sábado, 31 de julho de 2021

Podem dizer que não falei das flores


Cem anos; exatos, redondíssimos cem anos. Edição 210 do Jornal do Brasil, domingo, 31 de julho de 1921, página 15 (estou impedida de printar e reproduzir aqui devido a direitos autorais, creio, mas convido os duvidantes a visitarem nossa ótima Hemeroteca Digital e conferirem com seus olhitos. Não vos culpo: também mal pude acreditar nos meus). Chocando todos os bons sensos possíveis, eis que se encarapita no canto superior direito um "Concurso das Flores" – OK até aí –, abaixo um "Hoje 7 coupons" – certo, beleza –, abaixo um "Alguns dos brindes que distribuímos" – opa, vejamos... e então o pasmo: duas AR-MAS! descritas como uma "magnífica espingarda para caça, da conhecida fábrica Harrington & Richardson [...], acompanhada de uma caixa de excelentes cartuchos" etc. etc., e um "superior revólver do mesmo fabricante [...], também acompanhado de munição" parará, parará. Não, os olhos engasgaram; não, não, simplesmente não. BRINDES DE CONCURSO?? DAS FLORES?... Pois eram. Eeeeram, amigues – e não pensem que acabou, o mais estarrecedor vem agora.

Do lado direito (claro) aquelas armas terríveis, horrorosas, medonhas, ambas apontadas para a esquerda; e sabem qual era um outro prêmio do tal concurso, posicionado (claro) à esquerda? Uma "riquíssima IMAGEM DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS", assim com caixa-alta do jornal mesmo, além das devidas especificações do fabricante. Parece que havia mais brindes, como um conjunto de poltronas e uma passagem marítima de primeira classe para Buenos Aires, mas me foi impossível prestar qualquer atenção decente ao que não fosse aquele retrato preciso, centenário, do que teimamos desgraçadamente em ser: um país que trata com a mais estapafúrdia naturalidade equiparar instrumentos de morte a imagens sagradas, tudo cozido num caldo de burguesice estúpida, cínica, leviana de um concurso para a família numa edição dominical de periódico.

Verdade que posso pollyannar em autoconsolo, dizer-me oh! como evoluímos, hoje em dia essa aberração jamais estaria estampada em páginas de jornal, jamais seria nem levemente considerada como premiação; já imaginou o gigantismo da treta? Inimaginável, pois é. Isso, porém, não chega a dar reconforto que chegue; é forte demais, grande demais o peso simbólico da malfadada figura para que não corra um arrepio até a ponta do cabelo, um estremecimento das sinapses que se fazem à revelia. Aquilo de há cem anos é uma polaroid em nosso histórico, um instantâneo em nossa linha do tempo hipócrita, carola e bárbara, construída numa promiscuidade de beatices de novela com jaguncismos de sala de estar. Não que eu considere a religião carolice, muitíssimo ao contrário; sou e sempre fui católica, sei perfeitamente que as religiões praticadas de alma e não só de pele manifestam necessariamente o amor por ações – e NENHUMA OUTRA possibilidade de prática religiosa existe: ou promove o bem comum, ou não é religião nem aqui nem depois de Plutão. Por ter certeza dessa obviedade é que espumo de fúria! ao ver uma das maiores metonímias de mansidão e ternura colocada na mesma categoria do que fere e destrói. Fúúúria de ver que, provavelmente, para as famílias que concorriam aos brindes estavam ali seis e meia dúzia; a casa que recebesse um com toda a tranquilidade receberia o outro, sem assombro aparente. Bem este foi o meu choque: que estampar essa monstruosidade não tenha deixado ninguém chocado.

E a semiótica da coisa? Ostentar não uma, mas DUAS armas de fogo apontadas para Jesus. DUAS – sendo uma bem na direção da cabeça. É tão absurdo e espantoso que, afinal, pode até servir como uma espécie de desagravo, já que mal ou bem acaba posicionando com clareza o mal e o bem, nunca apenas coexistentes, sempre antagônicos. Tortamente, ato-falhamente, a escolha freak da diagramação se autodenuncia: estamos fazendo aqui um bagulho cabuloso, esperamos que notem, esperamos que percebam que armas e religião são mutuamente excludentes; se aparecem juntas, vocês veem logo qual dos lados está sendo assassinado.

(O mesmo que vem sendo torturado e assassinado com a recorrência de muitos milênios, e que ainda assim continuará se negando a portar instrumentos de morte com a constância de dois mil e sempre.)

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Barulhinho bom


Burburinho de água corrente, musiquinha dA vida da gente, acordes de "Qui nem jiló", trrrrrrrr de trilha de dominó, psssss de sabão em pó no recipiente; tonc! de lavagem que termina; vizinho que violina; tarde sem buzina. A cantiga do tororó. Pão em chapa quente.

Tim-tim com cristal; plim-plim pós-comercial; Leader trazendo Natal; abertura de um favorito na tevê. Chiado de LP. Borbulhas de Sonrisal. Crepitar de lareira; anúncio da Mangueira; tesoura de cabeleireira. Sem piada de pavê. Sem horror no jornal.

Plástico-bolha que espoca, explodir de pipoca, apito de leitor de preço, chorinho carioca, o Hino no começo. Calabresa imitando Ivete. Sotaque da Juliette. Sotaque pernambucano (baiano, lusitano). Ritmo cigano. Bola na raquete.

Ploc! do suco de uva, chuva, sapateado, pen drive encaixado. Gil indignado. Chaveiro amado abrindo a porta. Receita de torta pela Carol Fiorentino. O fim do Hino; o chamado da senha; a batida caribenha; as manhãs de feriado; o digitar no teclado; o tango argentino.

Vendedores de bala, notícia baphônica, som de urna eletrônica, dedo que estala, Romeu e Julieta da Turma da Mônica. Diálogos de dona Lícia; voz de Daniela Escobar; nosso time virando o placar; plantão de boa notícia; jingle da Minizinha (a maquininha que não tem aluguel); recepcionista de hotel; samba do Noel; contas de colar.

Bebês que gargalham, pílulas que chocalham, folhas que farfalham; comissárias de bordo perguntando "chicken or pasta"; solos de ginasta; uirapuru; rouxinol; sonata de Mozart em si bemol; risaditas de Pucca atacando o Garu.

Mensageiros dos ventos, bolinhas de gude, vinheta do iFood, casamentos, harpas e afins instrumentos, Roupa Nova, Quarteto em Cy, colibri que põe o equilíbrio à prova (e vence-o).

Silêncio.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

In natura

Fico sabendo que hoje é Dia do Batom lá nas bandas norte-americanas, e estremeço involuntariamente de desagrado; em verdade, de nojo. Sim, sempre tive um nojo horrendo de batom. Desde pequeninota (I mean, menorzota), ao ser forçada a usar o miserávi por causa de alguma apresentação na escola ou coisa assim, ficava com os lábios absolutamente tensos e desconfortáveis, sabedores de que qualquer fala, qualquer gole, qualquer esbarrão apagaria do rosto o esforço da maquiagem e poderia até se plantar no dente – eca, mil vezes eca. UM MILHÃO DE VEZES eeeeeca também, ou principalmente, quando alguma tia de batom forte me roçava o rosto durante os clássicos beijinhos cariocas e deixava um rastro daquela porcaria rosa-choque, vermelha, o que fosse; pouco me importava o grau de afeto pela meliante, o levar a mão à bochecha e esfregá-la vigorosamente era imediato. Era desfeita? dane-se; não sei quem foi o espírito de porco que inventou de as pessoas demonstrarem afeição ainda com esse troço na cara, e o passarem para a indesejosa cara alheia (um desrespeito aos que ODEIAM manchas), e com a mesma vileza darem BEIJITOS em papel para marcar território de um jeito que não pode ser simplesmente lavado. Como me dava ASCO que a escola inventasse, por exemplo, de as meninas da turma selarem algum cartãozinho de Dia das Mães com aquela marca horrorosa! Que injusto era, já que os meninos não precisavam passar por essa situação constrangedora e anti-higiênica!

"Credo, você exagera." Exagero não, meu querido e minha querida, ninguém chega nem perto de ter ideia dos assomos de nojidão que me tomam quando eu preciso – nem digo usar, porque agora, aos 41 anos, não preciso usar nadinha que não queira, mas – conviver com quem esteja usando batom vivo demais e sem um fixador que segure o bicho por no mínimo uma semana; e o negócio piora consideravelmente se a convivência envolve guardanapo e recipientes de bebida. Serei eu a única, ó céus, a morrer vários dias por dentro de ver a assinatura asquerosa do batom na borda de copos, xícaras, canudos? e a borração implacável sobre o papel e o tecido? Não se imagine que a sensação menos-piora se o batom for meu; nas rarissississíssimas ocasiões em que topo fingir usar essa bosta, demoro algum tanto para começar a comer e beber, tamanha a impressão aflita de que tudo que eu toco vira batom – ainda que eu consinta no máximo em um tom praticamente igual ao dos lábios, e em produtos com fixadores só arrancáveis depois de um mês. Rá! fixadores, eles dizem. Possivelmente por se sentirem rejeitados com tão decisiva violência, batons também me rejeitam e saem do rosto na primeira oportunidade, fogem de aparecer na foto ao primeiro vento. (Pra ser honesta, já vão tarde.)

