quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Perfeitinhos demais

Foi em Lado a lado, há alguns capítulos. No núcleo teatral da novela, Isabel (Camila Pitanga), camareira da estrelona Diva Celeste (Maria Padilha), esperava a chefa sair do palco: robe em punho, braços abertos, seda pronta para envolver a atriz banhada no suor do pós-peça. Esperava com a satisfação calminha de quem cumpre o dever com capricho desafetado. Esperava sob o olhar ruminante de Neusinha (Maria Clara Gueiros), que – ela mesma ex-camareira da diva – cobria a ajudante com suspeita viscosa: “A mim você não engana, garota. Fica aí toda noite só fazendo seu trabalho... Nunca atrasa, nunca reclama... Qual é a sua, hein? Você não tem ambição?” (favor não acharem que me dei ao luxo de reescutar o diálogo; se não foi essa a forma, foi esse o teor). Isabel impávida, toda indiferença e doçura. Jurou, com elegantíssimo desprezo, que não, não tinha ambição sem ser a do trabalho benfeito. Neusinha inconformou-se no cúmulo da casmurrice: “Você, sabe? é perfeitinha demais. Odeio gente perfeitinha demais!...”.   

Não admira. É coletivo. Quase toda criatura (humana) odeia os seres (humanos) perfeitinhos demais. Nisso não deixa de haver, sejamos justos, alguma racionalidade experiente: melhor disfarce não existe que a imitação histérica das qualidades menos tidas e mais amadas – estão aí políticos e carminhas que não nos permitem exagerar na boa-fé. Uma parte gigante dos perfeitinhos demais é, sim, composta dos abutres da virtude: gente que abusa do realismo na fantasia de cordeiro, para com mais conforto, mais de perto, mais segura e longamente rapinar a carniça alheia. Não discuto. Mas vamos que – como ocorre sinceramente com Isabel – estejamos contemplando de fato os quase perfeitos, aquele povo correto por natureza, dedicado por gênio, honesto por índole, sereno por talento, alegre por vocação. Vamos que a colega de seção seja uma certinha autêntica, das que vazam ética, bom gosto e delicadeza pelos poros. Vamos que o vereador recém-eleito seja um impecável típico, dos que almoçam e jantam responsabilidade, têm hálito de menta e incapacidade crônica de dizer não ao despertador. Entendendo que assim seja: ainda nesse caso (ou especialmente nesse caso) o perfeitinho será zombado, receado e espinafrado como inimigo, cogitado como X-9, lido como bomba-relógio. A não ser, claro, que tenha se embrenhado em carreira na qual toleramos santidade – medicina, terapia, sacerdócio. A não ser que tenha se isolado no monte aonde só chegaremos levando-lhe nossas dores, vez em quando, sem precisarmos ser afrontados dia a dia por sua superioridade perniciosa.

Porque só invejamos a bondade que nos chama direto pro ringue. Não a dos Gandhis e Madres Teresas, que essa não nos vem humilhar no barzinho que frequentamos, nem nos ameaça na promoção que perdemos. Não nos ressentimos dos distantes – como quem não se vê autorizado a sonhar em trocar o Rio de Janeiro pela Atlântida. O que nos irrita são as perfeições possíveis. As eficiências que se esfregam em nossa cara, demolindo tão maldosamente os álibis de fraqueza que passamos tanto tempo tijolando. As incorrupções que ousam não aceitar propina, chantageando-nos sem voz, mas com a paranoia da comparação. As ternuras que não sustentamos, as pontualidades que não mantemos, as paciências que não conservamos, as belezas que não imitamos, as gentilezas que não fazemos, as persistências que não atingimos: eis, no horror da esquina em frente ou da mesa ao lado, nossas bruxas.

(Em falta de autocura, a gente de repente só dorme se – espelho, espelho meu – tudo num raio de 200 km for a mesma porcaria que eu.)

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Não precisa

Ainda anteontem escrevi sobre a necessidade de uma educação para a gentileza. Sobretudo (claro) a gentileza feijão-com-arroz, básica, questão de mínimo bom senso: ceder lugar aos idosos e passagem aos urgentes; não perturbar com ruídos indesejados; não amofinar com encostões indevidos; não expor o outro – inocente de escolha – à criança ranheta e mal-educada que você pariu ou que continua sendo. Esse é (deveria ser) o pacotão básico de civilidades, o original de fábrica. Mas vou além. Não é fato que vivemos em época de se ser assalariado não pelo default do emprego, mas pelo “além” que se faz? então. Para ser promovido de gente a gente master, é preciso buscar novas, não programadas excelências. É preciso catar e dissipar a carência alheia no germe, no berço, antes que veja a luz do dia.

