terça-feira, 31 de agosto de 2021

O dito pelo não dito


Entendo perfeitamente a irritação demonstrada por João Vicente, no Papo de segunda de ontem, com relação àquelas pessoas que não deixam a gente se esquivar de convites para eventos. Vocês sabem, é o chato insistidor: a criatura isenta de noção que não compreende – ou finge direitinho não compreender – a intenção delicada que reside no ato de elaborar uma desculpa razoável, uma história cortês e verossímil, em ver de simplesmente fazer o sincericida e meter um "desculpe, não quero ir, não tenho vontade, preciso dormir, preciso descansar, não gosto daquelas pessoas, prefiro a morte a me enfiar numa gincana de primavera às 9 da manhã na fazenda do seu tio". Eis que nos preparamos com alegre consideração para mentir socialmente sem magoar o ser; dizemos que pena, estou com médico marcado há semanas, consulta superdifícil de conseguir; dizemos que lástima, faço curso nesse horário, é tempo de avaliação na pós, agendei visita do cara da NET, minha irmã me pediu ajuda para comprar um vestido de madrinha, vou estar em jejum de 12 horas para um exame, whatever que cumpra o papel de escusa respeitosa. Aí vem o entojo e sonda, sonda, cerca, força, busca alternativas: ah, e quinta-feira, você pode? que horas acaba a aula? é por falta de carona? – a que respondemos com 3.278.657 suspiros de autocontrole social e exercitamos toda a nossa garrinchice, na hipótese mais educada, para prosseguir na série de dribles e apresentar mais um problema para cada solução. Oh, fadiga.

Na boa: QUAL É a dificuldade de ser menos denotativo, melhorar as habilidades de leitura e interpretação comunitária e entender, vez por todas, que NÃO se deve contestar/dissecar uma desculpa? Porque das três, uma: ou o dito é mesmo verdade e acabou-se; ou é uma generosa mentirinha que só procura atenuar o impacto do não, e como tal deve ser respeitada (até porque, se alguém a fabrica, claramente não mostra vontade de estar no evento em questão, e eu ignoro qual seja o prazer de contar com a presença do esquivo a contragosto); ou é uma mentirinha de algum modo mais grosseira, e então a ação de desmontá-la apenas aumentará a irritação do desculposo e o tornará a cada segundo menos inclinado a comparecer, quiçá menos inclinado a manter a amizade. Nada, absolutamente nada se ganha com essa pressão esdrúxula, esse pequeno joguito de poder; muito se tem a ganhar ou guardar, ao contrário, com a doce aceitação dos passos da dança: um convida porque não pode deixar de convidar, o outro responde com o vou ver, não sei, talvez tenha médico no dia, o primeiro sorri afetuosamente por captar o fato de que seu parça só quer ficar em casa de pijama, o segundo fica reconhecido porque o outro compreendeu tudo fingindo que não, os dois se abraçam e se despedem, amicíssimos. Um tango que termina feliz, cada qual com uma rosa na boca. Pra que carambolas escarafunchar o discurso do outro até os extremos do pré-sal?

Não se trata de valorizar a mentira – isso nunca –, e sim de celebrar a liberdade dos acordos tácitos entre amigos, dos contratos inverbais de empatia e discrição, sensibilidade e cumplicidade. Há que ser muito e belamente cúmplice para que as fraquezazinhas sejam reciprocamente acolhidas, sem julgamento, sem rancor; há que haver muita afinação para poder ser honesto no subtexto, legível e leitor nas entrelinhas, nos entreatos, nos entrenós. Textos servem a contextos, não o oposto, e servem sobretudo a seus usuários, não vice-versa; nem transbordamentos nem securas deixam o entendimento ajeitar-se e florir como devido. Nem excessos nem faltas, nem prospecções nem indiferenças: a linguagem do afeto sabe enraizar-se na justa conta, na desnecessidade tanto da espada quanto do escudo.

Amar é poder não dizer tudo.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Há uma manhã nascendo sobre os meus remendos


Lindo, lindo e suave o poema "Acolhimentos", de Luiza Cantanhêde, que: "O que outrora me expulsava/ Agora me aconchega// Ir embora é algo que demora/ A terminar// A porta entreaberta/ Mostra-me a prevalência/ De ficar.// Há uma manhã nascendo/ Sobre os meus remendos// Ouço a chuva mansa/ No telhado da casa".

Não dá para sentir quase que o ventinho dos versos fluflando sem som na cortina? É um poema, pelo menos a mim parece, de convalescença (e de convalescença precisamos todos); sopra aí aquela leveza morna que abençoa os cansaços quando já são ou já foram profundos, quando já estão portanto bastante aptos para a cura. O que outrora nos expulsava agora nos aconchega: a lassidão, a exaustão do mundo que embaraçavam a vontade e o apetite tornam-se, ao contrário, uma janela de interesse; a fraqueza atinge um ponto em que suspira forte por deixar de ser fraqueza, ou antes, suspira forte ao pressentir uns primeiros raiozinhos de que está deixando de sê-lo. É poderosa a prevalência de ficar – nascemos para viver essa intensidade que se revolta contra qualquer mal advindo; salvo adoentamento moral, salvo uma depressão ou similar que nos ponha vulneráveis ao vazio, a vida em nós não cansa, não desiste, é apetente por mais. Nunca falta o que nos falte. Existe sempre a ausência que nos arremessa.

E então, sobre os nossos remendos, amanhece; fatigados de tanta coisa séria, abrimos concessão ao riso, nos divertimos um bocadinho que seja, como quem consente em tomar um chá com biscoitos contra o jejum. Trata-se fundamentalmente dum amanhecer sem compromisso, assim de cara: é preciso que o seja, para não assustar a vontade delicada ou temperamental e não a deixar esfacelar-se, não permitir que ela se veja quase obrigada a ser volúvel. Não é hora de grandíssimos sóis, é hora de ouvir a chuva mansa, discretamente convidativa, maciamente acolhedora, perfumada daquela geosmina barrenta que nos atiça o olfato queiramos ou não; é hora de doçura e low-profilice, de melhorar baixinho e não de gritar de cima dos telhados, feito a amante escandalosa indesejada por Quintana. Para o cimo dos telhados já existe a chuva, ouçamos a chuva – lavando a manhã nova com ar de promessa; é elegante a chuva fina, para honra da fineza do adjetivo é uma lady, sofisticada quanto se pode ser nas maneiras e na psicologia.

Tão cara se mostra a prevalência de ficar, quando o cheiro da terra acorda as fomes da natureza que se achava vazia.

domingo, 29 de agosto de 2021

Uns e outros


Os lúcidos e os lúdicos.

Os estáticos e os extáticos.

Os degradados e os degredados.

Os sustidos e os sustados.

Os espertos e os expertos.

Os flagrantes e os fragrantes.

Os ratificadores e os retificadores.

Os de estufa e os de estofo.

Os de defeitos sortidos e os de efeitos surtidos.

Os descriminados graúdos e os discriminados miúdos.

Os recreadores dos altos e os recriadores dos autos.

Os agitadores da maça e os animadores da massa.

Os empoçados na vida e os empossados de vida.

Os insertos na festa e os incertos do que lhes resta.

O paço dos que imperam e o passo dos que operam.

O cheque descontado e o xeque descortinado.

A cessão da luta e a sessão de luta.

Os que delatam e os que dilatam.

Os que presam e os que prezam.

Os que sugam e os que seguem.

Os que absorvem e os que absolvem.

Os que espiam e os que expiam.

Os que afeiam e os que afiam.

Os que fruem e os que fluem.

Os que autuam e os que atuam.

Os que soam e os que suam.

Os que enformam e os que informam.

Os que agouram e os que auguram.

Os que ascendem e os que acendem.

Os que apreçam as soluções e os que apressam as soluções.

Os que fogem à missão comprida e os que buscam a missão cumprida.


O que há de falto, o que há de farto (o que há, de fato?) na parte doida e na doída – da vida.

sábado, 28 de agosto de 2021

Primeiras palavras


"Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira." Esse chute no peito que o aniversariante Tolstói meteu como abertura de Anna Karenina (ou Karênina, ou Kariênina, lá como queiram) é das primeiras frases de livro que mais amo, senão a que mais; tem o mesmo fator eita dos sonhos intranquilos e metamorfoseados de Kafka, das flores que – segundo Virginia Woolf – Mrs. Dalloway ia comprar ela mesma, do "É uma verdade universalmente reconhecida que um homem rico e solteiro precisa de uma esposa" com que adentramos o Orgulho e preconceito de Jane Austen, do "Tudo no mundo começou com um sim" que inaugura A hora da estrela de Clarice, do "Nonada" que Guimarães Rosa sapeca no princípio de suas veredas. Adoro isso, o povo que tem pegada e irrompe no romance com o pé na porta, empurrando para trás nossa cabeça arregalada; se eu um dia cometer um romance, espero escancará-lo também desse jeitinho bruto (embora seja, no geral, total adepta de delicadezas), com algum nível de assombro, alguma necessária reação de boca ou olhos do leitor. Que o cidadão garre na obra e recue de cara como a um golpe físico: quase certeza de que a leitura o sereiará, em poucas escalas, até o mais profundo.

