthew Rhys, de quem já gostava um monte mas que aprendi a amar em definitivo na série Perry Mason: guilty. De Tom Hanks é desnecessário falar. Resulta que a dobradinha Rhys-Hanks deixa a gente internamente de joelhos, querendo ora amassar o mais velho de fofura, ora apertar o mais novo dizendo-lhe que fale, que chore, que vai ficar tudo bem. Enfim, uma tortura deliciosa para quem tem ao menos 10% ativos de coração. 

Todas as condições estavam postas para que o relacionamento dos dois amigos improváveis se (en)tornasse pieeeegas, e ainda assim não resvala na diabete nem de longe, tal a delicadeza do roteiro, da diretora e da dupla principal. Em menos de duas horas, fala-se precisa e nada derramadamente de dilemas de pai, dilemas de filho, morte, perdão, casamento, gentileza, formas de lidar com a raiva que todos sentem, aceitação integral do outro, atenção genuína ao interlocutor, verbalização das emoções, valorização dos novos e velhos contatos, gratidão aos que nos amaram para que nos tornássemos quem somos, aprimoramento pessoal como um exercício constante e palpável e não como bibbidi-bobbidi-boo. Posso seguir com a descrição motivacional sinceríssima, mas de meia-tigela, ou apenas sintetizar com um reiterado: ASSISTAM. Com mamãe, papai, filho, catioro, crush e lencinho, só para garantir. Todo dia é um lindo dia para ser tornado especial por aquilo que dá batidinhas triviais e familiares à nossa porta.

domingo, 27 de setembro de 2020

Abaixo o defô


É absolutamente doce e fascinante a iniciativa da loja Bright Ears (hospedada no site Etsy), que deu um passo à frente no sentido da inclusão e vem produzindo bonecos de características diversíssimas: implantes cocleares, sondas de nutrição, cicatrizes de operação, óculos, bolsas de colostomia, lábio leporino, you name it. O melhor é que os brinquedos, porque customizáveis, podem ganhar o máximo de parecença com seu futuro donozinho ou donazinha. Se eu – sem ter filhos nem sobrinhos – estou de todo encantada com a fabulosidade da ideia, consigo vagamente imaginar a alegria das mamães e papais que encontram uma nova forma de ajudar seus pequenos a sentir-se representados, abraçados, aceitos. Certamente mais seguros; afinal, bonequinhos e quinhas costumam acompanhar seus mini-humanos em todas as situações e ambientes, e acredito seja sempre menos assustador quando há um parceiro que "passa" pelas mesmas coisas, que é um espelhamento reconfortante das mesmas questões e dificuldades. Quanto mais abertos à projeção de suas pessoinhas, menos os brinquedos se limitam a filhos/amigos e mais são promovidos a cúmplices de plástico ou pelúcia. 

Para crianças e adultos que se desenvolvem sem pertencer a grupos minoritários – ou seja: crianças e adultos brancos, magros, heterossexuais, sem problemas médicos significativos, não portadores de deficiência –, parece muitíssimo raro ou difícil não haver identificação com personagens; a "normatividade" nos circunda, sugerindo, para fins de controle institucional (é bem mais punk moldar comportamentos e necessidades de uma sociedade muito heterogênea), que existe um default. O defô é lenda urbana, sabemos; o que há é uma coleção gigante de detalhes e carências enormemente específicos sob o umbrellão humano. Em geral as crianças não o sabem, porém, e não têm elementos para compreender os disparates de pensamento que levam à lógica uniformizadora: concluem simplesmente que, se não se vê ninguém como elas nas vitrines, nos desenhos, nos desfiles, nas novelas, nas propagandas, nas equipes de heróis, é que elas estão fora; são exceções impertencentes ao sistema, destinadas a aplauso e consumo passivos sim, mas não à cadeira VIP debaixo do holofote. Para vocês, não sei; para mim, soa como a maneira mais cruel e eficiente de cortar pontas de asas e meter em gaiolas quaisquer tentativas de voo: este aqui serve para a exibição na tela, este outro não serve, deixe ali quietinho observando dos bastidores.

Louvadas sejam, pois, TODAS as ações que – como a da Bright Ears – puxam para o palco quem está à revelia nos bastidores, mostram que há papel para todo mundo, que há mundo para todos os perfis, lugar para todas as belezas, autorização de decolagem para todas as expectativas. Decantadas em prosa e verso sejam todas as ideias que trazem no mínimo um quintal para corações só familiarizados com paredes. Afamados, divulgados, famigerados sejam todos os passaportes para vidas mais completas e mobiliadas, mais arejadas e coloridas, mais amplas e janeladas. Que haja princesas comunicando-se em língua de sinais, apresentadores que não cubram de maquiagem as cicatrizes, protagonistas cadeirantes, modelos com vitiligo, heróis com prótese e uma lista imensamente desdobrável de possibilidades que amem e escancarem cada peculiaridade humana na exata medida do que é: uma peculiaridade, não um defeito. Que nossa diversidade receba total indulto e sinal verdinho para ser celebrada em todos os âmbitos, em todas as esferas – lindamente livre do arame farpado que inutilmente a trucida. 

Parou de palhaçada com essa história de padrãozinho: brincar de uni-duni-tê não vale se o excluído é sempre você.

sábado, 26 de setembro de 2020

O poder


Quem viu A lista de Schindler vai lembrar-se de que, em dado momento, o personagem do título tenta manipular o vilão Amon Goeth para que sossegue os impulsos sanguinários (o que, infelizmente, só é conseguido por um período curtíssimo), afirmando-lhe que ter meios e "justificativas" para tirar uma vida AND tirá-la não representa o verdadeiro poder; o poder, segundo Schindler, é justamente NÃO fazê-lo. Trata-se de uma estratégia marota do protagonista para conduzir o ego do nazistão ao ponto desejado, mas não deixa de corresponder à verdade – com a ressalva de que nunca existe, de fato, nenhuma suficiente autoridade para se tirar vida alguma, a não ser em proteção da própria e sob circunstâncias extremas. De qualquer modo, adoro e jamais esqueci a cena do diálogo, que vai perfeitamente ao encontro da frase do escritor Miguel de Unamuno com a qual acabo de esbarrar: "Todo ato de bondade é uma demonstração de poder". Pronto, é a carteirada filosófica de que eu precisava para fazer o Schindler e sair martelando nos Goeths de plantão: larga de cafonice, migo – essa história de arma, pena de morte, muro, guerra é para os fracos, é para os losers; ser autenticamente generoso, ao contrário, é SUPER big dick energy e vai ficando mais em alta a cada estação.

Refugiados, por exemplo. Só gente muito achatada e frustrada na vida desacolhe os refugiados, certamente por temê-los: temer que "roubem" seu espaço, seu emprego, como se com o aumento da população de um país todas as demandas não aumentassem necessariamente. Queridão, queridona, é o que já disseram em mil e um memes e versões: se você é falante nativo da língua, não passou por crises humanitárias na proporção das encaradas por vários migrantes e ainda assim sabe que eles estão mais qualificados para o mercado de trabalho de seu próprio país, onde está o poder a que você se apega para alegar que eles é que estão sobrando? onde a posse do território? onde a potência? Convenhamos: só chega na bicuda e na voadora quem se sente tão enormemente ameaçado a ponto de precisar se garantir no momento de maior fragilidade do coleguinha – ou seja, agressões e exclusões são coisa de fracassados em potencial. Fazedores de bullying, racistas, homofóbicos, misóginos e semelhantes estrupícios operam na mesmíssima lógica; quanto mais bufam e se descabelam para "provar" qualquer espécie de superioridade, quanto mais se esforçam na diminuição do outro, quanto mais se esfalfam nas calúnias, quanto mais se empenham nas surras e ridicularizações, mais jogam e deixam na cara o tanto que o oponente lhes é perigoso, quiçá fatal. Quem não teme não ataca; quem não teme está no máximo preparado para uma defesa oportuna, se estritamente necessária, mas não busca confronto e muitíssimo menos se vale da covardia como único recurso da própria fraqueza. Onde existe o legítimo poder em âmbito humano, não há milícias psicológicas bem-vindas.