É preciso fazer o que não precisa.

Não precisa oferecer troca de lugar no ônibus, no metrô, quando calha de a nossa presença separar os amores de um casal ou o papo das comadres. Mas custa? Sai você com fama de boazinha e evita, ademais, a sensação chatona de estarem de tititi e kiss-kiss por cima do seu ombro intruso. Não precisa chamar aluno por aluno à sua mesa para checar a média do bimestre – bastava a mais direta leitura de notas à frente da classe: você tanto, você tanto, você tanto, prossigamos a matéria. Mas há aquela solidária compreensão de alguns melindres; existem os que tudo resguardam numa insistente intimidade, os que se avexam até de um sete e meio, e a essas criaturas suscetíveis (entre as quais já vivi com mais convicção) não dói oferecer a gentileza do segredo. Não precisa comentar o post particularmente alumiado do blogueiro – mas não desaba a mão investir vinte segundos num feedback que vale o dia. Não precisa dar caixa de bombom, na Páscoa, a cada um dos porteiros do prédio; mas não se vai à falência por um punhado de cinco reais (que não pagam as intermináveis quebrações de galho). Não precisa levar café na cama – mas conta pontos gordos na escala de fofurices. Não precisa ir à casa da mãe perguntar se ela quer algo do Centro – mas cai bem, antes de encarar a doideira do Centro, receber aquele olhar de “meu guri”. Não precisa deixar uma bolsa térmica nos lençóis do filho, para já o receberem quentinhos no alto inverno. Não precisa pesquisar, pra colega de trabalho, em qual loja está mais barata a boneca que a filha dela cobiça. Não precisa postar música no Face que faça um link de coração com o amigo remoto. Não precisa mandar Sedex com livro de trechos devidamente sublinhados. Não precisa dar parabéns pelo aniversário de carteira de motorista. Não precisa ajudar o anfitrião a lavar a louça. Tentar reunir a turma de primário. Descobrir o chá favorito da avó. Fazer cupcake pro marido. Descer antes para já ir pegando o táxi. Dar ao torcedor ao lado uma bandeirinha do time. Contar histórias ao priminho doente. Organizar festa-surpresa. Conseguir o autógrafo. Montar camping. Trazer flores.

Precisar, precisa nada. Mas não há tempo que adoce, que se adoce, sem o plus da ação-sobremesa injetada nas horas. Não há beleza só bela no esperado, que beleza é mesmo isso: o súbito, o incalculado, o inusitado feliz, às vezes o surreal que invade generosamente o pê-efão sempre consumido. Há beleza no que ganhamos sem concordar que merecíamos. Há beleza no que escapa ao sucesso cronológico redigido na agenda.

A vida reside onde não é obrigatória.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Álibi

Domingos atrás, o espaço do psicanalista Alberto Goldin na Revista dO Globo recebeu o dilema de uma Gabriela, estudante de 23 anos que, embora moradora do subúrbio carioca, reserva a vida social para a Zona Sul. “Amo meus pais, mas não consigo apresentá-los [aos namorados sofistiquês] sem morrer de apreensão sobre o que vão falar, como vão se comportar”, lamentava-se a consulente. “Estou infeliz, pois perdi mais uma vez alguém que amava muito. Neguei até o fim que ele conhecesse minha família, e ele se decepcionou.” Goldin não afagou a cabecinha, respondeu na veia: “Gabriela não é exceção. Seu conflito mais grave não é que sua família seja pobre. É por ela se sentir pobre e, como defesa, assumir atitudes perdedoras”. Isto é, cambada: Gabriela somos nós. 

Muito infelizmente, não somos Gabriela de Amado, recém-transformada em Juliana cravo & canela. Essa outra Gabriela perguntadora é que tão constantemente somos – a derrotada por preguiça. Porque não há entre nós, em nós, tantos fãs da vitória como seria conveniente. Excessivas vezes, não é vencer que queremos; queremos encontrar o álibi mais adequado para sentar num canto comendo Passatempo e perdendo em paz.

Não nos achegamos nem em pensamento ao gato ou à mina mais inacreditável do recinto, já que temos feiura ou desengonço bastante para alegar batalha perdida. Não nos acercamos nem em pretensão do anúncio de emprego impossivelmente porreta, visto que – é óbvio – nossa formação e experiência não pagam a passagem de metrô para a entrevista. Não nos avizinhamos nem em projeto do piano ou violão ambicionado, dado que, definitivamente (todos dizem), nosso ouvido era o menos aproveitável da escolinha. Não fazemos inscrição nem imaginada para a faculdade top de linha, porque, raios, estudamos em colégio público, ai de nós que não vamos passar mesmo (aliás é discurso absorvidíssimo em colégio público, o nenzismo: há uma resistência orgânica a qualquer desejo de prestígio, e nem se tenta – nem se sofre – nem se sonha –, acomodados todos ao bebezamento coletivo praticado pelo governo).   

