sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Senhora do destino

Minha irmã diz que chefe não precisa ser bajulado; secretária, sim. Com razão. Arrastar-se pelo chão onde o patrãozinho pisa arrasta junto reputações, caras, amores-próprios. Não pega bem para ninguém e ainda acaba irritando o suposto paparicado, que, se for chefe worth having, vai ter horror a funcionário com fetiche de ser tapete (não tem horror? demita-se. O sujeito anda considerando a ideia de um tapete humano – e, quando se decidir a gostar dela, vai que é você passando no corredor?). Secretária é o oposto: quanto mais se enche de mimo, mais cedo fica pronto o passaporte para o nirvana profissional. Quanto maior a grosseria, maior a chance de seu currículo acordar, certa manhã, com a boca cheia de formiga.

Secretária conhece seu CPF, RG, endereço, agenda, declaração de rendimentos, brigas com a mulher, nome dos pais, aniversário dos filhos. Sorte sua que é gente de confiança. Merecia férias em Paris todo ano só por ser guardiã soberana de suas discrições. Não bastante, a fofa sabe direitinho a desculpa que funciona para despachar telefonema de ex, adivinha quando é cliente ligando e bota purpurina na voz, conversa aveludadamente com o responsável do bistrô para arrumar reserva pra anteontem, tem as medidas de sua mulher e a banda preferida de sua filha anotadas no caderninho. Secretária feliz agiliza sua xerox, apressa o café, avisa antes sobre a reunião, mente para sua sogra que você continua em reunião, entrega a informação cheirando a pão quente. É ou não é para ser tratada a champanhe e Ferrero Rocher todo santo dia?

Na falta de todo santo dia, aproveite hoje. Insuficiente; mas melhor que nada. Venere o Dia da Secretária como o daquela que recebeu a saborosa missão de abrir caminhos, ir à frente da bandeira esfaqueando obstáculos, aplainar veredas como um João Batista particular. Beije (respeitosamente) as mãos que digitam memorandos, providenciam respostas, encaminham circulares, resolvem a chatice das atas sem que você precise pensar mais do que na melhor caneta para a assinatura. Beije-lhe as santas mãos. Encha-a das tulipas espetaculares e dos bombons trufados que, espera-se, ela não comprou.

E trate de ser um bom menino nos outros 364 espaços da agenda. Ela vê o que você faz. Ela sabe quem você é. E não tem fetiche de ser tapete. Depois de dormir na varanda por haver esquecido o níver de casamento – e depois de não compensar a burrada porque o bistrô da moda está im-pos-sí-vel de marcar –, não diga que eu não avisei.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Não-me-toques

Homem é um ser engraçado. Quando duas amigas entram no ônibus, no metrô, como é que se sentam? Juntas, é óbvio (se a condução permite). Ficam lado a lado, botando assuntos em dia entre risadas, risadinhas, cochichos. Uma pega a mão da outra para checar o esmalte Resplendor do Nilo, passa-lhe os dedos no cabelo para conferir a hidratação, mergulha olhos nos olhos. Uma longa coreografia de afeto, uma relação selada em rituais de minicarícias. Amigas são sempre menininhas trocando diários numa festa do pijama.

Amigos não. Adolescentes, em especial. Entram no metrô em time e debandam. Se são quatro, usam quatro bancos livres – um refestelado em cada; pernas e braços derramados sobre o lugar vazio no banco, marcando território. Continuam, porém, conversando com entusiasmo idêntico, os interlocutores dispostos nos quatro polos da rosa dos ventos, partilhando o tema aos brados e gargalhadas com os senhores passageiros. Homem que é homem não tem essa de pertinho. Posiciona-se como se o outro fosse portador do ebola e (jeito macho de se comunicar) dialoga com fúria. Berra os ditos e as piadas. Talvez para amealhar testemunhas de que, em nenhum momento, falou-se de hidratação.

As pequenas carícias que mostram proximidade de meninas viram, entre meninos, pequenos espancamentos. Tem de haver toque? OK; então que seja direito. Para tirar sangue. Podem chegar a se abraçar, mas em geral com prejuízo de alguma costela. Sonoramente: é essencial que a performance afetiva seja sonora. Uma batida de mãos masculina atinge, calculo eu por alto, uns 87 decibéis, variando para mais conforme o grau de amizade. Se o tapa fizer um transeunte se abaixar achando que é tiro, pode crer que o elo é bastante para um querer segurar o outro e dar um beijo na careca do desgraçado. Homens entregam carinho dentro da (masculamente aceitável) embalagem de pugilato.

Acho cômico. Mas adoro quando os desencanados quebram a tradição e mostram evolução na espécie. Houve casos nos últimos BBBs: os varões da Casa se abraçando longamente, afagando a cabeça, chorando no ombro espadaúdo do outro confinado. Vão além e beijam o rosto ou testa do companheiro. Fico maravilhada. Esses são os cabras-macho sem frescura, que dão a cara pra bater – psicologicamente falando – diante de um Brasil todinho e de seu patriarcalismo ainda fofoqueiro e julgador. Se há algum tracinho de coisa boa no reality, é que anda ajudando a naturalizar o que deveria ter sido natural mais ou menos desde o início dos tempos: afeto exibido com o mesmo despudor com que se exibe agressão.

E sem tê-la (de penetra) na festa.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Taking it easy

Desde 2007, 28 de setembro é o Dia Mundial Contra a Raiva. Claro que tratamos da raiva-hidrofobia, aquela que faz cães salivarem borbulhantes, como bichos danados. Mas vamos fingir que não. Vamos fingir que falamos mesmo da primeira que nos vem – ou que nos sobe – à cabeça, a que transforma bons guris em matadores de professora, alunos tímidos em exterminadores de turma, motoristas pais de família em esmagadores de crânio. Vamos fingir; face aos acontecimentos das últimas décadas, poucas epidemias houve piores. Vamos fingir, que estamos precisando.

A raiva que não é hidrofobia tem vacina? Tem vacina. Nem carece de posto: duas colheradas diárias de tempo e silêncio resolvem o assunto. Tempo, sim, porque nada põe a humanidade mais nos cascos do que o fato de viver (?) atrasada para alguma coisa. Numa síndrome de coelho da Alice, já saímos pela manhã como pacmen engolindo o mundo sem mastigar. Não pisamos na rua, adentramos uma tela de game, papando cada minutinho que dê sopa e fugindo aos obstáculos que comprometem nossa logística – sinal de trânsito, faixa de pedestre, lata de lixo, esses fantasmas. Se o casalzinho fechou a passagem da escada rolante, pronto: raiva. Se a senhorinha demorou 10 minutos no caixa eletrônico, pronto: raiva. Se o carro ao lado tirou um nanomilímetro da pintura da porta, não há dúvida: raiva furibunda. Entrou na vaga um segundo antes? Ganhou inimigo mortal, para todos os séculos. Estamos inflamáveis, estamos descompensados. Em nome da civilização, disputamos o tempo com requintes de selvageria. Tanto pautamos nossos deveres pela exigência alheia que, no corre-corre, esmagamos o alheio. A raiva do apressado já nasce absurda, não sendo mais do que ressentimento contra quem nos impede de consumar nossos sacrifícios mais cedo.

O outro santo remedinho: silêncio. Silêncio é justamente a percepção interna do tempo, ou seu melhor garoto-propaganda. Silêncio é a avenida onde se dá de cara com a gente mesmo e se pergunta por que cargas d’água estávamos correndo, anyway. Em silêncio, não temos escapatória quanto ao que deixamos mal resolvido entre nós e nós (essa nossa predisposição para virar Hulk, afinal, é coisa de gente que não anda se encontrando consigo para conversar).

Silêncio é o ato de existir para dentro. Raiva é quando não nos habitamos plenamente e preferimos lastimar a existência da porta para fora. Quem tem raiva, tem-se saudade – é um sem-teto de si próprio, que empurra toda a bagagem dolorida para a vida do vizinho. O raivoso, enfim, pode não ser má gente. Só não é gente o bastante para marcar horário com as velhas dores em lugar mais discreto. E não faltar.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Sugar sugar

Montão de gente não sabe, mas não é hoje: foi ontem o dia de São Cosme e São Damião. Por algum motivo que morrerei sem compreender, existe no Rio a mania ancestral de se distribuírem saquinhos de doces na comemoração dos santos gêmeos (embora o povo insista no 27, e não no 26 de setembro, para essa bacanal de glicose). Ai, lembranças com gostinho de açúcar queimado, pirulito de framboesa, cocada de batata, de abóbora, de coco até. Que alegria deslumbrante chegar em casa e desmanchar o embrulhito de papel para averiguar tesouros! Veio chiclete, não veio jujuba; troca? Veio aquela pipoquinha (horrenda) de isopor em vez de delicado, vamos fazer negócio? Opa! mais uma dessa sem-gracice grudenta da maria-mole, quer? Em pagamento, bananada serve (bem-vindo seja, se tiver caramelo!).

Venha de onde for o costume dos saquinhos – não me consta que os santos fossem sócios de Willy Wonka –, ele dá às crianças brasileiras uma chance de Halloween aclimatado, sem fantasias nem travessuras: gostosuras only. Nunca entendi bem, mas, como qualquer ser humano abaixo de 12, curtia. Curtia tanto que, certa vez, fiz o percurso de volta da escola morrendo por dentro, já que não recebera na rua nenhum embrulhinho (sempre ganhava das tias, mas que gosto tem a presa sem o susto da caça?). No último quarteirão antes de pôr a chave na porta, conquistei meu mimo de São Cosme e a crença na felicidade. Recuperei o dia – e o restinho dos 7.665 imediatamente seguintes.

Atualmente não engulo açúcar e acredito como nunca na distribuição. Acredito em nos rechearmos de intenções coloridas e nos darmos, em porções selecionadas, a quem nos encontrar no trajeto. Acredito em sermos espalhadores de suspiros – os que louvam, não os que lastimam. Acredito em sermos fonte aonde vêm os carentes de doçura, os saudosos de agrado, os necessitados da já inesperada sobremesa. Acredito em sermos sobremesa. Em sermos o saquinho de Cosme e Damião que surpreende na esquina com espanto bom. Em virarmos a melhor coisa do dia, a novidade que compensa, a presença que paga o ato de levantar da cama, a conversa que enfeita o corriqueiro, a surpresinha do Kinderovo, o brinquedo ao pé da árvore, o sorriso ao pé do atendimento, o bonus track, o plus. Acredito em sermos delivery do que, não sendo substância, é essencial, é essência. Acredito em nos entregarmos de bandeja, com generosidade de aniversário, às tantas almas com fome de vida, esta gulodice.

