quarta-feira, 31 de março de 2021

Únicas desculpas quase plausíveis para não usar a máscara


Você não respira pelo nariz. Nem pela boca. Na verdade, você não respira at all: é um vampiro nascido em 1523 que tem circulado por aí achando o momento atual deveras pitoresco.

Você herdará 97 bilhões de dólares de seu tio Bertoldo, caso sobreviva à pandemia sem tomar nenhum cuidado específico, conforme as disposições testamentárias. (Sabe, você se arrepende um pouquinho de ter dado o box Criminal minds de presente para seu tio Bertoldo.)

Jigsaw implantou um dispositivo em sua traqueia que explodirá o quarteirão inteiro, se for ativado pela aspiração da menor micronanofibra de qualquer material conhecido de protetor facial.

Você é um modelo avançado de replicante que conseguiu zerar toda a troca de partículas não essenciais entre seu organismo e o ambiente.

Você é um T-800 e não pode evitar, precisa exterminar coisas.

Você é o Cavaleiro sem Cabeça – e máscaras são tradicionalmente usadas em cabeças, ora pílulas.

Você é o Tocha Humana e... bem.

Uma lenda familiar que a bisa lhe contou em sua infância, e que remonta aos ostrogodos, determina que os descendentes de Teodorico, o Grande – no caso você – permaneçam longe de tudo que representa esconderijo e disfarce, sob pena de serem atingidos pela maldição de Odoacro, rei dos hérulos, morto por Teodorico num banquete que deveria ser uma celebração.

Sua barba com cerdas de adamantium rasga em pedacitos tooodas as máscaras que toca, AFF.

Cento e cinquenta e dois mil escaravelhos fibrívoros invadiram sua casa, seu bairro, sua cidade e não deixaram fiapo de nada que lembre tecido ou similar –inclusive a área se transformou involuntariamente em colônia de naturismo.

Você tem laudo, laudíssimo, laudérrimo reconhecido em cartório pela OMS e citado nas mais conceituadas publicações de medicina como estudo de caso, TAMANHA e tão acachapante é a sua alergia: um roçarzinho da máscara e empola a pele, espasma a glote, trava o coração, vem diarreia, febre, vômito, cianose, hipotermia, o pacote mais absoluto do dar um troço.

(E mais não posso.)

terça-feira, 30 de março de 2021

Criar e construir


Disse o querido Charles Dickens que "a verdadeira diferença entre a construção e a criação é esta: uma coisa construída só pode ser amada depois de construída, mas uma coisa criada ama-se mesmo antes de existir". Se é verdade em todos os casos, não sei – me parece que uma casinha construída muito tijolinhamente, sem grandes designs prévios e quase ao sabor dos fatos, não deixa de ser profundamente amada na inteireza do processo –, porém convenho que aconteça assim em boa parte das situações. Os textos, por exemplo: não sendo eles, no geral, retirados de alguma cestinha Tudo Que Eu Gostaria de Escrever na Vida, não posso dizê-los criados; não têm eles em mim qualquer realização precoce, toda do Mundo das Ideias; não formam um desejo ou um sonho – representam simplesmente edificações de momento, levantadas do chão conforme a necessidade e amadas ou desamadas conforme sua efetivação. A alguns escritos dedico ternura, uma vez nascidos; a outros dou quase que apenas o olhar ligeiramente aliviado do pós-parto, sem fazer grande questão de convívios e revisitas. Não há padrão, exceto o de não haver, tampouco, a paixão das idealidades, e sim o afeto das coisas constatadas.

E normalmente acho positivíssimo esse afeto das coisas constatadas, trabalhadas, construídas – o amor real que não começa incêndio, que não é a fornalha adolescente de Romeu e Julieta (ei, eu adoro Romeu e Julieta; mas tem condição?), que não é logo na primeira estrofe a perfeição platônica; o amor da terra arada e encarada, semeadinha de vigilâncias pacientes contra pragas e pestes, contra infertilidades e intempéries e predadores. Em 98% das vezes, avaliaria meu DataChute, é esse amor despido de exigências fabulescas e projeções fabulosas que bota raízes inquebrantáveis – não que ele seja sisudo e estranho à alegria, muitíssimo ao contrário: se há um amor fadado ao mau humor que se segue às decepções, trata-se daquele que teve alicerce de fumaça, o criado, o inventado na cabeça sem levar em conta as pequeninices da rotina. Isso tudo (acredito) se aplica lindamente ao amor entre humanos. Em face dos últimos acontecimentos brasileiros, no entanto, já não sei satisfatoriamente bem se se aplica à relação entre humanos e países.

Porque vejam: será que criamos suficientemente, muito para nós, a imagem de um Brasil idílico, desejável, apetecível a ponto de o adorarmos com o ardor cantado no hino? Me apresso a esclarecer que – PELOAMOR – eu não me refiro de NENHUMA forma àquela palhaçada de "ame-o ou deixe-o", àquele nacionalismo fake, nojento e estúpido (como aliás são todos os nacionalismos) dos energúmenos que estão assentados no Planalto e de seus mentores; nem mesmo me refiro ao entusiasmo menino dos meninos românticos que amo tanto, mas que pareciam somente engatinhar na história de que nossas várzeas têm mais flores, nossos bosques têm mais vida e derramamentos afins. Não falo de uma criação do Brasil relacionada às abundâncias naturais que já temos ou a qualquer platonização canalha do que alguns querem que pensemos ter (a tal democracia racial, por exemplo, que até hoje nunca vivenciamos). Falo de uma criação do Brasil como uma meta de país que não somos, jamais fomos, porém nascemos para ser – uma meta de país que realmente apaixone o imaginário popular para muuuuuuito além de futebóis e carnavais; um destino social e político.

De 1500 para cá (com raros hiatos de um projeto distinto), o Brasil foi montado erradissimamente, foi-se construindo todo na extração, na exploração, na escravidão, na usurpação, com o sufocamento expresso e sumário das várias tentativas de reposicioná-lo como terra de justiças e plenitudes. Sua face mais próxima da "verdadeira" – criativa, acolhedora, rebelde, bem-humorada – cresceu às margens dos discursos oficiais, e no entanto não pôde não sentir a mão pesadona desses discursos, as perseguições, as contradições, as desilusões; o país que deveria ser mal teve tempo de criar-se, ocupado que estava entre sobreviver ao que era e arrumar algum respiro pelas beiradas. Condicionados desde o "início" a uma lógica de vinda-dominação-enriquecimento-volta, nossos ascendentes colonizadores se habituaram a ver no Brasil uma oportunidade, um hotel, não uma casa; e nossos ascendentes africanos, vítimas das maiores crueldades imagináveis, só tinham como ver nele uma terra de violência e sequestro. Que tempo houve, que circunstâncias houve para que o lugar que habitamos se desse à luz como uma perspectiva de igualdade e república? Faltou-nos o contexto do autossonho, o apego embalado por alguma fresta de inocência histórica. Faltou-nos linha do tempo que tornasse possível, para nós, o spark que enlaçou Romeu e Julieta, o encantamento original pela terra que deveria (numa realidade alternativa) PODER ser amada – a faísca do pertencimento.

Não é aleatório, certamente, que gente empenhada em acender essa faiscazinha e reconciliar o Brasil que temos com o Brasil que merecemos – Lula e Paulo Freire me vêm mais de imediato à cabeça – seja a exata gente mais demonizada pelos donos das velhas capitanias; aquelas que sequer construímos, quanto mais sonhamos. Um povo que garra as rédeas da narrativa é a Cuca que ameaça diretamente o cerne do poder de antigos senhores, acostumadinhos a vender o país ou como algo pelo qual não se luta, ou como uma estrutura sagrada que não se questiona. Pois que se reacostumem os tradicionais parasitas a nos ver lutando, questionando e criando um roteiro fresquinho para as próximas 500 páginas: nunca estamos longe demais para uma viagem de redescobrimento.

Deixa que desta vez a gente dirige.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Desmatéria


Estava lendo, inconfessamente encantada (porque se trata de fisquímica, né, a gente de humanas não pode ficar dando essa pinta de graça), sobre materiais extraordinários desenvolvidos ou descobertos por cientistas, com as particularidades mais maravilhosas: um gás – hexafluoreto de enxofre – que sustenta objetos levinhos como se flutuassem e deixa mais grave o tom de voz; uma espécie de gelo quente – na verdade, acetato de sódio; metais que derretem ao toque de nosso corpo; pós que explodem a qualquer batidinha; lâminas de madeira programáveis para assumir um formato específico em contato com a água; substâncias dotadas de microcápsulas com bactérias que preenchem as fissuras sofridas; e meu favorito: o aerogel "duro, transparente, resistente a altas temperaturas" cuja densidade "é apenas 1,5 maior que a do ar, e 500 vezes menor que a da água" – praticamente uma fadinha sólida. Lindezumes da natureza e do laboratório que mostram o quão risíveis parecem, em 2021, aquelas aulitas da segunda série em que falávamos dos três estados da matéria, no auge de nossa ingenuidade millennial.

Não sou física, não sou química nem pretendo ter qualquer parentesco profissional com inventores de coisas e substâncias úteis, embora obviamente bata palmas para a ciência de pé, em cima da cadeira – ou da mesa: uma pegada mais Sociedade dos poetas mortos –, sob fogos de artifício e projeções de luzes coloridas dançantes. Admiro ajoelhadamente os capazes de fazices utilizáveis no imediato; mas é que eu, feito Manoel de Barros, calhei de nascer apanhadora de desperdícios, tendente ao desimportante, ao inutensílio, à velocidade das tartarugas muito mais que à dos mísseis, e agora não tem jeito: para eu elaborar qualquer troço que se aproveite, força é que ele não se aproveite para nada. Não faz mal, fico aqui muito satisfeita constatando uns substantivos abstratos, quieta e inofensiva. Alguéns, afinal, têm de assumir vaga no departamento de desengenharia que não sustenta o mundo, mas o torna suportável.