Vejam, minha cisma/horror nem é só por troca de beijinhos e dinâmicas com itens de mesa; é por tudo: o receio permanente de o colorido traiçoeiro ir parar na roupa, a amolação de o cabelo grudar no bagulho quando bate a brisa, a impossibilidade de ignorar que a boca está numa camisa de força amarradora de movimentos (sinceramente, prefiro os lábios ressecados e rachados à aplicação da mais leve camadinha de protetor, mesmo incoloríssimo), a ansiedade de ficar na dependência do espelho (borrou? não borrou?), o pensamento ainda e sempre consternado da injustiça de os homens "não precisarem" usar. Ora, carambolas; se a cor e a textura originais são o bastante para bocas masculinas, para as femininas também o são; o que é suficiente para eles, em termos de aparência, é suficiente para nós – tenho dito. Fiquem aí os acrescentamentos de tom e brilho como uma diversão para quem gosta apaixonadamente dessas alquimias, e no mais não me chateiem. Mas hei de ser justa quanto ao desafeto de toda uma vida: hoje em dia o batom tem servido cada vez mais à liberdade e à igualdade, descendo de enfeite no rosto para alto-falante nas mãos; em muitos estabelecimentos, mulheres com um X vermelho na palma estão, mudas, emitindo toda a eloquência dum grito contra um ciclo de abusos domésticos – estão, na discrição do gesto, rompendo algemas de violência loud and clear. Nisso eu cedo humildemente e reconheço que, afinal, ter um batom possante na bolsa de fato empodera.

Às vezes é dia de sair pintada para enjaular a fera.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Nota de partida


Amo ginástica artística (apenas a parte de ver, OBVIAMENTE) e estava bastante animada para assistir às apresentações de Simone Biles, talvez o maior fenômeno da modalidade desde Nadia Comăneci. Isso não me impediu nem impede, entretanto, de apoiar incondicionalmente a decisão da americana de abandonar algumas disputas – talvez todas – das atuais Olimpíadas em prol de sua saúde mental, violentamente ameaçada pela asfixia cruel da cobrança e do favoritismo. O mundo inteiro não espera de Biles senão a perfeição mais impressionante em termos de pontuação e movimentos, em termos de energia e técnica e exatidão e graça; diante do que lhes digo com a mais honesta ignorância: não sei se o mais tóxico é que esperem sempre o melhor ou sempre o pior de nós. Eu estaria inclinadíssima a marcar sem pestanejos a primeira alternativa, caso não soubesse também o quanto o esmagamento de uma autoestima por assédio moral pode despedaçar um ser humano – pululam em toda parte situações de relacionamento abusivo, para servir de exemplo; situações nas quais o "você é burra", "é incapaz", "não presta pra nada", "não tem jeito mesmo" vai esganando na fonte todo o potencial inato. Isso é um assassinato com longos requintes e seu contraponto não é menos torturante; colocar sobre os ombros de um só (conforme a própria Simone metaforizou) o peso inteiro do mundo – cobri-lo de "você é uma lenda", "é a nossa maior/única esperança", "a salvação da família", "o orgulho da pátria", "o mais sensacional de todos os tempos" – deveria ser crime inafiançável de lesa-humanidade e promoção de loucura. Nasceram todos para assumir seu lugar no circle of life; ninguém para ser passado no moedor e ninguém para ser colocado no pedestal.

"Ââââin, mas ela é uma atleta olímpica, tem que encarar se quiser chegar ao topo, tem de saber que é assim mesmo." SAYS WHO que é assim mesmo? É um mandamento divino? estava nas Tábuas da Lei? foi posto na Constituição? trata-se duma determinação irrefugável, irrevogável da natureza? Até onde eu sei, não existe assim mesmo na ginástica, em qualquer outro esporte e em qualquer outra profissão que não tenha sido integralmente inventado ou, no mínimo, acatado por nós-humanos; não existe, parece, nenhuma legislação recôndita e primitiva que nos obrigue ao sofrimento como uma espécie de PUNIÇÃO prévia pelas realizações – e mesmo o trecho do Gênesis que informa ao homem "ganharás o pão com o suor do teu rosto" em momento algum acrescenta, penso eu: "e ferrarás o teu psicológico no processo". Esforço, dedicação, tudo isso está muito bem, é o devido, é o justo; mas que raio de sanha humana é essa que se deleeeeita em prescrever dor, desconforto e submissão para outrem, quase que se vingando assim de sua própria ausência no lugar de outrem? Simone Biles é o que eu nunca serei – elabora tortamente o pensamento sádico, pequeno-ressentido –, então que sofra, que pague dessa forma a dívida de ter sobre si todas as atenções, toda a fama, todo o talento, todos os holofotes; que deixe de mimimi de "saúde mental" e faça seu trabalho, HUMPF. Assinado: quem não consegue fazer seu trabalho, ou ao menos não o trabalho desejado, e gostaria bem que o mundo acabasse em tribunal para morrer como martelinho de juiz.

Lógico, toda profissão terá sua cota de estresse, presume-se que adultos e jovens adultos lidem com isso da melhor maneira; não podemos nunca, no entanto, naturalizar placidamente o sofrimento que PODE ser evitado, que não é oriundo de doença sobre a qual não se tem muito controle, que não é fruto de acidente, tsunami, terremoto ou demais fatalidades. Não há justificativa para se defender como inexorável uma cobrança, uma besteira que vem de mera criação humana; não há explicação razoável para se adoecer alguém porque o patrocinador está chateado, o tênis ou o bonequinho será menos vendido, o país terá menos um ou dois ouros, a transmissão terá menos três ou quatro pontos de audiência. Pelo amor dos filhinhos que vocês não criam PARA sofrer: não me venham de o mundo é assim. O mundo é assim uma pitomba frita. Esse tipo de mundo é o que fazemos dele, essas relações somos nós que construímos, essas convenções somos nós que estabelecemos; pódios, medalhas, patrocínios, regras, pontuações, marcas de carro, joias, moradias-padrão, publicidade – a bagaceirada toda é invenção nossa, e quem inventa pode muito bem desinventar. Nenhuma dor artificialmente provocada dentro dum sistema de exploração é uma contingência, não tem que ser aturada, não era para existir e consequentemente não deve tomar JAMAIS o lugar indiscutível do bem-estar humano, perca-se o quanto se perder em cifras inúteis e imaginárias.

Simone Biles, caríssima: meus parabéns agora duplamente admiradores; de todos os seus movimentos, este último foi talvez o mais corajoso e preciso. Que por sua causa outras tantas ginastas, atrizes, cantoras, professoras, engenheiras, cozinheiras, pilotas, médicas, advogadas, balconistas, jornalistas estejam cientes do direito ao recuo em busca do sagrado ponto de equilibrar.

terça-feira, 27 de julho de 2021

Microssatisfações

As voltinhas virando um Vzinho de "check" naquele quadradito "Eu não sou um robô".

As quatro luzitas de cores diferentes virando a janela-símbolo, na abertura do Windows 7.

Fronhas avulsas casando integralmente com o lençol.

Bonequinhos fofos (e demais interessâncias) que aparecem ao fundo das lives caseiras.

Notas de loja, mercado etc. que NÃO vêm com CPF ou dados afins a serem milimetricamente rasgados.

Comerciais de alguns segundos na TV.

Comerciais de NENHUNS segundos no YouTube.

A (sub)matrioska menorzita.

O cavalinho que é mascote do Fantástico nas Olimpíadas e foi batizado de POCOTÓQUIO.

A elefantinha azul pestanuda que é mascote de uma marca de toalhas de papel.

(Toalhas de papel, aliás, que de fato secam alguma coisa, em vez de empurrar o líquido ôôôôôunnnn pra lá, ôôôôôôunnnn pra cá.)

As bochechas vermelhinhas das calopsitas.

O perfume que se hospeda nas mãos depois de elas (as mãos, não as calopsitas) lavarem roupa.

A escolha da identidade visual de cada atividade postada no Google Classroom.

O achamento de um nome perfeitamente escalafobético para usar em exercícios.

O instante de arriar no chão de casa as bolsas que vinham cortando, pesadonas, braços e ombros.

Shampoos que se ajustam redondo aos cabelos.

Ventos de tarde de verão.

Balinhas de restaurante.

Bilhetes.

Todas as notificações devidamente lidas no Face.

Revitalizadores instantâneos de tecidos, que deixam um perfuminho bom mesmo antes de a lavagem poder ser realizada.

(Bocaditos do muito que açucaram tudo sendo pouco mais de quase nada.)

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Eu acredito em fadas


Sensacional, Rayssa Leal.

Vai haver fadinhas querendo fazer igual em tantas casas – tantas expectativas rasas que não se alçavam por não ter mastro, e que no seu rastro, afinal, ganharam asas.

Tantas fadinhas que não se viam, não se sabiam, não se sonhavam; que escutavam: menina! sossega, menina! se comporta. Rayssa, você é porta, rampa, trampolim no meio da tradição cega, que não questiona o ser assim ou deixar de sê-lo. Você é alternativa. Você é modelo.

Cada sua manobra – moleque, inocente – ergue gente, ergue a obra; e ensina de sobra, menina: que garotas são mútuas bases, não rivais, e podem mais se em todas as fases estiverem juntas, estiverem muitas no abraço e na conquista. O espaço de uma dá às outras espaço; cada passo que andamos põe seiva nos ramos, põe todas na pista.

Rayssa, você representa: o coração que tenta sem deslumbrar-se, o que brinca na catarse, o que dança no medo – o que sabe não ser azedo por ser criança. É sorrindo que você voa, e não à toa, Fadinha, o apelido; até aqui o vivido te fez afilhada, mas hoje Rayssa é fada por ser madrinha.