Principalmente àquelas que já entraram no último quarteirão.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Lanterna mágica

Descobri algo interessantíssimo sobre o 26 de setembro, mais especificamente em sua edição de 1909: foi inaugurado o cinema mais antigo do mundo, chamado Kino Pionier (Cine Pioneiro), na então cidade alemã de Stettin – atualmente, a polonesa Szczecin. Hoje aniversaria, portanto, uma das maiores invenções da humanidade. Não a sétima arte em si, mas seu templo. A nave que nos aterrissou em Pandora, Metrópolis, Tatooine, Dogville, Pleasantville, Sin City, Gotham City, Hill Valley, Marte, Oz, Hogwarts. A cápsula que nos materializou em 1984 e 2001, que nos entrou de gaiatos no Pérola Negra e na Enterprise, que nos odisseiou ao lado de Ulisses e de Hal 9000, que nos abriu os olhos com Normas Raes e laranjas mecânicas, que nos esmagou com dentadas de T-Rex e lustres da Ópera de Paris, que nos confrontou com Freddy Krueger e Baixo Astral, que nos desafiou com Excaliburs e Hattori Hanzos, varinhas e sabres de luz. Que nos apresentou a sociedade, o anel, as duas torres (caídas), o retorno do rei (Arthur). Que nos colocou para cantar na chuva, procurar Nemo, brincar nos campos do Senhor, discar M para matar e não chorar por mim, Argentina. Que nos desceu ao magma e nos subiu a Asgard. Ele: o portal, o navio, a batcaverna, o hall da justiça, o salão oval, a sala secreta. O cinema. Para cinéfilos do mundo inteiro, devia haver decreto de feriado obrigatório.

Não adianta: podem vir com baixação pela internet, com locadoras físicas e virtuais, com HBOs 1, 2, 345, 6.789. Não ligo. TV e computador não são lugar de ver filme – ao menos não pela primeira vez. Não pela primeira vez, se já se estava vivo e consciente quando o dito-cujo foi exibido em circuito. Claro, incompatibilidades de horário acontecem. Há perdão previsto para os que ralam dentro e fora de casa. Mas cinéfilo que é cinéfilo não passa mais de mês e meio sem dar um jeitinho de fugir para o primeiro Kinoplex ou Estação. Cinema não é cumprimento de dever, desincumbência da obrigação de assistir a um longa. Cinema é ritual, é experiência – social, inclusive. Envolve cheiro amanteigado de pipoca, escolha de lugar, bala de hortelã, trailer, escuro, legenda, som que parece vir do útero, circundando a sala toda. Envolve um ou outro ssshhhh para o herege que conversa, um ou outro comentário de -1 decibel no ouvido do amado, mão dada, combo partilhado, lágrima descoberta, riso dividido. Filme não é coisa de ver, é coisa de provar – e nada melhor do que uma estufa que nos arranque física e sensorialmente do comezinho, que nos sequestre de tudo o mais, para só depois de duas horas nos devolver ao velho mundo. Mas com a sensação de que não estamos no Kansas anymore.

Cinema não comporta DR, palmas, assobios, gritinhos, pai explicando para filho, filho explicando para pai, narrador de plateia, papo ao celular, luz de celular, aporrinhação, trabalho, sono, pressa, radinho, mp3 e – me desculpem os preguiçosos – dublagem (a não ser em desenho animado, olhe lá). Vá que seja a maior diversão; mas é mais. Aquela obra passando ali na frente exige a mesma reverência, entrega e inteireza que se tem a um amigo ou um Monet. E a mesma disciplina de um aeroporto. Estamos, afinal, na única sala de embarque ora possível para a maioria das galáxias muito, muito distantes. O recinto que tem a exclusiva função de nos exportar a alguma espécie (a cada espécie particular) de infinito.

E além.

domingo, 25 de setembro de 2011

Despudorados

Sexta-feira, todo mundo sabe, teve show da Katy Perry no Rock in Rio. Que delícia. Não fui, mas, se a TV não me enganou desbragadamente, posso afirmar que foi um showzaço. Katy fez misérias (coloridas). Com seu ar de diva maluquinha, parecia estar se divertindo horrores com a brincadeira no quintal. Encheu o palco de um visual meio Plunct plact zum – pirulitos enormes, escadas multicores, biscoitões dançantes. Botou peruca azul. Mudou de figurino um quaquilhão de vezes, incluindo as cinco ou seis trocas em pleno palco, ao som de “Hot n cold” (tudo bem, a comissão de frente da Tijuca fez muito melhor; mas Katy está perdoada por motivo de fofura). Atirou guloseimas na plateia. Atirou-se gulosamente na plateia. Beijou e deixou-se beijar por um indivíduo da plateia. Atiçou com ternura e energia a plateia. Vestiu, literal e metaforicamente, a bandeira do Brasil: fez daqui uma casa instantânea, pura alegria e entrega, sem um pingo de constrangimento de sua ploquice feliz. Despudorada, no bom sentido. Muito ao contrário do que diz na letra lastimosa de “Thinking of you”, quando estava conosco não pensava senão em nós.

Adoro esses despudorados. Os despudorados no bom sentido. Gente que deixa os próprios orgulhos no guarda-volumes e entra com a alma descalça – onde quer que seja. Gente que abre a pista de dança, mesmo estando anos-luz de ser Travolta. Gente que puxa o trenzinho na festa, ainda que a sã consciência ache cafona. Gente (adulta) que pega o Magic Kingdom abrindo, sai com ele fechando e, entre um evento e outro, arrebenta de brincar como se não houvesse amanhã. Gente (masculina) que não tem o menor problema, necessário sendo, de desfilar na ala das baianas. Gente (feminina) que desembarca sozinha no restaurante chique, diz que não, não está esperando ninguém e brinda à própria companhia com um Romanée Conti. Gente que chegou para resolver, responder, perguntar, requebrar, se enturmar, passear, conhecer plena de disponibilidade, nua de vergonha, vazia de preconceitos – especialmente preconceitos importados, que engolimos a seco. Homem não se acaba ao som de Gloria Gaynor? Mulher não oferece bebida ao paquera? Adulto não usa camiseta do Batman nem bolsa da Pucca? Quem disse? Algum sujeito indeterminado (que tentava bravamente resistir aos acordes de “I will survive”).

Despudorados só funcionam no 100%, estão sempre em Roma como os romanos. Entram na micareta e pulam, entram no estádio e berram, entram no cinema e choram, entram na reunião e debatem, entram na igreja e ajoelham. Doam-se ao momento no matter what. Não deixam o corpo no computador e saem para almoçar – ou vice-versa. Operam no limite. Não se largam de si mesmos. São frequentadores assíduos da própria vida. Chegam a cada dia absolutamente inteiros.

E partem mais inteiros ainda.

sábado, 24 de setembro de 2011

Onde dói

Eu era viciada em Cavaleiros do Zodíaco. Lembro-me do episódio da saga em que um dos personagens principais tinha de derrotar um oponente invulnerável, espécie de Aquiles moderno. Mas Aquiles, todo mundo sabe, levava um calcanhar perfeitamente flechável. O adversário em questão estava ótimo do calcanhar, porém o cavaleiro bonzinho percebeu que, por um micromilionésimo de segundo, ele baixava a guarda e deixava o coração desprotegido ao aplicar seu golpe mais potente. Adivinha. O cavaleiro, claro, provocou o golpe e acertou o outro com precisão letal. Estropiou-se, mas venceu.

Recordei essa bobagem porque fico tendo provas de como adoramos descobrir e torturar o pontinho fraco. Ontem mesmo. Deixei o quadro todo escrito para a aula da tarde, perdi preciosa meia hora de intervalo para que a matéria já estivesse ali, bonitinha, quando os alunos chegassem. Economiza tempo de aula e facilita a tranquilidade, pois não precisamos ficar virados de costas para a turma (estudantes têm a estranha crença de que o professor perde a audição quando não está olhando). Muito bem. Ao subir com o pessoal do segundo turno, a decepção: metade do que eu escrevera tinha sido apagado. Just because. Simplesmente alguém – que talvez nem me conheça – resolveu fazer sua má ação do dia. Calculou quanto trabalho me daria recuperar a matéria destruída e provavelmente se divertiu exercitando maldade gratuita. Gratuita mas milimétrica. Como atingir eficazmente um professor? Pondo a perder o tempo de quem menos tem tempo, lógico. De quebra, fazendo parecer ainda mais ineficientes seus esforços de salvar alunos perdidos no apagar do ano. Tudo isso aliado à covardia de um ato sem rosto. O crime perfeito.

Por infelicidade, essa perversão nos frequenta. O coleguinha está de tênis novo? Bora pisar. A outra é megatímida por causa da gagueira? Valendo um milhão que vai ser rebatizada de Jujujuliana assim que responder à primeira chamada. Briga de casal, então, é pura lama no ventilador. Ela sabe que ele cometeu ingratidão contra os pais e nunca se perdoou por isso. Ou tem trauma de ser estéril. Ele sabe que ela não consegue cozinhar nem com cartilha e se sente a última das mulheres. Ou anda chorando pelos cantos por causa do aumento de peso. Na hora do vale-tudo verbal, adivinha quais assuntos virão à baila?

Prova de que nossas crueldades não se escondem só no capuz previsível da inveja, do preconceito, da má educação. Somos piores. Às vezes educados, instruídos, mimados com um relacionamento sem grandes intempéries. Não partimos só do que assumidamente não presta, partimos do que temos de bom para exercer nossas tiranias. Não pegamos só quem nos azucrina para reagir brutalmente (o que já seria lastimável), pegamos especialmente quem nos ama. Basta que tenhamos acordado no modo “Hitler”, que o calo tenha amanhecido doendo, que a resposta não seja ampla e imediata aos nossos caprichos chorões. Todos nós, os cruéis, somos gremlins. Uma gotinha faz a transição entre a fofurice e a fúria desembestada.

Quanto ao quadro apagado: não suei uma gota para averiguar quem tinha sido. Reescrevi a matéria oculta e fim de papo. Saiba o meliante que me ajudou a queimar umas caloriazinhas extras, além de – preciosidade das preciosidades – me render um bom assunto de post.

Titóóóóóóóóim.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Dizernadismo

Ontem a filosofia botequinesca do Orkut me recebeu assim na abertura do perfil: “Cuidado com o que você diz; entre aqueles que não dizem nada, poucos são os que ficam em silêncio”. Mas que pérola de verdade! O bicho mais em extinção é o sujeito que permanece calado quando não tem o que dizer. A maioria padece do mal que nunca figurará nos programas do Discovery Home & Health, por ser o mais ordinário de nossos dias: o dizernadismo. A incontinência verbal. A diarreia de tolices. O febeapá, como diria Stanislaw – festival de besteira que assola o país.