Declaro então a existência imaginária duma capinha muito opaca de desnitidez sob a qual o olho acorda; uma capinha tecida com placenta de sonho recente e, possivelmente, algum tanto de névoa. Sua função fininha é ser simplesmente atravessada por nós para reinauguração da vida consciente, toda santa vez. Declaro também a existência de cabelos que nos habitam e não são cabelos, são feitos de material fantasmático e impostor, fios de ectoplasma com mero toque de queratina – para quê? para irritar, naturalmente; ou (usemos de boa vontade científica) para manter o cérebro malhado de estímulos ao tentar, com fúria, identificar onde catapimbas se localiza a MUNDIÇA de cabelinho que pinica no rosto sem se deixar apanhar. Declaro igualmente que existem colas misteriosas, duma energia intangível, a linkar inescapavelmente determinados cérebros a determinados trechos de filme, de modo tão decisivo que não importa o que se faça: pilha-se a história SEMPRE no mesmíssimo ponto, com margem de erro de dois frames para mais ou para menos. Dada a imponderabilidade do visgo, não há solvente que se conheça; o procedimento padrão é cabo-a-rabear uma sessão de streaming para promover o desencalhe desse Evergreen ficcional.

Existem substâncias outras que compõem a insustentável leveza do mundo, e olha que às vezes nem do mundo são: as fibras de luar que puxam para o céu olhos e marés, as pirlimpimpices de estrela que embebedam quem está deitado na grama, a película de memória que reveste nossa linguagem logo após a leitura dum autor preferido, a película de linguagem que reveste nossa memória logo após um filme prodigioso, a falsa tocabilidade de imagens e textos que não se encontram em papel, o ventinho minúsculo de quando voa a borboleta, a vaguidão colorida de que é tricotado o arco-íris, a dor que dói e não se sente de saudades e amores, as faíscas de medo prateado que espocam nas conversas importantes. Essas moléculas do que praticamente não há e que, no entanto, confecciona praticamente tudo que havemos de ser.

O que quase-não-é também tem muita força.

domingo, 28 de março de 2021

Dez em evolução


Muitíssimo poderoso o alerta da escritora norte-americana Toni Morrison, Nobel de 1993: "Eu digo aos meus alunos: 'Quando vocês conseguirem esses empregos para os quais foram tão brilhantemente treinados, lembrem-se de que seu verdadeiro trabalho é que, sendo livres, vocês precisam libertar outra pessoa. Se vocês têm algum poder, então seu trabalho é empoderar outra pessoa. Isso não é só uma brincadeira de pegar docinhos'". Infelizmente nunca li nenhuma obra de Morrison, mas já amo pela escrita de mundo; seu pensamento vai muitão ao encontro das melhores filosofias de responsabilidade e partilha, e muitão de encontro às piores inclinações de individualismo abjeto. Creio ser esta a exatamente-única estrada para que a humanidade se viabilize: viabilizar o bom trânsito de todos com todos os possíveis recursos; não há engarrafamentos quando toda gente flui, dentro de seu próprio espaço, na direção dos interesses comuns, e não há cabimento em caotizar a mesma via que se percorre trancando-a para os demais veículos.

A fala de Toni Morrison me remete diretinhamente a outra interação de uma autora com seus alunos: o caso de um estudante que perguntou à antropóloga Margaret Mead qual ela considerava ser nosso primeiro sinal de civilização. "Um fêmur de 15 mil anos encontrado numa escavação arqueológica", cravou a professora. "O fêmur estava partido, mas tinha cicatrizado. É um dos maiores ossos do corpo humano [...] e demora seis semanas para curar. Alguém tinha cuidado daquela pessoa; abrigou-a e alimentou-a. Protegeu-a, em vez de abandoná-la à própria sorte". AMO, simplesmente AMO essa história (recordada pelo jornalista Rui Gustavo no texto aqui linkadito) e essa leitura de sensibilidade tão fulminante. O que nos distingue como espécie não mais asselvajada, de elementos não mais entregues ao vale-tudo do live and let die predatório, doido, é a disposição de cuidar, e cuidar independentemente de se estar zelando por um indivíduo que irá levar à posteridade nossos genes – porque dos filhotes boa parte dos outros animais também cuida. Não; é o zelo incondicional que se põe muito acima do sangue, muito além das contingências genéticas; é o zelo não programado, não instintivo, e sim escolhido conscientemente: a proteção a alguém do grupo que não é meu, nem de certa forma sou eu, mas que vale igual a mim. Principiamos a evoluir SÉRIO quando decidimos que não era porque o Clêiton tinha quebrado a perna que estava fadado a ser almoço de tigre-dente-de-sabre ou tapete de mamute lanoso; onde ele ficasse ficariam todos, ou ao menos alguéns, até que a mobilidade estivesse restabelecida. Clêiton era valioso para o grupo pelo simples fato de pertencer ao grupo.

"Ah, mas claro, quem não ia querer Cleitinho Churrasco de Mastodonte na sua equipe? o caçador mais badass de todo o Pleistoceno?" Certo, certo; porém, ainda que a incondicionalidade do serviço prestado pelos demais não fosse assim tããão incondicional, já estaria muitos passos à frente do feedback dado pelo desespero mais primário (se o predador está na área, a gente larga esse infeliz como boi de piranha e se escafede) e pelo impulso mais biológico (o mundo não pode perder a chance de receber meu material genético i-ni-gua-lá-vel, deixe-me preservá-lo). Provar civilidade e evolução não significa necessariamente provar iluminação espiritual, embora o trecho inicial da estrada seja idêntico; a habilidade evolutiva de proteger o outro não estava nem está isenta de interesses pessoais. Ou mais papo-retamente: preservar a vida e o bem-estar do coleguinha não é apenas questão de bondade, é questão de esperteza. Burrice é não curar o fêmur de todo o riquíssimo capital humano que nos cerca; rematadíssima burrice é desperdiçar talentos melhoradores da rotina em nome de ódios, ciúmes, egoísmos, individualismos estúpidos. Qual a lógica em deixar para trás ou jogar para baixo alguém que aumentará as vendas, fará melhores comunicações, inventará soluções, fermentará criatividades, descobrirá tratamentos, pesquisará alternativas, reflorestará ambientes? "Ah, mas é que não há lugar para todos." ÓBVIO que há lugar para todos; não estamos aqui todos? Se estamos aqui todos, somos todos únicos e fundamentais em nosso próprio nicho de atuação; somente a competitividade cretina estimulada por um sistema obtuso poderia se dedicar a forjar o contrário, em prol da concentração da caça nas mãos de pouquíssimos. Pouquíssimos estes que vampirizam o trabalho dos habilidosos enquanto os desunem com semeadas discórdias.

Caminhantes dum mesmo caminho, cultivadores do mesmo planeta: uni-vos, apoiai-vos, empoderai-vos, curai-vos, libertai-vos; que nada minta em nós a nossa natureza de coaprendedores e cooperadores – conjunto. E que, assim que passar a pandemia, possamos celebrar nossas vitórias comuns com um churrasco na casa do Clêiton.

sábado, 27 de março de 2021

Um tempo bom chegando


"Há um tempo bom chegando, rapazes!/ Um tempo bom chegando." Como não ser beliscado por uma esperançazinha ao ler os versos felizes do poeta e jornalista reino-unidense Charles Mackay (207 anos hoje! Yay, Mackay!), musicados com grande sucesso por Henry Russell? There's a good time coming foi uma canção popularíssima no século XIX – e é realmente adorável, procurem –, mas vocês hão de concordar que nunca precisamos tanto dela como agora, ao menos no Brasil: "There's a good time coming, boys!/ A good time coming./ We may not live to see the day,/ But earth shall glisten in the ray/ Of the good time coming./ Cannonballs may aid the truth,/ But thought's a weapon stronger;/ We'll win our battles by its aid,/ Wait a little longer" ("Há um tempo bom chegando, rapazes!/ Um tempo bom chegando./ Podemos não viver para vê-lo vir,/ Mas a terra há de no raio luzir/ Desse tempo bom chegando./ Balas de canhão ajudam a verdade,/ Mas o pensamento é arma mais capaz;/ Venceremos nossas batalhas com seu auxílio,/ Esperem um pouco mais" – é o que teríamos numa tentativa canhestríssima de tradução da primeira estrofe, respeitando um fiapo do esquema de rimas; perdão por isso).

Conforme alguém sabiamente já recomendou, deixo o pessimismo para tempos melhores e vou inteirinha na vibe de Mackay: há um tempo bom chegando, moças, rapazes, irmãzitas e zitos cá da terra. Há um tempo chegante em que a ciência acabará de se impor à força de seleção natural; o que não conseguem os avisos devolvidos com deboche, conseguirão os fatos cientificamente previstos. Não que mortes sejam desejáveis; nunca são, nunca; outros efeitos do descaso, entretanto, também gritarão loud and clear o bastante para que uns mais revestidos de poder decretem em breve: chega. Basta, viremos a página – e viraremos a página. Se o que vive de desesperançoso e exausto em nós não crê que o sofrimento do povo venha a abalar os grandes (tem razão: não abalará), pois que nossa noção de praticidade nos anime, que ao menos nossa objetividade sem ilusões nos permita lembrar que o odioso senhor mercado não é sujeito de tolerar o desaforo de perder consumidores em massa, nem parceiros internacionais a rodo. Um monstrão não convive longamente com uma sua excrescência sem que acabe por defenestrá-la.