A força real se (re)conhece, se assume, não precisa repetir-se e gritar-se para se persuadir de si, e normalmente só tenta persuadir os outros a respeito das necessidades e valores de terceiros; por ser ela mesma uma usina de watts, reafirmar sua intensidade soa redundante e nada urgente – emergências alheias e coletivas se impõem. A Força, assim à la jedi, se posiciona frontalmente contra o bullying dentro do grupo, não embarca em manadas, tem uma faísca mental capaz de julgar para além de popularidades e mentalidades de rebanho, se coloca em qualquer reta ou treta para defender qualquer acerto, nunca achou graça em zombar de deslizes, nunca riria de deficiências, nunca fugiria de consequências, carrega a culpa sozinha para não permitir injustiças, confia sem cegar mas sem pressupor traições, abraça causas com todos os membros, se joga, se doa, perdoa, não toma como desonra o que não é de seu arbítrio. O poder pirata se acha – o poder se sabe. A Força não tem arma; sua ausência não tem alma e se compõe de arremedo e medo.

Se Goeth é a força frustrada e impostora, vamos de Goethe – a genuína e transbordante da espécie: "Seja o homem nobre, caridoso e bom. São as únicas coisas que o distinguem dos demais seres". Vigor, ímpeto, fúria, ligeireza, violência, letalidade: definitivamente em nada disso estamos sozinhos na natureza, ou com vantagem física tampouco; somos estruturalmente frágeis, e só o que nos torna diferenciados é aquilo que em tudo se diferencia da capacidade destrutiva. A bondade essencialmente inteligente, porque criadora e criativa, é o divisor de almas possível entre o herói que improvisa estratégias de voo e o concorrente que (limitado ao medíocre, rápido, fácil) prefere derrubar os voadores no chão.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A dor na solitária


Não é segredo para ninguém que sou chegada a uns programas de psicopata, principalmente aqueles do Investigação Discovery; nenhuma propensão sádica, espero, mas uma tendência irresistível tanto para histórias quanto para análises psicológicas. Gosto de tentar entender os estranhíssimos mecanismos humanos – mesmo esses –, embora de determinados episódios eu precise sair para tomar a fresca em outros canais e só volte quando a coisa se encaminha para uma conclusão. Um dos episódios "expulsadores", que não consegui encarar integralmente, faz parte da série Vivendo com o inimigo (interessantíssima, por sinal, já que cada caso é narrado por alguém muito próximo ao assassino da vez – o que sempre nos permite acompanhar a "evolução" de um criminoso pelo ponto de vista de quem via os sinais, porém só os entendeu de fato quando já era tristemente tarde). A história dilacerante a que me refiro é contada pelo jovem Corey Breininger, o qual foi vítima de manipulações terríveis pela madrasta doida, até o extremo de, aos dez anos, ter sido praticamente obrigado pela monstra a matar o próprio pai. Não consigo nem quero entrar em mais detalhes; o objetivo não é esse em absoluto. Só sentei aqui para comentar o quanto me impressionou o momento em que Corey, relembrando o assassinato, rompeu em lágrimas, para reprovar-se logo em seguida: "Eu não gosto de chorar". "Por que não?" – devolveu a voz feminina que o entrevistava. Por um segundo, foi inevitável que eu antecipasse uma resposta à moda machista, alguma preocupação com o ato de demonstrar fraqueza etc.; mal contive o choque, portanto, quando a explicação do rapaz me encontrou 100% despreparada: "Porque eu sei que isso me faz sentir melhor, e eu não quero me sentir melhor".

Que esquisita beleza, que compêndio de dor, humildade, lucidez e culpa numa única frase que é uma pérola de imprevisibilidade humana. Poucas vezes ouvi sinceridade tão lancinante, autoanálise tão direta e limpa. Corey sabe ser o responsável direto, mas não o verdadeiro pela morte do pai; sabe que era somente uma criança confusa e apavorada; sabe que foi usado nível hard por uma psicopata nível hardíssimo – e mostra saber que sabe disso tudo. O combão de consciência, porém, não o impede de punir-se, e curiosamente de modo bem consciente: já que não pode ser preso pelo que fez na condição de pobre marionete, enjaula-se na retenção possível, rouba de si mesmo o alívio das lágrimas livres. Evidentemente o choro sai às vezes, em indulto ou banho de sol; mas vigiado, observado, atalhado, sem a provável desolação aberta da tristeza que parece desesperada e não é desespero. O desespero real, similar ao aparentemente sentido por Corey (apenas similar, creio, uma vez que o moço dá todos os indícios de compreender seus sentimentos e abraçar o desejo de seguir em frente), tende a ser calado e seco, mergulhado em buraco catatônico; é o buraco onde se enfiam os que não perdoam o que quer que seja, os que não se perdoam, os que involuntariamente se castigam até por aquilo de que foram vítimas, algemando-se a uma dor perplexa, silenciosa. A dor encerrada na solitária, a que não tem com quem expandir-se e verbalizar-se, a que não fala, não chora, não grita: implode-se. A dor de quem sequer tem forças ou condições de saber que não quer se sentir melhor.

Corey Breininger AFIRMA que não o quer – e, apesar de minha carteirinha de leiga total, acredito poder perceber essa verbalização, essa capacidade de trazer o processo para o setor da escolha, como um bom princípio de cura. Ou desejo acreditar que sim. Por mais que a frase do rapaz seja um alerta tocante e poderoso sobre nossos complicados sistemas, não é ainda mais preocupante quando NÃO somos capazes de emitir essa frase? quando nos condenamos à revelia, sem apelação, sem tribunal nem júri, sem sequer relar os olhos pelos autos? Não é questão de culpar a vítima, ao contrário: é constatar tristemente que ela mesma o faz, talvez numa reação prévia aos julgamentos da sociedade cobrante e apontadora. A dor que não se manifesta como tal não deve, pois, ser mera e desrespeitosamente convocada a reagir, como se a vontade pudesse resolver o que ainda não chegou à jurisdição da vontade. Não se cura com torcida organizada o tumor inoperável. É preciso que um profissional de tratamento e escuta facilite o encaixar das peças – a ação na percepção, a emoção no motor, a dor anônima no nome que ela tem – para que se pegue a visão, para que se acesse o mapa. Antes da costura, a junção; a imagem, antes do bordado. Antes da receita carimbada, a ideia firmada de que há, sim, um brado retumbante amordaçado dentro da mudez que não busca remédio.

Náufragos como Corey têm bússola, escrevem SOS na praia, não sossegam enquanto não constroem com labuta uma jangada. Náufragos da dor que apenas se deita na areia precisam sobretudo ser convencidos de que estão numa ilha.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Troféu Arrepio


Em posts recentes falei de filmes-cebola, aqueles que detonam sem misericórdia nossas Cataratas do Iguaçu. Porém, reescutando outro dia alguns dos trechos mais potentes de Les misérables – "Do you hear the people sing?" e o "Epílogo", que têm a mesma e poderosíssima melodia –, precisei reconhecer que há uma categoria toda específica de produções, composta pelas que fazem o corpo inteirinho se eriçar num arrepio de beleza. Certo, as canções de LesMis foram feitas para teatro e logo desabrocharam em vida própria (não à toa eu estava apenas ouvindo, não vendo, o que não me impediu de reagir com todos os pelos à composição magnífica, mil vezes escutada e sempre nova); já não dependem de sua versão na telona para arrepiar ninguém: dão conta do recado sozinhamente. Mas admitamos que, apesar dos seríssimos defeitos da adaptação da peça para o cinema lançada em 2012 – sendo um dos piores defeitos o fato de praticamente engolirmos os artistas, filmados em close eterno –, a história e a música são tão espetaculares que é impossível não terminar a sessão quase em transe, possuídos pelo sonho catártico de liberdade, igualdade, fraternidade. Fica aqui o desafio; assista ao longa protagonizado por Hugh Jackman e TENTE não ser abduzido pelo final apoteótico que canta: "Do you hear the people sing,/ Say, do you hear the distant drums?/ It is the future that they bring/ When tomorrow comes!/ Tomooooorrooow coooooomes!". Se não sentir a magnitude da cena se derramando por braços e pernas, nada posso fazer por você além de passar o número de um psiquiatra.