(Antes fosse só o país.)

98% da programação televisiva é dizernadista convicta. Ao menos em canal aberto. As manchetes do dia abrangem temas enriquecedores como o tapa do MC Coisito na Mulher Fruta-de-Conde em A fazenda, a aparição sem calcinha da Mulher Açaí na quadra da Imperatriz, a última declaração bombástica de Justin Bieber sobre o aniversário de três meses de namoro. Blocos inteiros perdidos nesse fascínio pelo nada, nessa paixão arrebatadora pelo que nos entope os ouvidos – o suficiente para termos pretexto de não escutarmos o programa político ou o Jornal nacional. Ficamos de cérebro obeso e desnutrido, tamanho o número de bobagens coloridas que se consomem antes do jantar.

O caos não se resume ao dizer-falando, amplia-se para o dizer-redigindo. Estão aí as revistecas e jornalecos de meia dúzia de centavos que não me deixam mentir. Fofoquinhas de relacionamento que terminou-começou-estão-se-conhecendo-ele-bateu-nela-apenas-bons-amigos (faltei à aula em que explicaram: por que a gente precisa mesmo saber a kama-sutrice preferida da atriz com o pagodeiro?). Conselhos sentimentais que recomendam “escutar o próprio coração”. Colunas que se encerram com “um beijo no coração”. Relatos minuciosos do estupro na Baixada ou dos eventos a que a lindinha da Malhação compareceu com seu provisoriamente definitivo amor. Primeira página para a garota do tempo que trabalha de biquíni, inclusive quando anuncia máxima de 6 graus. Perfis do consumidos que revelam o creme (ou formato) depilatório favorito da cantora. Obviedades, cafonices, bizarrices, desnecessidades a nos invadir a vista, gordurosas de LDL. Colesterol inútil.

E o didatiquês? Aff. Dizernadite terminal. É um tal de “avaliação qualitativa”, “implementação de melhorias”, “gestão de habilidades”, “critérios de análise”, “descritores de conteúdo” que os colégios de estado e município já deveriam estar mandando aluno para Harvard. Poucos dizernadistas me amofinam tanto quanto os que, perplexos com a ausência de remédio, distraem-se inventando termos para a bula.

É isso o dizernadismo: distração de atônitos, capa de toureiro que encaminha para o ar o chifre que se destina ao peito. Tijolo de chantilly que tira o foco da carência de substância. Prodigalidade burra, engodo. Estupidez de achar que voz (ou letra) pode subitamente virar mãe, e não filha da reflexão. Teimosia de achar que se constrói o que preste na areia barulhenta, e não na rijeza do silêncio. Burrice de achar que nossos clichês são exclusivos, nossas repetições são únicas, nossos sensos comuns são messiânicos.

Té amanhãzim. Beijo no coração.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Como se fosse a primeira vez

Acabo de ver mais um episódio impressionante de Medicina extraordinária, um daqueles programas de fenômenos curiosos do Discovery Home & Health. Aprendi um fenômeno curiosíssimo: a incapacidade que certas pessoas têm para reconhecer rostos. Não estou dizendo memória ruim, distração, pouco talento para fisionomista. In-ca-pa-ci-da-de. Quem sofre do mal – chamado prosopagnosia – simplesmente não enxerga faces, vê apenas um amontoado de borrões, como naquelas reportagens em que a identidade dos entrevistados é preservada. Borrões com roupa, óculos, voz e cabelos em volta (únicas pistas que os portadores têm para distinguir amigos e familiares). O personagem focalizado, Mr. Cook, não nasceu com a síndrome: foi efeito colateral de uma operação no cérebro. Há mais de dez anos não diferencia os filhos de sobrinhos ou jovens outros. Se estão em grupo, precisa esperá-los falar para dirigir-se à pessoa certa. “O lado bom”, comentou o narrador da matéria, “é que Mr. Cook está sempre conhecendo gente nova”. O prosopagnóstico (ou lá como se chame) assentiu num sorriso, afirmando ser eterna novidade reencontrar os seus. Cada esbarrão em casa tem um arrepio de estreia.

É triste e bonito. Por um lado, aterrorizante – nossa estrada de lembranças costuma ser uma trilha de porta-retratos, que se convertem em âncoras inúteis para os “cegos faciais”. Quem enxerga canta os olhos do amado, tem fissura nas sardas da noiva, é louco na pintinha da bochecha, cai de quatro pelas pestanas ou pelo arrebitamento do nariz. Quem enxerga sabe a adolescência do filho pelas espinhas, o esforço dos pais pelas olheiras, os anos de casamento pelas rugas, a maldade do colega pelo risinho. Não ser cego, mas sofrer de face blindness, é assistir a filme tcheco sem legendas. Ficar órfão das primeiras referências. Ganhar o texto sem a página principal.

Por outro lado, não deixa de ser esquisitamente poético. Tanto nos apegamos ao dom de ver rostos que desistimos de vê-los. Já chega um relance para sabermos de quem se trata. Ô meu amigo Marcão! Meu velho amigo Marcão! dá cá um abraço – e lá vai o Marcão, contrariado, porque você não percebeu que sua testa apressada não tinha abraços previstos. Sábado nós vamos à festa, não vamos, Carlinha? – e a Carlinha desembesta a chorar porque você não pescou o início de depressão que nadava no fundinho dos olhos. Tentamos agregar na marra quem está com um “offline” escrito no nariz. Não tentamos nos chegar a quem está de olhar pidão e uma lágrima pendurada no nariz. Enxergamos, distinguimos, identificamos mas não lemos. Acomodados no traço familiar, na pista farta, no trecho “conhecido”, não nos damos ao trabalho de ser todo minuto apresentados a novas terras, novos céus, novas regras do jogo. Cometemos a cegueira dos que veem: tomar o às vezes como um sempre.

Para Mr. Cook não há sempre. Cada troca de roupa é o princípio de uma era. Um corte ou tingimento de cabelo é Big Bang. Faz-se a luz, aquele ser passa a reexistir para o pai (marido, companheiro, tio) em versão 1.0. Duro, duríssimo – e metaforicamente bom. Enquanto não aceitarmos o F5 como lema, olhando com a dependência da fome e a independência do desapego, não acertaremos a identidade de ninguém.

Incluindo daquela criatura no espelho, que ainda aguarda de você um convite para a reestreia.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Bandeira branca, amor

24 horas após nossa formatura, há nove anos, o mundo celebrou o primeiro Dia Internacional da Paz. É hoje: dia de abraçar árvore em manifesto feliz, de vestir camiseta alvejada (por Omo, não por bala perdida), de pousar as mãos em forma de pomba para postar foto engajada no Face. Melhor ainda se dia de abraçar vizinho em manifesto feliz, de vestir intenções transparentes, de se postar em forma de pomba para pousar onde quer que seja. Hora de ser menos o que desejamos e mais o que pretendemos.

Tomemos a pomba, a propósito. Só pela alvura é que foi promovida a símbolo da paz? É de crer que não. Se o leitor conhece a saga de Noé, lembrará que o patriarca enviou o bichinho para sondar a quantas andava a Terra no pós-dilúvio. Eis que, em belo dia, volta um ramo verde no bico do mensageiro. O sinal esperado: há vida após a catástrofe, há o que curtir e colher mesmo no território mais apodrecido de má chuva. É provável que a penugem não tenha passado incólume ao barro excessivo, que tenha mais ou menos emporcalhado a brancura simbólica. Não importa. Embaixadores da paz não ligam para sujeiras laváveis, provisórias, que maculam fora sem ferir dentro. Vão direto ao assunto: vasculhar o tesouro, garimpar a riqueza, chafurdar até a última renúncia necessária para não se reacomodar na programação normal sem a medalha de um raminho verde.

Embaixadores da paz não aceitam lama como resposta. Chateiam, insistem, escarafuncham, mergulham cegos na crença de uma vida que não veem, polianamente enxergando o essencial sob a casca (às vezes nojenta). Médicos que se recusam a desenganar, diplomatas que se dispõem a ouvir, voluntários que teimam em oferecer, vítimas que se negam a julgar, eleitores que resistem a anular, revoltosos que não concebem destruir. Gente que não acata como decreto a impressão ruim, que não se afeiçoa aos próprios maus impulsos. Gente que não cede a si mesma.

Hoje (em cada “hoje”), sejamos menos o que desejamos e mais o que pretendemos. Questionemos instintos, indisponibilidades e nãos. Questionemos preguiças e vontades. Paz não se faz com vontade: faz-se com a decisão que gentilmente a supera. Começa na bandeira branca; termina, muito melhor, na bandeira rasgada e enlameada de quem preferiu abandonar-se a abandonar a paixão de sua ideia, sua fé, seu gol, sua convicção, sua finalidade, sua esperança, sua espera – sua amostra de vida, sua ponta de iceberg, sua prova de vitória, sua resposta.

Verde.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Não nos afastemos

Hoje faz exatos nove anos de minha formatura. De nossa formatura (Fábio e eu realizamos juntos a travessia). Já nove anos? lorota do calendário, foi ontem, anteontem no máximo, tão fresquinhos ainda estão os bancos amarelos da faculdade. Nossos bancos amarelos de gargalhadas que duravam 828 horas. Fazíamos sete, dez, doze matérias e dávamos conta, mesmo entre conversas esparramadas nos bancos amarelos. Que é daquele dom esquecido de multiplicar o tempo?

Que é daquela minha turma de universidade? Minha turma era o cara. Conjunção astral, alinhamento de órbitas irrepetível. Os professores nos amavam, deliciosos que éramos. Panelas menores (obviamente as havia) não comprometiam a misturabilidade do todo. As gatinhas de Niterói, as reservadas, as relações-públicas, os pops, os cabeças, os ultracabeças: o grupo. O grupo que enfrentou greve, RID, SAID, trote, latim, barroco, banheiro sem porta, bolsa sem aumento, vinte (e poucas) rampas diárias. Que temeu de morte o professor de Cultura Portuguesa, que jurou de morte o de Linguística pelas provas extraviadas, que decorou o número de sinos do Convento de Mafra, que imitou sapo, que se vestiu de bruxa, que se encontrou no Queijo, que se embecou na ABL. “Tão jooooooooooooovens...”