Há um tempo bom chegando, amados – um tempo em que aberrações de preconceito serão tratadas única, exclusivamente como as aberrações que são. Não é verdade que (para nos soprar um cadinho de fé no andamento da história) cenas bizarras de machismo, racismo, homofobia que habitavam a TV de décadas atrás já agora se intimidam e se escondem, ou, quando ousam arriscar uma aparição, levam imediatamente a devida marretada? Séries, propagandas, filmes e novelas mostram uma evolução possante de ano para ano; o zeitgeist assim exige, o movimento é ir-re-ver-sí-vel e seu resultado (esperamos), definitivo. Nunca mais voltaremos ao que éramos, não recuaremos um passinho sequer, ainda que fascistas se estrebuchem e extravasem de ódio como aliás sempre fizeram – o que parece um recrudescimento de fascismos é o último guincho da besta fadada à destruição. Pode não ser bem agora, bem amanhã, mas há de ser casablancamente logo, e há de ser para o resto da vida.

Há um tempo bom chegando, my people! um tempo em que verdades se tornarão tão mais sofregamente queridas e buscadas quanto mais têm sido massacradas pelo absurdo. O absurdo, de não se sustentar, cansa; gera antipatia, ressaca, entojo, desconforto, tanto assim que deriva e derivará rapidinho em seu contrário: o aconchego da sensatez que restabelece, enfim, caminho sólido no qual se pise sem se pisar no arbitrário do ar. Humanos destinados à inteligência (a maioria, acredito, ou como teríamos chegado até aqui?) precisam da verdade, arfam pela verdade, não descansarão senão na verdade; angustiados ao cúmulo com toda a gama das mentiradas toscas até o mais deep dos fakes, tenderão a se agarrar com maior e comoventíssimo afinco à realidade limpa, direta, simples, livre de gritos e delírios e pavores – espécie de locus amoenus moral e contemporâneo. Nosso coração, coisa demais de sensível, há de progressivamente se aproximar de tudo quanto o faz viver sem medo, sem histeria, sem o ódio que só equivale a desgaste e desassossego, sem outra resposta final que não a objetividade do amor, essa certeza mansa que deixa todas as alternativas para trás.

Esperem um pouco mais.

sexta-feira, 26 de março de 2021

Fazendo a festa


Adoro o fato de que hoje, para os americanos, é o Make Up Your Own Holiday Day, ou Dia de Criar Seu Próprio Feriado – ideia implantada por Ruth e Thomas Roy, casal da gringa que é especialista em criar seus próprios feriados; os doi(do)s, juntos, já meteram entre setenta e oitenta dessas datas malucas no Chase's calendar of events, publicação anual começada pelos irmãos Chase em 1957, na terra do tio Sam. Entre as festividades lokonas boladas pelos Roy, andam pérolas como o Dia de Responder à Pergunta do Seu Gato (22 de janeiro), o Dia de Perdoar Mamãe e Papai (18 de março), o Dia de Abraçar um Australiano (26 de abril), o Dia de Não Pisar numa Abelha (10 de julho), o Dia da Poesia Ruim (18 de agosto), o Dia de Ficar Longe de Seattle (16 de setembro), o Dia do Querido Diário (22 de setembro), o Dia de Dar Nome ao Computador (20 de novembro), o Dia de Permanecer em Casa Porque Você Está Bem (30 de novembro); quase tudo nessa toada. Organizando direitinho, Thomas e Ruth conseguem providenciar bobagens calendárias para todos os gostos.

Não sendo eu exatamente uma escondedora de minha queda por umas tais sandices, preciso nem avisar que supertopo o feriado de gerar feriados, e já começo indelongamente cravando um para hoje: que tal o 26 de março para Dia da Tradução das Fábulas de Esopo, em homenagem à publicação da cuja por William Caxton, nesta data, em 1484? Diz que esse Caxton foi o primeiro impressor em inglês e editou (lá pra 1475) o primeiro livro em língua inglesa, daí a puxadinha de saco potencial; fica a dica, Roy. Ainda nos domínios deste mês, pego o 29 para Dia do Hífen, já que este quadradito da folhinha representou em 1990, na ex-Tchecoslováquia, o início oficial da batalha gramático-política de como renomear o país após o declínio da URSS. Na chamada Guerra do Hífen não se disparou nada a não ser, no máximo, alguns impropérios e talvez umas tintadas de caneta, mas a trip do junto-separado-maiúscula-minúscula-hífen-travessão cresceu tão portentosa que, em 93, foi República Tcheca para um lado, Eslováquia pro outro e não se fala mais nisso. Gente: MUDAR O MAPA por causa dum dilema de grafia do substantivo é MUITO o cotidiano de quem dá a volta QUE FOR para fugir do termo duvidoso e miserento. O feriado não pode moralmente ser outro.

Deixo também agendado, para 11 de junho, o Dia de Dar o Crédito ao Verdadeiro Autor. Cadiquê? Nesse dia, em 2002, o Congresso dos Estados Unidos reconheceu que o inventor do telefone foi realmente o italiano Antonio Meucci, não o danadjenho do Graham Bell. Pois é, menino, teve essa treta: Meucci bolou em 1856 um aparelho que apelidou de teletrofone, para se comunicar de seu escritório com o seu quarto no segundo andar da casa, uma vez que a senhora Meucci sofria de reumatismo; só que, com a grana curta, o italiano (morador dos EUA) pôde pagar apenas uma patente provisória. Mandou a ideia para a empresa Western Union, que não se interessou e ainda avisou ao inventor, mais tarde, que seus projetos tinham sido perdidos. Não é que dois anos depois o Graham Bell, essa fofurinha que já havia dividido um lab com o colega europeu, meteu-lhe uma bola nas costas, conseguiu a patente do telefone e fechou negócio com a Western Union? Meucci só não ganhou o processo contra Bell porque faleceu antes, e cá estamos quase todos nós, ainda em 2021, celebrando o fura-olhos ao lhe atribuir a autoria surrupiada. Pa-ti-fa-ri-a.

Posso brincar de mais unzinho? Põe aí então: 26 de outubro, Dia do Eu Não Deveria Ter Criado Essa Bosta. Nada não, só um leve ressentimentozito pelo lançamento daquele estrupício do Windows 8 em 26/10/2012 – AQUELA porcaria horrorosa e inútil que se enfiou entre os ótimos irmãos 7 e 10. Nunca saberemos o que acometeu o sistema nervoso de quem, certa feita, pensou durante o banho: "Ei, por que não um Menu Iniciar que desaparece, se esconde e pipoca apenas nos piores momentos para atrapalhar com toda a eficiência o que está sendo feito?". Quase uma década depois, estamos abençoadamente livres desse flagelo, dessa abominação, porém nunca se sabe; o ser humano apresenta uma tendência preocupante para ter as mesmas ideias execráveis várias vezes na História, o que me faz abraçar como prudente a instituição de um memorialismo profilático. E já que profilaxia está em pauta, por favorzinho – finjam que já existe a festividade que nem tive tempo de inventar, o Dia de Perdoar o Cronista Enfadonho (sim, peguei carona naquele com Papai e Mamãe, AND PROUD), e considerem aplicação imediata para todos os efeitos. Antes que meus últimos tracinhos de crédito junto aos quatro leitores pacientes se completo-espatifem.

(Com hífen?)

quinta-feira, 25 de março de 2021

A hora da estrela


O Brasil é sim estrelado, estreloso, estrelício, estrelímpido, estrelargo de coisas destinadas a brilhantes, estrelustroso de vias (lácteas) como em poucos lugares houve ou haverá. "Nosso céu tem mais estrelas", bem suspirou a finíssima intuição de Gonçalves Dias no poema tão nosso que se enroscou no próprio hino. Nossa bandeira, se tem algo de estrelucidamente brasileiro em meio a ordens e progressos macabros, em meio a cores de nobreza europeia, ah, são as estrelas – elas sim nossíssimas, da-terríssimas, apesar de celestes. O Brasão da República: estrela grande, estrelas do Cruzeiro, estrelas em volta do Cruzeiro, estrelinha amarela sobre vermelho; "quase que só há estrelas", adendaria Murilo Mendes, outro nosso constelador poético.

Na camisa de futebol (que pena, Senhor, vê-la ultimamente sequestrada pela barbárie), temos também bordadinhos os maiores estrelouros já atingidos. E quem nega a Mané Estrela Solitária Garrincha as devidas astro-realezas do campo? Ninguém gingou mais que ele, nem ninguém jinglou mais que nós em proporções estelarcionais: "Estrela brasileira no céu azul", "Estrela estrelando, brincando com a gente, e a gente brincando feliz", "todos num só coração,/ um céu de estrelas". Inevitavelmente, cosmicamente, a estrela é nossa companheira, nossa brincadeira, nossa diversão; há de surgir uma estrela no céu cada vez que o Brasil sorrir (caso do acaso, signo do destino – e o nosso é ser star). Tão estreluminosos somos que até uma Belém nos coube em partilha, assinalando caminho aberto para surgimentos alumiadíssimos; uma constelação todinha de nomes astrais nasceu bem filha cá da terra: Alcione, Nair Bello, Maria Bethânia, Maria Rita, Maria Gadú – para representar nossa infinidade de Marias, mui galacticamente superiores a três –, Soraya Ravenle, Tânia Alves, Dalva de Oliveira, Céu e mais todas as Carinas, Normas, Berenices, Mayaras, Talitas portadoras de xarás siderais, estrelas da vida inteira. Todo brasileiro tem uma estrela dentro do coração.

Ora (direis), certo perdeste o senso! Então se pode festejar como palco iluminado um país que anda mais para palhaço das perdidas ilusões? E eu vos direi no entanto que, por mais que nossa boa estrela venha passeando tão alta e tão fria, já tem voltado a luzirzinho na recente vida vazia, só pra ver a flor do nosso sorriso se reabrir. Ainda não conseguimos botar um meteoro sobre o assunto coiso-apocalíptico, é fato, mas só a miniaurora da perspectiva de repor o Lula faz crescer em anos-luz a esperança, ou a esperança de retomar nossos anos-luz. Essas mil expectativas de devolver o país à sua primeira grandeza, essas milhões de ansiedades por escrever-nos enfim uma página supernova – ah! amai realmente o Brasil (aquele potencial Brasil do sol da liberdade, do sol do novo mundo) para entendê-las; só quem o ama por bem ou por mal, livre de cegueiras, exausto mas firme nas crenças, tem ouvido capaz de ouvir e entender o que o melhor Brasil criança, antropofágico e pindorâmico, diz.