Madrinha, sim, de todas elas – miniCinderelas que hão de dar baile em vez de aguardar o baile, que hão de ser a própria festa, sem bibbidi-bobbidi-boo requerido; que não precisarão de vestido para valsar a valsa, nem carruagem falsa, nem ouro de enfeite: vão ser ouro no skate. Vão ser ouro em seus talentos e forças, vão ser moças que mandarão nos ventos, nos rumos, na vida; rainhas de calça comprida, que seguem de frente e entre e sob e sobre e através, teimosas, duráveis, sem cristais quebráveis que caem dos pés.

Fadinha maranhense, obrigada; valeu pelo conto de fada em que nem sempre se vence, mas se vence e perde sem ódio. Valeu pelo pódio, pelo riso que aqui anda raro, caro e impreciso; valeu por deixar mais feliz, pequena (de) Imperatriz, cada trechinho dos Brasis que estão fartos de crueza, faltos de leveza, com gritos em represa pesando nas almas.

Quem também acredita em fadas – bata palmas.

domingo, 25 de julho de 2021

Amor multiplica


No evangelho da missa de hoje, a célebre multiplicação promovida por Jesus a partir de cinco pãezitos e dois peixes. É sempre tão comovente ler esse amor total, esse que é como devem ser todos os amores: espalhador de farturas e contentamentos sem teto de gastos, não se excedendo em extravagâncias e sim em importâncias; o amor, afinal, não está ligado em pirotecnias egoístas, superficialidades teatrais, odisseias dispendiosas, encenações de vento. O amor se concentra em saciar fomes, não se ocupa de caprichos; especializa-se em fornecer conforto, não trabalha com luxo; foca ardentemente em suprir necessidades, moldar felicidades, preencher carências – só olha de maneira secundária e de esguelha para birras voluntariosas. Com o amor não tem essa de quero porque quero: opera-se apenas em modo dou-lhe aquilo de que precisa.

O amor não multiplica feito doido os brinquedos, jogos, sapatos, roupas, celulares dos filhos; provê o básico na medida de seus alcances, claro, mas de jeito nenhum favorece exageros de consumo nem compactua com as voragens de um sistema concebido para moer gentes (e ambientes). O amor multiplica chances de sentar com o guri ou a guria para fazer e ler histórias, criar carrinhos de PET, bonequinhos de pano antigo, cabaninhas de lençol; o amor multiplica coreografias do "Baby shark" em família, cultivo de hortitas nas embalagens de refri, discussões mente-solares de cenas de filme e novela. Multiplica teatrinhos de sombra, passeios virtuais em museus, invenção ou partilha de instrumentos musicais, conversas sérias e ternas sobre a atitude com o coleguinha, abraços, colo, escuta – doze cestos diários de escuta, esses sim transbordantes a gosto. Abarrotados sem risco.

O amor não multiplica joias e excentricidades afins durante a conquista, muito menos cobre com capas de ouro suas culpas; quem abusa de iscas tão exteriores é porque se acha incapaz de interioridades válidas, e pior: por não ter profundidades, está igualmente convicto da rasidão do outro, a cuja compra se considera autorizado. O amor não multiplica perseguições e controles tampouco, em forma de "onde você está?", "quem é esse?", "manda uma foto" e demais possessividades romantizadas; nunca se extravasa ou se demonstra em ciúmes, nunca se materializa transformado em hemorragias de tensão e dor. O amor multiplica olhares descobridores, não cobridores – cobradores, nem pensar – do ser que se ama; multiplica zelos de formiguinha, atenções levadoras do doce favorito, montadoras de álbum de lembranças, adivinhadoras de presente simbólico, providenciadoras de cobertor, de remédio, de cartão de níver, de fones sobressalentes. O amor multiplica críticas que abraçam feito elogio por serem servidas na temperatura certa, multiplica conselhos precisos mas macios, observações temperadas de açúcar, apoios que não azedam mesmo depois de fornecidos longamente, lealdades que não cedem a nenhuma zanga, nenhum ressentimento, nenhum rancor.

Amor que sabe pertencer sem sufocar ou sufocar-se: multiplica, Senhor.

sábado, 24 de julho de 2021

Crushes funcionais


A gente sempre tem atividades sonhadas para o antes-de-morrer, mas a tendência é que sejam sonhos brincáveis: tirolesar de um lado a outro do precipício, fazer um boneco de neve ("Do you want to build a snooowmaaaan?"), andar numa especificamente alucinante montanha-russa, adentrar um castelo romântico, reproduzir com uzamigue uma cena de musical. Existem também, no entanto – pelo menos existem chez moi –, as vontades funcionais que nos esvoaçam às vezes, os mosquitinhos de cisma que nos sugerem outras tarefas, ainda que apenas etereamente consideradas; não são carreiras que necessariamente seguiríamos, são impulsos, abstrações, curiosidades ou paqueras que tanto poderiam derivar sim em matrimônio profissional quanto evolar-se, coração-partidas, ao sopro do primeiro estágio. Alguns crushes funcionais com que eu talvez viesse a dar um bocadinho de match:

Compor a identidade visual de personagens de filme ou novela, em especial figurino; como feliz garimpeira de sebos, pressinto que seria também garimpeira felicíssima de brechós, reunidora saltitante de adereços, trajes, bobagices de cena, conceitos de personalidade completos e traduzidos em look. Adoraria da mesma forma caçar peças em feiras, ambulantes, antiquários – perseguir bibelôs, bonequinhos, almofadas, cartazes, cortinas, papéis de parede, móveis estaile, todos os elementos que criassem em torno dos cidadãos ficcionais uma verossimilhança de gosto próprio, de vida autônoma.

Ser personal shopper de presentes. Gosto de achar coisinhas especiais, como aliás acabaram de constatar; por que não expandir o escarafunchamento profissional para o ramo dos mimos de Natal, aniversário & demais calendarices?

Montar vitrine de loja. Sim, admito, já quis ser vitrinista – e não somente poder PIRAR no chamariz do estabelecimento como poder brincar de vestir TODOS os manequins do lugar (sendo grandão) com as combinações de minha escolha.

Desenhar vestidos de noiva, estar cercada de vestidos de noiva, ter acesso a um acervo nível Kleinfeld de vestidos de noiva, ajudar e acalmar a noiva, perguntar à noiva: "Esse é o seu vestido ideal?".

Artesanar.

Bolar capas de livros.

Bolar desafios intrincadíssimos para a revista A recreativa.

Ressuscitar de arquivos antiquíssimos os escritores – e mui especialmente as escritoras – que interesses escusos apagaram da História.

Criar e decorar fofissimamente casinhas ou apês lindos, dignos, completos a serem dis-tri-bu-í-dos, sem custo algum, ao maior número possível de pessoas necessitadas de moradia (tooooorçam para que eu ganhe na Mega da Virada, amados meus!).

E um montão de etceterições semelhantes, todas relacionadas a invenção e busca. Não minto quando me digo pássara: sou beija-flor no coração e n'alma desde há muito, desde cedo, desde sempre; e, se sempre vou ser pequenina demais e inquieta demais para a maior parte do que deveria ser feito, se tenho infinita a convicção de estar fadada a catar beleza e doçura para beber mesmo em canto inóspito (é isso ou a morte, simples), tenho ao menos a convicção adjacente de andar carregando, como tendência colateral, o impulso de polinizar.

Que seja imortal enquanto eu possa durar.

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Dez sinopses olímpicas que não sei se há, mas poderia haver

Um atleta já trinta-e-muitão tem uma última chance de competir olimpicamente em sua modalidade, mas fica com o coração dividido porque seu cãozito, parceiro de 15 anos, está doente com sérias probabilidades de morrer durante a ausência do dono. No desespero de conciliar as paixões, o homem "contrabandeia" o animalzinho com finos cuidados para dentro da vila olímpica, e acaba subornando uma funcionária da manutenção para que esconda seu pet e trate dele sob todas as recomendações veterinárias. A moça aceita por necessitar do dinheiro, porém (naturalmente) acaba se apegando além-contrato tanto ao bichinho quanto ao atleta – além de precisar driblar os olhos do namorado que também trabalha na vila e que, por ciumices, talvez não hesitasse muito em delatar o esquemão canino.

Uma nadadora brilhante percebe que, por algum motivo serêiaco, passou a ser capaz de respirar debaixo d'água, e fica num dilema dolorido: revela ou não seu segredo ao comitê organizador, se por um lado considera que obteve uma vantagem injusta e, por outro, que sua ausência nos Jogos tiraria de seu país pequenino a única oportunidade de medalha?

Uma jovem cozinheira sente que volta a si de um "apagão" em plena cerimônia de abertura olímpica, de pé, diante de um microfone e de um estádio lotado que a expecta silencioso. Atônita, sem a mais tênue ideia de como o cenário se armou e do que deveria dizer ou cantar, a moça começa a narrar a própria vida, para evidente alívio da plateia e ainda maior confusão de nossa heroína. Alguém enfim consegue passar-lhe um bilhete: "Não fique mais de 1 minuto sem falar; um desconhecido anunciou no alto-falante que o estádio se encontra sob ameaça, e que ele a cumprirá caso a pessoa escolhida para a experiência falhe em convencê-lo a desistir do ataque".

Mesmo cenário anterior; só que, desta vez, é o próprio desconhecido que se acha diante do microfone, dizendo a todos que pelo menos agora será ouvido pelo tempo que desejar. Ninguém se arrisca a enfrentar o sujeito porque ele tem na mão, aparentemente, um aparelho que acionaria a tal ameaça com um simples toque. A única solução parece ser mesmo escutá-lo, para descobrir como pitombas reverter a situação insólita.