Somos tão jovens, insistentemente. Ainda que casados (quantos casaram?), ainda que responsáveis por outros jovens (quantos nasceram?). Com uma falha gravíssima: somos jovens em separado. Sem salas conjuntas, sem elevadores simultâneos, sem corredores divididos, sem as mesmas 7h da matina com o mestre de Literatura nos fulminando pelo atraso, sem as mesmas 18h infestadas de bichinhos da luz. “Não nos afastemos”, dizia drummondianamente nosso convite, “não nos afastemos muito”. Pena: a linha do tempo não concorda. Teima que a vida siga, que estranhamente mudemos, que passemos pelo compulsório fenômeno de continuar existentes. Existentes da maneira atrapalhada, ininterrupta que nos calha.

Desde já me demorarei sonhando com a festa de dez anos que talvez não realizemos, com a conversa de gala que dificilmente marcaremos, com a tentativa de reunião que esbarrará em distâncias de municípios, de folhinhas, de creches, de expedientes. Sonharei apesar de. Com cabeça-durice bastante para amofinar alguns colegas dos primeiros raios de janeiro aos penúltimos de setembro. Não dará certo; não fará mal. Vou seguir a estrada dos bancos amarelos todo aniversário, feliz que voltas ao lar dispensem lugar.

Felicidades, turma de 2002. Afastou-nos uma quase década, não nos afastamos: continuamos indo de mãos dadas.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Não engavetemos

Diante do engavetamento histórico ocorrido na Rodovia dos Imigrantes, as autoridades competentes entraram em apreensão (como sabemos, autoridades competentes entram em apreensão quando não há mais como desacontecer as tragédias históricas). Decidiram que era hora de passar instruções aos motoristas sobre como agir na estrada, especialmente em situações de neblina gorda. Uma das regrinhas essenciais: ao parar o veículo, é preciso mantê-lo beeeeeem longe do fluxo, longe até do acostamento – e com o pisca-alerta ligado. Local sinalizado, tudo bonitinho. Estou aqui, estou aqui, não me atropeleis, ó vós que prosseguis no volante.

Não precisamos estar na Rodovia dos Imigrantes. Em rodovia nenhuma. Em carro nenhum. Havendo qualquer caso de neblina gorda, a tendência é que as pessoas engavetem. Espere momentos de pouca visibilidade e confira. O chefe da família perdeu o emprego: um clássico. Como será o amanhã? o que irá nos acontecer? (raras vezes os parceiros, filhos e filhas têm a placidez de garantir que o destino será como Deus quiser). E o carro, e o computador, e o cursinho, e o concurso, e a reforma da cozinha, e as férias em Orlando? Pronto: no meio da barata-tontice, colisões de interesses à vista. O pai (ou a mãe) se desespera, a mãe (ou o pai) se retira, as crianças (ou adolescentes) cobram. Muito mais sábio se, por um instante, a família se ausenta do fluxo. Interrompe a programação normal e se reúne inteira à margem da estrada. Que os colegas de escola viajem, que as amigas perguntem pela festa, que os amigos peçam contas do prometido churrasco. Whatever. É árdua a ação de não agir, de entregar-se à paciência, de flertar com o tipo de impotência que não passa de serenidade. É duro aguardar semi-invisível pelo minuto certo. Mas o único procedimento cabível para não nos fazermos mutuamente um monte de sucata esmagada.

O casal brigou. Feio. Porque não houve espera, porque não houve retirada estratégica do automóvel, o tom subiu, o nível desceu, a raiva escapou; o cravo saiu ferido, e a rosa, despedaçada. Não seria menos letal se cada condução perdida ligasse o pisca, encostasse no próprio silêncio e retornasse quando a adrenalina já não nublasse opiniões?

A empresa entrou em crise. Feia. Adianta se colocar em modo salve-se-quem-puder, virar trator de colegas, detonar o chefe, repassar informação privilegiada para a concorrência? Uma vez dissipado o caos, fica mais aparente o estrago feito pela antiética do pânico. Partidários do faroeste caboclo serão os últimos retirados dos destroços.

O diagnóstico foi ruim, a babá se demitiu, a loja faliu, o patrão deu ultimato, a esposa deu ultimato, o nome não veio na lista de aprovação. Correr para onde? Não correr. Não agora. Entender que pavores não são exatamente as mais afiadas bússolas, que respiração ofegante não indicia clareza de visão. Arrancar-se do campo de batalha e só voltar após recuperadas as CNTP. Pelo bem alheio, também. Amigos são os primeiros que a gente engaveta.

Daí a verdade da recíproca. Convém manter distância prudente ante um pisca-alerta aceso e um parceiro dando tom de ocupado. E marcar retorno para duas horas depois do sinal verde.

domingo, 18 de setembro de 2011

Uma verdade incomoda muita gente

Ouvi um padre engraçado declarar que há um dia do ano, em especial, no qual as pessoas que nunca aparecem na igreja gostam muitíssimo de ir. Natal? Páscoa? “Não”, esclareceu ele, “Sexta-Feira da Paixão. Porque um Cristo morto não incomoda ninguém.”

Eu já tinha observado. Se as celebrações são festivas, o lugar pode encher de fiéis, mas transborda mesmo no único dia em que não há missa, o clima é triste, lastimoso, o mundo está em silêncio. Ah, que beleza para os chegados em morte. Gente que jamais pisou ali resolve acompanhar os ritos, impressionadíssima. A igreja bomba. Dois dias depois é Páscoa, maior comemoração do ano, exultante de luz e vida. Pronto, perdeu a graça: fogem todas as baratinhas que só dão as caras no escuro.

Trouxe a religião como exemplo. A mania se esparrama por todos os cantinhos da rotina. Cada qual fica fascinado por seu próprio ritual de limpeza, de purificação; sua própria catarse. Vai ver dramas vintage no cinema e se escangalha de chorar. Tranca-se em casa com músicas de fossa e se debulha. Aluga três horas do analista e despeja as neuras de três décadas. Passa dois meses num mosteiro tibetano sob voto de silêncio. Faz o que for que seja ou pareça lindamente transformador, com uma exceção: transformar-se. Como assim, passar à realidade? ao vamos-ver? ao day by day? Sem chance.

Pessoas não querem decisões, compromissos ou viradas. Não querem passagens, não querem Páscoas. Querem manter-se em estado de Sexta-Feira. Carpir, desabafar, expurgar, defumar, berrar os males, esgoelar as dores aos quatro ventos, pisá-las, repisá-las, deleitar-se em patinar nelas para justificar sua ausência de voo. Querem fazer todos os exames, mas não seguir o tratamento. Querem bater ponto na sessão de descarrego, mas não desistir da vingança. Querem beijar os pés do Senhor morto, mas não dar aquela mãozinha que o primo vem implorando há meses. Querem amar a humanidade diretamente do retiro espiritual no Himalaia, mas não dentro do metrô de São Paulo. Querem recitar mantras e vomitar palavrões. Querem frequentar psicólogo e espancar o filho. Querem pagar a promessa e enganar o sócio.

Somos tremendos admiradores, fãs, amantes, tietes da verdade, ai, que linda a verdade – desde que ela não nos incomode. Desde que não nos empurre, cobre, chateie, que não exija assinaturas, que não peça renúncias, que não implante normas, que não mostre consequências. Desde que nos olhe fofa da prateleira, cristal imaculado, roupa cara de sair que nunca encontrará sua ocasião.

(Sabemos, mas fingimos não saber que nossos esforços de peneira são tolices. Cada mentirinha que encorpa e vira elefante branco incomoda muito mais.)

sábado, 17 de setembro de 2011

Porta-volumes

Outra notícia – menos científica e mais bem-humorada – me chamou a atenção na semana. Durante quatro dias este mês, foi testada uma ideia curiosa numa loja da Ikea em Sidney, Austrália. A rede de móveis criou uma espécie de “creche” onde as mulheres podem estacionar seus acompanhantes masculinos enquanto demooooram nas compras. O espaço, batizado de Manland (“terra dos homens”), foi recheado de brinquedinhos: videogames, televisão, totó, máquinas de pinball. E hot dogs gratuitos! Após trinta minutos de recreio, um alarme toca no aparelhito que as moças recebem da loja quando deixam seus marmanjos na “garagem”. Hora de resgatá-los. Vem, diz tchau para seus amiguinhos, amanhã você volta.

O que achei? Achei fantástico. Pessoalmente nem tenho do que reclamar: o Fábio é um ser evoluído. Não se impacienta nem bufa com as minhas longas, meticulosas escolhas (eu é que, constrangida de fazê-lo esperar, evito compras acompanhada para poder chafurdar na indecisão mais à vontade). Mas me solidarizo plenamente com as senhor(it)as que arrastam azedumes pelo shopping, e me solidarizo plenamente com os rapazes que entram em estado de hibernação nos sofás das butiques. Ninguém merece. O que leva mesmo um casal a acreditar que horas de flagelação a dois são mais construtivas que uns momentos de saudável eu-sozinho?

Defendo, inclusive, que as possibilidades se ampliem. Um espaço feminino em estádios de futebol, digamos. Tudo bem, é bacana ter essa experiência antropológica vez por outra; se a rapariga não for fanática, porém, e se o jogo estiver num zero a zero tartaruguento contra o XV de Goianditubiara, por que não dar uma folga para a coitada aproveitar meia horinha do segundo tempo adiantando a manicure, fazendo massagem, yoga, hidratação, ergométrica? Outra: numa festa de quinze anos regada a funks com dor de dente, cantilenas Miley-Jonas-Bieber e trilha Rebelde, por que não uma salinha-oásis (com DJ particular) para papais e mamães dançarem o que interessa? Estacionar apenas crianças onde elas não nos perturbem – e não as perturbemos – é reflexo de um mundo injusto.

Entenda-se: não sou porta-voz da segregação. Extremamente ao contrário. Longe de mim pregar que marido e mulher, pais e filhos, primeira e terceira idades morem cada qual em seu quadrado, cada qual na jaulinha particular do zoológico, encontrando-se eventualmente na mesa do almoço. Acredito como ninguém em misturas, uniões, aprendizagens mútuas e novas experiências. Mas também acredito como ninguém na negatividade do grude, na opressão dos eventos forçados, no terror dos programas obrigatórios em que ressentimentos – longamente confinados no quartinho – acabam explodindo onde fazem maior número de vítimas. Impossível massacrar individualidades sem que virem bombas atômicas. Melhor desarmá-las por antecipação, dando-lhes seu próprio sossego e respiradouro.