Sem medo de ser (novamente) feliz.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Elogio da língua imperfeita


"As línguas são imperfeitas/ pra que os poemas existam" – escreveu Adélia Prado, consolando-nos de toda insuficiência. Como se dissesse (e aposto que pensou) que as flores são limitadas e imperfeitas, incapazes de suficiente polinização e de voo, pra que as borboletas, abelhas, beija-flores existam feito um seu anexo, um seu desdobramento. Como se afirmasse que os climas são instáveis e imperfeitos para que existam solenemente os arco-íris. Como se celebrasse o serem as nuvens desiguais e imperfeitas para que existam boquiabertamente os pintores.

As línguas são sim imperfeitas, imbastantes para todos os cantos, inacessantes pelas próprias forças gramaticais de todas as frestas psicológicas – daí, por exemplo, a metáfora, possibilitadora de que quase tudo seja dito da maneira que é sem o ser. Cada metáfora (barro de poesia) abraça um verbete dum infinitilhão de dicionários particulares e amplia de modo caleidoscópico o idioma de origem, tão pouco para descrever as existências de dentro: o olho da pessoa amada não é olho, é uma central de pinceladas impressionistas, é uma poça de mel sob um dia de chuva, é uma tulipa negra de Alexandre Dumas plantada sobre a neve, é uma revoada de miosótis, uma antemanhã, um equinócio, um dilúculo, um plenilúnio; a alegria não é alegria, é a alma entregue ao cafuné da memória, é a aurora boreal rodando em pas de deux com o estômago, é o réveillon de Copacabana estourando no peito; casa não é casa, é um endereço de pelúcia, é um berço de muitas paredes, é uma corola de pétalas concretas e cimentas, uma festa em que se anda descalço. Por causa da inexatidão emocional a que estão sujeitos quaisquer milhões de trechos em vernáculo, fica possível e desejável a poesia, essa tão bem-aventurada necessidade, tão bem-vinda urgência – essa reprodução linguística da paixão biológica de que estaríamos dispensados, se corpos e idiomas se fechassem numa total eficiência interna.

Em havendo palavras dicionárias suficientes para o que somos, não teríamos o teadorar de Manuel Bandeira, a despalavra de Manoel de Barros, as atravessuras (quantas!) de Paulo Leminski, as ultrafatalidades de Augusto dos Anjos, o coraçãomente de Guimarães Rosa. Não teríamos tampouquinho o gosto de fazer massinha e lego das palavras, nós-mesmamente, já que línguas redondas de perfeição não se querem brincáveis: quem brinca com porcelana dura, caríssima, delicadíssima, vestidíssima de renda? Uma língua que fosse cirúrgica e espartana, plena e direta, repleta de todos os objetos feitos sem restos de insumos para produzir novos, sem falhas, sem brechas, sem vazamentos – isso é tudo que eu particularmente não queria da vida, eu e todos os falantes e escreventes que fomos aparelhados para gostar de passarinhos voando em completamente tudo. A arte, desvio de todas as linguagens, é isto: o desvio, o subjuntivo, o neologismo, a hipótese, a ressintaxe, a recolorice, a refeitura, a recriação. A recriação – que é justamente a margem de criação humana, visto sermos inaptos de nascença para tirar qualquer coisa de qualquer nada.

Que me perdoem línguas nenhumas (já que, humanas, não as há perfeitas), mas qualquer nonada de poesia é fundamental.

terça-feira, 23 de março de 2021

Amor, feito terra


Gosto imenso da noção de responsabilidade, atividade e busca que é reforçada pelo psicanalista alemão Erich Fromm (um hoje aniversariante, êêêê! completador de 121 aninhos potenciais) com relação ao amor – essa entidade tão terrivelmente reduzida, pelo mau senso comum, a uma Disney onde se demanda entretenimento uma vez pago o ingresso. Fromm não deixava de sublinhar a incongruência dum amor assim de palco, de ribalta, contratado nos moldes do freguês, e era criticamente cutucão dos egoísmos de afeto: "A maior parte das pessoas vê no problema do amor, em primeiro lugar, o problema de ser amado, e não o problema da própria capacidade de amar".

Pois não é? O que mais infla os Tínderes que andam continuamente à caça vem a ser, acredito, o desejo de atrair para si a atenção e o carinho de outrem – dificilmente o contrário; dificilmente (quero dizer) alguém entrará nos aplicativos-cupido com a deliberada vibe "vou achar alguém para ENTUPIR de felicidade até sair arco-íris pela orelha". Não que seja errado querer-se querido, naturalmente; é das necessidades mais básicas possíveis, rivalizável apenas com ar, água, alimento físico, e em cuja falta pode-se até não morrer de morte oficial, mas de morte moral bem que se morre. Alguém inteiramente desamado (de maneira ampla, não romântica) é em geral um falecido de corpo presente e circulante, doente brabo do peito, ignorante das nobrezas do amor na mesma medida em que foi sempre ignorado. Isso é claro e certo. No entanto, ouso crer que os inteiramente desamados não são a maioria, e que em tese a maioria teria condições básicas de reproduzir alguma versão de pleno amor que lhe foi apresentada. É a essa gente minimamente instruída nos meandros de amar que Erich Fromm se refere com sua delicada indignação: se é um pessoal que recebeu, pois que agora doe e se doe com um pouquinho mais de empenho, um pouquinho mais de capricho com a sagrada regra de passar adiante.

Amor, feito terra, não é coisa de ficar parada e latifúndia em torno de um só, não é vassalo de um suseranão que concentra todas as dedicações e favores; amor, feito dinheiro, não é coisa de ficar empilhada e encofrada na caixa-forte de um único e possessivo Patinhas, que queira se servir de todas as riquezas de atenção disponíveis no mercado. Amor não é projetado para o mimo exclusivo de um dos filhos, um dos amigos, um dos pais, um dos conjes; não é destinado ao criadouro de monstrinhos egoístas, incapazes de saciar-se mesmo com o cúmulo do foco alheio; não é arquitetado para piscininha de playboys emocionais, doidos pelo ócio afetivo (ócio afetivo esbarra em ser tudo, menos amor); não é o almofadador da vida de reizinhos carentes – é um dínamo, é um arado, é um que empurra os amados da cama ainda na madrugadinha para lavrar, adubar, cultivar, pegar gosto pela utilidade. Amor não necessariamente dá comida na boca ou leva café na cama, mas senta junto na cozinha, reparte a receita de família, ensina a fazer biscoito, a lidar em segurança com o fogo, a nutrir-se do que convém. Amor não é a tia Teteca do outro nem se oferece grudento, melento, entetecável, já que não dá em bonecos que brincam de casinha, dá em seres suficientemente maduros e autônomos. Amor se re-cu-sa a ser gambiarra, fralda, babá, muleta, encosto de cadeira; se nega a encarnar o McLanche Feliz que se monta de encomenda; não se rebaixa a existir, íntegro, para quem não o integralmente compreende: existe íntegro em si mesmo, limpo e acessível, sem transigir com aquilo em que não crê apenas para se tornar aceito e palatável.

O amor está no desdobrar-se, não no querer ibope ou fazer campanha. Sem slogan, sem promessa, sem bandinha de música, ele vai e ama e semeia, intransitivo; não prioriza garantir que as terras sejam suas. Prioriza garantir que as terras sejam férteis.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Dicas aleatórias dum coração parceiro


Suco de melancia combina aconchegadamente com mel.

Embalagens que fecham roupas a vácuo são as melhores e mais amigas dribladoras de volume nas malas. Pra que perder espaço embagajando ar, bolotas?

Em nenhuma situação é recomendável sair sem lencinhos úmidos na bolsa.

(Ou entrar no supermercado desalmoçadamente: prejuízo clássico.)

Nem todos os quadros se querem pendurados.

Na falta de linhas e agulhas, esmalte incolor dá uma segurada em botõezitos prestes a virar desertores.

Corpos gostam de dormir deitados sobre sua esquerda, a fim de se preservar de acidezes indigestas.

Não se toma banho com a cortininha da banheira para fora da banheira, a não ser que haja empenho em providenciar cosplay do Parque Nacional do Iguaçu.

Caixitas de música deixam o coração do presenteado quentinho.

(Sim, e porta-retratos já portadores de retratos escolhidos, impressos, emoldurados.)

Em rodinhas de conversa que papeiam arrumadas semiabertamente, há uma tácita aceitação de novos papeadores. Se os elementos da roda trocam ideias em círculo cerrado, não.

Pés de interlocutores também não mentem: ou apontam para o outro falador ou já andam desejosamente em ritmo de fuga.

Pessoas tímidas/introvertidas não entram em lojas nas quais os vendedores observam a porta com ar de maratonista esperando a largada. Não entram em lojas nas quais precisarão dizer que estão só olhando. Não entram em lojas que não têm preço na vitrine.

– Aliás, fones no ouvido são uma lindeza para desencorajar aprochegamentos de comércio.

Dói, eu sei, mas muçarela em português é mesmo com cê-cedilha.

Crase NÃO É o nome do acento, cazzo.

Uma toalha sequita colocada na hora da centrifugação acelera a secagem das outras roupas.

Uma pesquisa "sons de animais" no Google abre vááárias janelinhas clicáveis com sons de animais.

Uma pesquisa "questionário do Dia da Terra" no Google abre um teste fofildo para nos informar que bicho somos.

Preços ímpares nos dão uma impressão traiçoeirenta de que os produtos estão mais baratos. Pois é: capitalice.

Capitalice too: música tranquilizante no mercado. Cliente sem pressa é bom à beça.