E quando ensaiamos um desencantar; quando fingimos um sacudir de asas; quando simulamos abordar, concorrer, nos inscrever, nos projetar – pomos tão microscópico tesão no processo que é como não fizéssemos, não entrássemos, não estivéssemos. Tentamos a tentativa protocolar, para os autos e álbuns. Tentamos para inglês, professor e chefe verem, para a mãe lembrar, para a assistente social anotar, para o psiquiatra absorver. Não tentamos com o ímpeto que desembainha a espada, que sequestra o momento, que cava alternativas, que bota pra picotar na máquina uns preconceitos, que revoluciona autoideias, que supera inseridos traumas, que corre, que briga, que desafia – que tece a hora sem esperar acontecer. Não tentamos porque queremos; “tentamos” apesar de não querermos. Como passaporte definitivo, carimbado, de visto permanente para a autoindulgência maciinha: tentei, pronto; felizes? agora parem de me azucrinar incentivos e me deixem dormir. No santo conforto dos que repousam à sombra de expediente alheio.

Tentar, de verdade, é tomar de si mesmo e hipotecar-se. O resto é “volto já” pendurado em nossa mesa enquanto fugimos pela porta dos fundos.

domingo, 28 de outubro de 2012

Olha a moça

A gente numa passagem estreita. Única passagem – estreita. Iam dois rapazes à frente, conversando com calma de passeio, passeando com pachorra de conversa e, em consequência, trollando nossa impaciência atrasada. Tem pressa não, viu, moço – eu mastigava por-dentromente minha ironia. Chocada com a incapacidade de meio mundo perceber o que vai além (e não tão além) de seu próprio mundo inteiro. Não queria reclamar em voz alta, não via nem jeito de pedir licença, não queria perder esperanças de ser notada com expressão infeliz e ouvir de algum dos rodas-presas: “Bora logo, cara, olha aí a moça”.

Não queria admitir que delicadeza, nos atualmentes, não é acessório que pertença ao pacote standard.

No meu antigamente, era. Nos idos da minha e doutras infâncias, Mãe e Vó – nossas inteligências emprestadas – corriam os olhos no ambiente e sabiam, sempre sabiam, se estávamos ou não transbordando o espaço. Se estávamos com a perna demasiado aberta, intimidando portanto os limites do companheiro de assento. Se estávamos autorizados a tomar assento: só não havendo senhorinha ou senhorzito algum nas adjacências, senão era colo e olhe lá. Se nosso cabelo botava cócegas em alguém sentado perto. Se nosso movimento botava apreensão no atendente da loja. Se nosso barulho franzia levemente a testa do colega de arredores. Se era necessário à paz alheia um “tira o pé”, “tira a mochila”, “vê com os olhos”, “cala a boca”, “engole o choro”, “não mexe”, “não gri-ta!”, “não leva a bolsa assim que machuca as pessoas”, “não pisa na cadeira que os outros vão usar”, “não anda de bloco na calçada que os outros querem passar”. Te traumatizou, leitor? a mim tampouco. Creio firmemente – ainda que guardasse raiva, no íntimo da época, aos tais outros em nome dos quais nos forçavam tantas renúncias – que bicho mui mais selvagem estaria hoje residindo em mim, não fosse pela obrigação, desde cedo implantada, de dar um 360º por sobre os ombros para prever/ prevenir amofinações coletivas.   

Disso precisam os pais: quase nada do DVD do Topetão – e muitissíssimo da capacidade de pôr os filhos em condição de, ante a autoridade, baixar o topete. Quase nada de uma viagem por ano aos mais estrelinhados resorts – e essencialmente da insistência em fazer, da meninada, promotores do conforto alheio. Quase nada do ingresso para o mais recente show do One Direction – e crucialmente do dom de direcionar a gurizada para a gentileza-mor do silêncio. Quase nada desses tudos que os pequenos recebem; quase totalmente desses pequenos nadas que compõem e que (se ausentes) azedam a coexistência. Educar não é plantar pequenos príncipes para disputar manada com tantos milhares de pequenos príncipes. Educar não é forrar a bolha com algodão egípcio para o coiso-mirim pretender achar no mundo tantos milhares de bolhas forradas com algodão egípcio. Educar não é ampliar excessivamente, aos olhos do herdeiro, o quadro de seus direitos e importâncias, a ponto de lhe vender a falta de seus deveres e insignificâncias. Educar não é lamber. Educar não é corromper. Educar não é distrair. Educar não é recrear. Educar não é adoçar até a diabete. Educar não é agradar até a temeridade.