Melhor é cultivar liberdades antes que o parceiro chegue à metáfora: até prisioneiros têm direito a seu banhozinho de sol.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Quando o segundo sol chegar

Ouviram ontem? o povo da Nasa descobriu um planetinha que gira em torno de dois sóis. Dooooois sóis. E cadê que ajuda? O pobre planeta é um deserto gelado. Já todo ferradinho (a superfície é metade rocha, metade gás), foi logo arrumar uma dupla que não comparece. As estrelas são duas, mas são frias – ao menos mais frias que o nosso Sol velho de guerra. E menores. No cruel mundo dos astros (eu, minúscula, estava lascada), importa sim o tamanho, diretamente ligado à luz que proporciona.

Fora o detalhe do tamanho, o resto é igualzinho à nossa física individual e terráquea. Metaforizemos, já que a natureza está aí para isso. Um sol competente é superior a dois furrecas? Qualidade é melhor que quantidade? Exato, exatíssimo. Mas minhas considerações diante da notícia não foram por aí. Fiquei matutando: seja qual seja a dimensão, rodear um segundo sol não é negócio. Decididamente não realinha a órbita de nenhum planeta. Bem ao contrário: baratina o eixo de qualquer um. Já nos custa um tantão manter a coerência numa só estrada – vamos lá arranjar sarna com duas?

Dois amores, por exemplo. Ou o que as pessoas chamam preguiçosamente de amores. Simultâneos. Como dar certo? Não estamos ganhando duas opções, estamos abrindo mão de uma resposta. Qualquer atual ou ex-estudante conhece o esquema: assinalar mais de um item é o mesmo que anular o correto, ainda que esteja entre eles. Fica-se vagando de um infinito particular a outro, como que saltitando entre Portugal e China, entre Havaí e Venezuela. Um é sambista, o outro odeia música. Um só quer saber de cinema, o outro não sai do estádio. Um contrata telegrama animado e te mata de vergonha, mas o outro só faz declaração em dia santo de ano bissexto. Qual deles? Juntos, nenhum. Amor já é, quando simples, a complicação de dois universos e duas culturas – imagina de três. Coração não tem equipamento de ONU: nem espaço, nem cadeira, nem diplomata. Só dois assentos e duas bandeiras estão no orçamento. E um tradutor – bilíngue. O amador pode (deve) não ser ciumento, o amor é; envolve um tal calhamaço de detalhes, uma biblioteca tão vasta de preferências e cheiros, uma tamanha enciclopédia de datas e presentes e aniversários e sinais de nascença e roupas, que convenhamos: não rola segundo sol. Alinhada ou destrambelhada, é órbita que só dá para dois. No terceiro é Armageddon.

Assim no trabalho. A gente, claro, se equilibra pisando cá e lá – escreve e dá aula, revisa e compõe, vende e fotografa, projeta e joga, calcula e pinta. A gente precisa ou curte se subdividir em profissionais multiplicados. Maravilha. Não há como dizer que não dá certo em termos gerais; pessoalmente, no entanto, posso testemunhar que algum pedacinho acaba doendo, atrofiando um ou dez centímetros, ressentido do déficit de atenção. A não ser (ideia em estudos) que subamos um puxadinho ao lado das parcas 24 horitas disponíveis.

Estamos livres e aptos, sim, para amar milhões de interesses, para cultivar trilhões de carreiras, para acolher quaquilhões de pessoas (de preferência, todas). Só não estamos programados para priorizá-los todos. Somos terráqueos demais para nos entregar com a mesma integridade a dois senhores, únicos demais para dançarmos em dois eixos. Somos muito – mas somos pouco demais para que o muito se fragmente sem se tornar muito pouco. Um “muito pouco” que resulta injusto para o que se ama muito.

Quanto ao suposto segundo sol, fiquemos em alerta. Astro-rei é que não há de ser. Provavelmente os astrônomos diriam se tratar de um outro cometa.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Modo de primavera

Oficialmente continuamos no inverno (pelo menos são as informações do calendário, este esquizofrênico que renega a verdade: estações do Rio não se renovam a cada três meses – trocam a pele de 24 em 24 horas. Mas isto, vá saber, pode render conversa para um próximo post). Continuamos no inverno até os vinte-e-qualquer-coisa de setembro. Eu não. Eu – que continuo no inverno, nasci no outono e adoro o verão – vivo em modo de primavera.

Porque as pessoas escolhem seus modos. Há os hibernais, naturalmente pendentes para a austeridade, que em nada se amofinam num cotidiano preto-branco-cinza-azul-marinho. Têm alma de amish, deleitam-se com o básico, curtem contenção e minimalismo, embora não sejam necessariamente ranzinzas: apenas não se transbordam nem veem gozo no desperdício. Há os outonais, que transpiram blues; não desgostam de um derramamento, mas em baixo volume. Nasceram de natureza filósofa, melancólica, europeia, com espírito de árvore e biblioteca, de vinho e chocolate meio-amargo. Há os estivais, histericamente felizes, diurnos, cítricos, solares. Expandem-se fáceis, entregam-se abertos, acampam, pulam carnaval, pulam micareta, riem de besteirol, animam grupos e topam programas de índio. Quando não os propõem.

Há os primaveris. Andam em perpétuo estado de nascimento. Mesmo se machos, são femininos, telúricos e caminham nas entrelinhas. Gostam de rosa, em todos os sentidos. Apaixonam-se por amenidades que reúnam os extremos. Moram nos nasceres e nos acabares de dia, por preferirem o céu mesclado de coral e o ar cheirando a sereno. Gostam de sereno, em todos os sentidos. Não compreendem a existência sem supérfluos: flor, cor, anel, renda, vaso, quadro, cinema, açúcar, lencinhos úmidos. Querem brisa, não querem vento, porque levanta a saia (como os primaveris usam saia!). Curtem palavras antigas, especialmente proparoxítonas. Tecidos moles. Trilhas sonoras. Caixas decoradas. Danças de salão. Licores. Cachoeiras. Cupcakes. Borboletas. Almofadas. Fadas. Números, só de balé. Papéis de carta. Papéis de parede. Papéis de presente. Gostam, aliás, de presente – em todos os sentidos.

Primaveris assistem a programas de casamento, cantarolam na rua, evitam multidões, guardam ao menos um bolero (ou xale) colorido no armário. Têm simpatia por verde-água e não saem sem perfume. Têm antipatia por eletrônica, colecionam temperos, veneram Martha (Medeiros) e Jane (Austen), habitam sobre sandálias ou sapatilhas.

Primaveris também sabem que isso tudo é uma grande bobagem e levam com bom humor (inglês) quaisquer rotulações absurdas. Se além de primaveris forem cariocas, estão convictos de que o bacanamente gostoso é misturar as estações.

(Em quase todos os sentidos.)

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Nós

Engraçado quando escuto – e como escuto! – um homem para o outro na rua: “Pode chorar desde já, que nós vamos ultrapassar vocês amanhã”, “Logo mais a gente vira líder, não tem jeito”, “Desta vez é nossa e ninguém tasca!”. Nós? a empresa da família? a galera do clube? os vizinhos do prédio? o grupo da biriba? a equipe de vendas? o pessoal do 5º. andar? Não, óbvio ululante que não. “Nós”, está claríssimo, é o Vasco, o Botafogo, o Fluminense, o Internacional, o Santos, o Grêmio, o Corinthians. Homem nem de nome precisa. Para o porteiro, para o camarada do elevador, para o povo da rua, ele é o flamenguista, o pó-de-arroz, o são-paulino. Quando a coisa tá feia na tabela, o sofredor.

Eu disse “engraçado”, mas não é verdade que ache diversão alguma nessa curiosa irmandade. Afora o que há de farra legítima e implicanciazinha saudável (vá lá, concordo), me bate estranho e me dói esquisito ouvir que um sujeito não se distingue e não é distinto de seu time. Nada contra futebol. Tudo contra o fato de o cidadão se bater como um cruzado em nome de erros, salários, acertos e joelhadas pelos quais não responde, e que, na prática, beneficiam ou prejudicam apenas um grupeco de duas ou três dezenas.

Não consigo deixar de ver relação de vassalos e suseranos. Dos senhores que efetivamente montam na grana e dos que guerreiam por eles sem propósito ou vantagem definidos – (um ruim) just because. Pior é a disseminação absurda da culpa. Se o goleiro Bruno cisma de esquartejar uma ex, subitamente (gritam ou pensam as demais irmandades) foram todos os flamenguistas que a esquartejaram. Se o velho Eurico meteu a mão em cumbuca, foram todos os vascaínos que meteram. Se o Fulanílson do Porangatuba decidiu comemorar o gol provocando a torcida adversária, foram todos os porangatubenses que decidiram. É a gêmea má da solidariedade, a criadora de estereótipos, a detonadora de preconceitos, a fomentadora de generalizações. Cretinas, inevitavelmente.

Fico ruminando impossible dreams. Extravagâncias. A criatura trocar o corporativismo ferrenhamente inútil dos gramados por um “nós” – observe a sandice – que seja motor de transformações reais. Ou paciente de tragédias reais. Nós, os funcionários que acampamos na porta da Câmara para supervisionar votação. Nós, os pedagogos que quebramos a cabeça todas as tardes pelo projeto cultural. Nós, os voluntários que saímos dos (ou rumo aos) cafundós do Judas para dar assistência de saúde. Nós, os professores. Nós, os eleitores. Nós, os fluminenses (mesmo não tricolores). Nós, os cariocas. Nós, os cidadãos – os teimosos, os responsáveis, os politizados, os conscientes, os ecológicos, os esperançosos, os corretos, os honestos, os carnes de pescoço, os gladiadores, os guerreiros. Nós, brasileiros. Um timaço. Que pode perder ou não para a Argentina dentro das quatro linhas, tanto faz.

Contanto que os 191.999.989 jogadores restantes estejam mais preocupados em desatar outros nós.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Perder a ideia

Outro casal do curso de noivos trouxe uma expressão interessantíssima: “perder a ideia”. Não, não se trata de ter um insight distraído e deixá-lo escapulir pelo basculante. Ou de ser o artista que sua frio atrás da inspiração fujona. É coisa voluntária, calculada e difícil. Quem perde a ideia não está caçando nenhuma convicção novinha, muito ao contrário: joga fora certezas velhas, emboloradas; ou as que nem tão velhas são, mas enroscam na gente feito cipó de desenho animado, imobilizando passos e tapando o ouvido mais que cera. Aquelas decisões que, por preguiça, chamamos eternas – as que nos fincam bandeirinha em momentos de baixa guarda; o joio que não arrancamos de nascença e, miserável!, se apossa do suposto terreno de plantação.