Qual seria minha primeira frase, meu primeiro trecho? Oxe, faço nem ideia. Posso pensar numas possibilidades inteiramente à moda de quem pensa num braço sem corpo, numa parte sem todo, numa personalidade ou numa voz sem filho:

"Eu disse que, se inutilizasse luzes e cobrisse janelas, o exército de coisas estranhas não entraria."

"– Consegue ver? Então. É ali. Vá e não volte."

"Se o polonês Jedrek tinha uma certeza, era de que todos tinham acreditado em sua morte."

"Nem no dia dum casamento tão miserável Corazón chorou. Nascera desaparelhada para chorar."

"Naquele ano, nós vivemos em Paris para sempre."

"– Tazanna, diga a eles que eles podem. Diga a eles que eles podem!"

"Minha mãe já havia decidido que, quando eu crescesse, seria presidenta."

"Imara soube que finalmente atingira seu limite."

"Não seriam apenas alguns meses: era tudo aquilo pela frente, naquele lugar."

"E Abílio Farah jurou que nunca mais iria à casa dela; jurou também que ou não amaria mais no mundo, ou amaria a primeira com que esbarrasse."

"– Prepare-se, Mahina; tive informações de que você seria a próxima escolhida."

"Os dois eram fugitivos, só não sabiam que de maneiras tão diferentes."

"Conhecer Maria Isla foi a verdadeira inauguração da vida de Olívio Hernando."

(E inaugurar uma história – vou? Possa ser que um dia, por enquanto sem horizonte, sem corpo, sem sonho e sem quando.)

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Dez quilos de mandioca e outros obrigados


Passou por mim um tweet fofíssimo, replicado no Face pelo perfil O Lado Bom das Coisas, em que uma pessoa contava enfofurada: "eu arrumei o currículo da minha prima esses dias e hoje ela me trouxe DEZ QUILOS de mandioca, que ela msm catou e descascou pra me agradecer 😭😭😭💗💗💗💗" – sim, reproduzo o post com emojis e tudo, alternadamente encantada como num jogo de tênis; amei o fato de a criatura ter ajudado no currículo da prima, amei a dedicação carinhosa da prima em colher e limpar com suas mãos os vegetais que serviram de pagamento, amei talvez ainda mais o reconhecimento comovido do destinatário das mandiocas. Não havia, no tweet, sombra de abordagem da remuneração como algo risível, pitoresco; muito ao contrário, a postura de quem narrava o pequeno causo era grata, amorosa e reverente, postura de abraço e orgulho. Alegria de gentileza.

Quanta doçura mora não apenas nos que são de natureza agradecida, mas muitomente, também, nos que têm olhos de amar essa natureza em quaisquer de suas manifestações! Que afinal nem todos dizem "obrigado" assim com sílabas, ou mandam cartãozito e flores; tantos "obrigados" existem como existem pessoas a dizê-los – às vezes com palavras, até. Há agradecimentos derramados em sopas de ervilha, refrescos de groselha, biscoitos amanteigados; há agradecimentos tornados em "olha, aquela série vai entrar na Netflix, sei que você estava esperando, fique atento"; há agradecimentos materializados nuns olhos imateriais de tão estupefatos com a fabulosidade do outro; há agradecimentos clandestinamente hospedados em saquitos de chá, capas de almofada, caixinhas de música, lenços bordados, canetas, canecas. Gentes penduram agradecimentos nos varais ao realizar uma força-tarefa para tirar aquela mancha renitente, e dormem agradecimentos à cabeceira, zelando febres, e desenham agradecimentos infantis com giz de cera e purpurina, e desenham agradecimentos adultos arranjando finalmente o molde daquela blusa da revista. Veem-se mercis em toda espécie de mercês – um corte de cabelo, uma bolsinha de água quente para cólica (ou para lençóis aquecidinhos no inverno), um achei-seu-sorvete-favorito, um leva-esses-dez-reais-prum-salgado, um aviso de que abriram as inscrições, um link perfeito do YouTube, uma recuperada básica das roupas na lavanderia, um vale-night "porque você trabalha demais todo dia". Aproveita, chefia.

Há que ter visão de adivinhar "obrigados" e sabedoria de aceitá-los; são questão de honra para quem oferece, uma recusa não soa como consideração aos eventuais poucos recursos do oferecedor, muito ao avessomente: é doce sentir que se atingiu alguma espécie de quitação, e humilhante, por outro lado, ter seu presente inaceito. Mas vai nisso uma arte – pequenices hão de ser sempre recebidas com entusiasmo, excessos não, que são uma exploração tácita. Onde a fronteira? Se eu soubesse, migues, não havia de estar por aqui blogando, estava por aí enricando com autoajuda; porém a medida fundamental eu creio que seja: se o outro tem menos e aquilo lhe faz falta, é excesso; se o outro tem muito muito muito mais e aquilo lhe sobra, e se ostenta, e supera igualmente o que fizemos, é excesso também. O simbólico amoroso da parte dos que têm menos e a justa conta da parte dos demais: eis, suponho, a gratidão cabível, o quanto pode aproximar-se dos parâmetros certos.

Ao que é oferecido estritamente por e com amor, de qualquer forma: braços abertos.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Meia-volta, volver


Fábio comentando que viu, ontem, um gurizito voltando da escola vestido de soldadinho. Gente, SÉRIO que ainda tem isso? Que ano é hoje? Tanto se falou recentemente em cringe (um papo, aliás, que já está cringe) e ninguém que eu saiba apontou como ícone essa crinjada federal: botar criancinhas com colete, espada e chapéu de dobradura no Dia do Soldado – um despropósito tamanho que não sei nem por onde começar. Se no Brasil da e pós-ditadura militar já era sumamente ridículo, em 2021 é uma aberração, uma afronta, um deboche, ainda mais em companhia daquela musiquinha aparentemente inocente, mas cruel ao extremo, que ameaça de prisão o soldado que "não marchar direito" e só se preocupa, em caso de fogo no quartel, com o acudir a bandeira em detrimento das pessoas igualmente carbonizáveis. Qual o cabimento de glorificar uma data militar em meio a um desgoverno de altíssima militarização, que só tem trazido e representado para o Brasil a cavalaria armada de Fome, Morte, Peste e Guerra? Que nível de sadismo – ou no mínimo de bruta falta de noção – mora em quem fantasia de soldado uma criança carioca, sempre alvo potencial da PM que mais mata (e que mais morre, sejamos justos em dizê-lo)?

Não precisam me alertar de que not all policemen; sei disso, já conheci e conheço gente fardada honradíssima, tenho ex-aluno soldado inclusive – e é pessoa consciente e maravilhosa. Porém não me atenho a casos particulares, atenho-me ao panorama, ao contexto; uma homenagem assim de escola tem dez vezes mais obrigação de se fazer antenada com sua época, dez milhões mais de motivos para combinar com os arredores, com a evolução de percepções, de pensamentos. Não é fato que diversos colégios, por exemplo, dão preferência hoje a realizar uma Festa da Família, um Dia de Quem Cuida de Mim, em substituição às clássicas festividades de Dia dos Pais e até das Mães? Núcleos familiares vêm mudando consideravelmente, e é fabuloso que o universo escolar tenha procurado tornar-se cada vez mais inclusivo, mostrando-se empático com os sentimentos dos alunos que não viam abraçada sua realidade social e doméstica. Se essa finura de observação se aplica no micro, pode e DEVE fortissimamente aplicar-se no macro: crianças não estão aí para serem constrangidas a homenagear quem ou não representa nada para elas (pense rápido em como explicar-lhes, com bastante concretude e proximidade de seu nível de compreensão, as razões de celebrar o soldado; pois é), ou simboliza alguém que já lhes rendeu mil experiências desagradáveis, quiçá traumáticas. Pergunte-se lá a meus alunos, em grande parte residentes de comunidades, se se sentiriam confortáveis de portar os tais adereços icônicos da soldadaria.

Quero crer que essa crinjada soldadesca da escola do menininho tenha sido caso isolado, que a mania militarizante em salas de aula esteja em franco desuso, e que na realidade a maioria das professoras e professores ande mais interessada em acentuar a grandeza de inúmeras outras carreiras – médicos, enfermeiros, cientistas, pesquisadores, historiadores, profissionais de limpeza, mecânicos, músicos, bailarinos, atores, escritores, cozinheiros, motoristas. Quero crer que um contingente esmagador de colégios esteja mais dedicado a exaltar a arte, o diálogo, a diplomacia, a empatia, e busque de todo modo desviar seus estudantes de tudo quanto seja bélico, tudo quanto envolva armas, austeridade e força bruta. Função de soldado fique ilustrada, no máximo, pela imagem daqueles no Afeganistão baixando a guarda para trocar fraldas e dar colo à bebê que aguardava sua família. Zelo, ternura, fofura – o mundo precisa disso, disso apenas, não mais que isso.