Se a navegação é no Windows 10, o combo tecla da janela + tecla do ponto final convoca a central da emojizada.

De nada.

domingo, 21 de março de 2021

Volta para você

Não assisto ao BBB, porém mais ou menos o acompanho pelas notícias e redes, e sei que o casal (ou ex-casal) Carthur tem sido constante foco de análise e fonte de treta. Parece, segundo o UOL, que a moça andou chorando de esgotamento no quarto – não creio que somente pelos despeitos/desfeitas do rapaz, mas também ou principalmente por isso –, ao que o amigo Fiuk tentou responder com a melhor escuta, o melhor consolo. O que especialmente me flechou foi a frase de reconvocação que o cantor dirigiu à sister chorosa: "Volta para você, Carlinha".

Sim, amiga, sim, volta para você; que coisa maravilhosa (e estou mui solenemente me lixando para o descompasso na conjugação do imperativo, tem de ser assim justinho, conjugado de uso e de alma). Que achado feliz na expressão, que maneira feliz de dizer a uma pessoa aparentemente divorciada de si mesma que procure retomar a união consigo, procure se reaconchegar no endereço emocional onde morou com sua melhor versão. Volta para os seus próprios braços, mulher – porque quase sempre, como neste caso, quem se autoabre mão é uma mulher –, volta para a concordância com as próprias crenças em gênero e número, sem o dementador afetivo que te consome nesse grau.

Volta para aquela você que se pertencia na roupa, no Face, no horário, na chave de casa; aquela que não se encrisava de ansiedade quando o colega de trabalho amava a foto de perfil, porque não havia um encosto sentimental para se encrisar de ciúme violento (redundância: todo ciúme é violento, gritando ou não, batendo ou não, segurando o braço ou não. Stalkear, fechar a cara, vigiar, ter a senha da conta para dar incerta, tirar satisfação por causa de mais coraçãozinho ou menos coraçãozinho: VIOLENTO. Piora 435% das vezes, melhora absolutamente nunca). Volta para aquela você que não buscava olhar de aprovação (ou permissão?) para o comprimento da saia, que não estremecia num pré-susto a cada ruflar de vento vigilante no entorno do celular, que não se isolava do grupo de amigos em resposta ao choramingo de um dondoco. Cerque-se de novo de sua rede de confiança, dê um perdido master no atraso de vida, mude de rua, de bairro, de cidade se puder, encha o saco na delegacia se precisar, transmigre-se inteira em outra se for o caso, apenas para voltar a ser aquela: a legítima. A original. Vo-cê.

Volta para a você que ria muito, que ria alto, que passava máquina no cabelo se desse na telha, que queria fazer tatuagem e fazia, que mudava móveis e pintava paredes e trocava quadros a seu bel-prazer e gosto, que deixava o smartphone em casa quando ia ali dar um tchibum sem prazo no mar, que desde que deixou a casa dos pais não fazia relatório pra ninguém a não ser para o chefe. Aquela focada alegremente, radiantemente na carreira, no estudo, nos filhos, no hobby, na meditação, nos planos de viagem, nas séries da Netflix, nos filmes do Oscar, whatever – focada no que quer que tivesse escolhido de mais pleno, de mais seu, desinvadido da tensão de administrar tensões com macho inseguro, possessivo, ancorento, carente, dependente. Aquela com autoestima de cabelo solto (ou zero-maquinado), aquela consciente de sua beleza intransferível, aquela altamente sabedora de seus talentos, de sua inteligência, de seu brilhantismo imunes ao gaslighting das criaturas do pântano. Aquela, aquela mesma; a mulher da sua vida, sua alma-fêmea. Voooolta.

Volta para aquela que merece você e que você merece, as long as you live. O que Deus floriu, que homem nenhum despetale.

sábado, 20 de março de 2021

Toda espécie de felicidade


Longe de mim falar bem de numerices, mas não sou eu, é o matemático húngaro Alfréd Rényi – que completaria cem aninhos redondamente hoje, Dia Internacional da Felicidade: "Se eu me sinto infeliz, faço matemática para ficar feliz. Se estou feliz, faço matemática para continuar feliz". Eeeeeca, Alfréd. No meu caso já escolarmente longínquo, precisei me LIVRAR de fazer, ver, ouvir, suspeitar, engolir matemática para estar e continuar feliz; mas enfim quem sou eu para apontar o dedito na cara do hobby alheio, eu-assistidora de programas psicopáticos. O que de melhor poderia acontecer à minha tribo cirandeira, aliás, era mesmo que houvesse Rényis em profusão na face terrestre para trazer equilíbrio à Força, ou do contrário se acabaria o mundo em gente usando como unidade de medida o marromeno ("Ô Adílson, põe aí na fórmula uns dois ou três marromeno desse troço de potássio e vê se presta"). Valeeeeu, Alfréd: o fato de tantos lindos como você se encantarem de cálculos e teoremas liberta os miçangueiros como eu de mil incômodos, tipo comprar material de construção sempre insuficiente ou explodir sem querer o planeta.

Num brinde conjunto à memória centenária de Rényi e ao Dia da Felicidade, contem-me pois: que fazem/veem/abraçam/consomem vocês para ficar ou continuar felizes? Gostar, só, não vale a pontuação completa; tem que vir uma onda de realização com a coisa, aquele perfume de pós-tempestade, de convalescença, quando flutua uma certeza boa de que todos os trens vão recarrilhar-se. Pão francês quentinho, por exemplo, e devidamente amanteigado, é para mim tiro e queda – regala de imediato a vida. Leitura dum romance gordo, afável, psicológico mas igualmente aconteceiro, com uma ruma de personagens a que a gente se apega que nem família, e em cujo desenrolar já se pressente um gozo suave: ah, sim, mesma prateleira do pãozito quente. Cold case em seus episódios ainda não me-conhecidos. Sensação táctil e inebriante de hora nenhuma, compromisso nenhum. Longa cantoria (baixinha) pela casa naquele dia em que a voz acorda certa. Filé mignon com guarnição à francesa dum restaurante aqui arredórico. Brincadeira de anagrama no Racha Cuca. Garimpo na Estante Virtual. Crônica da Martha.

O maravilhoso, incomparável já ter: feito a mala, arrumado os livros, terminado o texto, lavado a roupa, pendurado a roupa, borrifado antilimo no banheiro, postado atividade de escola, atualizado o diário de classe, corrigido o que é de corrigice, encomendado o que é de mercadice, atravessado mais um episódio de The walking dead (NÃO. ACABA. NUNCA), parabenizado no Face os aniversariantes (confesso: quase nunca). Ter entrado de férias – ficar, ficar, ficar residente nelas. Convencer o Word de que é uma folha só, não são duas. Pronunciar convincentemente qualquer bobagem em francês. Achar saia de comprimento perfeito. Achar tema de comprimento perfeito. Constatar, na rua, acácias de cachos balofamente floridos. Escolher presente para gente eclética de presentear. Conhecer o quarto de hotel onde se morará uma semana com outra vida, outro roteiro, outro idioma. Passear após a janta do hotel fazenda na esperança de vaga-lumes. Embriagar-se de céu estrelado. Ouvir coros mistos que parecem estrelar musicais no céu. Mastigar a perfeição macia de bolinhos financier. Respirar chuva, terra, umidade e mata.

Saber que fórmulas (algumas) variam e a conta não é exata.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Alguma espécie de felicidade


Intrigou-me que Albert Schweitzer tenha dito: "O sucesso não é a chave para a felicidade. A felicidade é a chave para o sucesso". Daquelas citações pelas quais não se passa incólume, daquelas cuja leitura traz prontas minhocas e sinapses, concentradas na possível digestão mental. É então sine qua non estar de sorriso pendurado (junto com a máscara) nas orelhas, a fim de se chegar lá? É fundamental viver assim bem-aventurado antes que se possa existir bem-sucedido?

É fundamental, creio, ALGUMA espécie (íntima) de felicidade antes que se possa existir com uma boa espécie (social) de realização. Não suponho com isso que todos os figurões e remuneradões de cada área sejam ou estejam necessariamente felizes; porém, autorizando-me o raciocínio do professor Schweitzer, devo supor que em algum momento tenham estado ou sido. Se não há a mínima alegria, o menor spark em se rumar por determinada trilha, de onde brotam as pernas que andam andam andam indiana-jonicamente caminho adentro, sem a obrigação pessoal de ir do ponto A ao B e apenas pela febre de conhecer, catalogar, desbravar? Se não há um bocadinho qualquer de fascinação no olho ao acessar nossos avançadíssimos motores por dentro, religar veias e artérias, conter sangramentos, botar ar nos pulmões, observar os primeiros tuns dum coração principiado a rebater – de onde vem a teimosia insana que permite revolucionar a medicina? Se não há um tantito sequer de contenteza em compreender como o entendimento humano finalmente dá o clique e explode em viço, depois de exposto a múltiplos recursos, de onde surge a insistência de desenvolver mais e mais riqueza de práticas pedagógicas? Não brota, não vem, não surge de nenhuma razão em ganga bruta, constante e robótica, programada unicamente no modo deveres; pelo menos nada perto disso obtém uma porção de sucesso tão significativa. Por mais que um cabra legítima e respeitavelmente porreta em sua profissão seja racional até o extremo – e por mais que tenha tido, na trajetória de êxito, o auxílio de outros tantos fatores: sorte, nascimento, grana, timing, criação –, não haverá chegado a legítima e respeitavelmente porreta sem a faísca de alguma espécie de felicidade, alguma! no germe de seus trabalhos. E convenhamos: numa parte presumivelmente gordota deles.