Um bilionário promove concurso mundial bem ao estilo Wonka: em cada continente, existe apenas UM anel de uma das cores olímpicas escondido no saquinho de determinado biscoito. Cada um dos cinco encontradores de anel ganhará o direito de escolher (e, se desejar, até competir em) uma nova modalidade esportiva dos Jogos: bolinha de gude, ludo, arborismo, guerra de travesseiro, qualquer maluquice possível. O problema é que os ganhadores começam a ser tão violentamente assediados por gente vendedora do próprio peixe esportivo que, após as decisões tomadas meio no desespero, torna-se necessário isolá-los num tipo de BBB às avessas – uma bolha de endereço ignorado na qual precisarão conviver e da qual poderão acompanhar, sem serem vistos, todas as consequências de suas escolhas esdrúxulas, até que seja seguro retornarem ao mundo.

Dois gêmeos, feras do rugby, têm o sonho supremo de irem juntos às Olimpíadas. Pouco antes dos Jogos, sofrem um acidente de carro no qual um se safa entre arranhões e o outro quebra a perna. O ileso se sente tão profundamente culpado – por acreditar que estava dirigindo no momento da batida – que decide "sequestrar" o irmão enquanto este se recupera e conta com a cumplicidade da mãe para mantê-lo isolado em casa; assim, assume a identidade do gêmeo ferido ao partir para o mundial, prometendo-se ganhar uma medalha de ouro que ficará para sempre registrada em nome de sua "vítima". Na véspera da final, porém, o jogador descobre por sua mãe (após esta escutar inconfidências escapadas ao filho convalescente, durante o sono) que talvez o irmão tenha mentido desde o início e, na realidade, estivesse ao volante no dia do acidente.

Dois ginastas que rivalizam diretamente pela medalha se apaixonam. O treinador de um deles, sabendo que o outro pertence a uma família extremamente conservadora, chantageia o rapaz para que cometa algum erro na prova; do contrário, revelará todo o romance à imprensa.

Uma grande promessa da ginástica artística é surpreendida pela confirmação de uma gravidez às vésperas de sua competição mais importante. O anúncio a deixa pessoalmente realizada, mas apavorada com a necessidade de revelar o fato a seus patrocinadores e, em especial, à sua mãe, que chegou a ser a melhor ginasta do país sucessivas vezes e sempre esperou muito da herdeira. A moça opta por fugir do ambiente em que se sente tão pressionada; sua mãe, sua treinadora e o pai do bebê, entretanto, se unem mesmo entre brigas e apontações de dedo e promovem um verdadeiro road movie atrás da guria.

Um jovem malandrote que ganha a vida com apostas em resultados de jogos esbarra, num bar, com a técnica cinquentona de uma seleção feminina de futebol. O moço pensa em seduzi-la e ir arrancando algumas informações privilegiadas, porém, após a primeira noite, é ele que se percebe apaixonado e passa a persegui-la nos treinos. Acontece de uma das jogadoras também gamar no malandro e, em troca de sua atenção, oferecer-lhe ajuda com os resultados, o que o deixa repartido entre a paixão legítima pela técnica e o gosto pelos lucros (e pela vingancita do mulherão que, com todos os trocadilhos disponíveis, não lhe dá muita bola).

Um maratonista enfarta fatalmente a poucos metros da chegada. Seus adversários interrompem a disputa, alinham-se lado a lado perfeitamente e o carregam no colo até o fim.

Let the games begin.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Pontes de ouro, pontes de prata


Encantada de saber de repente que, em língua húngara, existem os termos aranyhíd – "ponte dourada", para designar o reflexo do nascer ou do pôr do sol na água – e ezüsthíd – "ponte prateada", para nomear o reflexo da lua. Não apenas encantada: absolutamente encantada e vestida de alumbramento; não diz muitíssimo da poesia de um idioma que haja termos específicos para imagens só aparecidas aqui-e-alimente, mas sem dúvida responsáveis por algumas das impressões mais belas de qualquer panorama?

Pela doçura da descoberta que elevou o húngaro à minha mais alta ternura (não é sempre que deparamos uma lexicografia comprometida, em delicadeza, com o interesse de fadas, fotógrafos e pintores), fui pesquisar mais um poucochinho de cintilâncias potenciais nessa língua simpática, também conhecida como magiar. Sim, magiar; provavelmente não tem bulhufas a ver com a nossa magia, mas o pensamento que faz a relação coça irresistível, visto se tratar dum vocabulário construtor de pontes de ouro e de prata. E não só delas, conforme imaginei ao dar o minimergulho num tão atiçante dicionário – vejam que belezume estes outros achadinhos:

Elmosolyodni, segundo apurei, é uma espécie de microssorriso, o início de (uma ponte para?) sorrisos propriamente ditos e avistados. Hiányérzet é a sensação de que algo está faltando, e não necessariamente um algo identificável, exprimível, o que torna a palavra como que uma versão esfumaçada e etérea de nossa saudade, em geral muito endereçadinha. Nebáncsvirág é o serzito enjoado, melindroso, que se ofende com qualquer coisa. Sirva vigad – um verbo – envolve lacrimejar e alegrar-se num só pacote: vivenciar prazeres entre lágrimas, passar por instantes emocionados com essa estranha melancolia que ri e chora. Pihentagyú – um adjetivo – já é mais animado, sem no entanto perder o que parece haver de (va)poroso no magiar: indica alguém que tem "o cérebro relax" e que, em consequência-contraste, apresenta um pensamento ágil, piadista e/ou capaz de soluções e decisões sofisticadas. Mas meu termo preferido, ao lado dos reflexos de sol e de lua, é o puro-açúcar szerelem, doce até em som; equivale a "amor" – porém não qualquer amor, e sim aquele da vida, o da alma gêmea, devidamente correspondido. Creio eu que cobrir alguém do querido szerelem seja o vestir da aliança em sua forma verbal.

De que jeito, então, fugir a um estremecimento de dor ante a triste lembrança de que os donos dum magiar tão mágico, de tão tamanhas camadas sutis, estão (como nós) sob o comando de um sujeito desdotado de toda sutileza, toda empatia, toda mínima capacidade de desvendamento humano? Há tempos a tragédia encarnada em Viktor Orbán vai minando os direitos mais fundamentais dessa humanice sagrada: procura sufocar discussões sobre gênero nas escolas, muda a constituição para estabelecer que há apenas pai-homem-mãe-mulher e acabou-se, passa por cima da identidade de pessoas trans e intersexuais. Justamente por vivenciar por aqui o que ora vivenciamos, posso doer-me da dor da cara Hungria, doer-me de não ser TOLERÁVEL que uma cultura tão colorida e rica se veja refém da violência, do preconceito e do absurdo impropriamente ditos e avistados.

Um povo que nomeia ouros e pratas vindos de sol e de lua é, por natureza, maleável para arco-íris e demais horizontes. É feito para pontes.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Alguns equívocos da humanidade


Feijão por baixo do arroz. Ketchup na pizza (não, não sou paulista, MAS). Ketchup em qualquer lugar. Salto alto. Meia-calça. Livros em que o uso da orelha como marcador verga escandalosamente as páginas. Camisetas brancas com bordinhas coloridas na gola e na manga que soltam tinta. Casca de pão de forma. Cigarro. Portas giratórias. Roupas que amassam. Embalagens que só abrem com espada samurai. Bolsos que ultrapassam o comprimento do short. Canudos que afundam no Toddynho. Sapatos de plástico transparente. Programas pinga-sangue. Programas de fofoca. Fofoca. Competições. Bilionários.

Pisos na cozinha ou banheiro que não podem ser lavados (MADEIRA, gente? Really??). Sofá branco. Carpete. Geleca. Calçados gigantes de palhaço. Qualquer coisa, em qualquer situação, que imite dentadura. Filmes de tubarões com mais de uma cabeça (os tubarões, não os filmes). Meias com separação para TODOS os dedos. Rasgões nos quais, eventualmente, surge uma calça. Trotes universitários. Trotes. Bullying. Expressões como "mercado negro", "humor negro", "ovelha negra", "denegrir" – já deu pra sempre, meu povo. Capinhas de crochê para filtro. Caminhos de mesa feitos de pedraria. Estuque + textura. Frutas de plástico.

O desfecho da Kyra em Salve-se quem puder (não superei, me julguem). O passamento da nota de 1 real. Torcedores que berram na janela como se o planeta tivesse acabado de escapar dum asteroide que extinguiria a raça humana. Negacionistas. Terraplanistas. Tiozões do pavê. Pesquisas no Google Imagens que só retornam frases motivacionais. "Testes" de Facebook que mostram os mesmos resultados para respostas díspares. Tretas de reality. Dias de 24 horas (êêêê, misera; precisamos renegociar isso aí). Tatuagens com nome de namorados ou conjes. Comparações entre irmãos. Comparações entre amigos. Comparações. Traições. Ingratidões. Cognitivo-dissociações.

Tudo que nos exila dum melhor voo sem nos cobrir da gula de nos alar.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Retrato de uma desconhecida


Adoro muito as pinturas (e os livros, e os filmes...) que retratam mulheres, por considerar que somos mil vezes mais interessantes; já o disse e reafirmo. Era então fatal que eu viesse a esbarrar com Valentin Serov, russinho existido entre os séculos XIX e XX e famosíssimo, na época, como retratista; vêm dos pincéis de Serov representações duma penca de princesas, músicos, intelectuais e mesmo do czar Nicolau – um gato, aliás, independentemente da lasqueira política por ele encarnada. Mas entre as obras do russo a que mais me impressionou, vejam só! foi justamente o chamado Retrato de uma desconhecida (1895), que podem admirar acima em sua potência assombrosa. Não sei se era de fato uma desconhecida e, se era, por que há de ter posado tempo bastante para o pintor copiá-la em tinta; ou será que era tão fotográfica a memória do artista a ponto de cruzar na rua ou num café com sua musa de ocasião e sketchzá-la em segundos, guardando para depoises apropriados o desenvolvimento daqueles olhos de ressaca? Ignoro, e verdadeiramente não importa – importa mergulhar na força estranha do quadro, no qual, talvez porque em tese se tratasse duma personagem que não seria sabida e apontada pelo grande público, Serov se permitiu devassar a dor sem dó, o tipo de dor socialmente oculto numa mirada de indignação e desafio.