Outro supermerecedor do Troféu Arrepio é o doce Tomorrowland, uma daquelas obras talvez subestimadas, pouco lembrada nas listas de produções mais-mais, mas certamente dona de uma das mais-mais últimas cenas; quem ainda tem olhos de esperanças verdinhas, independentemente do tique-taque pessimista de quaisquer previsões, não consegue sair do longa sem o secreto desejo de encontrar um pin casualmente deixado em sua prateleira, pasta, estojo. Por falar em pastas e estojos, como, em um milhão de anos!, esquecer Sociedade dos poetas mortos e a enormidade de um professor percebendo que atingiu seus objetivos acadêmicos e sociais, a despeito das mentes obtusonas, dos preconceitos, das injustiças? Ainda na vibe professoresca: Mr. Holland, meu Pai do céu. Por algum motivo, não costuma ser muito citado na ampla categoria filmes-de-sala-de-aula, porém sempre o tive como obra-prima – e seu desfecho acaba comigo; na premiação imaginária conduzida por mim mesma, concedo-lhe o duo de troféus Arrepio e Cebolão. Outra sequência pela qual nenhum fã que se preze (se acompanhou com carinho toda a saga tecida pela Marvel) passou incólume foi a imensa "chegada de reforços" em Vingadores: ultimato; não é apenas algo visualmente grandioso, é o arremate de uma década, disposto a atiçar condignamente os estremecimentos de nosso sentido aranha

São infinitos os exemplos de calafrios cinematográficos, e para cada menção esqueço dez outras, mas sigamos: a cena de recordação de Nickie na França, e todo o diálogo final entre ele e Terry, em Tarde demais para esquecer (o de 1957, claro); o ajoelhamento coletivo no último filme da trilogia O Senhor dos Anéis, O retorno do rei; a realização triunfante dos planos de V em V de vingança; a sequência da morte/funeral de Edward Bloom em Big Fish; quase qualquer momento em que toca a "Rapsódia de Rachmaninoff" ou o tema principal de Em algum lugar do passado; o festival das luzes flutuantes de Enrolados; o voo da(s) bicicleta(s) em E.T.; o último movimento de um dinossauro na ilha Nublar, em Jurassic World: reino ameaçado; o "Let it go" de Elsa em Frozen; a audição de Mia em La la land; o trecho excruciante de James Braddock pedindo dinheiro para religar o aquecimento, em Cinderella Man. Isso são só os que rapidamente me ocorrem, e é BATATA que, tão logo o texto esteja arrematado e postado, outras cenas cruciais venham à cabeça e martelem de jeito ainda mais arrepiante. 

Honestamente: se não for para comprar o ingresso ou pousar no sofá com a mais inteira entrega e disposição de se deixar invadir, passear, sussurrar pela narrativa, com o cinismo em off e a luzinha piscando verde para um potencial amor eterno, adianta coisa nenhuma investir tempo e pipoca. Nem todos os filmes, óbvio, vão achar o ponto A de levantar os pelinhos do braço, perna e nuca – mas o fundamental é chegarmos com vaga; chegarmos possíveis, acessíveis, desarmados. Chegarmos ao assento e imediatamente darmos condição para que o companheiro das duas horas seguintes nos atinja: surpreenda-me, my captain.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Aquela gota


Sabem quando a Madre Teresa de Calcutá disse que seu trabalho era apenas uma gota no oceano, mas que sem aquela gota o oceano seria menor? (Claro, era THE Madre Teresa de Calcutá, que fez um mar, não uma gota; vamos, porém, nos concentrar na frase da autora, não na comparação de nossa humilde existência com a da autora mesma, já que o objetivo é garrar ânimo em vez do completo oposto.) Pois então: abraçar com dentes cerrados e prontos essa espécie de teimosia me tem parecido a única forma possível de sobreviver. O Brasil nos espanca diariamente – aliás: o Brasil é diariamente espancado junto conosco, por vilões que apavorariam os do sanatório Arkham; fogo, enchente, desmatamento, desemprego, desigualdade, impunidade, plutocracia, mentirocracia nos dão na cara e no fígado da manhã até a noite, e de madrugada aproveitamos para pesadelar com os mesmos personagens. Ou seja, vivemos porque há em nós uma gana de feras feridas defendendo os filhotes, sejam estes filhotes literais ou herdeiros figurados: alunos, amores, ideias, trabalhos, projetos. Vivemos porque, nas realidades individuais, somos as únicas águas disponíveis; independentemente se riachinhos, poços, poças, pouquinhos de chuva estancados em bromélias, se não existirmos falecem ecossistemas inteiros. Se não existirmos, todo um microcosmo de pensamento e amor passa a inexistir. Se não existirmos, muita coisa e muita gente morre de sede.

Muita coisa, muita gente, muito mundo de que sequer desconfiamos.

Fora o que protegemos conscientemente e com sanha de Juma Marruá, há tudo que irrigamos com indireta responsabilidade. Gente que achávamos estar dormindo durante a aula, mas que caladamente ouvia; e por um dia, por uma tirada, por um motivo, por um nosso qualquer movimento, decidiu seguir pelo magistério, e deu ou dará aula para alguém que parecerá estar dormindo, mas que caladamente ouve – ouve tanto que ainda terá o insight de uma cura importantíssima. Gente a quem pagamos um lanche na rua em momento particularmente ruim, e que por causa do lanche teve um bocadinho mais de fé e força naquela tarde, e que por causa do bocadinho mais de fé e força desistiu de alguma coisa errada e desesperada por uns trocados naquela noite, e que por causa da desistência escapou de uma roubada monstro e veio a conhecer, pouco depois, alguém que lhe deu uma chance de recomeço. Gente que leu o compartilhamento do compartilhamento do compartilhamento do compartilhamento de um texto que escrevemos, e que (na outra pontinha do país) se abriu um tanto mais a repensar seu voto e sua posição política. Gente que cutucamos de algum jeito com a música que compusemos, com o meme ou o filho que criamos, com a entrevista que demos, com o livro que sugerimos, com o comentário que fizemos, com a campanha que inventamos. Gente que não viremos a conhecer talvez nunca e, no entanto, é em certo âmbito fruto da nossa chuva, rebento espalhado da nossa seiva, filhote disseminado do nosso sangue, mais verde e vivo e viável só porque fomos, só porque estivemos. Mesmo que na nuvem.

Se somos gota, bora ser direito: gota renhida, gota cabulosa, gota tinhosa, turrona, que pode não ser cachoeira mas sabe direitinho para onde ruma. Muitas vidas só transbordam para o que são depois de sermos nós a gota d'água.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Olha quem está falando


Não deixa de ser hilária a iniciativa do aplicativo de paquera Inner Circle (cês já tinham ouvido falar? eu também não), que decidiu banir as interjeições-muleta "oi", "ei" e "olá" dos contatos entre usuários, após constatar, em pesquisa, que a maior parte das interações começadas assim vai perfeitamente a lugar nenhum. Toda vez que a chegada for nesse grau de desimaginação, portanto, o app vai trocar as palavrinhas exiladas por "uma cantada engraçada, atrevida ou maluca" – isto é: ou os preguiçosos colocam mais vontade e empenho na hora de abordar alguém que pode ser o big love de sua vida, ou se arriscam a que uma inteligência artificial escolha o discurso por eles, sob pena, talvez, de acabarem enviando uma mensagem que de modo algum os representa. Meu lado introvertido e arredio acha invasivo, o raciocínio frio responde que oras, se estão em app de amorzinho é porque querem amorzinho, e a ferramenta virtual é feita para ser eficiente a despeito do próprio usuário. Meu lado tímido e arisco proclama o direito de ser lento, a lógica responde que aff!, não entrou pra dar match? Então pelo menos corra atrás, renove o diálogo, invista, rebole, se esforce. O Inner Circle é aquela turma de amigas(os) que fica em volta aquecendo a situação e botando pilha, o que pode tanto dar num tapa na cara imaginário quanto num casamento de 76 anos cercado de bisnetos e com história folclórica para contar à mesa de Natal.

Interferir diretamente no texto paquerístico de uma criatura (alguém mais pensou em Cyrano?) soa assustador em se tratando de um programa, admitamos. Indica manipulação des-ca-ra-da de uma possível relação de afeto por bytes amorais e incapazes de afeto algum – e, para quem já assistiu ao ótimo e terrível documentário O dilema das redes, a coisa se apresenta ainda mais desconfortável. Ao mesmo tempo, como a ação é escancarada em campanha com hashtag e tudo (#MaisQueOi), o usuário pode se considerar plenamente avisado das consequências de ser relapso com uma pessoa interessante e valedora de esforço. Se for digitar, não durma; digite com responsabilidade, de alma atenta; digite com a granada fictícia na mão, para lembrar a clássica cena da aula em Tropa de elite: uma cabeceada sonolenta e vai tudo pelos ares. O mínimo que se espera de um senhorito ou senhorita a fim de interação é interagir, em vez de largar um monossílabo oco, irrespondível e não solicitado como álibi de que deu o primeiro passo. Quer ficar? conhecer? namorar? noivar no topo da Torre Eiffel? casar num vinhedo da Toscana? Você que lute. 