Óbvio, isso não quer dizer (nem de longe) que alguém deva "trabalhar por amor", salvo se for irmã(o) de caridade, sacerdote ou estiver em similares funções missionárias – sublinhando-se que, mesmo nesses casos, o altruísmo sozinho não garante abrigo, remédio, alimento aos agentes da caridade; os santos mais abnegados não podem deixar de receber apoio material dos demais setores sociais apenas porque amam. Exceção feita (e com ressalvas) a esses operários da dedicação espiritual, o que temos é gente que só "trabalha por amor" nos sonhos desejosos de seus contratantes ávidos por lucro, doidinhos para plantar no funcionariado a culpa de não estar vestindo a camisa da empresa. Vestir a camisa da empresa porcaria nenhuma: À EMPRESA é que cabe vestir a camisa dos funcionários para que trabalhem – não POR amor, que é nesse caso manipulação e canalhice, mas – talvez COM amor, ou com aquele estímulo de gente nutrida, descansada, recompensada, grata ao ambiente estável e salubre em que se encontra. Patrãozinho quer melhorar a produtividade? pois dê aos empregados todos os elementos de felicidade cabíveis; estimule cooperações, desencoraje competições, aumente salários, flexibilize horários, coíba assédios, ofereça cursos, providencie mais juntice de pais e filhos, forneça alimentação boa e fresquinha, arrume jeito de a equipe se cansar o mínimo possível no trânsito. DU-VI-DO que criatividades, assiduidades, ideias, motivações não se everestem com impulso de catapulta.

Quero nem saber o que prega a coachlândia; me recuso a apoiar aquela conversaiada besta de "botar tubarão no tanque" para fazer os peixinhos nadarem e outras patifarias. Concordemos sobre o quanto é absurdamente sádico (e burro, né? buuuuurrrrrro) falar em promover não o bem-estar alheio, e sim seu INCÔMODO, sua autoimolação, com vistas ainda por cima a um ganho que é de outrem. Nã, nã, nã, sou totalmente team Schweitzer e faço profissão de fé nos benefícios do espalhamento de felicidade: pessoas com saúde em riba, autoestima azeitada e mais segurança de seu valor na carreira adoecem menos, apaixonam-se com mais frequência por projetos refrescantes (porque estão de neurônios livres da urgência de lutar pelo básico), especializam-se mais, desafiam-se mais, networkam mais. Que mentalidade desgraçadamente colonial e cruelmente escravocrata pode supor que criaturas privadas de sono e nutrição decentes, de estímulo à vida cultural e de poder aquisitivo renderão melhor? Essa aberração mercadológica de coisificar humanos e procurar matar neles exatamente o que os faz tão insubstituíveis é loucura que tenderá, espero, a ser eliminada do mundo conforme ele se for fazendo mais mundo.

Se evolução é a única estrada tomável, só podemos evoluir para uma Terra fada-sensata que colha as melhorices de cada gente plantada linda, fértil, largamente em sua zona de conforto.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Rapaz com cachecol vermelho


Protagonista masculino não costuma ser minha preferência, a não ser que o fazedor da obra me apaixone forçosamente pelo cujo, num golpe baixíssimo; se essa crushice não se der, o provável é que a tal voz ficcional não me importe muito nem significativamente me comova. Meu filme mais do coração, O fabuloso destino de Amélie Poulain, tem uma mulher como eixo; meu livro mais elegível para o topo dos favoritos, Jane Eyre – obra de mulher, por-sinalmente –, idem; e, a despeito de tooooda a adolescência e a primeirinha fase da idade adulta me haverem feito uma groupie literária IRREVERSÍVEL do século XIX, período no qual as manas só conseguiam publicar em modo de exceção e não de regra, são precisamente duas dessas raras autoras oitocentistas que significam, para mim, o auge da literatura na época: pela tessitura assombrosa dos personagens e do enredo, George Eliot; pela visão sensível e oxigenante de mundo, George Sand. (Machado e meus poetinhas românticos não disputam pódio, diga-se; estes últimos por serem amor profundo, aquele lá por ser Machado e acabou-se.) Em Eliot e Sand, mesmo os personagens masculinos me parecem mais úmidos, camadosos e interessantes, ou então é a tinta de autora que os embrulha num cenário muito superior a eles próprios, a suas próprias ambições e sufocações; é uma experiência radicalmente diferente, por exemplo, ler um Daniel Deronda de Eliot, em que o moçoilo-título se mostra no máximo co-protagonista (ao lado de Gwendolen Harleth, uma das mais instigantes psiquês de mulher já criadas), e ler um O vermelho e o negro de Stendhal – construção psicológica soberba, impressionante, colossal, porém inegavelmente centradíssima num umbigo machinho. Não se trata de crítica, quem sou eu!, apenas de constatação e assumido pretexto para dizer: só genialidade não basta, necessito de genialidade com menos testosterona.

Mesmo nas artes plásticas eu tendo a me inclinar para representações femininas (ou relacionadas ao que é tradicionalmente atribuído ao universo feminino) e ser um tanto quanto impermeável às demais. Muito no entanto, às vezes alguma arte de voz e/ou representação xis-ípsila também me fascina pela umidade, como se deu quase literalmente com o quadro reproduzido acima, do expressionista belga Léon Spilliaert: Young man with red scarf (Rapaz com cachecol vermelho, em tradução livre). Que tem ele de irresistível? não sei certinho; talvez a aparente simplicidade tão chamante, tão simpática; talvez as proporções tão instigantes, que submetem o pequeno humano sem identidade e sem rosto à superioridade brava ou calma – creio que brava: tanto vento no cachecol vermelho! tanta espuma! – da enormidão azul; talvez o contraste delicioso da pecinha vermelha, único quentume da cena, com todo o resto da composição fria e sóbria. E a atitude do rapaz magro, alto, sem rosto: que é que mora naquela contemplação indiferente à fome ressacosa do mar, ao desconforto da roupa molhada, ao risco mais do que considerável de perda do cachecol? Por que a mão no bolso – resignada? comovida? – que não se anima a segurar o pouco de calor que lhe escapa?

Não dou nome ao moço incógnito, já que o artista só o traiu vagamente na idade e olhe lá; nem traços pôs na possível desolação de seus olhos presos no azul. Será luto a pose de sozinhez outonal? Ali há tristeza sem dúvida, e no entanto eu não apostaria em luto: pelos idos de 1908, data da obra e presumivelmente da cena, me soa gauche que alguém enfeitasse o nojo com um vermelhão assim, exceto se num ato de rebeldia. Pode haver rebeldia, mas penso que não de morte – rebeldia de amor arranhado, carecido de uma praia com vento, muito vento e muito mar para ter área de espalhar-se, de o sentimento correr e gritar o que o vulto magro não corre e não grita. Veeeento que arranque, simbólico, o cachecol tão exclusivamente vivo no moço, tão isoladamente intenso numa biografia talvez tão bege ou árida ou gélida: como se nem fosse de propósito que o jovem à beira-mar estivesse pedindo a retirada de sua última (irrealizada) característica pulsante. Enterro de ilusões em pura metonímia.

Veem? sem uma permeabilidade muito arenosa, não consigo imaginar personagens masculinos a meu gosto; preciso deles menos auto-heroicos, menos possantes, menos ambiciosos, firmes em essência mas móveis na dor, de todo atravessáveis pela dor, maleáveis, poli-habitados e suscetíveis. Se sofrem, quero que a narrativa me disseque mui detalhadamente por quê, que não me mostre nem loucos nem semideuses, nem dândis nem celerados, nem articuladores nem sonhadores de glória; homens, apenas – frágeis, apaixonados, expostos nas menores entranhas sentimentais. Como costumam ser expostas as mulheres.

Como costumam ser pintadas as figuras que estão sempre à beira do imenso, sempre às margens das próprias chances interiores de não perder o pobre cachecol.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Ou isto ou aquilo


"Damos voltas e voltas", resumiu tranquilamente José Saramago, "mas, na realidade, só há duas coisas: ou escolhes a vida ou afastas-te dela". Pronto; eis aí a coisa-mor reduzida à sua expressão mais simples.

OU a gente usa muito ajustada e direitinhamente a máscara em todas as saídas e em todos os exteriores contatos, OU tasca um beijo bem consciente e sossegado na morte.

OU a gente defende que vacinas são a única resposta já produzida em laboratório contra o vírus do momento, OU continua abraçado à farsa assassina de vender, como graal, remédio de malária e piolho.

Ou aceitamos como certo, sagrado, justo que todos recebam condições minimamente similares na base – ou embarcamos na loroteira cri-mi-no-sa de exigir, meritocraticamente, que os nascidos entre caos sociais corram na mesma raia dos filhos do berço esplêndido.

Ou gritamos por auxílio que garanta um piso de segurança e dignidade aos desamparados da pandemia – ou nos postamos ao lado da fome, da aglomeração desesperada em ruas e transportes, dos picos de contágio.

Ou apoiamos trabalhadores uberizados e ifoodizados em seu inegável direito a maiores estabilidades e melhores condições – ou levantamos a bandeira da precarização escravizante e desoladora.

Ou somos defensores de pessoas, ou somos defensores de empresas.

Ou somos pobres e empatizamos com pobres, ou somos pobres e nos rebaixamos com simpatia aos interesses dos ricos (convenhamos: ninguém que porventura me leia é rico, nenhum rico se incluirá neste nós. E haveria a prateleira "rico empatizando com pobre", anyway? Talvez Friedrich Engels – olhe lá. Não, não, nem esses aí que vocês estão pensando, já que não falo de dar alguns benefícios, e sim de equalizar oportunidades).

Ou somos afrontosamente antirracistas, ou somos NO MÍNIMO coniventes com o massacre (em múltiplas esferas) da população não branca.

Ou nos declaramos religiosos – ou endossamos discursos e posturas homofóbicas, atitudes machistas, políticas excludentes, emprego de violência policial, naturalização do uso de armas.

Ou exercemos de fato a caridade – ou apenas encobrimos de esmolas fáceis nossa indiferença, empenhada em ter "devedores de estimação" e não irmãos de sociedade igualitária.