Há tudo isso na expressão concentrada da desconhecida – a quem irei chamar Nadejda, ou Nádia, à maneira russa: existe ali uma bronca magoada e suspensa, um mudo j'accuse para o pintor atrevido (por extensão, o espectador atrevido) que ousa flagrá-la em seu momento de choro; existe ali o choro mesmo, não declarado mas sugerido pelos olhos avermelhados e fundos, e possivelmente já em remissão ou em situação de tristeza residente, dado que a pontita do nariz não se acha avermelhada; existe ali uma decisão férrea, tomada na força da mágoa ou do ódio, sem que deixe de haver também uma suavidade que se revolta contra o próprio endurecimento. É significativo que os olhos de Nadejda estejam na sombra, protegidos pelo movimento da cabeça que se conserva baixa o suficiente para indicar abatimento, e firme de sobra para manter a altivez; na sombra, classicamente, moram dúvida e mistério: o vermelho que adivinhamos onde deveria ser branco está realmente lá – ou é a pouca luz que nos ilude? o delineador está bagunçado como parece – ou são apenas seus cílios negros e densos como os cabelos, as sobrancelhas? há de fato olheiras nesse rosto que poderia ser tanto de uma adolescente quanto de uma mulher de 40 anos – ou é simplesmente o efeito da penumbra que, em compensação, deixa velada qualquer possibilidade de ruga? E a boca? a boca é uma tensão à parte, indecisa entre um ar de meio-sorriso constrangido, fake, e a contração muxoxa dum "só me faltava essa agora"; ainda assim, contemplando-se o conjunto mais longamente, vê-se em plena nitidez a doçura intimidada (quiçá bem-humorada) por trás da armadura.

Não sei o que aconteceu de específico à querida Nádia, porém de algo as cores do pintor nos avisam: há mais frieza do mundo para com ela do que o contrário; o lenço ou xale quente de tons que a cobre é, provavelmente, uma sua escolha de manter mornas sua imagem, sua natureza – é provavelmente um manifesto resiliente e orgulhoso, beijinho no ombro –, em resposta aos tons azuis, cinzentos, gelados do ambiente hostil. Dá-se entretanto uma yin-yanguice marotíssima; apesar do empenho de Nádia em vestir calor e sê-lo, um tanto do gelo externo lhe contamina a intimidade do interior da roupa (mas notem: o trechito que se azula toca-lhe o lado direito do peito, não o esquerdo, do qual só vemos a proteção quentinha). Ao mesmo tempo, no canto esquerdo do mundo azul pulsa como que um coração acarminado, vive um pedaço de exterior que mimetiza o xale da moça e parece declarar-se simpático ao que quer que ela sinta; quem sabe se não é o próprio Serov fazendo igualmente seu manifesto de solidariedade à musa momentânea? Registre-se a beleza sutil: do lado em que o entorno diz somente azul, Nadejda responde com azul; onde para ela existe um quê vermelho de empatia, mostra ela, também, o que possui de caloroso. Certamente não é coincidência que tanto o rosto quando o traje da musa estejam mais iluminados à esquerda, nas imediações da pequena mas real esperança de afeto que a vincula ao mundo.

Quem me dera ser isso: no meio dos acinzentamentos de rotina, a referência e o abraço dum ponto vermelho.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Não sei para onde vai o texto

O texto é tão estranho, tão estranho. Sua materialidade é tão imponderável e feita de futuros. Digo isso porque, às vezes, já tenho dois parágrafos gordamente escritos sobre algo sólido, mas me parece que o texto escapa em desespero porque não há uma conclusão firme, planejada, e apenas tateei até ali num túnel; quando outras vezes, muitíssimo ao contrário, não fiz nada, não comecei nada, não encaminhei nada e ainda assim me encontro tranquilinha, porque me sinto tão grávida do assunto que as contrações indicam: há de ser parto rápido. Há de ser talvez uma brincadeira, um frescobol sem grandes compromissos ou necessidade de altas teceduras. Como assim é bom! Como é refrescante o sentimento de "prova no dia seguinte" quando a matéria já está entranhada nos poros e não demanda horas de digestão intelectual dificultosa!

"Ah, mas é legal ser difícil porque aí traz desafio e a gent..." – a gente o caramba, não é legal ser difícil; é legal ser interessante. É legal ser estimulante. Se há estímulo, se existe um gosto todinho específico em robustecer o texto (escrevendo em rimas, digamos, ou catando flores das sete cores arco-íricas, ou escarafunchando eventos felizes de variadas sextas-feiras 13), o desafio pode sim soar bom e cair bem, pode ser vivido com o mesmo gozo de quem começou a refeição com apetite. Se, no entanto, não rola qualquer grau de desafiância a não ser descobrir como ordenhar um assunto sério, eventualmente enfadonho, desculpinha: vai ver que até evoluo numa tal empreitada sem o sentir, mas nem por isso me vejo (à moda do querido e vigoroso Gil) regozijada. Cumprir o ofício é ótimo; cumpri-lo empurrados pelo elemento lúdico que é bem nosso número e gira nossa chavinha particular, porém – ISSO sim é a dificuldade legal; isso sim é a beliscada que incentiva e põe tompero no serviço. Escrever é evidentemente suor, tanto quanto o são as demais atividades todas, e é felicidade não menos (ainda que possivelmente não mais).

Diz a maior parte dos escritores: não gosto de escrever, gosto de ter escrito. Procede em termos, sem deixar de ser uma heresia; quem, afinal, mergulharia em sã consciência nas funções ingratas e desremuneradas da literatura se não achasse ali uma qualquer Disney do pensamento, se não encontrasse uma qualquer diversão mesmo masoquistazinha, se não adivinhasse algum esquisito conforto no ato de convocar palavras quase a esmo para bater bola numa Copa imaterial? Por mais que o escritor se veja tenso com o jogo, concordemos, ele o ama nem que a partir do fígado – ele ama o campo elástico, fluido, massinho-moldável que existe só entre aquelas margens, ama pastorear nuvens, ama ser sozinho o tijolador dessa bizarra arquitetura de sons, de sílabas, de nadas. O escritor se descabela em seu próprio éden gauche e se delicia em sua jaula autoconstruída, doma feras que ele inventa e tem de se provocar uma cesariana para transcrever as belezas que imagina, encolhe-se e expande-se dentro das mesmas paredes fumaçosas que levanta. Sofre terrivelmente com o que seus filhos verbais se tornam enfim – e adora tantricamente cada esquina de sua intraviagem intransferível. Interminável.

(Interminabilidade: esta a asa que faz o texto voar tão estranho, tão capenga, parece, do equilíbrio de voar que TALVEZ só venha a produzir enquanto voa.

Feito uma pessoa.)

domingo, 18 de julho de 2021

Manifesto antikyraelista


Salve-se quem puder terminou anteontem e eu ainda não me conformei suficientemente com o fato de Kyra, uma das três protagonistas, ter ficado com Rafael (Bruno Ferrari) e não com Alan (Thiago Fragoso) – e juro-juradinho que não o digo por simples enfofuramento relativo ao galã rejeitado, embora nunca tenha escondido meu fraco pelos cachinhos e pela doçura do ator. Nada contra o ex-noivo e renoivo da personagem de Vitória Strada, tampouco; o moço era boa gente, mostrou-se leal e compreensivo, manteve-se apaixonadíssimo pela linda mesmo quando achou tê-la perdido sem chance de repescagem. O fator música do casal talvez pudesse igualmente me tornar suspeita: não nego, gosto bem mais do tema de Alyra que do de Kyrael; porém admito que este último funciona excelentemente em cena, com seu refrão forte, grudento e adequado para os incontáveis beijos na chuva. "Por que então te revoltaste contra a escolha da mocinha, ó insuportável?" – simples: porque achei um desserviço à causa da adoção, representada pelo herói repudiado, em nome da glorificação da família biológica, materializada pelo rapaz eleito.

Para quem não acompanhou a trama, explico. Antes dos furacões literais e metafóricos que jogaram o trio protagonista no Programa de Proteção à Testemunha, Kyra andava de casamento marcado com o empresário vivido por Bruno Ferrari, e ambos sonhavam com uma família doriânica de quatro filhos (dois meninos e duas meninas) que já estavam até pré-batizados. Uma vez "transformada" em Cleyde, a moça foi trabalhar na casa do advogado-fofura vivido por Thiago Fragoso, viúvo, estéril e pai de três filhos adotivos com a falecida esposa – um já em alta adolescência, quase adultice, e um casal de terríveis e amorosos pestinhas de quem a co-heroína virou babá (clássico dos clássicos). A tradição exigia que "Cleyde" e Alan se apaixonassem; eles logicamente se apaixonaram; e seria absolutamente fabuloso se, após a resolução da treta central do enredo e o retorno das disfarçadas às identidades originais, a arquiteta percebesse não ter necessidade alguma de carregar quatro barrigões para constituir seu núcleo familiar sonhado: o núcleo familiar já ali estava, acolhedor, pulsante, carinhoso, com espaço pleníssimo para uma nova mãe do coração.