Deixo aqui, inclusive, minhas humildes sugestões de aterrissagem. Querendo usar uma quase inevitável interjeição, recomendo o "nossa"; escapa à butuca do algoritmo e causa, de saída, a simpática impressão de que a outra parte é emocionante e positivamente espantosa: "Nossa, seus olhos são os mais bonitos que eu já vi!"; "Nossa, AMEI a frase que você usou na apresentação; é do meu autor preferido. É o seu também?". Acho de potencial fofo e versátil, sendo praticamente tão eficaz quanto um "oi" no start e bem mais do que ele no encaminhamento. Encaminhamento, aliás, é essencial desde a partida, que o abordado quer mais da vida do que ficar catando assunto pra fazer sala: já vai um cumprimento/elogio com pergunta em anexo, focando nas coisas em comum, nas favoritices, pra ver se o papo ganha logo combustível e decolagem sem queimar a largada com o entojo dos pedidos de foto. "Foto de agora", criatura? Você é um coração solitário, comprador de cabeça de gado ou CSI? Eu, hein. Não sabe brincar de conhecer gente pelo lado que interessa, nem desce com o pogobol pra rua.

De modo geral, a psicologia humana não varia tanto assim ao ser demandada por pretendentes: todos querem constatar que valeram um exercício de inteligência, um desdobrar-se no tema, uma busca de citação, uma amostra de dedicação e paciência que não deixa de ser trailer auspicioso de qualquer relacionamento. Se há sinceridade no interesse, mistério não há. É estar autenticamente ligado no que é dito, ter a delicadeza de fazer fluir a conversa sem esperar que o outro aja como saca-rolha, não ser implicante, não julgar, não cobrar informações muito íntimas, "ouvir" sem fingimento, elogiar sem falsidade – nada de que uma pessoa legal e sensata não seja capaz por intuição e mérito próprios. Ainda que não consiga unir pombinhos em felicidade eterna, a campanha do Inner Circle já terá valido de monte, caso obrigue os xavequeiros molengas a sair do "venha a nós o vosso reino" e parar de tentar competir com o silêncio digitando qualquer asneira. Pra vocês verem. Até os softwares que, em alguns anos, nos guardarão na Matrix e nos sugarão a energia vital de canudinho andam muito preocupados com nosso estado de evolução.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A encher o copo


Sou otimista por natureza talvez, mas creio que ainda mais por sobrevivência e orgulho ficcional. Por sobrevivência, porque me sinto absolutamente incapaz de existir pensando que não tem jeito, e que o pior se encaminha; pra que pitombas nasceríamos às dúzias e ficaríamos nos esbarrando sobre a crosta terrestre, se fadados ao fracasso? Por orgulho ficcional, porque mais ou menos isso aí mesmo: narrativas foram feitas para ter um fim a contento ("se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim", diria Fernando Sabino – e quem sou eu para questionar); me parece impossível simplesmente quedar em posição fetal num cantinho e ficar vendo os créditos subindo sem alguma espécie de arremate, caminho, explicação. Ahn? a história acaba assim sem término, pendurada? Não, não, eu não vim aqui para isso, coleguinhas roteiristas; bora sentar todo mundo já-já-já em torno do buraco narrativo e arrumar essa joça. 

O que me põe concordando com Winston Churchill no ato de declarar: "Eu sou um otimista. Não me parece muito útil ser outra coisa". Ainda não encontrei resumo mais cândido e direto. Sem a menor vocação para a positividade tóxica à moda coach, sem paciência para pollyannices tampouco (por mais que eu adore literariamente os dois Pollyanna), continuo mesmo assim aferrada à posição otimista porque considero todas as alternativas infinitamente piores. Do que adianta não ser otimista, em específico? Para que serve estar convicto de que todas as estruturas irão irremediavelmente desabar, não importa o que façamos? Alguém de fato dorme mais tranquilo ou realizado tendo abraçado a ideia do caos inevitável, da calamidade que espreita e vence, do apocalipse social como profecia? Pode ser, óbvio, que muitos corações durmam pesados e brutos porque se conformaram com o pior, defendendo-se do esforço de acreditar, buscar, decepcionar-se, recompor-se, repetir; pode ser que durmam em coma de sentimento, em letargia fofinha; não dormem, porém, felizes e serenos – já que no pessimismo entreguista, se não há o desconforto do risco, não há também o gozo pessoal do combate bem combatido, da insistência. O otimismo é uma andança dolorosa e viva; o pessimismo é a imobilidade perplexa. A imobilidade que não dói no sentidor, mas o atrofia, priva-o da continuação de si mesmo.

Reitero: não há romantismo pollyânnico no otimismo em que acredito. Está a léguas de ser otimismo-saltitância, otimismo-palminha. Encaixa, sim, naquele que "não é ver o copo meio cheio; é estar constantemente a encher o copo", nas palavras do escritor português Pedro Chagas Freitas (perdoem a metralhadora citatória que isto aqui está me saindo). Trata-se do otimismo de front, de trincheira, de guerrilha, que não sossega num plano só, que aprende, que se adapta, que vai cavando estratégias, que vai bolando criatividades, que não mostra de vez todas as cartas – praticamente um die hard, um catch me if you can. O otimismo que conhece e abre túneis, coloca luz onde não tinha, ataca por onde menos se espera, se esconde de algumas ameaças porque não é bobo, opera dia sim, dia também, no sapatinho, na surdina, na malandragem. Nesse otimismo incansavelmente maroto, que não se abate se o trabalho de uma rodada rendeu um pouco menos que o da anterior, acredito piamente. Esse é cabra forte, cabra teimoso; se dobra a algumas contingências de um lado, do outro já começou a recalcular as coordenadas. Otimismo de avenger saudoso. Otimismo de Peri.

Se não temos nada a perder, o pessimismo é um desperdício. Se temos tudo a perder, o pessimismo não é uma solução. Na compra de um otimismo sustentável e autorrenovável, ganham-se chances fresquinhas de tudo efetivamente dar certo e, de brinde, o voucher de sucesso pré-datado enquanto ainda não deu certo no fim.

domingo, 20 de setembro de 2020

Quem cala ainda sente


Agora uma coisa só aparentemente desalmada, se vossos corações forem sinceros: é quase menos difícil encarar a constância desumana de uma britadeira do que a estridência das crianças que brincam. Das crianças desnocionadas por seus pais, ao menos. Neste exatinho momento em que escrevo, escrever é francamente impossível sem que janelas e cortinas tenham sido devidamente fechadas (o dia é quente) e o abafador de ruídos esteja em posição de guerra na cabeça (trucida o crânio, este coisinho fofo). Sim, aquele abafador de ruídos ao estilo dos usados dentro de clubes de tiro e ao lado das britadeiras. Por quê? porque um serumaninho histérico celebra histericamente sua brincadeira de lavar o carro com o pai, na garagem. Justiça seja feita, não é somente o serumaninho que grita; seu responsavelzão o atiça aos brados bicho-papões, "ameaça-o" de farra e desperta a pior euforia do monstrinho, sem se preocupar em moldá-la ao que seria razoável para um sábado quieto, no qual outras pessoas moram, pensam, trabalham, telefonam, descansam. Filho de desnocionado gritador, desnocionado gritadorzito é. 

Tem absolutamente nada a ver com não gostar de crianças: gosto, quero que aproveitem a meninice com o maior encantamento possível, quero que corram pelas campinas à roda das cachoeiras, atrás das asas ligeiras das borboletas azuis, casimiramente. Minipessoas fazem barulho, sei como é (tanto sei que não quis inventar nenhuma para compartilhar o endereço), e não sou aquela vizinha ranheta que reclama de tudo; muitíssimo ao contrário, não reclamo de nada. Naaadaaaaaa. Cerro os vidros, meto o abafador de quem está prestes a fuzilar alguém sem fuzil e segue o jogo. Mas poxa. Não é preciso, imagino, que um condômino apresente queixa formal para o incômodo se tornar patente: alguns, eu inclusa, só desejam que seu sossego e preguiça não sejam invadidos sequer pela necessidade de resmungar que seu sossego e preguiça estão sendo invadidos; só desejam existir soberanamente na paz, sem a própria amolação de lutar por ela. Esse direito inalienável de manter desnecessária a defesa do óbvio esbarra na outra parte, quando não quer cumprir o pacto tácito do "eu não te chateio, você não me chateia". Com frequência muito maior do que a aceitável, o lado azucrinante recebe o silêncio do azucrinado como satisfação e anuência, encostando-se no cinismo clichê do "quem cala consente" – e esquecendo que o vocabulário do silêncio vai muito além do binário, do sim e do não; silêncio pode sussurrar em nenhumas palavras: "não falo porque tenho medo", "isso me atrapalha MUITO sim, mas eu perderia ainda mais tempo parando para protestar agora", "nem te respeito o suficiente para discutir com você". Há milhares de diálogos prováveis embutidos no que não é dito – perceptíveis, teoricamente, por meio da santa delicadeza que deveria ser prerrogativa das almas humanas; da alguma sensibilidade que nos cabe, em tese; quanto mais não seja, do modelo mais básico de noçômetro que esteja disponível no mercado.