Quem não entender direito é cabeça de papel.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Reúsa e não abusa


Para os brothers dos States, 25 de agosto é o chamado Secondhand Wardrobe Day, o que corresponderia mais ou menos a um Dia das Roupas de Segunda Mão. Provavelmente lá, meca desvairada do consumismo, é ainda mais urgente e significativo promover uma festividade assim; o que ouvi desde cedo a respeito dos sobrinhos de Sam (não especificamente no campo vestível, mas no de produtos em geral – incluindo móveis e eletroeletrônicos) foi que sempre tenderam mais para o descarte sumário de coisas antigas/danificadas do que para o conserto e reaproveitamento, a ponto de haver vários relatos de gente imigrada que foi mobiliando a casa com peças potencialmente ótimas que os gringos despejaram na rua. Não sei se a combinação últimas crises + maior consciência ecológica de nossos dias ainda lhes permite fazer jus a essa fama doida; de qualquer modo, é de crer que uma celebração do reúso jamais caia mal na ianquelândia ou em qualquer outra parte: nada pode haver de mais moderno, de mais chique. A cada 24 horas cresce mais (e é preciso que cresça o dobro) a percepção coletiva de que desperdiçar, sim, é podre de cafona.

Principalmente no que se refere ao vestuário, o preconceito ainda atravanca a evolução, no entanto. Por aqui existe um ranço da parte de muitos, uma cisma de que "âââin, não vou ficar usando roupa velha, mofada, fora de moda, eu, hein, sei lá de quem foi" – a não ser em dois casos de maior aceitação popular: as peças herdadas em família, que ganham aura de romantismo fofo, e as compradas em brechós e "mercados de pulgas" de outros países, que autoexplicativamente levam a histórias sobre outros países e se cobrem dum charme hipster irresistível. Para brechós nacionais a galera estrupícia torce o nariz, o que é evidentemente uma asneira que eu leio (embora evidentemente não justifique) como um medinho não de sarna, mofo ou "energia" de outrem, e sim como um terrorzito de PARECER pobre. É, crianças, tem muito disso entre nós, dessa bestice: achar que, se a roupa – o carro, o livro... – não for zerinho quilômetro, vale menos, é ruim, não tem graça. Óbvio, não falo de coisas quebradas, rasgadas, estragadas, nem preciso dizê-lo; falo de peças perfeitamente vivas, frescas ou facilmente refrescáveis, que têm ademais o atrativo de serem únicas, de nunca surgirem numa arara acompanhadas de milhões de gêmeas. Se me importo de encontrar gente com look de loja de departamentos igualzinho ao meu? claro que não; adoro, sobretudo, a independência com que fluímos nas lojas de departamentos, sem vendedor no pé obrigando a gente a dizer que "só está dando uma olhadinha"; porém, nesses estabelecimentos grandões, não existe a discreta emoção do garimpo, a busca totalmente roletranda de algo que não sabemos o que é e que não vem em série. Já nos brechós impera, como em meus amados sebos, o espírito de divertida aleatoriedade: fora a divisão por categorias, que é o máximo de previsibilidade encontrável, tudo é sorte e festa, e em cada penduradouro ou prateleirinha pode bem morar um susto feliz.

Por causa da pandemia só tenho frequentado brechozices virtuais, como o site do Repassa, que aliás recomendo muitíssimo; e, sim, há sempre o risco de a escolha não ser precisa, não ajustar feito luva – mas há igualmente a chance plena de devolução, tudo certinho e sem maiores dores de cabeça. Mais importante é a alegria boba de garimpar necessidades baratitas (porque a alegria se mantém nas prateleiras imateriais, sem tirar nem pôr) e de saber que, preferindo os modelitos usados aos novos, salva-se muita eletricidade que deixa de correr, muita água que deixa de rolar, muito esparrame de gasto que não precisava ter sido e que realmente não foi.

Qualquer coisa, sempre há profissionais da costura para fazer bainha, descer bainha, trocar enfeite, zíper, botão. O que não há é planeta de segunda mão.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

A frase mágica


Pincei não sei de onde, como quem escuta um meio de conversa, este trecho tão lindo de Anaïs Nin: "... e ela tentou amá-lo. Mas ela reclamou que ele proferiu palavras tão comuns, que ele nunca poderia dizer a frase mágica que abriria seu ser". Ignoro completamente o contexto; para que contexto, no entanto? a coisa se entrega inteiramente com pouquíssimo, ao contrário dessa ela de Anaïs que bem desejara entregar-se e não pôde. Ela queria ser dele, ele talvez fosse belo, talvez fosse gentil até o extremo da contemplação ajoelhada, talvez fosse – lá sei eu o que ele seria, e o seria suficiente a ponto de ela TENTAR amá-lo – talvez fosse o mais carinhoso dos homens; mas ela, em compensação, vê-se que era mulher eminentemente verbal, possivelmente uma sapiossexual que só se abandonaria a uma inteligência abre-te-sésama.

Não posso dizer que não compreendo. Sou incapaz de me ver capaz dum amor fofinho mas tapado, generoso mas por demais denotativo; é preciso que haja uma fúria delicada na expressão, uma faísca que carbonize o clichê, o maldito clichê desmotivador de qualquer apaixonamento seguro e duradouro – porque não há encanto de poder, beleza ou outra semelhante origem que resista à convivência inapta para diálogos, estéril de trocas. É duvidoso algo sobreviver de ardente onde não existe nenhum fascínio sheherazádico, nenhum desafio linguístico (e olha que nem estou sendo trocadilha), nenhuma perspectiva de que a conversa vá gerar surpresas ou ondear o grafiquinho das palpitações; minto, aliás, não é duvidoso: é 99%mente certo que o relacionamento assim baseado não tenha futuro em que se crie. Nossas entranhas são narrativas, nossas veias são poéticas, ou nasceram ao menos com esse vácuo específico nas prateleiras; um amor que não nos dê de beber palavras limpas, palavras com a fresquidão inédita da fonte, está fadado a turvo e salobro, com duas criaturas envenenando a sede (e sabotando a saciedade) recíproca.

E então o quê? e então que o amor há de ser criativo, lírico, ainda que não estudado. Não carece fazer versos, mas precisa estar aparelhado para reconhecê-los, incorporá-los e – no caso remoto de vir a dizê-los – dizê-los sinceramente. Importa pouco se é um amor engenheiro, químico, oficial de justiça, lavrador, diplomata, físico quântico: importa que tenha os sentidos macios, permeáveis à percepção do que amacia o outro, do que faz cederem suas defesas, do que fecunda o coração alheio lá onde ele vive aberto em flor; importa que saiba notar (sem usar dos dados em seu proveito, além da cota razoável) com que chave a alma da criatura-alvo se escancara – se é piada, astronomia, slogan, pintura renascentista, poesia barroca, papo de pizza no sábado, debate de cinema ucraniano no domingo, Romeu e Julieta, pagode anos 90, elogio no tênis de mesa, elogio à boca, elogio à lasanha. O que for, o que couber, já que, para ser-se parte aninhada e integrante do relicário, é preciso fundamentalmente que o relicário se abra.

Amor é a paciência do abracadabra.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Colagem


Estou para hipóteses, e por isso topei a pergunta divertida (porque não deixa de ser uma pergunta divertida) da Colagem de Roberto Aizenberg, surrealista argentino que teria completado ontem seus 99 aninhos. Eis algumas respostas (o)corridas e indivertidas para a pergunta não feita na obra representada acima:

Uma mulher é classicamente composta de muitos côncavos e convexos.

Uma mulher é metaforicamente composta de muitos côncavos e convexos.

TODO MUNDO é metaforicamente composto de muitos côncavos e convexos.

Numa pessoa "de sociedade", existe uma inumeridade de camadas separando a região por onde anda a cabeça e a solidez onde se fincam os pés.

Não temos base que chegue para o tanto de conteúdo de que nos embalofamos.

Por não contarmos com quase nada de cabeça – sob e sobre os adereços – é que nos entupimos com esse tanto de entretantos.

Um exterior perfeitamente conveniente e sério pode muito bem ser estofado duma série de gargalhadas (vejam bem se, em cada fileira aí da moça, as duas formas das pontas não parecem olhinhos apertados de riso e a do meio, uma boquinha aberta em piada).

Em compensação, apenas um terço dentro de nós efetivamente sorri, enquanto os outros dois permanecem de olhos fechados.

(E nosso eixo, afinal, acaba sendo a única e trabalhadeira boca com que nascemos, em vez da vista que nos foi dada em dobro.)

Temos mais braços de englobar do que pernas de levá-lo – e levar-nos – adiante.

Somos (mentirosamente) não muito mais que produtos arrumadinhos em prateleiras, nada dispostos a desacomodar quaisquer de nossas acomodâncias, sob risco de desabamento.

Pouco adianta nos compormos de côncavos e convexos mil se nossa estrutura geral é pesadota, retanguluda, sem frescores e sem malemolências.

Pouco adianta a quantidade bojuda do que nos compõe se a qualidade varia nada, nada, nada de cor e de forma.

Apesar dos muitos conteúdos que engolimos, também não nos faltam vácuos.

Nem solidão – no fino apoio que nosso orgulho topa para nos manter levantados do chão.

domingo, 22 de agosto de 2021

Onde estarão as cartas


Já madrugada e eu constatei, no Face, que o querido André Gabeh tinha vindo com: "Onde estarão as cartas enviadas pra Xuxa que não foram sorteadas?". Pronto. Dúvida. Enigma. VALEUZÃO, hein, André? obrigaaaada mesmo pelo post arremessador de dilemas nos corações insones.