Sossegue quem pensa que perder a ideia é dar descarga em si mesmo e, zeradinho, ficar à espera da colonização alheia. Não é. Aliás, é justamente tacar na lixeira a mania de colonização. Uma vez dentro de um casal, ninguém é espanhol e ninguém é asteca, ninguém é francês e ninguém é marroquino. Não há dominante ou dominado, a não ser que se esteja numa brincadeirinha sadomasô. Há dois cálices mutuamente se entornando, num movimento não de igualar os drinques, mas de produzir, em cada um, coquetel melhor do que antes da partilha. Parceria não é posse, não é compra; é empréstimo. Deixa em cada prato o ingrediente principal, mas é tempero recíproco.

Perde a ideia quem sabe dar stop (ao menos pause) na tagarelice interna para descobrir o fenômeno transcendental chamado diálogo. Quem está apto a não se proclamar Cleópatra ou Napoleão. Quem tem a epifania de ver o outro – terra estrangeira, cultura díspar – como país em que se entra com o devido passaporte para passear, não para dar golpe de Estado. Quem sabe ser inquilino e anfitrião sem fazer-se proprietário ou carcereiro. Perde a ideia quem se despe da farda e põe roupa de banho para mergulhar no alheio, quem vai para a relação com o coração livre de sacolas, livre de bolsos, nu de carimbos e documentos. Perde a ideia quem pede o divórcio parcial de si em troca do matrimônio a dois. Quem abandona as malas no hotel e viaja no amado com bolsinha a tiracolo. Quem não acha que o melhor de si próprio tem o intocável e o dogmático de uma Mona Lisa.

Por si só, perder a ideia não cura e não resolve, como não resolve para sempre um único dia de faxina. Não há, porém, território arado e limpo que não seja a primeira das ferramentas de construção.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Nada mais que a verdade

Ontem passamos o dia fazendo curso de noivos, uma das etapinhas de preparação para o casamento. Várias palestras. Vez por outra, reuníamo-nos em círculos menores para comentar o que havia sido dito, e, ao final, o casal relator de cada círculo expunha para todos os participantes as conclusões a que seu grupo tinha chegado.

Um dos temas apresentados nas palestras foi a precisão de dizer a verdade ao outro. Sempre. O assunto, claro, deu polêmica. Então se meu marido – questionou uma das noivas de meu círculo – prepara um estrupício de um jantar querendo fazer surpresa, eu devo cortar a onda revelando que está intragável? Outra completou: se ele sofre excessivamente por mim quando relato os problemas com minha mãe, será saudável continuar desabafando?

Como era de se esperar entre pessoas adultas, o grupo entendeu que a questão não reside tanto em trazer a verdade, e sim na maneira de trazê-la. Aparar detalhes que só serviriam para arranhar sadicamente, atenuar, escolher a luz, trocar o cenário, embrulhar em papel de seda, colocar cortina. Não há decreto determinando que verdade tem de ser lanterna na cara. E se for um abajurzinho aconchegante no canto? O que definitivamente não pode: usar a honestidade crua como disfarce de vingança. Porque tem gente assim (gente que, potencialmente, atende pelo nome de todos nós) – os serial killers verbais. Os sincericidas. Os que se deleitam em encostar o dedo indicador no nariz alheio e gritar verdades, todas verdadeiríssimas. Os que levam sua grosseria para passear com a roupa bonitinha da lucidez, da objetividade. Os que se orgulham da crueldade destilada sob pretexto de franqueza. Os que entendem a ausência de mentira como liberdade condicional para todos os demais defeitos, um salvo-conduto para a deselegância. Os que não têm piedade, tato, doçura, serenidade, medida nem semancol, mas são sinceros – ah, são sinceros. Por que não seriam? É tão divertido se considerarem os agentes puríssimos de Sua Majestade, abarrotados de licença para matar.

A noiva relatora de outro grupo foi quem expôs a questão do modo mais brilhante, numa metáfora que ela mesma já ouvira de alguém (e que tratei de guardar em meu entupido armariozinho de metáforas). Disse que a verdade, de preciosíssima, pode ser comparada a um diamante – reluz límpida, transparente e forte. Mas o fato de um diamante ser o tesouro que é não o exime de machucar uma criatura, se for nela atirado. Calcula levar pela cara a mais dura, inquebrantável das pedras? Nessas horas não se quer saber de preço, lapidação ou grau de pureza: fica nadinha do presente, fica o galo na testa, o nariz fraturado, o corte sangrante no supercílio.

Uma lástima, a lei não deter sincericidas por porte ilegal de arma. Nenhum usuário da honestidade hardcore deveria se dirigir por aí sem carteira de habilitação.

domingo, 11 de setembro de 2011

Os que viveram

Dez anos atrás, lá estávamos: embasbacados diante dos televisores da faculdade. Atônitos. Recebendo e dando telefonemas perplexos. E nós nem éramos americanos (infelizmente, continuamos não sendo), nem tínhamos lá familiares ou amigos; aquilo nem nos afetava em nossas corriqueirices. Mas, de algum jeito, afetou. De repente não éramos mais os mesmos e vivíamos como nossos pais. Um pedação de inocência, um dos últimos, foi embora. Aquela adorável ingenuidade que separava os absurdos fictícios das tragédias factíveis. Aos 21 anos, podíamos compreender (compreender, não aceitar) assaltos, sequestros e tudo mais que coubesse numa edição do Jornal Nacional. Aquilo não cabia – ficava restrito às telonas dos Cinemarks nascentes. Infâncias têm o hábito de acabar quando se percebe que o que acontece no cinema não pode ocorrer na vida real. A infância do planeta acabou quando percebemos que podia.

E nós nem éramos americanos. Imagina quem era.

(Não, não os que morreram.

Os que viveram.)

Se nós prosseguimos com um hemisfério a menos no coração – nós que não engolimos a fumaça empesteada, nós que não tivemos o pulmão carbonizado, nós que não recebemos ligação do voo 93, nós que não esmurramos a porta do elevador da segunda torre, nós que não nos despedimos do pai-irmão-filho-marido bombeiro, nós que não nos ajoelhamos quando o bombeiro trouxe alguém no ombro, nós que não esquecemos como era o ar sem as cinzas, nós que não mantivemos o último recado de voz na secretária –, tento calcular quantos por cento de coração devem ter sobrado para quem engoliu, recebeu, esmurrou, despediu-se, ajoelhou-se, manteve-se existente após ter morado dentro do 11 de setembro.

Se nós, em nossos quilômetros de segurança, mal pudemos nos acostumar com a Terra recém-inaugurada, tento estimar o que foram o 12, o 13, o 14 de setembro para quem teve a rotina demolida e cismou de permanecer respirando. Quem tomou o café amante e almoçou viúvo, quem dormiu ninado e levantou órfão. Quem precisou entender mais depressa. Quem precisou decidir mais depressa. Quem precisou resolver em segundos se fazia um esforço de horas para continuar residindo no planeta, apesar de. Quem foi tragado em tempo real pelo surrealismo aberto no meio do dia. Quem foi tragado para sempre e não teve tempo real de resolução. Era urgente viver, just because. Ainda que viver não parecesse mais um hábito.

Minha homenagem aos que morreram. Minha homenagem mais doída aos que morreram e viveram para contar.

sábado, 10 de setembro de 2011

Live and let live

Segundo a ONU, hoje é o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Nome insólito. Até onde sei, suicídio não se transmite por contato sexual, sangue, saliva, alface contaminada ou carne cruinha. Não tem vírus, não tem vibrião. Não tem um mosquito desgraçado que, verão após verão, mostra a língua pra gente enquanto tentamos acabar com todas as suas gerações, per secula seculorum. Tem uma tristeza desoladora, isso sim. Pode-se prevenir uma alminha saudável de se emporcalhar com esse desespero tão fundo, essa dor tão maciça, essa perda tão completa de alternativas que leva ao suicídio?

Pode-se – pelo menos em parte. Em tese. Um pouco.

Não temos o poder de evitar que alguém mergulhe em depressão após ter perdido a casa, o filho, o marido. Correto. Mas ainda somos capazes de colocar compressas, de estar presentes, de permanecer disponíveis, tão presentes e disponíveis que talvez alguma partezinha daquele interior enlutado recomece a se comover com a vida. Talvez reabra (sem saber) um arquivo supostamente deletado, reponha para rodar um programa que trabalhe em silêncio. É possível que, um belo dia, surja a caixa de diálogo questionando: continuar a viver? sim? não? – e o coração enlutado clique serenamente na primeira opção, pensando sem pensar que ainda há pretextos para uma segunda chance. Podemos ser os candidatos, os exemplos, a boca de urna, os distribuidores de santinho, os fazedores de campanha da segunda chance, ainda que não seguremos na mão o controle de mais nada.

Já ajuda se não formos os antipropagadores da segunda chance. Se não formos nós mesmos os esmagadores de alma. Se não convencermos uma criança, desde o primeiro soco ou desde o primeiro sim, que o mundo é um poço de frustrações ou uma redoma isenta delas. Se não persuadirmos os espíritos mais quebráveis a acreditarem em suas paranoias. Se não formos o Saara para quem precisa horrivelmente do locus amoenus. Se não formos risada de bruxa num universo já repleto de gritos. Se não bancarmos o Freddy Krueger para quem já está miserável de sonhos.

OK, suicídio é ato exasperado que, vez por outra, cresce em surdina até consumir-se e consumar-se. Acontece (embora costume haver migalhas de pão marcando o caminho, sinais que, distraidíssimos, não pescamos). Mas definitivamente não precisamos ser o comburente desse incêndio. Não precisamos ser um dos chutes que demolirão o andaime. Se não der ou não couber ser a lanterna que corre atrás e fica em cima, bom auxílio já presta quem fica firme, fixo, em constância reconfortante de farol. Sendo ao menos a luzinha no fim do luto.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Procura-se eu

Começou com a banana. Comi uma vezinha só, lá pros quatro ou cinco anos, e calhou de me pegar num bad stomach day; passei mal e nunca mais botei a fruta na boca. Afinal, pela conclusão lógica das crianças (e da família das crianças), eu passaria mal com ela por toda a eternidade. Até que, já em adolescência avançada, resolvi (do nada) dar nova chance à pobre. Por que não? Comi a primeira banana, a segunda, a terceira. Hoje sou absolutamente viciada em banana. Não passo um dia, 12 horas, 120 minutos sem banana. Se forças externas não me impedirem, sou capaz de devorar uma dúzia inteira de banana. Tenho crise de abstinência sem banana. Eu – a que poderia sofrer colapso instantâneo se chegasse perto da cuja.