Não urge nenhuma fórmula de Bhaskara para descobrir que se está incomodando alguém, convenhamos. Qualquer indivíduo que não tenha sido criado por lobos é capaz de constatar que talvez haja decibéis de mais para o momento, talvez haja alguém doente no prédio, ou em reunião online, ou mergulhado em livros de Enem, ou simplesmente focado na televisão; talvez haja alguém no vagão do metrô constrangido com as intimidades tornadas de domínio público, ou debruçado nos últimos minutos de estudo antes da prova, ou esperançoso de espremer um cochilo entre dez estações. Claro, não é contra a lei estimular gritinhos agudos de criança (com gritões graves de adulto) numa tarde de sábado, não é contra a lei engatar um papo quase coletivo no metrô; é, porém, bastante pobre nos guiarmos apenas pelo contra ou a favor da letra fria da lei, que existe para o macro mas não aconchega o micro. Empatia não é bicho de simples proibições, é bicho de atentas gentilezas e minúcias – não escritas, não determinadas, não impostas, movidas única e meramente por essa coisa linda, linda que chamamos de consideração, um dos avatares do amor em uniforme de trabalho. 

Habilidade social e bacanice estão nisto, no fazer o sequer pedido, quanto mais o compulsório. Todo o certo que realizamos por encomenda das regras não nos coloca além de nossa obrigação.

sábado, 19 de setembro de 2020

Tá na cara


Vejam que estudo fofo. Pesquisadores da Universidade de Trento (Itália) deixaram 136 tartaruguinhas expostas a quatro imagens com padrões distintos, sendo que apenas um deles se assemelhava ao de um rosto, com formas que mais ou menos equivaleriam a dois olhos e uma boca. Adivinhem para qual imagem 70% dos bichinhos se dirigiam ou ficavam olhando apaixonadamente? Sim, esse desenho mesmo – o qual, quando removido pelos cientistas, era substituído no coração das tartaruguinhas pelo segundo que mais parecesse uma face. E não é por apego aos pais, como os bebezitos de galinhas, cães e macacos, que apresentam o mesmo comportamento: enquanto esses outros animais costumam ter mamães protetoras, os nenês tartarugas saem dos ovinhos sós e independentes. Na conclusão dos pesquisadores, portanto, filhotes tanto de espécies solitárias quanto das sociais têm uma atração por rostos vinda "de um mecanismo antigo, ancestral à evolução de répteis e mamíferos, que sustenta as respostas exploratórias e potencialmente de aprendizagem" (palavras das autoras Elisabetta Versace, Silvia Damini e Gionata Stancher). 

É fascinante saber que, a despeito até da programação biológica que faz algumas criaturinhas nem terem genitores em que se espelhar, a tendência das espécies mais evoluídas não deixa de ser a do espelhamento; somos todos, por natureza, buscões de uma âncora e uma bússola em outros olhos, em outras expressões e trejeitos. Como se cada animal de inteligência mais sofisticada trouxesse no DNA a informação primária, antediluviana, de que o mapa é o outro. No documento aberto em cada figura alheia, realiza-se a observação preciosa do que deu certo e do que não deu, a colheita das reações às várias experiências, a leitura das coordenadas disseminadas pelos pequenos músculos fofoqueiros que contam de alegrias, fracassos, raivas, paciências, ameaças, afetos. Principalmente filhotes (ainda inaptos para outras leituras) só têm no "posto Ipiranga" de seus maiores a fonte das próprias referências, a anteninha de transmissão dos sinais do mundo; é na tela desses exemplos que vão ver, escancarado, o que eles mesmos são: dons ou decepções, sortes ou trambolhos. O comum é que suas paredes emocionais se ergam escoradas nessa resposta.

Pequenos humanos – é claro que venho me referindo prioritariamente a nossos filhotes, que dúvida – podem não ter o extraordinário treinamento do FBI para avaliar microexpressões faciais, identificar verdades e mentiras que moram em olhares à esquerda ou à direita, em repuxadas de lábio ou coçadinhas de nariz; mas pequenos humanos são profilers intuitivos e competentes em perceber com quantos muxoxos se diz "te acho muito lento para aprender", com quantas reviradas de olhos se faz um "aff, cada medo idiota que você tem", de quantos bufos se compõe um "menino, tenho coisa séria pra resolver, me deixa" – assim como percebem olhares aplaudindo orgulhosos, sorrisos escutando sem deboche e lágrimas brilhando de aprovação. Promessas e discursos têm mais mecanismos de disfarce, porém rostos resvalam sempre, nem que por um nanossegundo, suficiente se o filhotinho em questão conhece aquele idioma de berço. É para as minúcias da face que a natureza, esperta, nos orienta, como se o código genético de milênios e milênios anteriores a nós cochichasse no instinto: olha os olhos, olha a fisionomia, filho; por eles, transborda o ecossistema interno; não há terremoto de dentro que não perturbe minimamente a construção de fora. 

Papais, mamães de crianças atentas (como o são todas, já que não existem as indiferentes aos indícios de serem ou não amadas): providenciem sentir no particular antes de denotá-lo em público. Pequeninos filtram o mundo na imagem dos grandes; a luz que enxergam ou deixam de enxergar é proporcional à que incide em seus adultos preferidos e ricocheteia transfigurada em autoestima, (in)segurança, ternura e explicação.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Canção do exílio


Hoje é o Dia dos Símbolos Nacionais: bandeira, hino, brasão e selo. E eu sinceramente gostaria de ter motivos para manifestar alegria empolgada na celebração de nossos símbolos. Embora considere no mínimo irritantes e cafonas os ufanismos patrióticos (facííííílimos de resvalar para o monstro do nacionalismo fascista), e embora tenda muito mais para a utopia de uma irmandade universal, sei que é saudável haver algum festejo de características localizadas, de particularidades, de idiossincrasias; vá lá. Acontece que o Brasil é um ser diferenciado no planeta, e se comemora muito melhormente no âmbito regional – com os carnavais, os heróis, as danças, as revoluções, os termos, as comidas de cada partezinha – do que no geral; no geral, no oficial, a autenticidade se esvai e fica o Brasil-pra-inglês-ver, com sua bandeira de cores trazidas pela nobreza importada (cores que significativamente excluem a do próprio nome do país, aliás), sua bandeira de lema sem calor, sua bandeira estampada com o céu de uma república ainda elitista e que veio com 67 anos de atraso (tá, o que não deixa de ser uma tradição nacional). O Brasil sabe ser gigante nas partes, não no todo; nos rodapés, não no texto. É belo, é forte, impávido colosso, mas não do jeito que o hino canta, projetando em nós uma cara largamente erudita, europeizada, com raios fúlgidos de uma liberdade que nunca veio – e sim na engenhosidade diária, na resistência em chão de barro, na sobrevivência, na resiliência. Palácios e gabinetes que carimbam símbolos do Brasil são os mesmos que o esmagam.

Não bastasse a pouca conexão real do Brasil carimbado com o vivido, ainda vêm os Comensais da Morte que apoiam o presente "governo" e sequestram definitivamente os símbolos nacionais para um whole new level de rejeitabilidade. Nas CNTP, afinal, apesar de toda a construção historicamente questionável da bandeira, das cores etc., a gente acaba garrando afeto, se emocionando ao ver o verde-louro da flâmula tremular no solo de outros países, ou ao ouvir o belíssimo ouviram-do-Ipiranga – que, acredito, só tem a Marselhesa como rival de melodia – abrir uma formatura ou fechar uma competição olímpica. Amamos criticamente nossos elementos representativos, mas amamos; nem que seja por hábito, educação escolar ou pelo sentimento quase compulsório de um parentesco. Isso nas CNTP, quando se vive num país problemático sim, porém viável, plausível, tangível, dentro de alguma escala de normalidade. Só que nosso paradeiro atual fica fora de QUALQUER escala de normalidade. A insanidade e a autodestruição assumiram o (des)controle; os zumbis ensandecidos que gritam não querer vacina, e sim cloroquina, desfilam por aí enrolados no auriverde pendão da terra e de vez em quando cantam as margens plácidas, enquanto distribuem sopapos e vociferam delírios nada plácidos. A própria camiseta canarinho, que não é símbolo nacional mas é como se fosse, foi moralmente arrancada de qualquer torcedor de bom senso: virou figurino coxinha primeiro, rebaixou-se a uniforme bolsomínion depois, o que torna inviável – talvez para sempre – que alguma criatura não identificada com o pensamento fascista volte a vesti-la. 