Agora já nada temos a fazer senão aventar hipóteses. De tudo, só não quero considerar que as cartas tenham sido arquivadas, ou pior: incineradas; concordemos desde já, portanto, em nem roçar uma solução tão deprimente e antipoética, e ignoremos diligentemente o detalhe de ser a teoria mais provável. Isto posto, por que não imaginar, por exemplo, que as mensagens descartadas eram adotadinhas por serial answerers, funcionários ou não do programa, que passavam meses fazendo revezamento de papéis de carta perfumados – direitinho como no fofíssimo Cartas para Julieta, em que senhoras voluntárias respondiam aos bilhetes deixados no muro dos Capuleto? Ou por que não supor que ao menos os envelopes que continham desejos d'alma acharam (voadores quando ninguém estava olhando) um rumo papai-noélico? Também não me desgosta acreditar que pessoas afetivamente ligadas aos xous montaram, com toda a correspondência, painéis de arte fabulosos; que, se precisaram desfazer-se da papelada, fotografaram antes todo o lote e hoje o digitalizaram; que foram plastificando todos os escritos/desenhos e agora os mostram carinhosamente a filhos, amigos, netos; que confeccionaram centenas de álbuns com aquele esparrame epistolar – e ainda os folheiam. Quero crer até, para cúmulo de poesia, que alguns desses operários da memória decoraram (à Fahrenheit 451) o máximo de cartinhas cabíveis, e sem folheá-las ainda as recitam, por nenhum motivo senão o de a verbalização ser veneno anti-inexistência.

Certas mensagens mais tocantes podem ter ido morar em acervos de museu; certas-umas podem ter sido musicadas, tornadas poema, romance, conto, crônica; outras, quem sabe, foram recicladas e viraram segundas ou terceiras cartas que talvez tenham unido casais atualmente bodas-de-práticos. Alguns recados terão porventura escorregado para debaixo de alguma estrutura e se perdido, e se encontrado após muitas décadas, e sido levados pessoalmente pelo funcionário encontrador a seus remetentes – entre os quais houve uma, sem dúvida, que se emocionou muito com a gentileza e está casada com o devolvedor até hoje. E se decidiram enterrar aquela transbordância papelesca nalguma cápsula do tempo? ou se permaneceu tudo em posse dum(a) cientista social que acompanhou anonimamente o crescimento das ex-crianças, ao estilo Boyhood? Tudo pode ser com essa correspondência de Schrödinger, que nesta horinha mesma está tão esfacelada em micropartículas pela terra e o oceano quanto armazenada e revivida de todas as maneiras, em realidades hipotéticas mais do que fartas.

No vácuo dos fatos frios, a ficção dá as cartas.

sábado, 21 de agosto de 2021

Não sou doutora de nada


"Não sou doutora de nada,/ mas entendo de sentimento.// Sem grande valia,/ de muita prestança.// Do vento,/ conheço bem riso e pranto.// Do rio,/ sei quando namora.// Da noite,/ nunca perco o azul." Diz isso – e diz mais – Heloisa Helena de Campos Borges, num seu poema; me disse muito, muito. Também não sou doutora de nada, provavelmente não serei jamais, mas vá lá, de alguma coisa também entendo sem grande valia e de muita prestança: uns poucos de coisas incolocáveis no currículo, umas quinquilharias de conhecimento, difusas, esparsas, ainda assim servíveis para quando se precisa lembrar o nome daquele ator, o nome daquela flor ou o lado certo do papel alumínio.

Não sou doutora de nada, mas pela folha reconheço jasmineiros, azaleias, oitis, cafés, figueiras, mangueiras, pitangueiras, mamoeiros e mais umas plantaiadas que cresci sabendo. Falo de cor a "última flor do Lácio, inculta e bela" e mais uma meia dúzia de três ou quatro poemas que cresci repetindo. Sei duma penca de remédios. Não sou ruim de cores nem de metáforas. Escolho não mal alguns presentes. Bolo não mal algumas soluções, como o que fazer com a bolsa nos banheiros públicos (nem pensem que cogito, eca, em pôr no chão; lanço mão de meus penduradores mágicos). Tenho uma razoável habilidade de trazer a fala ao seu registro mais gentil.

Não sou doutora de nada, porém leio de longe o assobio dos morcegos e dos miquinhos. Me faço perenemente entretida comigo mesma, e por isso dificilmente estressada em filas (a não ser, claro, sob horários de vida ou morte). Sei do vento quando sopra mutante e tendente para outro clima. Sei da inutilidade de permanecer reclamando. Sou incapaz de neutralidade, mas não cato nem alimento briga. Cato sim é produto na internet: se existir, encontro. Encontro jeito de combinar estampas. Arranjo modo de permanecer otimista. Invento maneira de gostar de toda refeição – mais do que deveria, provavelmente. Consigo pôr de olho, no prato, a quantidade a ser comida, e consigo comer a quantidade que se pôs no prato. Canto com alguma afinação. Posso, conforme queira, ser objetiva ou prolixa. Faço malas com baixo índice de esquecimentos. Guardo uns tantos saberes bem sabidos do idioma.

Sem ser doutora de nada, nada – dumas miudezas tenho diploma.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Sem palavras


Está uma brutíssima duma lua cheia ou quase cheia, e o céu infinitamente, transparentemente limpo; mesmo na meiuca da cidade se vê um desbunde de estrelas e um planeta Vênus (Júpiter? Saturno?) ainda mais desbundado, brilhando tão balofo de se querer recitar aquele velho star light, star bright, first star I see tonight. Não sei como o povo tem juízo com uma noite dessas – digo: não sei como tem o juízo de dormir, em vez de ficar se enluarando madrugada adentro e pensando nadas ou tolices debaixo da lua. Uma das tolices que cunhei, aliás, foi a necessidade evidente de haver um verbo ou substantivo ou adjetivo para significar esse empaspalhamento das noites plenilúnias, essas bobeiras não de insônia propriamente, mas de simples maciez mental sob influência da astra-mãe; seríamos então o quê? Plenilunáticos? plenilúdicos? pleniloucos? De qualquer modo o termo escorrega, derretido ao luar como os relógios de Dalí e impossibilitado de captar tudo que mora num cérebro da madrugada. Ficar em estado de chafurdamento lunar é líquido ou gasoso, mas não sei se colocável em solidez de ortografia.

Há milhões desses termos que não há (não há?), que talvez não possa haver. Um nome para chamar suficientemente os que não encontram nenhuma espécie de amor em vida; um nome para designar com decência os que são, inteira ou parcialmente, muito mais velhos que sua idade real ("os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse", como diria Bandeira de sua Teresa); um verbete que dissesse com propriedade da sensação de despedir-se dum arco-íris, tornando-se a olhá-lo outras vinte vezes para ter certeza de que não ficaram resquícios; uma entrada de enciclopédia que desse conta daquela música que gosta muito mais da gente que a gente dela, e nos aflige e nos persegue para aceitar um relacionamento que não queremos porque ela significa ou relembra alguma angústia; um advérbio de intensidade que medisse em poucas sílabas o tanto que temos de horror à eclosão de nossos próprios monstros desconhecidos, que dormem em sereno controle nas CNTP e podem, entretanto, apresentar sei lá que potencial de pólvora se acuados pelo desespero. Com que advérbio de modo combater o que não se conhece nem deve jamais vir à tona?

Não há (todos dizem) um termo que nomeie quem ficou "órfão" de filho, nem há também para as demais orfandades várias: de tio, de primo, de amiga, de avó, de irmão. Não há, provavelmente, glossário para cada uma de nossas fomes específicas – de bolo, de batata frita, de fígado, de amendoim. Não há palavra que alcance o ser totalmente de um lugar e ser, também, totalmente de outro. Não há sílabas disponíveis para abraçar a percepção duma alma-gemice intersecular, entre pessoas que naturalmente jamais se viram ou se verão, mas que nasceram para a convergência intelectual. Não há fonemas bastantes para representar as sobras sonoras que ficam depois duma leitura (ritmos, vocabulários, até qualquer coisa de paladaroso na língua). Não, não há idioma que englobe, que envolva, que encerre em si e consigo tudo que parecemos ser, ensaiamos ser e somos, com todas as cores de nosso desdobramento possível.

Muito do essencial, aos ouvidos e aos olhos, é indizível.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Camonianas brasileiras


Brasil é jogo que rola sem se ver,
é sangria que jorra, e não se sente;
é um adiamento permanente,
é mó que nos lamina sem moer.

É um requerer mais que receber;
é andar encantado e descontente;
é nunca recobrar-se de doente;
é um cuidar que morre ao se viver.

É querer estar nisso sem vontade;
é tratar de quem sofre – o sofredor;
é ver quem nos desmata abrir a grade.

Pois como causar pode um tal horror
nos corações brazucas amizade,
se é tão contrário a nós este senhor?

Cem anos de sigilo – ora, espia!
E sempre sem mais essa nem aquela;
porque não serve a nós, mas quem na cela
estar, por prêmio justo, deveria.

Os dias, na esperança de um só dia,
passamos, já sonhando com a estrela
que há de nos livrar dessa panela
de carcarás que em nós a garra afia.