Os sintomas prosseguiram (efeito colateral da banana?). Fígado, por exemplo. Eu odiaaaava fígado. Quando pequena – digo, mais pequena –, estremecia de desgosto caso precisasse engoli-lo no almoço. Pois agora lambo os beiços. Se tem fígado na merenda da escola, pra mim é feriado (os demais professores olham de revés tanta animação com aquela ambrosia insólita). Outra gororoba que virou manjar dos deuses: berinjela. Que nojo tinha às sementes pululantes! De repente, numa epifania estomacal, passei a amar berinjela. Com maxixe, camarão, azeitona, palmito, quiabo e jiló, ainda aguardo a iluminação.

Oncinha. O que aconteceu àquela cidadã que tinha ânsia de vômito com oncinha? Não que eu goste, fique entendido. Mas seja por cansaço, conformismo ou rendição visual aos ataques das vitrines, inaugurei um olhar menos enojado. Depois, mais benevolente. Em seguida, claramente tolerante. Até chegar ao cúmulo: comprei uma peça de oncinha! Tudo bem que é camisola rosinha, delicada, e que os estampados miúdos mais parecem flores do que pele de bicho. Mas que é oncinha, é. Apenas minha capitulação oncesca permanece, por enquanto, seguramente enjaulada entre as paredes. Se eu começar a socializar, juro que me peço um exame de DNA para conferir se continuo habitando o corpo certo.

Eu mergulhava feliz nos pratos quentes do bufê, agora encho a cara de saladas (e salivo). Não suportava jornal, agora acompanho com interesse a Globonews. Torcia o nariz para autores que fugissem ao século XIX, agora sou fissurada em Martha Medeiros. Separava cada porção de comida no prato, agora junto tudo numa comunidade festiva (tenho esperança de que o inconsciente tome isso como metáfora). O melhor é que, em geral, não deixei de gostar do que gostava, não propriamente substituí: acrescentei. Dei-me anistias, abri-me caminhos. Coloquei mais nomes na lista VIP. Minha festa está muito mais feliz de cheia. Só acho difícil vir um dia a convidar sopa, ervilha, catupiri, paraquedas, rapel, futebol, pagode, heavy metal, mandarim, alemão e Calypso.

Mas a gente nunca se sabe.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O sol da liberdade, em raios fúlgidos

Não foi ontem, não. É hoje: dia do grito do Ipiranga mais essencial para um cidadão que se preze. Ontem foi fato isolado, mera formalidade, necessidade política, passagem de um país de pai para filho, encrenca de família. Tudo muito bom, tudo muito bonito, mas não foi nosso o brado retumbante. O seu, o meu, o de todos é hoje – um 8 de setembro que tentamos ardorosamente esticar, como massa de pizza, para as outras 364 datas: Dia Internacional da Alfabetização.

O preciso e precioso momento em que se escreve o próprio nome barra qualquer cavalo branco empinado, qualquer espada erguida. Ali começa a ficar independente o país da gente mesmo. Co-me-ça. Alfabetização que se interrompe na assinatura é como um Dom Pedro que deu o grito, desempinou o cavalo, foi para casa dormir e não se fala mais nisso, era apenas um exercício matinal para aliviar a tensão. Alfabetização só termina junto com a pessoa. Inicia a independência e só acaba na morte. Nenhum de nós é alfabetizado: somos todos alfabetizandos.

Ler e escrever o mundo é coisa eterna, ininterrupta (por sinal, que mundinho cada vez mais ininterrupto que a gente foi herdar!). Os mais velhos, por exemplo. Talvez sejam amicíssimos de Shakespeare, talvez leiam Sartre e Foucault até no original, talvez pontuem e acentuem maravilhosamente um texto em letra cursiva ou em Times New Roman. Mas saberão reconhecer o sorriso dentro de um :-), cutucarão sem medo as funções de um celular, programarão um DVD sem esforço, resenharão o último romance da Thalita Rebouças com um risinho de compreensão nos lábios? Tenho dúvidas.

E os novinhos? Talvez saquem tuuuuuudo de iPads, iPods e outros bichos, talvez instalem qualquer programa no notebook enquanto baixam 37 músicas e tricotam no MSN. Talvez destrinchem a linguagem dos emoticons como jovens Indiana Jones lendo hieróglifos. Mas distinguirão o som e o sentido de “sábia”, “sabia” e “sabiá”? Pegarão um conto do Machado e decodificarão sem tradução simultânea do professor? Manjarão Camões sem engasgar na métrica? Rá. Duvido.

Consideramo-nos leitores, escreventes e assinantes fluentes, e ainda assim haverá sempre uns dez ou vinte quesitos – no mínimo – em que somos analfabetos. Inclusive aqueles nos quais temos a petulância de nos achar craques. Sim, tomamos Sartre no original e, chiquérrimos, traduzimos cada termo. E o conteúdo dessa versão? nos atinge como flecha? Lemos com facilidade o torpedo que nos chega no meio da reunião, sem que as teclas nos embananem. Somos capazes, porém, de interpretar o recado de acordo com o calendário, os hormônios, a fase do mês, o limite vocabular daquele(a) que nos enviou? Vemos um gráfico de produtividade da empresa e nos apavoramos com os maus números. Deixamos que a posição dos maus números nos aconselhe boas estratégias?

Entendemos as esquinas das ironias e metáforas? Viramos cúmplices do sarcasmo ocasional sem atacá-lo com abobrinhas? Percebemos se o texto escrito combina com o falado? Se o gesto combina com a voz? Se a voz combina com os olhos? Pescamos deboches? Aceitamos críticas? Criticamos com solidez? Ouvimos com fluidez? Lemos e escrevemos com pupilas, boca, orelha, dedos, garganta?

Se marcamos “sim” para alguns itens e “às vezes” para outros, no surprise: estamos na média. Como a maioria, alfabetizandos que ainda brincam de encontrar a senha da liberdade total, seres em evolução que seguem fazendo o possível para (mentalmente) colocar o mundo em ordem. E progresso.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Verdes e amarelos

Felizmente nunca recebi descarga de raios gama nem carrego herança genética de monstro Marvel. Não fosse assim, mil vezes já tinha ficado verde, rasgado a camisa e botado para quebrar de ver as canalhices mais assassinas serem recompensadas com imunidade parlamentar, liberdade condicional, indulto de Natal-Páscoa-aniversário-Dia-das-Mães-Dia-do-Telefonista-Dia-do-Ursinho-de-Pelúcia. Mil e mais mil vezes já tinha ficado verde, rasgado o vestido e tocado o terror por contemplar incêndios criminosos que destroem patrimônios naturais, turistas que são recebidos com bueirada na cabeça, alunos que se revoltam quando você vai dar aula, celulares (melhores que o meu, ô!) que passam trote da cadeia. Mil e mais mil e mais mil vezes já tinha ficado verde-esmeralda-amazônico perante bondes com seis vítimas, tiroteios com vítimas de seis anos. E bandidos que vencem, e bandidos que riem, e bandidos que enriquecem. E juízes eliminados, e honestos amordaçados, e denunciantes perseguidos, e leis desaplicadas, e regras desconhecidas, e direitos ignorados, e deveres invisíveis, e passeatas inaudíveis, e manifestações simbólicas, e intenções iníquas, e greves inócuas. Mil, mil, mil, mil vezes já tinha ficado verde por cada verdinho desmatado, derrubado, incinerado, subestimado. Cada vidinha jogada no esgoto. Cada esgoto jogado no rio. Cada rio jogado na seca. Cada seca jogada na outrora Terra das Palmeiras, Pindorama verdíssima da cor que – por felicidade? – ainda não consigo ter.

Não consigo ter e por isso não quebro, não rasgo, não xingo, não chuto. Porque tenho (temos) a coisa complicada chamada vida particular, não luto. Eu e nós. Não pomos a cabeça a prêmio delatando, não perdemos horas de expediente pesquisando, não podemos abrir mão do pagamento diário paralisando. Abominamos entrar em fria, adoramos panos quentinhos. Adoramos entrar em fila, abominamos planos políticos. Reclamamos em casa, no prédio, no ônibus, na rua, na chuva, na fazenda – não na urna. Não estudamos voto: anulamos. Não analisamos candidato: arriscamos. Não infernizamos eleitos: esquecemos. Não mandamos um único mail por dia para questionar promessas quebradas de campanha. Não visitamos um único site para averiguar patrimônios declarados. Não organizamos um único panelaço. Não participamos de um único protesto (não-simbólico). Não enchemos o saco de ninguém que interesse, não nos interessamos por ninguém que resolva. Aliás, resolver não interessa. Importa resmungar no cafezinho, gritar no deserto do elevador, comentar falcatruas na portaria, dizer que-absurdo entre dentes, acusar fulanos entre amigos, repassar suspeitas entre aspas. Ser brasileiros entre parênteses.

Verdes não ficamos. Amarelões somos todos nós.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Greta Garbo já dizia

Num dia qualquer de faculdade, há mais ou menos dez anos, a turma já havia debandado da sala e eu lá continuei, arrumando ou lendo não sei o quê, com toda a calma. Um colega vinha passando por ali e brincou, “está aí tão solitária”. “Sou um espírito solitário”, brinquei de volta com um sorriso – ansiosa para que o sorriso desse a entender que não, não tinha sido abandonada e não era necessário me esperar. Para reforçar, expliquei que estava acabando de arrumar ou ler não sei o quê, com toda a calma. Felizmente minha linguagem corporal foi clara, o colega se despediu com novo sorriso, eu me despedi com um terceiro e continuei a atividade desapressada. Fatozinho tão fortuito – mas ainda relembro a cena como um ícone.

Ontem fui à Bienal do Livro com um grupo de escola. Um grupo adulto, entenda-se. Delícia. Não havia quem precisasse de supervisão e cuidados. No ônibus de ida e volta, fui mergulhada em livro da Martha (sim, já cheguei à Bienal com livro). E no Riocentro, uma vez ultrapassada a bilheteria, o grupo se dispersou. Alunos (adultos) circulando livres, professores (adultíssimos) passeando juntos. Desgarrei-me das duas vertentes e fiquei inebriada de felicidade por brincar na Bienal com minha própria bússola. Liberdade que dava até boa vertigem. Construí meu percurso a esmo, minhas pausas, minhas compras, minhas fotos, meus lanches, minhas idas ao banheiro com alegria de pluma. Na hora combinada, todos juntos de novo. Comentei, comentamos felizes sobre o êxito do passeio – aquela socialzinha animada e básica. Veio o ônibus, voltei à leitura enquanto as luzes estavam acesas. Depois de apagadas, ficamos conversando eu e meu espírito solitário. Felizes.