Ou seja: estamos mais órfãos do que nunca de ícones oficiais e extraoficiais da terra natal, já que o verde, o amarelo e suas várias manifestações ditas patrióticas, aprisionados pela seita maluca num relacionamento abusivo, começaram a nos causar repulsa. Eu e amigos diversos simplesmente nos recusamos a usar, postar, portar qualquer objeto, qualquer imagem, qualquer item que vagamente possa levar alguém a nos confundir com a zumbilândia – e isso lamentavelmente significa que somos exilados de bandeira dentro do próprio território nacional. Apátridas morais. Fugitivos que continuam morando na casa. Habitamos um paradoxo continental no qual os autodenominados patriotas envergam com ostentação os signos tradicionais de Brasil, mas tudo fazem para que ele perca o máximo possível de riqueza e soberania, e os que choram sangue por todas as perdas e mortes brasileiras são os que evitam os mesmos signos. Algo como um Supercine macabro no qual o proprietário legal do imóvel anda para cima e para baixo com uma camisa "I love my family", porém dá machadadas a torto e a direito em todos os cantos da propriedade, quebra os móveis, taca fogo com quem estiver dentro, esgota a água do reservatório, bate nos filhos, tortura-os, humilha-os, larga-os com fome; ao mesmo tempo, o cônjuge desse mentecapto morre de vergonha de envergar uma camisa igual, justamente por ligá-la à criatura doida, mas se põe a fazer, em desespero, tudo que está em suas mãos para impedir o aniquilamento da casa e dos inocentes – e é só por eles que não larga essa loucura e vai viver aos pés das montanhas Velliangiri praticando yoga. Soa bem Stephen King? Mas nem se ele, Kafka, Lovecraft e Poe sentassem para um brainstorm num bar ia sair uma encrenca do tamanho da que andamos frequentando. Os dois últimos anos de Brasil fazem o inverno no hotel Overlook parecer um toboágua no cruzeiro da Disney. 

E, do jeito que anda a coisa, logo vai ter nem palmeira ou ave que aqui gorjeie pra fingir que ainda é lar.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Ideias de caixinha


Tooooodo mundo já está carequérrimo de saber, mas não custa reiterar cientificamente, pra ver se estimula sinapses novinhas num povo aí. Cientistas da Universidade de Queensland, na Austrália, analisaram os dados de 11.564 cidadãos do país, comparando duas enquetes: uma para testar habilidades cognitivas e a outra para checar posicionamentos quanto à igualdade de direitos. Neste segundo caso, os entrevistados reagiam com números entre 1 (discordo fortemente) e 7 (concordo fortemente) à afirmação: "Casais homossexuais deveriam ter os mesmos direitos de casais heterossexuais". Pois adivinhem: as criaturas que pontuaram menos em inteligência (especialmente na parte verbal) pontuaram mais no quesito preconceito – surpresa chocante para absolutamente ninguém.

Sei que parece fácil falar do ponto de vista de quem teve educação formal, social, familiar, religiosa que nunca estimulou e sim coibiu intolerâncias; sei que muitos, devido às circunstâncias de nascimento e criação, à aridez de oportunidades, à ausência de estímulos do ambiente, ao parco acesso à escola, leitura e artes em geral, à rigidez dos costumes de origem, até à alimentação deficiente, acabam resvalando para a rejeição pura e simples de tudo que foge a seu vaso espremedor de raízes, à sua cerquinha de arame farpado. Não melhora o efeito, mas a causa é tristemente compreensível. Há situações em que uma inteligência mais aguçada, mais sedenta e de maior sensibilidade consegue peitar o cativeiro intelectual em que a abandonaram, porém está longe de ser regra – e parece injustíssimo exigir do grosso o mesmo desempenho das exceções. A tendência é que inteligências normais, medianas, se sufocadas pelo regime desértico da ignorância, terminem se curvando para a terra, longamente convencidas da inexistência de outra luz. 

Esses casos, os da ignorância mais básica (aquela que vem do vácuo, da ausência, da falta de chance e/ou de zelo), são inteligíveis no que diz respeito à intolerância, que nasce sobretudo da carência de conhecimento. Mas e quando EXISTE conhecimento – quando houve boas escolas, curso de inglês, judô, clube, cinema, comidinha balanceada, circulação em vários ambientes, visita a outros países, fartura de encorajamentos – e MESMO ASSIM o indivíduo me sai um preconceituoso incapaz de evoluir? Aí, me desculpe: é burrice legítima, e a ciência assina o laudo. Trata-se de ter neurônios continuamente expostos a estudos, amigos, meios de comunicação, redes sociais, and still empedernidos, impermeáveis. Infelizmente não há outro nome. Burrice.

Chama a atenção, na pesquisa de Queensland, que o déficit na expressão verbal seja o mais diretamente relacionado à manifestação de intolerância. Faz todo o sentido. Respeitar, acolher, compreender não têm um parentesco óbvio com habilidades matemáticas, por exemplo (o que não quer dizer, é evidente, que pessoas boas com números não possam ser altamente empáticas; estou apenas observando que esses talentos não dependem tanto um do outro). Por outro lado, respeitar, acolher e compreender têm TUDO a ver com o discurso, com a proficiência em acompanhar uma linha de pensamento e identificar uma falácia, uma incoerência, uma conclusão absurda; e acredito tenham a ver, tão fortemente quanto, com a capacidade de SE verbalizar. Inúmeros preconceituosos (talvez todos) começam a confusão e a rejeição por si mesmos: não se entendem, não se aceitam, não conseguem transformar em palavras analisáveis os seus recalques, os seus medos, as suas invejas, os seus impulsos, os seus incômodos, as suas solidões, as suas próprias discordâncias das pressões de família, dos estereótipos de turma. Não estando aptos para desenvolver um discurso individual, compram o que fica mais à altura dos olhos na prateleira; simplesmente estendem a mão e metem na cesta o clichê mais superficial, o bordão mais estridente, o texto mais transgênico e menos nutritivo que vem na embalagem mais berrante. Junk shoppers de mercado e de vida: pensar não é prático, me deixe apenas repetir.

Como o próprio termo sugere, preconceituosos apontam o dedo e pedem combos de conceito previamente organizados e embalados – e, se bobear, pedem pelo número da promoção, sem saber sequer o nome da porcaria engolida. Saber para quê? Basta seguir direitinho as ordens do palhaço.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Meus olhos estão secos

Estão literalmente secos, por vários motivos que consigo reunir mentalmente: o clima do Rio andou muitos e muitos dias de um secume causticante; em consequência, ventilador em cima quase todo o tempo, esbagaçando ainda mais a umidade dos olhos; na mesma linha, ar-condicionado para dormir e a continuidade do ressecamento; como se não bastasse, horas e horas de computador na cara, sem aquela proteçãozinha contra luz azul que alguns óculos já incluem; e horas raras de sono, um sono demorado e ineficaz de engatar. Os olhos não param de estar insuportavelmente secos, portanto – secos e doloridos, pesados, impacientes, exaustos para enxergamentos de perto, embora míopes. Tento providenciar que lacrimejem; banho-os em soro fisiológico (por falta do coliriozinho que imita a hidratação natural do olho); continuam porém espetantes e (sono)lentos, impróprios para leituras e outras ações de maior densidade. 

Como não é raro que denotação e conotação se abracem, se confirmem, devo dizer que: meus olhos estão secos. Emocional, figurada, politicamente falando, acham-se exaustos até para enxergamentos de longe; não conseguem mais suportar o sangramento de fogo que devora o Pantanal, a Amazônia, a Califórnia, que despedaça casas e biomas, rios e vidas, matas e pessoas e jacarés e onças. Não conseguem mais senão contemplar, embasbacados, aturdidos, o inferno de fumaça, cinzas e sarcasmos que se tornou o meio ambiente com seu "ministério" de horrores. Não conseguem mais reagir à destruição-trator, sem pausa, sem critério, que tudo engole numa catarse de ódio. Não conseguem mais se esvair em comoção e lamento; comovem-se, lamentam, porém não se esvaem – estão momentaneamente calcinados como a terra assassinada para virar pasto; estão temporariamente paralisados como a rota que nasceu para ser rio e não é mais rio. Não vibram, não brilham, mal se abrem sob o clima desértico que se empenha em desertificar qualquer nascente que o toque.