Ou seguimos Jesus, Javé, Alá, Oxalá, Buda, Shiva, Kardec – ou seguimos Bolsonaro.

That maniqueísta? Sim, that maniqueísta; há momentos, temas, setores nos quais simplesmente não cabem tons de cinza, ou se existem são fortissimamente relacionados a um lado ou a outro, sem clima ou possibilidade da mais leve parecença, da menor interseção. Conhecem por acaso um mais ou menos racista, um quase nazista, um levemente homofóbico? Pontos há em que a posição humanisticamente viável não está mais aberta a qualquer debate, em que ciências e filosofias já pacificaram todas as possíveis discussões, em que portanto não é tolerável nem a mais microscópica portinha franqueada à intolerância – feito um vírus (exemplo não nos falta) ao qual não pode ser franqueada nem a mínima brecha de contaminação. Sim, amores, muitonas vezes precisamos ser (e somos) inexoravelmente isto ou aquilo: ou providenciamos que o coletivo se espalhe em frutos pelo chão, ou mandamos o coletivo pelos ares.

Em termos de amar não há quem possa estar ao mesmo tempo em dois lugares.

terça-feira, 16 de março de 2021

Para todos os garotos


Interessantíssima a atitude da mãe norte-americana de quatro filhos Tara Ahrens, que resolveu incrementar o material escolar de sua dupla de meninos adolescentes com itens (lamentavelmente) incomuns: "Meus dois filhos, Micah e Elijah, têm absorventes internos e absorventes higiênicos nas mochilas, para o caso de uma amiga deles precisar. Sou uma mãe que está apenas tentando quebrar os tabus de gênero". Tara defende lindamente que as escolas "deveriam oferecer proteção sanitária gratuita aos alunos", diz que as gurias do colégio lidaram bem com a inesperada farmacinha dos boys e procura sempre desenvolver nos garotos a sensibilidade com relação às questões – em tese – femininas (Micah e Elijah ajudaram a comprar os primeiros sutiãs da irmãzita, por exemplo). QUE MULHER.

Estou simplesmente apaixonada pela visão e pela iniciativa da sra. Ahrens – iniciativa que, confesso, não sei se com todo meu feminismo eu tomaria por conta própria, caso tivesse um filho adolescente; não, claro, por acreditar que "isso não é problema de menino" ou algo assim, mas pela cândida razão de provavelmente não haver atinado para uma ação que agora me parece tão óbvia. Mulheres desde cedo aprendem a levar absorventes na bolsa, desde cedo se acostumam a ceder os danados às amiguinhas surpreendidas por fluxos impertinentes; porém não ocorre às mães, aos pais, aos irmãos, às irmãs que a menstruação e todos os demais fenômenos ligados à sexualidade/reprodução humana são exatamente isso, HUMANOS – e não exclusivamente femininos. Gravidez, orgasmo, DSTs, TPM, contracepção, menopausa, disfunção erétil, tudo diz respeito a todos; tudo afeta a vivência de todos. Então sim, é perfeitamente cabível e recomendável que os moços raciocinem em benefício das moças e estejam preparados para fornecer um item básico de higiene, por que não? Não é comum que peçamos ao/à colega um tiquinho de pasta de dente, um pedacito de fio dental, um pouco de papel higiênico porque o banheiro neste momento está sem? "Ah, mas isso é coisa que todo mundo usa, independentemente do sexo." Eita argumento egoísta, porém ainda que o levássemos em conta: não é comum que mulheres andem com camisinhas masculinas, just in case? Como a própria classificação indica, não são elas-mulheres que as vestirão. "Aaaaah, mas é para elas também, que vão se proteger de doenças, de gravidez indesejada etc." Certo: vão proteger-se e vão protegê-LOS, é via de mão dupla. Além do mais, seria a tonga da mironga do kabuletê social considerar que estamos restritos a pensar uniquissimamente no NOSSO bem-estar imediato, e não podemos carregar um objetozinho de 1g na mochila sem um ganho pessoal e intransferível. Que tal ao menos levar em conta, como "efeito prático", a chance de mostrar que é um homem evoluído e respeitador o bastante para entender o conforto das garotas ao redor como o seu próprio? Mal não faz, superjuro.

Infelizmente não ouvi falar, até o momento, de outro case em que a família tenha educado seus rapazes para portar absorventes em intenção das amigas – virou notícia não foi à toa; mas quero crer que o fato de ter virado notícia representará um "oooolha que legal, nunca tinha pensado nisso!" para muitos papais, mamães, moçoilos cuja ficha apenas estava em suspenso, só faltava aquele peteleco exemplar para se tornar tendência e motivação. Sem dúvida eu mesma adotaria o costume, e já cresceria os guris (se desde o início houvesse atentado para a ideia) perfeitamente habituados a levar entre suas coisinhas uma ou outra utilidade para a mamãe, a irmã, por extensão todas as meninas de sua convivência. Isso, em especial, ainda está looooonge de ser praxe; o consolo é que já sinto entre os alunos ao menos uma à-vontadice consideravelmente maior no que diz respeito às questões menstruais: as fofas não coram nem se apavoram mais com tanta frequência ao pedirem para sair de sala em caso de sinal vermelho, entregam absorventes umas às outras na frente dos meninos e às vezes circulam com eles (os absorventes, não os meninos) muito abertamente na mão, rumo às toaletices necessárias. Os fofos, por sua vez, também não parecem mais encarar com o antigo e tolo constrangimento a dinâmica menstrual de suas amigas, nem veem mais sentido em ficar rindo paspalhamente de fatos que todos conhecem à farta. Não é decerto a evolução total, mas é uma bem considerável alguma-coisa – uma remada cada vez mais vigorosa e colaborativa na direção oposta à dos velhos tabus com cheiro de mofo, das ridiculices caducas com rubores de machismo e hipocrisia, das vergonhas com ares de patriarcado milenar que enclausura as donzelas no gineceu e acha um descalabro ter algum conhecimento de suas impurezas. Affffff à centésima potência.

Guys, mirem-se no exemplo dos jovens Ahrens e se trabalhem no sentido de transformar-se nos homens que vocês desejariam ao lado de suas (futuras) filhas. Aliás: com ou sem filhas imaginárias, incondicionalmente, apenas porque o que afeta um afeta todos, trabalhem-se; sejam – PORQUE SIM – mais empáticos, mais sensíveis, mais atentos, mais competentes para o que o mundo evoluirá até ser. Um pequeniníssimo passo para um homem pode configurar um abraço de solidariedade numa mulher e um salto gigante para a humanidade. Ninguém merece, não é, meus queridos? ninguém merece continuar caminhando num planeta tão bitolado e tacanho como costumava ser um tempinho atrás.

Naqueles dias.

segunda-feira, 15 de março de 2021

Guerra no coração


"Não gosto de gente com guerra no coração", declarou uma daquelas crianças que compõem o material do Dicionário de humor infantil. É bem verdade que a frase, embora integre o livro assim batizado, nada tem de humorística, muito ao contrariomente: enternece dum jeito melancólico, e ganha dimensões ainda mais perturbadoras d'alma se a relemos um dia após as manifestações esdrúxulas, despirocadas, egoístas, insanas – pró-morte – que o Brasil testemunhou. Me parece que a TV demonstrou, no geral, o bom senso de não divulgá-las ao vivo, porém sabemos direitito o quão mais crucialmente a internet tem pesado no abastecimento (abestecimento seria mais pertinente) dessa galera furiosa; não deu outra, o estouro da boiada bombou nas redes bolsomidiáticas. Volta e meia os compartilhamentos furavam o cercadinho bovino e vinham parar em nossa timeline, trazidos pelo espanto e pela tristeza dos amigos diante da zombie walk celebradora de genocídios. E de genocidas.

Me digam se esses aglomeradores desmascarados não configuram o tipo de gente que a criança do livro marcaria com o selo: guerra no coração. Incapazes de se conformar mesmo com a sugestão de um mundo minimamente sensato, minimamente justo – no qual os cientistas são ouvidos, o lockdown é pronta e eficientemente providenciado, as pessoas recebem uma remuneração digna que lhes permite ficar em casa enquanto o vírus dos infernos não cede –, os tais seres cardiobélicos se alimentam, ao que tudo indica, da destruição própria e alheia. Em nome de quê? dizem eles que das liberdades individuais, mas não poderia ser maior a balela, tanto assim que salivam por uma ditadura bem fechadora de STFs, torturadora e verde-oliva. E convenhamos: que espécie de liberdade é essa em que, provavelmente, nem seus netos e bisnetos de colo acham lógica, já que se estremece toda de horror ante a perspectiva de um paninho no rosto e não receia a necessidade de ficar sozinha e entubada numa UTI, sem capacidade sequer de aspirar o próprio oxigênio? Que liberdade é essa que prefere estar inconsciente e ser alimentada por soro a precisar pedir comida pelo iFood porque o bistrô fechou mais cedo? Liberdade legítima nunca deixou de raciocinar em prol de si mesma; só o ódio puro, babento e espumento não o faz, deseja apenas garantir que todos se desgracem para sua diversão particular (e suicida).

O cardiobelicismo é isto, a pulsão tão feroz de morte que não quer saber se o pulsador vai cair junto no precipício que se abre, quer é que todo mundo caia, num frenesi histérico. Em guerras não se costuma chegar frequentemente a um estado de violência pornográfica, que só utiliza alguma remota justificativa "racional" para fazer a lavagem de seus impulsos, mas que é, de verdade verdadeira, um transe de aniquilação? Pois; sem dúvida não é à toa que o mesmo povo passeateiro contra máscaras e lockdowns tem uma simpatia confessa por armas; é o fetiche metralhador que bate no peito, a loucura dos frustrados, dos inseguros, dos carentes dalgum amor à vida mais sólido, duma autoestima mais firme, duma razão de existir mais íntima. Pode-se apostar sem erro: não há cardiobélico nem manifestante pró-morte que não abrigue num canto d'alma, normalmente trancada em quartinhos aonde não chegam os olhares das visitas, uma infelicidade densa e profunda, de gigantesca irresolução. Alguma mentira pessoal esses corações adoentados se contam – proclamar máscaras e distanciamentos ineficazes não é certamente a única. Alguma dor anda lá sequestrada, sufocada, infeccionada, muitas vezes há décadas, e muitas vezes só esperançosa de ter um tanto de alívio do próprio pus sob uma descarga pública de ódio supurante: muito mais fácil que uma cura individual é sempre uma catarse coletiva.