Não me entendam mal: não sou antipática, não tenho problemas com grupos, não brigo com colegas, não sou antissocial e só dou fora em aluno quando é urgente e inadiável. Definitivamente não sou misantropa. Apenas me dou bem comigo mesma a ponto de curtir os bons sabores da solidão sem traço de incômodo ou desespero. Solidão inclusive de outras vozes. Não tenho um mísero mp3. O silêncio é meu chapa e mui bem-vindamente me acompanha, gentil o bastante para não interromper diálogos entre o eu e o mim. O silêncio é um autocavalheirismo.

Adoro comentar filmices partilhadas, mas também me escarrapachar sozinha no cinema em clima de encontro clandestino. Sou fãzaça de uma reunião cheia de besteróis entre amigos, mas também de considerações solitárias sobre a paleta de um pôr de sol. Amei passear em turma na Disney, também amo seguir meus itinerários particulares. Acho o máximo juntar festivamente a família, também me amarro em almoçar comigo. Sem neuras. Sem se estar falando aqui em dependência ou independência. Dependentes somos todos (é bom a pátria amada se lembrar disso amanhã). Estou apenas confortável em minha pele o suficiente para não entrar em parafuso se fico dez minutos autoconfinada, nesse BBB individual em que tantos piram. Não aguentam se ver forçados a encarar pensamentos, cumprimentar vontades, dar de cara com aflições sem poder atravessar a rua. Não suportam o nhenhenhém das próprias vozes – de dentro. Não toleram os próprios ocos, os próprios ecos. Em consequência, penduram-se nas solidões alheias o máximo possível, exasperando-se quando lhes falta a cachaça de uma companhia. Bebem os outros para se esquecer.

Nenhum problema em fazer do amor almofada, desde que não vire chave de cadeado. Deste eu em que moramos não adianta pedir para sair.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Por um décimo

Ontem foi a final da “Dança dos Famosos” no Domingão do Faustão, para estraçalhar de vez o coração da gente. Nada contra Nelson Freitas, mas eu torcia desbragadamente para Miguel Roncato, o garoto mais fofo das galáxias – que, desde o primeiro ritmo, fez um trabalho excepcional de alegria, técnica e bochechas. Dança nenhuma parecia difícil; nem ele, por mais que se divertisse horrores, estava de brincadeira. Um CDFzinho adorável em cena. Um talento incontestabilíssimo para todos os tipos de bate-coxa. Mas eis que no samba, modalidade última, Miguelzinho não consegue vestir o paletó de malandro na hora certa, o troço fica pendurado por uma das mangas, ele dá um jeito, atira longe o obstáculo e prossegue, bochechas sempre sorridentes. A torcida de casa tem dois ou três enfartes. O júri, claro, tira os devidos pontos – e a apresentação de Nelson, sem grandes falhas, quase gabarita na avaliação da banca. Pronto, já era. Miguelzinho fez tudo certo o tempo todo e, por causa de um adereço infeliz, se estrepou.

Que nada: espectadores votaram em massa e o moleque cravou média nacional de 9,9. Acabou somando 75,8 pontos, contra 75,7 de Nelson Freitas. Venceu por um décimo. UM décimo! um DÉCIMO! Definitivamente, meu coração nunca teve idade para isso.

Se o final não fosse feliz para os partidários de Miguel, poderíamos argumentar: pelejamos duro, suamos sangue, não estávamos de brincadeira – para, na reta de chegada, vir um paletó e estragar a festa. Mas o paletó não estragou a festa, e o foco hoje se reserva o direito de ser feliz. Quase assassinado pelo estresse, porém feliz. O foco é o um-décimo salvador. O fiapinho que fez a boa diferença. O por-um-triz do bem.

Sabe na entrevista de emprego, quando o contratante te olhava como olha para um guarda-chuva desbotado – até que descobriu: seu professor-ídolo na faculdade era o mesmo que o dele? Um décimo.

Sabe no primeiro encontro, quando o pretê levava um papinho qualquer nota e não era o que podemos chamar de atraente – até que você informou que ia ao banheiro e ele pulou do lugar para lhe puxar a cadeira? Um décimo.

Sabe na escola, quando você captou a benevolência do professor porque faltou no dia e, mesmo assim, entregou a pesquisa pontualmente? Sabe no site da Receita Federal, que só não manchou seu CPF porque desengasgou às 23h51 da data-limite para a declaração? Sabe o gerente que insistiu um minuto a mais com o chefe e abaixou os juros? Sabe o caixa que demorou um minuto a menos e tornou possível o ônibus das 8h34? Sabe os dez centavos que apareceram na rua e inteiraram a passagem? Sabe o cafezinho que fidelizou o cliente? Sabe a piscada que você deu na fila? Sabe o empréstimo, o favorzinho, o segundinho, o biscoitinho, o sorriso, o presente, o elogio, o brinde, o cutucão que por um tico-assim não aconteceram, não surgiram, não salvaram a tarde, não valeram a noite?

Décimos providenciais, pontinhas de nariz que nos entregam a vitória no páreo não mais que de repente. Desde que o coração tenha lupa para acompanhar o cultivo desses pequenos milagres. Assim não sendo, qualquer paletó nos derruba.

domingo, 4 de setembro de 2011

De não tirar o chapéu

Finalmente assisti à peça Um violinista no telhado, que já entra em semana de encerramento aqui no Rio. Fan-tás-ti-ca. Fui como tábula rasa, sem conhecer uma cançãozinha sequer – o que se provou muito divertido, por não haver comparações ou expectativas maculando a impressão. Meu único motor foi o bem-querer que sempre tive por músicas e tradições judaicas. Deliciei-me: do primeiro ao último “mazel tov!”, um espetáculo de dança, harmonia, bom humor e ternura ultratípicos do povo escolhido. Vocais irretocáveis, limpos, cenografia infalível. Fora do lugar, só um moleque tagarela e perguntão na fileira atrás da nossa. E aquele apertão no peito de partilhar, mesmo ficcionalmente, mais agruras de uma gente fadada ao êxodo.

Gratíssima surpresa? José Mayer. Barbudaço, mostra ótimo timing de comédia e excelente voz defendendo o protagonista Tevye. Figura. Metade do Violinista está nos ombros, diálogos, orações do patriarca boa-praça. E em suas metáforas – especialmente duas. Uma na abertura, quando o personagem explica o título enquanto um tocador de violino se exibe no alto da casa: a vida na aldeia de Anatevka é como aquele artista, uma busca de beleza e equilíbrio diante da fragilidade, da iminência de queda. A outra fala marcante se dá nos minutos finais; Tevye – que, no início, apontara o costume de o pessoal da aldeia ficar o tempo todo com a cabeça coberta – comenta o fato de seu povo viver sendo expulso: “Deve ser por isso que estamos sempre de chapéu”.

Como boa amante de metáforas, guardei as duas no bolso. Até por serem complementares, yin do yang da outra. Estarmos conscientes de nossa impermanência, e por isso mesmo nos dedicarmos ao belo; nos dedicarmos ao belo, mas preparados para o desapego, a partida súbita, a impermanência. Mergulharmos no amor demorado e no imediatismo da prontidão. No esmero e na rapidez. No compromisso e na liberdade. Atingirmos e estarmos prontos para deixar. Termos e sabermos perder. Chegarmos e conseguirmos partir.

Para vocês não sei; para mim, arriscar uma violinice no telhado e nunca esquecer o chapéu é danado de parecido com a vida. Um brinde a ela, às canções e às tagarelices, aos aplausos e aos tropeços, às nossas primeiras cenas e aos nossos finais de temporada. Mazel tov!

sábado, 3 de setembro de 2011

Golias e Davis

Quem não conhece a velha fábula? O ratinho encontrou o leão no bosque, quase foi esmagado, mas implorou pela vida e garantiu que ainda seria útil ao bichão. Este achou engraçadíssima a ousadia do pequeno, teve piedade, soltou-o. Mais adiante, caiu ele mesmo numa rede armada por caçadores. Foi a vez de o rato mostrar serviço: roeu as cordas e libertou seu amigão felino. O bichinho-de-nada e o rei do pedaço estavam quites.

Pois ontem se deu um episódio de deixar Esopos e La Fontaines no chinelo. Em Wakefield, Inglaterra, o adolescente Adam Greening foi salvo de um afogamento pelo amigo Sam Brear. Nada extraordinário, não fossem os números envolvidos: Adam, de 16 anos, tem 1,99 de altura e 152 quilos; Sam se resume a 1,54m e, provavelmente, não chega a pesar um terço do outro. O gigante nadava em um canal perto de casa, viu que não conseguia sustentar a cabeça fora d’água e pediu socorro ao baixinho. Depois de 20 minutos lutando para trazer o nariz do grandão à tona, Sam percebeu que a hipotermia deixava o companheiro inconsciente. Arrumou forças (emprestadas de algum anjo transeunte?) para colocá-lo em terra firme e mantê-lo falando até a chegada da equipe de resgate. Médicos do hospital passaram seis horas estabilizando a temperatura do jovem Greening, que estava, segundo a reportagem, “perigosamente baixa”.

Tenho mais o que fazer do que ficar filosofando sobre esses pequenos fatos suculentos, mas fico (o que tenho a fazer pode ser mais urgente, não mais essencial). Acaba que somos, todos nós, Adams sendo salvos por Sams, ou leões por ratinhos. Dependêssemos exclusivamente de nossa grandeza, garras e juba, estaríamos lascados. Circularíamos como granadas sem pino. Escaladores tomados de excessiva bravura e pouco respeito pela gravidade. Pais e mães dotados de maravilhosa confiança e pouca percepção para a mentira. Cientistas envenenados pela própria inteligência. Narcisos engasgados com a própria belezura. Um bando de gigantes temerários, afogáveis pela própria natureza.

Mas não: nossa timidez nos salva de falar sem preparo, nossa humildade nos impede de viver sem amigos, nosso medo instantâneo não nos deixa entrar no avião que caiu, nosso enjoo permanente não nos permite viajar no navio que afundou, nossa pressão alta nos desvia dos riscos, nosso perfeccionismo nos previne dos erros, nossa desconfiança nos afasta dos golpes. Se somos feios, chatos, medrosos, cabeças-duras, cricris, pode não ser frequentemente interessante, notavelmente divertido ou exatamente sedutor – mas alguma utilidade tem. São esses ratinhos e baixinhos de estimação que precisam tanto entrar em campo para nos resgatar de nós mesmos, para impedir que nos depositemos em – e desabemos de – prateleira tão alta.

Perigosamente alta.