Meus olhos estão petrificados pelas emanações da Medusa com cabeças de Hidra que nos desgoverna; mantêm-se congelados e desacelerados em sua impotência a fim de não se arrebentarem em carradas de fúria. Estão quietos como o bicho que, para proteger-se, hiberna. Estão imóveis porque o estado de choque é demasiado; porque a erupção de toda a ira contra os hipócritas possivelmente aniquilaria mil quilômetros nos arredores; porque, mesmo não sendo (feliz ou infelizmente) olhos de Ciclope, ambicionariam destruir numa piscada os que destroem, e fatalmente passariam a pertencer à lógica da destruição. Meus olhos estão inertes de abismados, como se efetivamente debruçados no abismo – naquele silêncio, naquela imobilidade que antecipa a cólera, a sanha de fera acuada e atiçada. Movem-se lentamente para não provocar a pólvora. Mexem-se molemente para não detonar a bomba.

Meus olhos estão secos – não cegos. Um qualquer descuido meu e eu seria o mesmo fogo que vou eternamente desprezar.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Estranhos no ninho


A atriz Monique Curi, que relacionarei por todos os séculos à novela Felicidade, chegou a ficar de 2000 a 2012 afastada da telinha; deu uma parada após Laços de família, tornou-se mãe, só retornou em Salve Jorge. No entanto, já na festa de lançamento da trama percebeu que a volta ia ser pedreira: tinha perdido o costume do meio glamourosão e se sentiu altamente deslocada ao ver "aquelas estrelas, com as suas bolsas caríssimas, posando para os fotógrafos" (palavras ditas à coluna de Patricia Kogut) – deslocada e desaconchegada a ponto de explodir em choro depois do evento, no recesso do lar. Monique ainda encarou alguns poucos trabalhos de atuação, mas claramente a famigerada festa marcou sua despedida emocional e moral das projaquices; a atriz, hoje, se dedica a seu canal no YouTube (Jeito de Ser). Felizona da vida.

Obviamente, a questão das bolsas é simples metonímia para condensar o que outras palavras da artista englobam melhor: "esse é um meio com muito ego e muita aparência". Ater-nos às bolsas poderia fazer parecer que ela ou nós estamos atribuindo ostentação e futilidade somente às mulheres, o que não procede de modo algum; apenas é natural que ela tenha se espelhado nas indumentárias, cobranças, peças de figurino tipicamente ligadas a seu gênero. Em verdade, porém, o desconforto se aplica ao pacote inteirinho: não à parte artística, já que o ofício dos atores em si é de uma beleza sagrada, mas às circunstâncias exteriores à obra – exibição quase compulsória para fofoqueiros de plantão, detalhamento de grifes praticamente obrigatório em jornais e revistas, mil crises de autoimportância protagonizadas por autores, diretores e demais senhores com dificuldade para receber críticas a seus clichês e absurdos, mil caudas psicológicas de pavão abertas e esbarrantes. Te entendo, Monique; eu duraria um total de dezoito minutos nessa seara. Com sorte. Num dia bom.

Nem posso conceber como deve ser pertencer-se muito pouco, eu que não me imagino lidando sequer com as demandas de uma criaturinha que eu parisse – QUANTO MAIS com as de poderosões surtando em ataques de pelanca, com as de celebs trocando farpas no Twitter, com as de fãs e haters se sentindo no incompreensível direito de meter o nariz bedelhudo, com as de repórteres perguntando qual é o estilista. Infelizmente não sei qual é o estilista, amado, o vestido é de lojinha da rua da Alfândega, a bolsa é da feirinha da praça Saens Peña, lugares com preço feito para quem mora no mesmo Brasil que eu. Gosto de ver rapidamente as fotos das lindas nas estreias? Gosto, porque a beleza sempre me atrai. Ligo para a etiqueta do que vestem? Tanto quanto para a escalação da seleção tailandesa de 1972. Faria parte desse universo? Nem em um milhão de anos ou por um milhão de camelos (à moda dO clone). Sou preguiçosa e arredia nata para tudo que tenha alta manutenção em termos de look, vida social, administração de egos, distribuição de sorrisos. Sorrio com extrema constância, mas cada vez com menos condescendência. Além de achar invasivas até as câmeras das videochamadas e das férias em família: vejam QUANTA chance de uma carreira televisiva dar megacerto. 

Não quero me pintar desapegada, evoluída, dançando riponga em Visconde de Mauá; tenho inúmeras vaidades, todos temos, só não estão empregadas onde tenderiam a estar, caso eu pleiteasse esse emprego específico numa vida hipotética. Basicamente é isto que precisamos sacar o mais cedo possível no curso profissional: quais perrengues seriam i-na-cei-tá-veis no horizonte e com quais lidaríamos mais de boa – não que problemas devam ser aceitos, porém sempre há os que têm menos capacidade de nos destruir até serem destruídos. Quanto mais aptos e equilibrados para os no-entantos, mais cotados estamos também na escala dos encantos; não muito diferentemente, aliás, da lógica sentimental ou da turística. Cada qual tem destinos possíveis, destinos ideais e destinos em que a probabilidade de despencar de um barranco fica assustadoramente acima de zero. 

Que a empreitada youtúbica iniciada há dois anos por Monique Curi continue a se mostrar uma escolha feliz em todos os sentidos; precisamos urgente e avassaladoramente de um mundo povoado por gente feliz em suas escolhas. Gente feliz mesmo, não apenas sorridente para fotógrafos e celulares. Gente cuja maior realização seja viver o que se vive – e não mostrar o que se está vivendo.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Querer grande

 Amor, Fantasia, Voar, Dia Dos Namorados, Reino Unido

"Há o desejo, que não tem limite, e há o que se alcança, que o tem. A felicidade consiste em fazer coincidir os dois." 

O pensamento é do escritor português Vergílio Ferreira, mas de todos por extensão, já que parece improvável encontrar quem discorde (OK, OK, encontra-se quem discorde de que a Terra é redonda ou quase isso; ainda assim, me deixem sonhar com uma sensatez global. Grata). O que é um mínimo contentamento na vida, senão um encaixe razoável entre a altura pretendida e a potência das asas, entre reinos tidos por encantados em criança e carimbos no passaporte do adulto? Não se trata – nem um pouco – de querer pequeno; trata-se de querer abrangente, sem especificação de marca, de etiqueta, de ano de fabricação ou prazo de compra. Não se trata de mutilar possibilidades nossas, trata-se de não encorajar impossibilidades doidas – entendendo-se como impossibilidades reais o fazer questão dos poderes do Thor, ou de uma casa com piscina no núcleo da Terra, ou de um visto de residência entre os na'vi em Pandora. Mesmo alguns delírios fofos são permitidos na ambiência da felicidade, desde que flexíveis, adaptáveis, reproduzíveis em massinha colorida, não necessariamente esculpíveis em carrara.

Assim: pode-se desejar um castelo medieval, mas a felicidade inteligente saberá dialogar com o gigante da improbabilidade e topará se realizar com visitas a um ou outro, com uma pegada de Távola Redonda na decoração do apê, quem sabe um dia com a construção de uma casinha de pedra que inclua segredinhos de passagem entre os cômodos. Pode-se ser fã apaixonado de um(a) artista, mas o coração apto para feliz nunca há de esperar subir ao altar com o ídolo; vai, sim, considerar-se king of the world se estiver no show, se entrar no camarim, se descolar selfie e abraço, às vezes só se assistir 8.765.996 vezes ao clipe no YouTube. Pode-se guardar uma fome maluca de viver em outras eras, perambular em velhos séculos, mas a alma comprometida com seu gozo não vai ensandecer caso a máquina do tempo não fique disponível no Mercado Livre: esperta que é, há de se meter em teatro, TV, cinema como atriz ou figurinista ou cenógrafa, há de se enfiar pesquisantemente em bibliotecas e museus, há de até achar na internet modelitos e amigos vitorianos. Pode-se arder em chamas de ser um novo Messi, mas a mente sã, se ainda mais sã do que o corpo são, não dependerá de tanto: abraçará com amor o esporte e estremecerá de contente só em arrumar jeito de viver desse amor (como profissional) ou com suficiente espaço para ele (como praticante). Pode-se querer forte, querer muito, querer balofo e sem fronteiras, contanto que se esteja sabiamente livre do contanto que, moldável nas negociações dos pré-requisitos, aberto a reinterpretações que não neguem a essência.