Pena que quaisquer honrarias de guerra pendem do peito exclusivamente por fora. Enquanto não se chama o adversário de dentro na chincha, todo ato e todo passo equivalem a uma deserção.

domingo, 14 de março de 2021

14 de março


Há dessas datas misteriosamente, inexplicavelmente intensas, marcantes, históricas, verdadeiros ciclones de fatos e significações. O 14 de março pertence a essa família colossal; e, para minha colossal família de almas irmãs, vem assumindo uma de suas faces mais dolorosas já faz três anos: três anos do assassinato de Marielle Franco, estrela de ascensão franquíssima que teve arrancada ainda em broto sua trajetória.

Marielle viveu maravilhosamente permeada por uma das frases (e essências) mais lindas de todos os tempos, "Eu sou porque nós somos" – daí se tornar impossível não se sentir tocado pelo fato de Karl Marx ser um seu irmão de data de morte, justo ele, talvez o principal destrinchador dos meios de desunião e de opressão que ela nunca parou de combater. Outro ser completamente incrível que deixou o mundo num 14 de março: a professora francesa Lucie Aubrac, integrante da Resistência Francesa durante a ocupação nazista e militante dos direitos humanos, da igualdade entre os gêneros, da proteção aos imigrantes ilegais; alguém, enfim, que eu amaria ter longamente abraçado e pertinhamente conhecido. Não tenho a menor dúvida de que Marielle concordaria.

E os nascidos em 14 de março? trazem uma comoção arrepiante: Castro Alves, ninguém menos que ele, autor das mais dilacerantes denúncias poéticas do sofrimento negro rumo às e nas nossas terras; Abdias do Nascimento, escritor, professor, artista, ativista, jornalista, político, GIGANTE da cultura afro-brasileira no país e no mundo; Carolina Maria de Jesus (que aliás era xará de aniversário de Abdias até no ano), superfantástica autora de Quarto de despejo e outras obras de sensibilidade agudíssima. Três expoentes nossos de negritude, três potências, três poetas, três patrimônios, três forças do pensamento, três linguagens iluminadoras do que – em termos de história nacional e de vivências específicas – fomos e somos, de como nos construímos, de que veredas atravessamos. Três ícones dos muitos rios que desaguaram em Marielle: a consciência latejante da dor do outro, o trabalho acadêmico e social, o perfeito conhecimento da vida nas comunidades (quase impossível refletir nisso sem se impressionar com as convergências).

O 14 de março tem, ademais, a particularidade de ser chamado Dia do Pi, pelo simples motivo de sua notação à moda norte-americana – 3/14 – evocar o iniciozinho daquela constante numérica que todos conhecemos de escola: 3,141592653 etc. etc. etc. Isso é que também não pôde deixar de me comover, a ideia da CONSTANTE (toda razão entre o perímetro da circunferência e seu diâmetro dá em π, se não me falha a matemática) e a ideia do CÍRCULO, uma vez que ambas aconchegam muito, muito a biografia de nossa vereadora, toda feita de elos e persistências, rodas de debate e lealdades, circuitos amplíssimos de percepção e fidelidades às próprias origens. Marielle era infinitamente maior do que seu raio direto de atuação, seu perímetro abarcava e abarca onde houvesse humanidade – não eram as margens do Rio que a continham, tampouco a contêm, tanto que seu legado extravasou-se em âmbito planetário. Pena que dessa forma. O justo era que nem tivessem de ocorrer-nos os símbolos, as coincidências do 14 de março; o correto era que para amigos, familiares, eleitores de Marielle não houvesse hoje nada que a relacionasse pessoalmente à data, a não ser a admiração comum pelas figuras célebres relembradas calendariamente. Assim não foi; porém não por fatalidade ou infelicidade de saúde, e sim por atrocidade – ante a qual não nos calaremos absolutamente NUNCA, não antes que cada lacuna seja preenchida, cada punição aplicada. Não antes que inexistam pontas soltas e o ciclo se conclua e o cerco se feche.

Marielle: todos e todas nós somos porque você foi – e é – presente.

Agora e sempre.

sábado, 13 de março de 2021

Vantagem retórica


Esse maravilhoso cidadão, o escritor italiano Alessandro Manzoni (leiam seu adorável romance Os noivos, clássico literário de sua terra), viveu entre os séculos XVIII e XIX, mas com a cabeça claramente já manifestada no século XXI ao afirmar que "as mentiras têm uma grande vantagem sobre os raciocínios: a de ser admitidas sem provas por uma multidão de leitores". Caramba, hein, Manzoni – Mãe Dináh não teria aguentado sua concorrência em nossos tempos. Porque não é cristalina e precisamente isso que temos sabido e presenciado? Nesta configuração doentia em que tem operado o planeta no geral, e o Brasil em sublinhadíssimo particular, anda tudo mais ou menos semelhante àquela lógica do País das Maravilhas que comemora desaniversários, ou seja, todos os dias nos quais alguém não nasceu: em vez de celebrarem a verdade onde ela é radiante e explícita, milhares de neurônios ensandecidos creem na exata lorota mais improvável, mais absurda, de modo que a própria ausência de divulgação da lorota nas mídias tradicionais é eleita como prova de que a lorota procede – tanto procede que a imprensa vendida, esquerdista não a divulga. EYE-ROLLING ao infinito e além.

Diria uma amiga de redes sociais, com inteira razão e em sinergia redondinha com o pensamento do autor italiano, que a maçada é que os embusteiros estão sempre em vantagem retórica: enquanto a nossa bolha de pessoas sensatas e coerentes mergulha em todos os procedimentos, todos os compromissos para manter o discurso (e a compreensão do discurso) num ambiente de dados, argumentos, coesão, interpretação, debate, análise – o outro lado não se prende ao mais ínfimo fio de escrúpulo, não é "detido" pela obrigação de fazer sentido ou desfazer equívocos, atua liberadaço, sem deveres de casa, em esquema de boate eterna e ninguém-é-de-ninguém. Como sustentar diálogo com o MÍNIMO de viabilidade, se o interlocutor está isento de ser intelectualmente honesto e pode manipular causas e consequências a seu gosto? Numa ponta ficamos nós, atônitos, preocupados em jogar pelas regras da oratória; na outra ficam eles, sacando livremente do bolso a arma que bem imaginam (Decepticons, Hattori Hanzos, Hadoukens) e nos arrastando pelas pernas para um Clube da Luta.

Não há, aceitemos, como "vencer" verbalmente a mentira e o mentiroso que já se encontram em dimensão tão divorciada da realidade, uma vez que se caminha numa estrada fronteiriça aos piores traços da loucura. Inexistem limites, basicamente. Se afirmamos tranquilos e científicos que o lockdown é fundamental para conter o vírus, pela claríssima razão de o vírus ficar limitado em saltar wheeee! de pessoa para pessoa, dizem que não, que é balela. Mas como balela, se a transmissão ocorre presencialmente? "Nãã, não tem nada disso, o povo precisa trabalhar." Concordo, precisa, porém uma coisa não anula a outra: não é possível convencer o vírus descontrolado a, por gentilezinha, deixar o povo trabalhar sem contaminá-lo no transporte público. "A economia não pode parar!" Não pode, mas o sr. corona realmente não se importa; por isso mesmo o lockdown deveria ter sido feito logo no início. Quanto mais demorarmos, pior para a economia. "A economia não pode paraaaar, sua esquerdalha!!" Pois é, pode não, só que vai parar em definitivo se não houver gente viva para sustentá-la. "Mortes são normais, é guerra, alguns serão sacrificados." Primeiro: não é guerra; guerra ocorre entre seres racionais AND não é transmissível por contato. Estamos lidando com uma força da natureza com a qual não podemos negociar, fazer acordo, meter bandeira branca, nos render. Segundo: você estaria disposto a se sacrificar ou a seus filhos para que "a economia não pare"? Urros, bufos, xingamentos, envios para Cuba e Venezuela, herege, comunista, cala a tua boca, vai estudar, o Bem vai vencer o Mal (Deus me livre do Bem dessas criaturas!), enfia a máscara no rabo. Fim glorioso da discussão.

Tem como? Tem nada. Galera acha, após décadas de fotos nitidíssimas da Nasa (hum, esqueci, é tudo parte da Grande Mentira – só não me perguntem por quê), que a Terra é uma bolachinha; vamos lá convencer esse hospício de que é, para sermos gentis, BASTANTE improvável que TODOS os países do mundo se neguem a pré-tratar sua população com ivermectinas, e se arrisquem alegremente a exterminá-la, APENAS para desdizer e chatear o presidente do Brasil? Sim, em Wonderland o planeta inteiro é um burrão cara-de-mamão, e nosso representante administrativo é a única sumidade médica – o que, concordo, faz sentido numa realidade paralela que festeja desaniversários. Cá no nosso cantinho do multiverso, chega inevitável o momento em que o mais saudável é passar uma chuva sob abrigo dalgum filme ou livro, enquanto não raia sobre todas as cabeças a verdade (nada) linda trazendo, em seu cestinho, aumentos de gasolina, enfartes por cloroquina, carências de vacina, acúmulos de caixão, altas de botijão, boletos gigantes, descontrole das variantes, ostracismo internacional, enfim o lockdown (que, por muito e muito tardar, pior há de ser).

É a única, a dolorosa retórica da verdade: acontecer.