Certo, o autor é soberano no desenvolvimento de sua obra, não discuto – nem pretendo dar golpe de Estado em seus direitos inalienáveis; também não digo que Rafael não merecesse sua recompensa depois de separação tão brusca e espera tão longa (antiguidade, reconheço, é posto). Posso, entretanto, lamentar que se tenha deixado deslizar a oportunidade de exaltar mais ainda a adoção, a constituição um pouco menos ortodoxa de família, como uma alternativa inteirissimamente capaz de equivaler à felicidade para a mocinha romântica; esta afinal, no apagar das luzes, praticamente voltou ao estágio inicial de cinderelices, pedidos molhados de casamento e buquês comemorados nos braços de seu Prince Charming, solteiro e (até onde se sabe) fértil o suficiente para gerar quatro bacuris. Não, não gostei, por não ter visto em Kyra a evolução natural que tantos sofrimentos e peripécias trouxeram às duas outras heroínas; se romanticamente o lobby dos pretendentes se equivalia, não custava ter deixado que o aspecto lindamente social pesasse como fiel da balança.

Às vezes basta, para a realidade tornar preferido o preterido, uma lasquinha de ficção fazendo a diferença.

sábado, 17 de julho de 2021

Terceiro compêndio irritado de coisas irritantes


Moçoilos que têm barba e não têm bigode (impraticável, gente. O pacote completo ou nada). Criaturas que interrompem qualquer coisa, especialmente refeições, por motivos de DISCURSO. Criaturas que gratiluzem alegremente cada dia de trabalho e ainda emendam "vamo que vamo". Farofas que viram uma argamassa duvidosa no micro-ondas. Máscaras que escorreeeegam no rosto, embora compradas no menor tamanho disponível para humanos e com elástico 837-vezesmente trançado (as cirúrgicas não escorregam; ô, bênção!). Programas que começam antes do horário assinalado na grade, desconsiderando o fato de que necessitávamos daqueles 2,18 minutos para ligar a NET ou ir ao banheiro. Cravos que não se permitem espremidos, mas viram espinhas em represália. Peles, no dedo, que não se consegue deixar de cutucar e que não conseguem deixar de inflamar em resposta. Vozes dubladoras que só põem entonação de pergunta na frase aos 53 do segundo tempo. Novelas que metem sequestro no último capítulo. Novelas que OUSAM não escolher o Thiago Fragoso para a mocinha no último capítulo. Im-pra-ti-cá-vel.

Qualquer imagem da ou menção à prova da "comida" em No limite. Qualquer título de filme terminado em animal, quase perfeita(o), muito louca(o) ou pra cachorro. Taxistas engajados no projeto de conversar. Papéis furados perto DEMAIS da borda para que haja chance de evitar a tragédia. Água do banho mui precocemente esfriada. Batatas impescáveis nos fundilhões do pote de Pringles. Curiosidades postas em vídeo e não num texto insonoro, prático e civilizado. Hino, barulho de torcida e falação eterna no videogame do vizinho. Gente incapacitada para metáforas. Gente incapacitada para risos. Gente movida a "no meu tempo" (como se estabelecera contato direto da corte de Tutancâmon). Dicas de macho palestrinha. 20 segundos de macho palestrinha. "Não se engane" aplicado – geralmente por macho palestrinha – a coisas sobre as quais ninguém se engana, ou que têm - 156% de relevância para alguém querer se enganar. Tesouras cegas. Consciências caolhas.

Encher bolsa de água quente. Escrever em dia vazio d'alma. Ter de ir ao banheiro quando a cama já é puro aconchego redondinho. Achar penduradouros variados para máscaras que estão descorongando pela casa. Responder pela 2.899.349ésima vez que não, não tenho zap, não adianta ligar para meu celular, não adianta eu dar o número, fica desligado o dia inteiro. Cumprir prazos. Levantar os óculos para enxergar melhor de perto e atinar que eles já estão levantados. Só encontrar Vanish em pó. Esbarrar na figurinha errada e publicá-la. Correr pra dar mute no comercial de streaming dos canais Discovery, na esperança não passar o dia com aquela desgraça de música na cabeça (a música é linda – ESSA é que é a desgraça). Socializar no sono, na fome e na TPM, ainda que de maneira remota. Não poder DESVER a foto do coiso no hospital.

Pensar em 2022 sem saber o final.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Quem semeia vento

Como era de se esperar – já que os bolsomínions que projetam sobre nós tu-di-nho que eles mesmos fazem são colossalmente previsíveis –, não falta gente nas redes sociais criticando os memes sobre a saúde do coiso e os desejos coletivos de passamento do sujeito. Abstenho-me, pessoalmente, de compartilhar estes ou aqueles, preferindo a isso continuar metendo o pau nas atitudes do "governo", apenas; porém fique claro: o fato de eu não postar conteúdo instando o criaturo a morrer NÃO me inscreve entre os fiscais da manifestação alheia. Sou por acaso alguma vestal da pollyannice, alguma paladina da ética registrada em cartório ou eleita em assembleia para ficar apontando o dedo na cara do que é humano, que nem beata de novela do interior? Não faço, mas definitivamente não julgo, por compreender mais do que gostaria o sentimento envolvido: essa raiva guardada, esse desespero impotente de quem vê o país ser queimado, devastado, desmatado, aviltado, destruído por uma turma vil até a medula, sórdida até a última mitocôndria.

Tenho o mais completo horror a qualquer "olho por olho"; não poderia me denominar cristã se não tivesse. Foge a todos os meus princípios, meios e fins defender vinganças, linchamentos e assemelhados. Seria rematadíssima hipocrisia, entretanto, deixar de reconhecer nisso o efeito da razão, da convicção, da recusa em me pôr no nível dos mesmos seres a quem desprezo; seria falso me declarar imune ao impulso perfeitamente natural de querer revanche, de fantasiar castigos. E é exatamente por não ser androide nem estar imune às homo-sapices que não me cabe, de modo algum, me arvorar em inquisidora-mor: emoções são bichos rebeldes à persuasão, e ademais nem teriam como não estrebuchar contra "só uma gripezinha", "e daí? lamento; quer que eu faça o quê?", "não sou coveiro", "temos de deixar de ser um país de maricas", "todos nós vamos morrer um dia". Independentemente de não concordarmos com posturas revanchistas, convenhamos: o lado de lá poderia de fato esperar, em sã consciência (OK, sã consciência não é especialidade da casa), um grau de empatia e solidariedade superior ao que ele próprio tem demonstrado desde o início? Tem ALGUM cabimento semear ódio, frieza, crueldade, insensibilidade, indiferença, preconceito e acreditar que vai colher em troca uma afabilidade geral, uma preocupação carinhosa ou ao menos uma neutralidade mansinha?...

Pessoas recorrentemente pisoteadas reagem: lei da natureza – natureza esta que reage ela mesma, se lhe vergam os limites. Não se trata de vendetta, não se trata necessariamente de violência (até onde sei, ninguém incitou ou sugeriu nada que não fosse estrita expressão verbal de um wishful thinking, muito diferente, por exemplo, da afirmação de que adversários deveriam ser torturados ou metralhados); trata-se de consequência escandalosamente óbvia de maus-tratos, deboches e todas as mais – e más – características dum relacionamento abusivo. Uma vítima em sua normalidade psiquiátrica, sem andar em surto de Síndrome de Estocolmo, porventura manda cartãozinho de "melhoras" ao carrasco? Envia-lhe flores e bombons em nome do mal que ele fez e fará, não só a um como a diversos, milhares, milhões? Torce de coração para que ele reassuma o quanto antes seu posto de algoz oficial? Somente um Teatrinho Trol nojentamente canastrão, manipulador e cínico, performado pelas hostes bolsonaras, poderia sequer OUSAR pedir compaixão aos espezinhados e parasitar ainda mais sua (nossa!) benevolência. Pois me re-cu-so a unir vozes com o lado escroto da Força: não contem comigo para dirigir nem um aiaiai! ralhado a meus irmãos oprimidos pelo fato de desejarem o sumiço dos opressores. Se eu não posso, por coerência, provocar nem desejar o mal desses últimos infelizes, não lhes devo qualquer lealdade tampouco, e ponho toda ela a serviço da parcela esmagada da História.

O tânatos que habita aquela horda de lunáticos – nosso lado não tem. Mas tem memória.

quinta-feira, 15 de julho de 2021

No centenário de morte de Alphonsus de Guimaraens


Quando Alphonsus se volveu
Para este chão singular,
Teve as doçuras do céu,
Teve as tormentas do mar.

O amor que cedo perdeu
Banhou-o todo em luar...
Pôs-lhe os olhos sob um véu,
Pôs-lhe o peito sobre o altar.

E, no desalento seu,
Quis o poeta cantar
Mais o suspiro que o fel,
Menos a dor que o cismar.

E como um anjo escreveu
Seus monumentos de ar;
Fez da saudade – cinzel,
Fez da neblina – pilar.

As asas que Deus lhe deu
Se abriram de par em par...
Mente – pousou no papel;
Alma – voou a seu lar.

🐦🐦🐦

Hão de ficar pra sempre os velhos tomos,
Flores que vivem sem tombar um dia.
De versos seus, mil outros mais compomos,
Lembrando-nos daquele que os fazia.

As estrelas dirão – "Ai! pouco somos,
Ante o clarão de sua poesia..."
E pondo os olhos nele como pomos,
Hão de adorar o irmão que lhes sorria.

Maria, que lhe foi mãe carinhosa,
Que o viu nascer e amar, há de acolhê-lo
Em ninho de poemas e de prosa.