"Só serei feliz com uma Ferrari na garagem": ISSO é querer pequeno, porque limitante, amarrado, restrito. Querer grande e desfronteirado é sobre ser-se leal sendo-se também generoso, dando-se opções largas, montão de caminhos arejados, nenhum deles ciumento daquele que for efetivamente seguido. Fundamental é amar-se o bastante para se perdoar a estrada não trilhada; investigar-se com a calma valentia dos que se reconhecem amplos, dos que não se subordinam a um só detalhe para justificar toda a construção. Corações que desejam sem se autoperceber, e consequentemente sem transigir, não raro dançam a um metro de mergulhar na infelicidade completa, talvez mesmo em algumas formas de loucura – essa que simplesmente nasce, muita vez, da infelicidade elevada ao cúmulo.

domingo, 13 de setembro de 2020

Que nem maré

 lua cheia, lua, menina, assistindo, oceano, natureza, vendo, olhando,  cheio, céu, agua | Pikist

Achei incrível descobrir que, de acordo com uma pesquisa divulgada há seis anos, a lua cheia interfere em nosso sono mesmo quando não é vista por nós ou não a sabemos cheia. Os participantes do estudo em questão, realizado por uma universidade suíça, foram acompanhados durante as várias fases lunares; em média, levaram cinco minutos a mais para começar a dormir – e dormiram vinte minutos a menos – em época de lua balofa. O porquê dessa atração fatal e quase mística, não sei; nem faço ideia se os cientistas fazem ideia do motivo; só sei que, pelo jeito, existe maré alta de gente, maré alta de consciência, de pálpebra, de olho: somos tão suscetíveis e ficamos tão desassossegados quanto as ondas com o chamado da Dama Branca, que aparentemente não se conforma em não receber todas as atenções.

Sou do grupo facilmente enfeitiçável. Se não disponho da explicação científica para a insônia que acomete os terráqueos quando o nosso satélite favorito está pleníssimo, não posso, entretanto, dizer que não a entendo. Eis que a grande princesa dos céus visíveis se veste de noiva, se veste de festa e vem se postar toda amostrada no caminho, feito uma rainha Ester em seus trajes de dar agrado: olhe-me que-linda, ouça o que peço. É um amor hipnótico o que ela pede; resistir como? se aquele luzão braaaanco, braaaaaanco se espalha – talvez nem tanto nas cidades onde ainda é horário ativo e ofuscado de postes e faróis, mas – pelas partes da casa já desligadas do expediente, já cheias de gente enfim recolhida ao susto de anoitecer? Assim que nos flagra mais aliviados de afazeres, indo de pijama ou camisola buscar água na cozinha, a Dama Branca sorri possessiva, embora com doce paciência: agora sim você é minha, você é meu, e não vai voltar para a cama ao pressentir meu auge de claridade. Vai espiar pela janela. Vai espiar longa, aturdida, apaixonadamente pela janela.

Nós espiamos pela janela, apaixonados e aturdidos, maré-altos, chocados que aquela grande noiva noturna não brilhe por conta própria, ou que consiga transformar num apelo tão indiscutivelmente feminino o que a luz do sol (I mean, do Sol) tem de feroz e agressiva. O Sol é uma pua; a Lua é um lençol. Não existe inluação que nos confunda, nauseie, queime, desidrate: a satélita gentil suaviza tudo, reescreve o clarão do raio recebido, reinterpreta-o em forma de maciez e transe, faz sua mágica singular de virar sabre em seda. O Sol não nos deixa dormir porque escandaloso, a Lua não nos deixa dormir porque sedutora; ao contrário dele, permite-se olhar e se quer olhada, persuade-nos a olhantes apenas sorrindo, sendo, vindo. A Lua é um ciclo, um vício, um enredo, um enrosco.

O Sol nos acorda com ou sem nosso arbítrio, sacudindo-nos despertadores e hormônios na cara. A Lua nos desperta as verdades que dormem, espelhando o espanto que temos conosco.

sábado, 12 de setembro de 2020

Sadaka tashi

 File:İmrahor3.jpg - Wikimedia Commons

Descobri recentemente sobre um antigo costume turco lindinho: a tradição sadaka tashi, relacionada às "Pedras da Caridade". Ainda na época do Império Otomano, espalharam-se diversos monumentos rochosos pela Turquia (dos cerca de 160 originalmente existentes em Istambul, restam uns 30), nos quais os mais ricos podiam deixar uma grana a ser doada para os mais pobres, com o conforto do anonimato; nem os benfeitores faziam pavonice de sua boa ação, nem os que necessitavam das doações se sentiam intimidados ao aceitá-las. Hoje as "Pedras da Caridade" específicas se encontram praticamente em desuso, porém ainda vivem como ideia – tanto que o sacerdote islâmico Abdulsamet Çakir tem aproveitado o espaço de guardar sapatos dos fiéis em sua mesquita (espaço este que anda em "recesso" de suas funções, devido à suspensão provisória das rezas coletivas) como um estoquezinho de alimentos para os necessitados; e, na mesma vibe, inúmeros doadores anônimos já contribuíram com aproximados 3,4 milhões de dólares em um site local que dá uma força nas contas de água e luz da população carente. Não é no Brasil, mas poderia ser – e, afinal, é no mesmo planeta, é na mesma espécie, o que já põe um quentinho no coração. Só essas notícias com cheiro de fornada para nos sustentar erguidos, bastantemente fortes, em era de pandemias e reformas administrativas. 

Claro, o ideal dos ideais era não haver desigualdade alguma, ao menos no ponto de partida; não existir esse disparate chamado fome, não ser possível que alguém não conseguisse pagar contas essenciais – em suma: o ideal era que fosse absurdo e inaceitável exatamente tudo que é absurdo e inaceitável. Aparentemente, no entanto, essa bodega toda continua sendo não só aceitabilíssima como fundamental para alguns. Enquanto trabalhamos com gana para corrigir esses despautérios macro, vamos nos aconchegando nas felicidades micro, nas manifestações mais restritas e até individuais de bondade explícita. A ideia das "Pedras da Caridade" me seduziu desde logo pela antiguidade e, em especial, pelo extremo da delicadeza, uma vez que o mecanismo de generosidade às cegas foi lindamente pensado para linkar os dois lados sem constrangimento de nenhum (principalmente da parte receptora, que não precisava expor suas dificuldades se não o desejasse, nem sentir-se devedora de um determinado poderoso). Admiro com toda a ternura iniciativas assim, de coração para coração, sem requisição de identidades – e felizmente continua a haver fartura de exemplos pelo mundo, irmãos das ações de Çakir e do site turco inspiradas na sadaka tashi: diversas padarias e mercadinhos de bairro que disponibilizam pães e demais produtos, de graça, em balcões externos; bares e restaurantes nos quais os clientes deixam cafés ou refeições pagos para pessoas necessitadas que vierem recorrer aos estabelecimentos; costureiras que produzem máscaras gratuitas contra a covid e as distribuem aos que não as possuem (vi casos de "árvores de máscaras", onde as proteções ficam penduradas como frutos e podem ser "colhidas" por quem passar); varais solidários em que roupas bem conservadas são depositadas por seus antigos donos e se tornam disponíveis para novos, beneficiando principalmente pessoas em situação de rua. Isso apenas para citar exemplos que me ocorrem de imediato – afora as doações que são, mais do que todas, questão de vida ou morte, como a de sangue e a de medula óssea. Um universo de pequenas e grandes entregas humanas para nos lembrar, de tempos em tempos, o que raios estamos fazendo mesmo aqui no planeta.

"Pedras da Caridade" devemos ser todos, potencialmente: fontes de altruísmo que não perguntam para onde correm, não pedem crachá nem carta de apresentação; mãos que têm olhos e ouvidos para saber do entorno, mas não têm boca para dar a saber de si; nascentes que minam e minam e minam cuidados sem minguar nunca, sem escolher planta, sem selecionar raiz, apenas banhando em vida o que estiver seco. Pedras sim, para servir de marco, apoio, referência; jamais imóveis e mortas, porém. Pedras permeáveis ao meio, moldáveis, atentas, ainda assim discretas em suas indulgências. Pedras sólidas e grandes o bastante para se fazer sombra, parede, sem ser tropeço. Contínuas. Confiáveis. Presentes sem opressão e permanentes sem cobrança.

Nossa função de ser gente é essa, direta e gratuita. Tudo que nos afaste de ser o único tipo possível de pedra – que fique pelo meio do caminho.