Vendo o triste do povo os seus enganos
brecarem toda ação consumidora,
roubarem-lhe a sustança merecida,

começa de acordar nestes dois anos;
e já se libertara, se não fora
a lira tão de perto assim tangida.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Ciência poética


Numa das adoráveis tirinhas de Liniers, o gato Fellini pergunta à amiga Enriqueta – garotinha de eterno vestido azul, profundo amor à leitura e sensibilidade comovente – de onde vem o vento. Ela não hesita: "Vem dos suspiros exalados por gente apaixonada"; e, ante a réplica felina de que isso não soa muito científico, esclarece que está "desenvolvendo um conceito de ciência poética". Fiquei desde logo apaixonadamente suspirosa pelo conceito, embora de forma alguma deseje criar furacões. A ciência é sacratíssima em si, há que ser inteiramente amada pela nudez forte da verdade que apresenta, não discuto – não seria eu a questioná-lo; porém não serei eu a questionar a poesia tampouco, e acredito que o manto diáfano da fantasia assente leve e bem sobre várias ruas de pensamento, quando a dúvida não separa vida e morte, quando há tempo para a demora inofensiva, quando o cronômetro abre agenda para o desvio lúdico. Em instantes minuciosamente guardados para o delírio, por que não playgroundear na ciência poética? É saber de gente também grande, que quer higienizar os neurônios de alguma incapacidade de espanto e reconectá-los à doce perplexidade que baixa nossa bolinha.

Assim, pelo mesmo manual que descreve o vento como suspiros de apaixonados, não me admiraria descobrir, por exemplo, que o arco-íris é feito de fantasminhas de borboleta, ou de lembranças das primeiras flores recebidas no namoro; que a aurora boreal é uma festa ancestral de vaga-lumes; que nuvens são o sonho dos anjos; que terremotos são a rave dos gigantes; que oceanos são o choro dos saudosos (Fernando Pessoa, aliás, concorda). Não me surpreenderia se os diferentes relevos mundiais formassem peças dum xadrez de titãs, se a lava fossem restos mortais de dragões – e a neve, de unicórnios –, se dentes-de-leão se provassem sementes de fada, se gafanhotos e esperanças resultassem verdes por realizarem transporte uber-eatico de clorofila. Se joaninhas, com sua armadura fashion, se mostrassem não os bibelôs gordinhos que sempre guardamos na caixa da fofura, mas sim nada menos que samurais ou Cavaleiras do Zodíaco na versão inseta.

Poético-cientificamente, raios são aparições de árvores já tombadas (por que mais teriam tamanha preferência por assombrar árvores vivas?), estalactites e estalagmites são fósseis de espadas, vitórias-régias são Ilhas Fiscais para minibailes, icebergs são os dentitos de leite do planeta, borboletas são os anjos da guarda das flores – olha elas e eles aí de novo –, bioluminescência é pólen de estrela, luar é lençol de luz, ondas são inexatidões que a gente às vezes nem sente, materializadas em água e poesia.

Pessoa concordaria.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

A flor que anda


Não é que a obra de Fernand Leger, pintor-escultor-desenhista francês falecido num 17 de agosto há 66 anos, propriamente me atraia ou comova; digamos que seu estilo profundamente cubista me afeta com vigor, em especial as várias "decomposições" da figura humana em formas e mais formas e mais formas e mais forminhas geométricas – um desbunde de esferas, cilindros, retângulos, cones, trapézios a perder de contagem –, que me perturbam com incômodo e vertigem. Mas afinal não chega a ser de todo negativo esse desconforto, esse reviramento de entranhas; o estilo de Leger não é certamente feito, anyway, para se contemplar na parede com o pensamento vagante e uma indiferença dos sentidos, enquanto se olha para o mar ou o jardim alternativamente. Pelo menos a mim, Leger (que chegou a ter como pupila a nossa Tarsila, assim rimandinho e tudo) traz aquele sacudidão de "acorda!", e puncha sem grandes cerimônias no estômago. Não sei que melhor reação um cubista poderia desejar além desse abalo total de nossos bangus.

Há no entanto uma escultura de Leger, ilustrada acima, que me evoca simpatias diferentes, quase próximas da fofura. Não é fofa em si, tudo bem; mas tem um conceito fofíssimo, a começar do título, La fleur qui marche – "A flor que anda". Pedindo perdão ao artista por compará-la a um pokémon e já comparando, destaco porém ser a versão menos possivelmente kawaii de um pokémon: suas pétalas desacertadas, díspares, desarmônicas e assíncronas (a despeito do número par) não convidam ao enternecimento gerado por boa parte dos monstrinhos pop, e se soma a essa impressão a ausência de mais traços animalizados, para além do de caminhar. A florzita caminha com personalidade e parece bem determinada a fazê-lo, mas não tem rosto nem qualquer sugestão que atenda a nossa pareidolia compulsiva; de que maneira ela AINDA ASSIM consegue meter carisma e exalar adorabilidade em seu desfile, ignoro – o que me extrai maiores palmas para o escultor, esse ser capaz de nos persuadir em 3D sem que sequer nos apercebamos de seu discurso.

Talvez a estranha simpatia da Flor que anda more no símbolo: trata-se duma representação (pode-se dizer universal?) de beleza, suavidade, presença amada que, possivelmente insatisfeita com o quanto se demora para trazê-la ao jogo, resolveu abandonar terra e estufa, resolveu mexer as raízes e se fazer tomadora de iniciativa. Para maior englobamento, a florzinha é de múltiplos formatos e cores; demonstra ser muitos e quiçá todos – todos os aptos a pôr-se em marcha, a desarrancar-se contra todas as probabilidades e dentro das viabilidades, a assumir com bravura a consciência do que existe a ser resolvido, ensinado, providenciado, fornecido, facilitado. Aonde quer que chegue a flor, sabe que encontrará precisâncias dela; sabe que haverá gente para parabenizar, corações oscilantes para flechar, corações enlutados para confortar, festas para alegrar, frutos para multiplicar; e é talvez por essa necessidade de se fazer múltipla e absorver inúmeros propósitos que a caminheira não levou o próprio rosto. Levou, antes, um largo espaço vago no miolo de si, dócil e amoroso com cada experiência (a)crescida.

É bem flor que anda, ademais, a vida.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Saber-se amado


São João Bosco, nascido há exatinhos 206 anos e chamado por São João Paulo II de "Pai e Mestre da Juventude", dizia com toda a lindeza: "Os jovens não só devem ser amados, mas devem saber que são amados. A primeira felicidade de um menino [de uma criança, ele queria evidentemente expressar] é saber-se amado". Não creio que qualquer psiquiatra, pedagogo, psicólogo, criançólogo do universo viesse a discordar. Todo ser humaninho deve obviamente nascer e crescer com sustança física, amamentado de tudo quanto põe o corpo para funcionar pleno; deve também, com igual obviedade, contar com paz e abrigo – criar-se perseguido, sem-teto, em sobressalto, numa zona de guerra é algo potencialmente destrutivo para o espírito humano, ninguém em sã consciência o questiona; mas ainda assim me parece que corpo e mente vieram programados, em nós, para regenerar-se de quase quaisquer horrores, tão logo as melhores condições lhes sejam fornecidas. Me parece que temos DNA de fênix em quase todos os campos, DESDE QUE recebamos para isso os devidos instrumentos e reconfortos (longe de mim romantizar guerras e misérias, Deus me livre). QUASE todos os campos – com exceção de pelo menos um: é praticamente irrestaurável um coração que não se sentiu amado logo de início, bem nos seus primeiros tempos de mundo. Uma vez que lhe seja imposta essa ferida primordial, nunca mais que o básico do básico de sua estrutura cicatriza.

Não se ver ou se saber amado ao estrear no planeta implode de cara um alicerce psicológico, antes de ele formar uma só molécula; absolutamente NADA é mais importante para o equilíbrio, a sanidade, a autoestima, a confiança humana do que a constatação de que se é necessário, de que sua existência não é um equívoco, de que sua presença afeta positivamente ao menos uma outra presença. Pessoas PRECISAM ter a relevância confirmada como quem precisa obter uma autorização para estar no mundo; pessoas carecem ter, feito os e-mails que registramos em variados sites, a identidade autenticada para operar de fato, para assumir seu lugar de direito. Que motivação pode viver no fundo duma alma de nossa espécie, senão autenticar-se em outra – refletir-se em outra? Nada mais está à nossa altura na Terra, em termos emocionais; ninguém nos preenche além de mais um ou mais uns de nós; nenhuma experiência de acolhimento nos basta, se não passar por um ou mais de nossos semelhantes ou pela relação com a divindade, que em grande parte tem a existência de nossos semelhantes como intermediária. A educação que nos forma em todas as instâncias se dá por projeção; se sem um falante não aprendemos a falar, se em cada mínimo gesto cultural estamos perdidos sem um modelo para reproduzir, também não reproduzimos amor se não o recebemos da fonte – se não contamos com um emissor capaz de irradiá-lo convincentemente sobre nosso espelho profundo.