Os seus versos jamais serão defuntos,
Que vibram céus e terra ainda ao lê-lo,
E aspiram paz na paz de lê-lo juntos.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Como fazer alguém feliz em duas palavras

Tamo junto. Você arrasa! Quer chocolate? Bora lanchar? Eu pago. Eu entendo. Tem razão. Me abraça. Me desculpa. Já é! Casa comigo?

Todos vieram. Teremos aumento. Ótimo trabalho! Bom dia! Durma bem! Quer bolo? Sua vez. Você escolhe. Que delícia! Muito obrigado. Te admiro. Não desista.

Abalou Bangu! Eu concordo. Sim, aceito. Me beija. Que beijo! Estou aqui. Conta comigo. Quer sorvete? Chora sim. Pode desabafar. Tô chegando. Enfim, férias!

Quer suco? Quer ajuda? Acredito, claro! Tô dentro! Você merece. Te quiero. Nossa música! Vamos dançar? Adorei todos. Cadê você? Um filho!! Meu filho!!

Vai descansar. Fora, genocida! Beba água. Tudo bem. Todos bem. Não esqueci! Lua cheia!... Quer conversar? Errei, admito. Meus parabéns! Pedido pronto. Produto entregue. Quer pipoca?

Vou contigo. Você emagreceu. Empresto sim. Que orgulho! Quer pizza? Recebemos hoje. Ponto facultativo. Sua linda! Tá gata! Excelente escolha. Partiu Paris?

Boas notícias! Sem falta! Sem problema. Já resolvi. Ideia perfeita! Bufê liberado. Está curada. Mil curtidas!! Lula presidente!! Quer mate? Te amo.

Missão cumprida. É menino! É menina! Quer carona? Hoje tem. Hoje posso. Oba, ganhamos! Você dirige. Você manda. Eu adoraria. Seria fantástico. Quer bala? Estamos contratando. Está contratado.

Belo corte! Bela tatuagem! Me acompanha? Te acompanho. Te protejo. Deu certo! Há vagas. Boa viagem! Mandou bem. Quer champanhe? Fui injusto. Você avisou. Quero comprar. Vasco campeão!!

Ele não.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Carregando


"Como você recarrega as energias?", questionou ontem um bloco do Papo de segunda – ao que principiei a responder mentalmente ainda no decorrer das assuntações. Eu não poderia, é verdade, inserir entre meus itens energéticos alguns que frequentam um muitilhão de listas; não citaria a música, por exemplo (gosto de dançá-la e ouvi-la em festas, mas não acorro a ela no dia a dia e frequentemente a acho mesmo incômoda, roubadora de silêncio), nem poderia mencionar a meditação que não faço, os bichinhos e plantas e crianças que não tenho, os exercícios físicos que O-DEI-O, o café que meu estômago não autoriza, o sono que durmo a contragosto. Não posso elencar o mar, que curiosamente NÃO está disponível para todo carioca arrastar a tiracolo (e ainda que estivesse: preguiiiiçaaaa de me encher e desencher de sal e areia, credo); não posso alegar chocolate, que curto mas do qual fico a quilômetros de necessitar; não posso lascar "filmes", que adoro de nascença e entretanto não busco com frequência quase nenhuma na TV ou no streaming, por aversão a empenhar o tempo com muita compridez. Sou, enfim, de uma tortice tão enervante que dificilmente posso ser reenergizada por compromissos longos ou coisas trabalhosas, normalmente achadas fáceis por humanos-padrão – e descarregaria completamente antes de cogitar pegar metrô ou ônibus, vestir maiô ou tênis, obedecer de maneira voluntária a novos agendamentos e acrescentar correrias de relógio apenas para catar uma qualquer tomada.

Passarinha que sou, careço de ups mais práticos e livres, avulsos como beber em flores. Livros, por exemplo – essas gracinhas que estão eternamente on e sempre à disposição, sem nenhumas burocracias de fio, wi-fi, energia elétrica; fora que, maravilhosamente, não é ninguém mais que determina o tempo empenhado, o tamanho da sessão, a ordem da leitura (em caso de crônicas, contos, poemas), o momento da parada; desprecisa menu ou controle remoto, negociação com outrem, comida especial, ritual, aparelho, aprimoramento acústico (aliás, que BÊNÇÃO o livro ser silencioso!). Outro recurso de reenergização imediata que é puríssima obviedade: as refeições, das quais saio esperavelmente mais criativa, mais disposta a empreitadas. Outro: os diálogos da novela das seis, e não somente eles; também a luz e a direção de arte de modo geral – como fazem bem os ambientes ricos de cor, flor e detalhe! Outro: mato, cheiro de mato, umidade de mato, fartura verde e sombreada de mato com sua permanente essência de pós-chuva. Outro: amendoim, que dá um baratão na alma e, ainda mais que chocolate, parece que completa o tanque de inspirações inéditas.

Recarrega-me a pilha um banho simples, que promove um contágio do frescor denotativo para o metafórico; uma garimpada bonita na Estante Virtual; uma boa escolha de presentes; um passeio absolutamente desagendado por feiras antiquárias, badulacas, artesanais; bistrôs/cafés charmosos; montanhas-russas; mate e chá preto (minha cota gastricamente aceitável de cafeína); O vestido ideal; lojas de decoração alternativazinhas; bazares; brechós; histórias de encrencas familiares de outros séculos, histórias de amor, histórias de assassinato devidamente resolvido – histórias. Essa matéria que, juntamente com pó de estrela, compõe nossa carne, alma e estofo: nós, autores inatos.

(Mais que de fato estelares, somos universos de fatos.)

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Céu ao pôr do sol


Sou fãããã dos impressionistas, porém confesso: não muito fã do hojeniversariante Eugène Boudin (197 aninhos bem pincelados). Por quê? Porque Boudin, tendo sido marinheiro, garrou uma natural mania de marinhas, e quem mergulha em seu gordo portfólio vê basicamente barcos, mar, barcos, mar, praia, praia, navio, praia, pessoas na praia, lavadeiras, lavadeiras, pessoas na praia, barcos, navios, navios, lavadeiras, barcos, navios – e de vez em quando, não sei exatamente por quê, uns surtos de vacas, vacas e mais vacas. Logicamente não desmereço o pintor, icônico e extraordinário; apenas os temas e a constante cinzazulice nunca me provocaram o favoritismo apaixonado e florido que Monet, por exemplo, provocou sempre. Mas uma exceção me seduz bem bastante na obra de Boudin: preciso dizer que exatamente a imagem vista acima? do fantástico Céu ao pôr do sol, nascido em 1890; ao contrário do padrão úmido, frio, salpicante de maresia e espuma presente nos demais quadros praianos do autor, neste o velho Eugène simplesmente se inundou de fogo, foi como que arrebatado por uma impressão dourada, uma alegria quente, uma solaridade forte e súbita. O mar e o azul ainda estão presentes, mas não são de modo algum o foco; só um trechito de água se insinua entre areia e céu, e mesmo o céu troca serelepe seu uniforme pela roupa de brincar, alaranjada, viva, inesperado lado B que se liberta quando crepuscula.

A tela me comove tanto mais quanto mais consegue ser (incrivelmente) concreta em toda a sua travessura abstrata; a rigor não há praticamente contornos, há uma bagunça colorida, uma festa sensorial, pinceladas como serpentinas que se agrupam sem critério aparente quando vistas mais de perto – e que no entanto, de longe, mostram uma coesão poderosa e absurda com sua proposta de nuvem, também conhecida como o Impressionismo em sua glória. Comove-me igualmente, apesar de eu amar os rosas e os lilases do dia findando, a escolha (pode-se dizer que) inusitada de tons feita pelo artista, que se jogou na ousadia de praticamente excluir os rosados e apostar nos opostos gelado e ardente, azul e laranja; é quase um céu vestido de mar e de terra, mais desta que daquele. Uma composição visual que não se vê todo dia. Para arrematar, que falta à terra? flor; flor não há, mas há num ponto central do céu algumas das únicas tintas avioletadas, como uma pétala ou um beijo que bota um pouco mais de doçura no que é pura força. O branco contribui para essa leveza focal, e curiosamente me evoca alguém que desejasse amarrar a cena com um brinco de pérola.

Motivos externos ao quadro também me fascinam no quadro – a saber: a paixão que tenho por quando entardece com cores estranhas, quando uma luz toda amarela ou vermelha bate em cada janela da casa (adentrar, não adentra, que já não tem força de invadir nada nesse horário) e me chama para ver lá fora, para conferir o insólito da aquarela. Como amo os crepúsculos esquisitos! pintam no mundo um clima de que existe uma preparação para algo, paira uma expectativa, que nem na formação estrodoante e pesada dos torós. O anoitecer de Boudin é bem desses, não pode ser um desfecho, é claramente o início de fatos que apenas não sabemos ainda, fatos a serem narrados depois com "era uma tarde densa, ruiva, dourada, cheia de eletricidade dramática" – porque anoitecimentos cheios de eletricidade dramática são os únicos aceitáveis para datas-sede de eventos de médio e grande porte, como casamentos, aberturas de Olimpíadas e revelações de assassino de novela (ou de parentescos eternamente procurados e finalmente abraçados com requintes de musicalidade).