Amar uma criança é informá-la, instruí-la: olhe, é isso que nós terráqueos fazemos; é assim o amor. É para isso que você serve, para exercitar desse modo a escuta, para consolar os demais como se sentiu consolado, para transmitir força da maneira como foi erguido, para dar aos outros a bênção dos talentos com os quais sempre ouviu que foi abençoado. "Ah, mas alguns guris crescem em famílias disfuncionais e se tornam seres maravilhosos, alguns crescem em famílias show de bola e viram serial killers." Sim, estrupício, acontece de tudo, porque mecanismo humano não é mecanismo relógico; mas é, sem dúvida alguma, um mecanismo lógico – de modo que casos tais serão as velhas e boas exceções, mesmo assim relativas. Afinal, quem há de saber se o que parece uma família show de bola supre realmente as necessidades emocionais de um filho ou se vai negligenciando os sinais de que há, ali, vácuos inatendidos e insaciáveis? quem há de saber o tamanho de uma sensibilidade, de uma vulnerabilidade, de um tormento inato, de questões que moram nos pontos cegos mesmo de casas teoricamente acolhedoras? E quem há de medir a calidez do afeto que conseguiu ser 100% downloadeado mesmo em casas teoricamente disfuncionais? Sendo que ninguém sabe e que há variantes infinitíssimas, só nos resta jogar o jogo mais certo, mais garantido, mais seguro: amar uma criança clara e ostensivamente, notoriamente, carinhosamente, com muita presença, muita empatia, participação, conselho, brincadeira, aniversário, passeio, acampamento, abraço, pipoca, firmeza, limite, companhia. Amar uma criança sem lhe deixar quaisquer margens para dúvida, quaisquer ressentimentos ou mal-entendidos pendentes, quaisquer problemas de momento nublando o que precisa ser uma estrela da vida inteira. Amar, amar, amar, amar com amor legítimo, sem mimo (sendo este afinal uma impostura, um enredo desonesto).

Nosso estágio de ser-humanice mora no amor que nos é manifesto.

domingo, 15 de agosto de 2021

Nave-mãe


15 de agosto é dia das que andam preparando outra pessoa – o Dia da Gestante. Nunca atravessei (a não ser passivamente, é claro) nem desejo atravessar esse processo de fabricação, mas isso não impede que empatize carinhosamente com as sisters que se encontram, como diz a fofura popular, com pãozinho no forno. Também se dizia nos outroras estado interessante, não sei exatamente o porquê; mas errado não tá, é fato: produzir um ser humano é algo interessantíssimo, talvez insuperável por qualquer outra atividade, invenção, indústria, artesanato, manufatura de que se tenha notícia. Embora à mamãe ou ao papai-to-be não caiba nenhum controle na montagem, no design, na escolha das peças – o que só mostra o nível de sabedoria em que opera a natureza; do contrário, imaginem como sairia um herdeiro de Picasso, senhores –, a imponência do fenômeno é tão excessiva que se agiganta sobre tudo que há nele de involuntário. Basta, para nosso aturdimento, conceber mentalmente o que está sendo ali concebido: alguém que virá a ser o amor da vida de alguém, quem sabe uma mentora ou mentor definitivo no caminho de outrem, por que não um descobridor de curas, uma poeta, um hábil e heroico negociador de reféns, a mãe/o pai da mãe/do pai da mãe/do pai do futuro presidente ou presidenta, o apostador no talento de uma criatura que se tornará icônica na história universal, o fornecedor de uma ajuda que será crucial para que o estimulador da professora da avó de uma extraordinária cientista ou escritora ou atriz não desista da vida. Cem por cento dos que nos são, dos que nos foram e serão indispensáveis principiaram assim, em nove (ou pouco menos) meses dessa produção que configura a grande antessala do mundo.

Gestantes são, literalmente, naves-mãe que aportam terraqueozinhos neste chão complexo – sendo tudo menos máquinas, porém; é o oposto que na verdade ocorre: parece que nunca fica uma pessoa tão repleta de pessoíce, tão atravessada de humanidade, como quando se vê porta e portadora dum exemplar de nós. Não que seja uma fase romântica no sentido mais xaroposo do termo, nem que a mulher em gerúndio de maternidade vire algum tipo de santa ou heroína; vira, sim, um ser confrontado ao-mesmo-tempo-agora com um combo de eventos humanizadores – dor, medo, amor, alegria, loucuras hormonais, impaciência, curiosidade, incômodo, desconforto, picos de irritação e desejo, picos de apetite ou inapetência enjoada, sonhares desordenados, sono descompensado, ondas de devoção e de receio, de entusiasmo e de dúvida, de valentia moral e de vulnerabilidade emocional e imunológica. A gestante, entidade com a maior concentração possível de corações humanos em menor espaço, é um compêndio de gente, um catálogo, um cúmulo; não é impunemente, decerto, que aglomera em si tanta homo-sapice, e, como se não fosse suficiente a superposição física de existências, ainda fica ela sujeita ao que há talvez de mais inconveniente, de mais teimoso no quesito abelhudice alheia. Uma vez que a gestante gesta outro(s) membro(s) da espécie, toda a espécie ao redor se considera apta a bedelhar sobre absolutamente tudo, da cor do enxoval ao estilo de parto – afora a apropriação coletiva do território barriguístico, no qual até mãos desconhecidas assentam, dia sim dia sim, com zero cerimônia.

Ah, como eu gostaria de assegurar pedaços fabulosos do universo para essa gente que prepara gente. Quisera que TODAS as mamães de primeira ou de outras viagens pudessem contar com a dedicação ilimitada de seus parceiros, com o apoio irrestrito da família nuclear, com os recursos necessários para uma nutrição fortíssima de seu próprio corpo e do corpinho anexo, com a grana e o tempo e a serenidade de estruturar todo o pequeno mundo vestível e mobiliável do bebê, com a certeza de um pré-natal atento e completo, com a extinção de todos os fiscais de amamentação que se abalam ao testemunhar um ato tão lindo, com a tranquilidade de manter seus empregos e gozar plenissimamente seus direitos trabalhistas, com a convicção de haver excelentes creches e escolas no horizonte mui próximo. Quisera que cada mamacita do planeta estivesse eternamente livre de julgamentos aspones, segura e amparada para tomar as melhores decisões, amorosamente acompanhada para obter ravióli de geleia de carambola às três da manhã, inteiramente assistida para ser dispensada de forçar pernas e coluna em afazeres que pesam. É isto enfim: quisera que nada pesasse às gestantes, além dos quilinhos que vêm com a pessoa extra; quisera que toda e qualquer fabricação humana se desenrolasse embalada em leveza, dos primórdios da divisão celular até os passos de aqui fora.

Mamãezitas gerúndias: recebam minha esperança de que todas tenham, a cada correr de cada dia, uma boa hora.

sábado, 14 de agosto de 2021

Um limite ao erro


Disse o genial Bertolt Brecht (morto há exatos 65 anos) em A vida de Galileu: "A ambição da ciência não é abrir a porta do saber infinito, mas pôr um limite ao erro infinito". Inacreditável como, décadas depois de perdermos o dramaturgo, essa frase sapateia atual e urgente sobre nosso bando de cabecinhas duras, uns estrupícios que andam por aí empenhados em combater o mau combate contra as mesmas fontes que lhes dão vida – feito uma manada de Richthofens que combinaram consigo de acabar com a (aventura humana na) Terra.

Basta que haja ocorrências como a morte tristíssima de Tarcísio Meira, por exemplo, para que venham esses espíritos suínos especializados em jogar contra e cravem: ââââin, tá vendo?, não adianta tomar vacina, ele tomou as duas doses e mesmo assim... MESMO ASSIM A MINHA MÃO NA TUA CARA, MUNDIÇA; vade retro, aparta-te de mim, negacionista dos infernos. Pois então estão fingindo não perceber que, conforme disse muito precisamente uma amiga no Face, tanto Glória Menezes quanto Sílvio Santos sobreviveram graças a essa exata vacina? Estão se fazendo de (mais) idiotas ao ignorar que a mortalidade vai diminuindo substancialmente nos lugares em que a vacinação mais vai se aligeirando? Estão teatrando ainda maior demência que a normal, ao passar por cima do fato de que o jovem, forte, saudável Paulo Gustavo poderia ter continuado conosco, e de que o jovem, forte, saudável Luciano Szafir não precisaria ter-se contaminado de covid duas vezes – sendo a segunda avassaladora e garantidora de um mês de internação, o que ilustra a história do "a melhor vacina é ter a doença" como pura balela –, caso tivesse havido imunizante para ambos na hora certa? Não, nenhuma vacina é barreira 100%mente inexpugnável contra as infecções; parece-me que nunca foi; parece-me, no entanto, que antes deste acesso de loucura generalizada nós sempre entendemos isso, sempre concordamos que 70% de imunidade são consideravelmente superiores a nenhuns, e nunca julgamos razoável pensar em renunciar aos setenta na mão por não termos os cem voando.

A ciência não é infalível, nos recorda a frase de Brecht, nem teria como sê-lo ainda, uma vez que feita por seres falíveis. A ciência é e continuará sendo, entretanto, a melhor – a única – alternativa. Não existe chance, ever, de a melhor alternativa ser o não saber. Embora por enquanto não seja capaz de nos fornecer respostas ilimitadas, a busca científica nos preserva do abismo ilimitado, do completo desamparo, do estado de nenhuma preparação e nenhuma defesa; ou alguém estaria disposto a não contar mais com airbags e cintos de segurança, apenas por não ter o juramento do fabricante registrado em cartório de que haverá zero morte em acidentes? ou alguém largaria sua casa escancarada e sem alarme em área perigosa, ou caminharia desacompanhado e cheio de objetos valiosos de madrugada numa rua brabíssima, somente porque uma pessoa conhecida foi prudente e mesmo assim sofreu assalto? ou alguém escalaria o Everest sem os equipamentos de proteção só porque inúmeros morreram no Everest COM os equipamentos de proteção? Em sã consciência, com o mínimo de sã consciência, qualquer criatura é ou deveria ser capaz de compreender o básico: o agir temerário prova exclusivamente a estupidez do burlador, não a ineficácia das regras, que nos acolchoam tanto quanto possível contra as destruições circundantes.

Ciência, com suas vacinas e apetrechos tais, é o goleiro indispensável no jogo; tê-lo não significa necessariamente ganhar sempre – não tê-lo significa, necessariamente, perder todo dia de goleada.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Superpoderinhos


Invisibilidade, velocidade supersônica, fator de cura blasterdesenvolvido, força de levantar automóvel com o dedinho, atravessamento de paredes, manipulação do fogo e do gelo, voo, telepatia, telecinese: muitíssimo infelizmente, são superpoderões a que não temos acesso, e a que talvez só o correr dos tempos (booooota tempo aí) alçará nossos corpos humanos; estamos visível e fatalmente evoluindo, então por que não atingiríamos em algum momento um certo patamar de HQ? Enquanto esse milênio não nos bate à porta, admiramos recordes sendo batidos pelos seres mais ultrafantásticos de hoje – que já deixam no chinelo os seres mais ultrafantásticos de décadas passadas –, sonhamos ficções altamente científicas e nos contentamos, vida-realmente, com o que possuímos agora mesmo em termos de superpoderinhos.

Sim, superpoderinhos: aqueles talentos miúdos em comparação com grandezas sobre-humanas, mas ainda assim extraordinários, necessários, preciosos, frutíferos, bastante empregáveis em favor da espécie no atacado, bastante utilitários no varejo – ou, vá lá, ao menos curiosos: decorar tudo quanto é níver de amigos e familiares (minha mãe é dessas), saber de cor e digitado um número imenso de telefones (meu pai é desses), compreender todos os trâmites das estatísticas (minha irmã é dessas), lembrar como foi o gol tal de tal jogo de tal ano na partida de tal resultado com tal técnico (o Fábio é desses), fazer de cabeça as aritméticas mais absurdas, customizar roupas e demais objetos de um jeito fabuloso, nunca sentir calor, nunca sentir frio, repetir diálogos inteiros de séries e filmes antigos, reproduzir uma canção ao piano após tê-la ouvido uma só vez, calcular porcentagens em segundos, distinguir milhares de cheiros diferentes, jamais se perder, atingir notas gravíssimas ou agudíssimas, conseguir estudar e conversar e assistir à TV ao mesmo tempo, acordar espontaneamente muuuuito cedo, não se cansar em praticamente nenhuma circunstância, falar de improviso, recordar por-me-no-res de histórias lidas, ser um mago ou maga do tempero. Isso – o que é lindo – temos todos: essas variadas facilidades seletivas, sempre insólitas para os que observam e naturais para os que portam; esses pequenos mistérios de nossas células cinzentas, que nos fazem combos e loterias ambulantes, inacreditavelmente únicos dentro dum bando tão numeroso.

Eu, por exemplo: sabia de modo inequívoco, enquanto morava com Pais, quem era qualquer um que houvesse chegado, só pelo mais ligeiro e inaudível tilintar do chaveiro, pelo abrir da porta e pelo pousar da chave na mesa. Apenas sabia. Também sei imediatamente quando algo na comida está passado ou passando, já que um arrepio me estremece ao primeiro contato olfativo. Consigo ser explosivamente rápida numa corrida de poucos segundos (embora faleça de asma depois, o que torna 100% inviável toda atividade regular nesse sentido). Tenho uma memória bastante persistente para rostos. Decoro os nomes dos alunos logo nas aulas iniciais. Lembro muita coisa de novelas sortidas: tramas, trilha, detalhes dos personagens. Me adapto. Vivo sem smartphone. Leio em francês sem me haverem ensinado o idioma – mas je ne le parle pas, nem o compreendo falado; quem sabe algum dia? Guardo essa esperançazinha firme e sólida, o que não deixa de ser um jovem superpoder em nosso Brasil-zil-zil que vem serial-killando esperanças de todas as envergaduras.

(Por sinal, governantes e milionários queridos: QUÃO sortudos sois vós de eu não ter os poderes de Carrie – a Estranha, não a Bradshaw – queimando nas veias; viveríeis uma sexta-feira 13 comme il faut, de que nem Wolverine cicatrizaria. Mas tem nada não, tem nada não, as consequências vêm, o dia chega. One, two: time is coming for you.)

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Como é difícil ver o natural

 

Adolfo Correia da Rocha – ou, literariamente, Miguel Torga – faria hoje 114 anos. Miguel em honra de Cervantes e Unamuno, Torga por ser o nome duma planta de montanha que finca fortemente as raízes sob a pedra (se bem que o Torga do escritor se tenha enraizado fortemente SOBRE o Rocha), o poeta era a definição do tipo tão discreto quanto bravio, tão inquieto e militante quanto avesso a publicidade e agitações. Fértil, prolífico, humanista, Torga choveu no mundo uma abundância de beleza, como nos versos de "Da realidade": "Que renda fez a tarde no jardim,/ Que há cedros que parecem de enxoval?/ Como é difícil ver o natural/ Quando a hora não quer!/ Ah! não digas que não ao que os teus olhos/ Colham nos dias de irrealidade./ Tudo então é verdade,/ Toda a rama parece/ Um tecido que tece/ A eternidade".

Não sei os olhos que me leem, mas os meus viraram fruta ensopada no açúcar desses dois primeiros versos, que descrevem tanto e tão plasticamente com tão pouco. Cedros que parecem de enxoval! – que imagem linda, linda para significar a delicadeza rendada das árvores, para ilustrá-las na plenitude de suas folhinhas bordadas. Desde os sempres da infância eu amei a sombra entrecortada dos ramos na parede, a dança entre galhos, sol e vento refletida na sala e mediada pelos vidros; era algo próprio da tarde, da meiuca tranquila e prometedora da tarde, daí minha comoção com as palavras do poeta que trouxeram à tona a impressão daqueles velhos momentos calmos, mornos duma brisa que anuncia frente fria no verão. Não me tinha dado conta inteiramente, antes do poema, do grande laço entre a ternura pelas folhagens como a do cedro, o encantamento pela renda, o alumbramento pelas telas impressionistas que pontilham vegetações e cores, pelas mandalas milmente detalhadas, pelas decorações de estilo marroquino, pelas miçangas, pelos sáris, pelas mantilhas, pelas borboletas, pelos caleidoscópios. Sei, mas é como se a todo minuto descobrisse: vou amar também nos sempres futuros, tanto quanto adorei nos passados, tudo que há de minuciosa abundância, de fartura suave, de transbordamentos meticulosos; vou estar permanentemente fadada aos mimozinhos do estilo francês (sem necessidade de versalhices, por favor), à paixão dos adjetivos, dos advérbios, das fofuras supérfluas ainda que controladas. Não serei jamais graciliana, jamais cabral-de-melo-neta, nunquinha muito substantiva – hei de botar tempero e tempero e tempero na sopa, e mais coisa e mais perfume até chegar ao gosto diagonal, oblíquo. Voilà, oblíqua: hei de estar fatalmente seguindo enviesada, não vendo nunca só o natural, vendo antes enxoval em tudo. Meus olhos não fazem colheita em dias de realidade.

Embora o paladar prefira salgado, meus olhos gostam de doce. Gostam de se alumbrar com o pequeno do pequeno, com o detalhe do detalhe, com o sentido conotativo dos cedros e das demais formas rendadas; são gulosos, esparramentos, sobremeseiros, não param nem por nada na denotação, não se conformam com o cinza e o areia – pedem verde, rosa, turquesa, anil, carmim e mais todos os tons e subtons e entretons de que nem Pantone dá conta. Meus infinitos parece que se tecem mesmo assim, nos poemas de tudo, seja o que for, e vai daí que a prosa do mundo fica eternamente um trabalho excessivo; se não me amarro muito decisivamente numa realidade bem mais pesada que o ar, evolo-me e ninguém me vê (em resposta, o lado prático anda sempre sobrealerta, com uma espécie de insulina moral na mão pronta para conter qualquer desbunde; ou seja: sou também, não raro, realista demais por efeito rebote). Que não me exijam com exagerada rapidez uma ação seca, decisiva, e que me abandonem sossegada nesse pragmatismo aéreo de borboleta; eu chego lá, eu chego lá, mesmo que pelo caminho demoroso em desvios.