A verdade é que, por direito, só era correto dia-cair-se colorido; cada sessão de 24 horas é uma ópera que somente sons, fúrias, ondas, veludos e pérolas podem suficientemente epilogar.

domingo, 11 de julho de 2021

Nem que pairemos


Site americano me informa: 11 de julho é o Cheer Up The Lonely Day, algo como o "Dia de Alegrar os Que Estão Sozinhos". Não sei se a data é particularidade dos sobrinhos do Sam ou se é coisa global, mas, se a letra A é a verdadeira, acredito esteja na horíssima de socializar isso daí; uma solidão desamparada e compulsória (a única realmente combatível, violentamente distinta da sozinhez escolhida, saudável e não excludente das relações necessárias) corrói fácil o sistema imunológico, desanda a pressão e a glicose, ferra o sono, deprime, estressa, dói nos músculos e articulações, predispõe ao câncer e a dependências químicas, torna o corpo um poço de vulnerabilidade – ou seja: é caso mais do que de psicologia, é caso de saúde pública. Regar uma autoestima abandonada com um minimozinho de amor configura praticamente uma ação de reflorestamento; organismos e histórias que desfolhavam em puro desperdício e ameaçavam tombar de secura voltam à tona, desmergulham de seus limbos e oxigenam novamente o entorno; verdejam, em lugar de pesar e envenenar. Não há como aquele olhar de que ontem mesmo eu falava – o olhar do reconhecimento básico da existência – para "reautorizar" uma existência antes posta em stand-by e tendente à atrofia.

Esforços da arte não faltam, na tentativa de nos esfregar no nariz os efeitos devastadores da solidão involuntária; é talvez nosso principal instrumento empatizador, nosso guru antropológico, de modo algum menos rico em desnudamentos só porque opera no campo da ficção. A ficção nos deixa ver sem viver, pressentir sem provocar, compreender no fundinho de nossa catarse em qual calcanhar o monstro pede flechada. Sempre voltarei ao caso recente, farto em paradigmas, do Coringa; quer filme mais ilustrativo do estrago causado pela indiferença emocional e institucional, pela carência absoluta de toque (exceto o da agressão), de escuta, de verdade, de cuidado, de ternura? Quer melhor retrato do quão profundamente um eu fraturado de nascença pela perversidade dos seus, divorciado de nascença de quase qualquer chance de aceitação num grupo, está sujeito a virar sujeito fraturado até as últimas consequências da dor – a virar alguém divorciado de si? Nunca escondi como a história me feriu e fere ainda, em especial pela certeza de que bastaria UMA iniciativa de afeto para que a degradação psiquiátrica fosse evitada. Na literatura, Frankenstein me ocorre logo de estalo como plot marcante de isolamento e rejeição, ícone das narrativas de você-me-gerou-e-agora-não-me-aguenta; um manual de produzir infelicidade, um romance de deformação, muito irmanado à tragédia coringuesca pela impossibilidade de considerarmos más as criaturas sem levarmos em conta a ação nefasta dos criadores. "Eita, mas você está comparando o Coringa e o monstro fabricado por Frankenstein com subjetividades reais, carne-ossissimamente humanas?" Uai, claro – porque SÃO subjetividades reais, projetadas por entranhas humanas, dotadas de reações reconhecíveis e verossímeis; sua dor não nos diria nada, não nos abalaria em nada se não nos espelhassem. Se não nos fossem.

Por sermos assim capazes de vivenciar a solidão representada no livro, na tela, no palco, na música, como se reencontrássemos em outrem um medo que já nos habitava, temos zírou desculpa para abandonar ainda mais os abandonados. É um chamado e uma obrigação amar nem que seja um pouco; mandar nem que seja um emoji de parabéns (para mim mesma o digo, já que ODEIO endereçar parabéns); marcar nem que seja num videozito de fofura explícita; dividir nem que seja meia hora de conversa, ludo, novela, presença, aniversário; estar por perto para uma refeição, uma ida ao mercado ou banco, uma leitura de romance em voz alta, uma lida na bula, uma lida no rótulo, uma força com o perfil do Face, um tutorial ligeiro de celular, uma explicação do capítulo, uma fração, uma redação, um empréstimo: nem que. Nem que apenas e meio confusamente pairemos em volta, nem que esvoacemos um leve gosto de companhia, nem que só rocemos o ser com o ser, imprecisos mas frequentes, diversos mas constantes, caóticos mas interessados – sinceramente interessados. Nem que sejamos uma energia de símbolo, uma curiosa, fluida, fresca promessa de vida.

Mas promessa cumprida.

sábado, 10 de julho de 2021

Desaparência


Impressionou-me pensativa e agradavelmente um tweet compartilhado no Face, duma certa Clara R (@ramencult), que disparava: "I wish mainstream body positivity focused less on 'every body looks good' and more on 'your body does not exist for the purpose of beeing looked at'" (em tradução libérrima: "Eu gostaria que a positividade corporal padrão focasse menos em 'todo corpo é bonito' e mais em 'seu corpo não existe com o propósito de ser olhado'"). Li e suspirei a sensação de "é isso"; toda e qualquer campanha, propaganda, texto motivacional de alguma natureza mira sempre – e não sem razão – no acréscimo de autoestima baseado na beleza que cada pessoinha carrega, específica, intransferível. É lindo, é necessário, é correto, mas observemos: de qualquer modo a autoestima tem de estar atada à valorização da beleza que se verifica e consome externamente? Havendo ou não havendo uma linha única de ser fisicamente maravilhoso, DEVERIA ser uma questão a maravilhosidade física? DEVERIA ser dada tamanha importância à apreciação da superfície, e especialmente à apreciação endossada por outrem, aceita e confirmada por um abraço social?

Claro, não sou louca nem tão absurdamente utópica que não reconheça: somos seres grandemente visuais (sensoriais, para abrirmos o campo), e é um comportamento lógico, condizente com a biologia que não podemos evitar, sermos atraídos pelo que tendemos a considerar belo, ou enfeitiçador pelo lado olfativo ou sonoro; flores também seduzem insetos, aves seduzem outras aves, mamíferos se exibem para outros mamíferos – a programação orgânica não determina que assim funcione? Em sã consciência, no entanto, ninguém há de querer que SÓ funcionemos assim, matéria sobre matéria, no eterno intuito da procriação mais básica; oh, please. Se é impossível eliminarmos de nós os pedaços de instinto e hormônio que somos, é incabível na mesma medida nos negarmos como um ponto foríssima da curva animal, um extraordinário desvio; é incabível não exaltarmos, celebrarmos, priorizarmos esse desvio que justamente nos individualiza. Nascemos mais – pois sejamos mais; e, se não o fizermos pela capacidade espontânea que realmente não temos, façamos na marra.

Porque convenhamos: por mais que seja em tese "natural" decantar a beleza humana, e por mais que tenham aumentado louvavelmente os esforços para abarcar inúmeras manifestações de beleza, ela sempre foi e ainda é um instrumento cruel de avaliação e valorização; se querem um exemplozinho doloroso de mencionar, pensem na primeira coisa que costuma escapar-nos quando vemos fotos de vítimas fatais – "ah! uma jovem tão linda!", "um casal tão bonito!" –, como se a perda ficasse 1g mais ou menos enorme pelo fato de as pessoas envolvidas se encaixarem ou não no conjunto de características festejadas. Não o exclamamos cruelmente e não deixamos por isso de ser cruéis, tanto quanto o somos (também de maneira involuntária) quando soltamos um "feio! feio!" para qualificar uma criança pequena que agiu errado, e quando elogiamos – e criticamos – muitíssimo mais as meninas do que os meninos segundo critérios de aparência. Desde cedo são elas conduzidas a saber direitinho o que "convém" nas combinações de cores, nos penteados, enfeites de cabelo, batom, esmalte, comprimento, estampa, largura, enquanto neles é sobretudo aplaudida a energia e a atividade, mesmo que toda a energia se traduza em voltar para casa irreconhecíveis de pó e lama e com 87% dos membros ralados na brincadeira. Quantos pais/parentes conheceis vós que SE ORGULHAM da garota que volta da escola ou da praça suada, rasgada, enlameada e descabelada, quantos dizem aos amigos que ela é pura força e saúde em vez de lamentarem que "nem parece uma mocinha"? Pois então. É mui principalmente por elas, por nós – desde o início estimuladas a agradar e a captar afeto pela aparência –, que eu reforço: NINGUÉM deveria aprender que se obtém mais ou menos do mundo de acordo com a quantidade de prazer que outros olhos experimentam ao nos analisar.

É só essa a emenda que proponho à frase estampada no tweet; olhados queremos e merecemos ser, já que configura uma constatação de existência (imagina um planeta cujos moradores não se dão sequer ao trabalho de virar o rosto em direção a outros moradores, todinhos mútua e inteiramente alheios?), porém julgados – não. Avaliados, não. Classificados, examinados, rotulados, nãããão. O que conviria excelentemente à espécie era o direito supremo de ter corpo sem SER corpo, o direito de não dever satisfações visuais, de não se ver em compromisso com nenhuma opinião, nenhuma preferência estética, nenhum provimento de conforto e deleite para outrem. Óbvio, não estou falando de lunáticos poderem tatuar suásticas na testa sem serem incomodados, por exemplo, porque aí não nos atemos ao visual e superficial, aí mergulhamos no histórico e simbólico; estou falando de desenhar os membros sem discurso de ódio, de usar o cabelo metade verde e metade roxo no tribunal, de vestir xadrez com flores e poás porque deu na telha, de ser gorda e amar minissaia, de meter um girassol na lapela, de ignorar o que seja tábua de passar roupa, de ir ao mercado com chapéu vietnamita, de ir à padaria com salto alto e pijama. Estou falando duma viável liberdade fashion, desvinculada de indústrias, desamarrada das preferências dos homens, das conveniências dos homens, das fantasias dos homens; uma liberdade alegre, assumida, tranquila e de criatividade aleatória, a ser praticada com felicidade quando enfim atingirmos um estágio aceitável de evolução.

Porque há de ser cada vez mais fato: como o velho ferro a vapor que anda ignorado na despensa, objetificadores de gente NÃO-PAS-SA-RÃO.