A eternidade tem muitos fios.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Irmã coragem


Foram apenas três capítulos, mas já ficou extremamente claro o acerto da escalação de Gabriela Medvedovski (uma das Five em Malhação: viva a diferença e na série spin-offada da novelinha) para o papel de heroína topetuda em Nos tempos do imperador. Sua beleza suave e esperta, espontaneamente adolescente e rijamente madura, com riso no canto do olho fácil de se tornar severidade, doçura, tristeza, revolta – é de temperatura perfeita para a "imperfeição" que a atriz mesma diz buscar na mocinha, e é um alívio dramatúrgico para gerações que agora chegam e merecem: menos rostos e corpos inacessíveis, porcelânicos; menos formas surreais, vaporosas, inatingíveis. A bela Gabriela poderia ser nossa vizinha de porta, a garota no elevador, a guria do trabalho em grupo, sorrindo ali a alguns metros sua morenice muito brasileira, muito nossa. Menos "nossa!".

Concordo que Pilar, a personagem de Gabi, é um ser de altíssima improbabilidade histórica; filha dum coronel (no interior da Bahia de 1856), e ademais criada em convento, a moça sonha ser a primeira médica do Brasil, possui instrumentos próprios de medicina, sabe tudíssimo que é possível saber na área enquanto não se faz um curso superior – chegando a extrair sozinha uma bala do peito de Jorge, seu interesse romântico, e a ser a única postulante a gabaritar a sabatina de admissão na faculdade. De que maneira a jovem recém-saída da educação conventual teve acesso a instrumentos e livros bastantes para uma formação tão quase miraculosa, desconheço; e os fatos do lado de cá da tela também não dão lá o maiorrapoio a essa biografia fictícia, uma vez que Maria Augusta Generoso Estrella e Rita Lobato Velho Lopes, ambas apresentadas por fontes distintas como a primeira médica brasileira, tinham respectivamente 4 e 10 anos no momento atual da novela. Maria Augusta, por exemplo, só começou os estudos médicos – em Nova York, já que nossas universidades não aceitavam candidatas a doutoras – duas décadas após o ano em que Pilar se encontra, e formou-se apenas em 1879. Mas OK; sendo Pilar uma mocinha tão inspiradora até para os padrões século-vinte-unos, a gente sublima a implicância histórica em nome, inclusive, de tantas mulheres oitocentistas das quais jamais viremos a saber, tão cobertas de talento e sonhos quanto a heroína, e no entanto sufocadas, subestimadas, violentadas, trancafiadas, desperdiçadas, corroídas por um sistema patriarcal e nojento cujos alicerces herdamos, cujas garras ainda seguem destroçantes enquanto não as arrancamos de todo.

Sarcástica, genial, bem-humorada, afrontosa, irrestrita e inegociavelmente contrária à ideia do casamento arranjado pelo pai (aliás o "noivo" Tonico, vilão vivido por Alexandre Nero, é outro espetáculo de personagem – horrendamente repulsivo, sem chance de conquistar simpatias, e ainda assim engraçado para o espectador), isenta do mais leve traço de autodepreciação ou submissão, espirituosa, resoluta, indômita, Pilar talvez não seja provável em sua época, mas é adequada para todas; dificilmente poderíamos contar com uma figura feminina mais frutífera para o girl power na teledramaturgia atual. Que seu exemplo de fundamental rebeldia grite muito mais alto no enredo do que a romantização despropositada de um imperador (certo, um imperador intelectual que adoraria trocar a sala do trono pela sala de aula, mas STILL um imperador); que seus movimentos de emancipação inexorável, libertos da tentação de olhar para trás, nos girem a cabeça para longe dessa mesma tentação – ora, tudo de que não necessitávamos era um elogio da monarquia e uma crítica aos trâmites do Congresso numa hora destas. De nosso 1856, fique em nós a Pilar que não houve, para que haja abundantemente agora em todos os lugares.

E que caiam de vez os outros velhos pilares.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Ciranda do Cloroquina


(Com mil perdões de Chico Buarque e Edu Lobo)

Todo mundo tem
Algo além de decoreba
Se quiser falar sobre a China
E tem cor de sol, tem um lado natureba
Só o Cloroquina que não tem
E não tem bandeira
Que não seja estrangeira
Gingar de capoeira
Ele não tem

Reparando bem
Todo mundo tem no olho
Uma imensidão cristalina
Todo mundo tem algum dom que está de molho
Só o Cloroquina que não tem
Nem meme da Frida
Nem letra do Emicida
Nem dor na despedida
Ele não tem

Não livra ninguém
Toda gente tem novela
Que garrou apego em menina
Tem fé na vacina
Ou teve anseios dela
Só o Cloroquina que não tem
Música do Aldir, gente
Música do Almir, gente
Dúvidas nA origem
Quem não tem

Confessando bem
Todo mundo quer Estado
(Ou ao menos quem raciocina)
Todo mundo tem algum quê de apaixonado
Só o Cloroquina que não tem
Zelo por abelha
Camisa só vermelha
Titia que aconselha
Ele não tem

Um ladrão também
Tem vergonha do espelho
Se o correr da vida o ensina
Todos têm um milho fictício no joelho
Só o Cloroquina que não tem
Marcas de vigília
Um belo chá de tília
Um drama, uma Bastilha
Quem não tem

Procurando bem
Todo mundo tem

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Narrar e proteger

Extremamente poderoso, precioso, corajoso, fundamental e completo o depoimento da Pocah no Papo de segunda de hoje, a respeito do longo período de violência doméstica vivenciado por ela nas mãos de um companheiro ultramegatóxico que bingaria qualquer cartela do relacionamento abusivo: do "essa roupa está muito curta" até a ameaça aos familiares, do arrastar pelo cabelo até a manipulação religiosa ("não fui eu, foi o demônio em mim, mas nós venceremos e a força de nossa união servirá como testemunho"), do "suas amigas não são adequadas" até a agressão que quase cegou o olho esquerdo da cantora – episódio no qual, aliás, a mãe do covarde desgraçado ainda recomendou ao filho que não levasse a MC ao hospital, pois ela certamente o colocaria na cadeia. Emocionadíssima, como não poderia deixar de ser sob o peso tamânhico do assunto, Pocah fez questão de destacar a influência que a narrativa de ex-vítimas de violência teve sobre seu próprio movimento de libertação, e se posicionou lindamente quanto à importância de contar, por sua vez, tudo que foi vivido e vencido: "Elas [as que, neste momento, se sentem presas numa relação tóxica] veem uma oportunidade para mudar de vida quando alguém diz que conseguiu"; "[desejo] salvar vidas assim como a minha vida foi salva pelos relatos de outras mulheres". Que coisa potente, espetacular: abraçar com tanta inteireza, objetividade, lucidez o papel de exemplo, o papel de palavra curativa, por mais que as memórias voluntária e constantemente revolvidas continuem sangrando.

Não conheço o trabalho artístico da querida Pocah, mas pelo menos em termos de imensidão humana já posso dizer que virei fã. Quanto de dor não haverá em se dispor a falar de um período tão excruciante da própria biografia, quanto de bravura não será essencial para se rever aterrorizada e vulnerável, quanto de estômago não se fará necessário para revisitar cenas horríveis, humilhações sofridas, manipulações nauseantes? Principalmente considerando que o namoro infernal começou, segundo a cantora, quando ela contava tenros 16 anos, comove-me intensamente ouvi-la dissecando com crueza tantas mágoas, reolhando nos olhos do abismo com tanto desassombro, no intuito de evitar que mais meninas sejam engolidas por esse ciclo doente e que mais adultas nele permaneçam (e dele se tornem vítimas fatais). Como é gigante e libertadora a palavra, na condição de instrumento autorreconstrutor e na de elemento construtor de alternativas! Falar, escrever é um lançamento de boia; é uma produção de aconchego – afinal não estamos sós, existe no entorno o calor dos que nos precederam; é um espelho porreta de autoconhecimento; é um combustível de catarse; é uma diagnose; é um aviamento de receita para a cura. Falar & escrever também resgata, para assuntos cruciais, aqueles que não são tocados pela bolha do sei-que-isso-existe, mas se inundam de empatia quando o exemplo, em carne e osso, fura a bolha e joga a experiência na cara, papo retíssimo. O que é dito muito diretamente se holofota. Se materializa.

Pocah sabe – estende inclusive, para a esfera artística, a consciência demonstrada na social, e sublinha que não é futilidade quando canta "ninguém manda nessa raba": é algo especialmente pensado para desviar a mulher de qualquer lugar de submissão. Se uns e outros acharão vulgar a forma, não interessa; a mensagem ecoa, cantarola no inconsciente, normaliza-se, normatiza-se, transforma-se em convicção, por que não em grito de guerra, em palavras de ordem. O verbalizado, repetido, encarado acaba se fazendo agente empoderador, ratificador de autonomias, ato de investidura dos próprios desejos – e se mostra particularmente forte que uma mulher realize essa investidura sobre outra, sobre outras; mostra-se possante e significativo demais que mulheres se abram reciprocamente as portas e reciprocamente se validem, se autorizem. Não, não precisamos de que os homens o façam: já transcorreram excessivos séculos em que eles foram centrais de comando e pontos de referência.

Chega de tudo que leva à morte, meninas. Nosso grito é só independência.