Educar é mandar olhar aí a moça – e convencer o filho a convidá-la para o mesmo planeta.

sábado, 27 de outubro de 2012

Do arco-da-velha

Hoje faz 230 anos que o mundo recebeu um daqueles marcos históricos ambulantes, daquelas criaturas que nascem para que se veja até que ponto! a coisa pode chegar: Niccolò Paganini – muito talvezmente o maior violinista de todos os séculos. Como não podia deixar de ser, minha relação com Paganini não principiou musical, mas literária. Minha mãe guardava uma série de livritos veeeelhos e adoráveis, de amarelo sedutor, de cheiro macio e de cio (livro, minha gente, é que nem amores: tem aquela irracionalidade essencial do cheiro). Era uma coleção juvenil que narrava histórias dos grandes autores eruditos, e que cansei de virar e revirar encantada, principalmente nos momentos de fingido estudo. Então: lá estava Paganini no bonde. Devo montão ao exemplarzito meu encanto definitivo pelo violino – encanto platônico, não se alarmem –, em especial na lembrança da frase que, um dia, também foi dita pelo mestre ao pequeno Nicolau: “O violino é o instrumento que mais toca o coração dos homens”.

Influência do ditado ou não, fato é que sou incapaz de ouvir sem chorar o raio do violino. O bichinho me amolece. Nem é o mais agradável do time das cordas: celo e contrabaixo, irmãos maiores, ganham longe em termos de aveludado da voz, e passam maior confiança de varões. Fora a triste verdade de que violino tocado sem perícia se assemelha monstruosamente a um brontossauro tuberculoso. E mesmo nesses entretantos, se calha de o baixinho encontrar mãos perfeitas, que conheçam seus pontos gês, não tem pra ninguém. O violino se sangra, se rasga, se chora inteiro tão agudamente que nos chega como lamento nosso, lamento de mulher sobretudo; quase uma covardia. Violino canta na frequência exata das sereias e aí – na fresta aberta do miocárdio – se instala, traiçoeiro, perigoso, até os fortes derrubando em sua capoeira abrupta. Violino toca minuciosamente o coração dos homens porque o imita. Nos imita.

Recordo um trabalho de faculdade no qual uma colega executou um trecho ao violino para corroborar a apresentação de seu grupo. Chorei. Recordo um trio de jovens (tão jovens) violinistas de rua, ouvido ao acaso num lugar por onde não passaria, em dia no qual tivera um dos momentos escolares de deixar a alma enforcada. Os violinos me entoaram, cúmplices, a bem-amada “Ode à alegria”. Chorei as vísceras. E tenho minhas dúvidas se, no pega-pra-capar do Titanic, eu não me demoraria mais que o sobrevivível, mais que o aceitável, chorando os sete mares diante da cena mais embargante antes da guerra: a dos famosos músicos que gemiam seus violinos com teimosia, preferindo emoldurar tantas vidas perdidas a salvar as próprias. Porque esses sóis, esses fogos, esses gremlins, esses animaizinhos de cordas têm isso. Agarram no ambiente. Ofuscam-no. Transformam-no. Pintam uma beleza exagerada no instante, tornam o prosaico e o triste (às vezes) indevidamente tolerável, iludem as forças, arrancam para o bem e para o mal o que temos de feras. Anestesiam na marra os doeres que volta e meia não queremos deter.

Se a vida lhe exigir duelo e conceder a escolha de armas, saque o violino. Não morre nunca de todo, não, quem escuda as balas com a melhor versão de si mesmo.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Minha máxima culpa

Confirmei que a coisa era típica de professor após o último capítulo de Avenida Brasil. Todos sabem que, a julgar pelo jornalismo autolambedor da Globo, aquele 19 de outubro foi acontecimento de deter e ditar os rumos do planeta. Não havia ser humano com energia elétrica que, do viaduto mais próximo até a esquina da Enterprise, ignorasse a confissão de Carminha a respeito do assassinato do ex-amante. Muito bem. Achei divertidíssimo o climão de fim de Copa e, nos dias seguintes, procurei comentar o desfecho com os colegas de trabalho. Cadê. Começou o povo que se faz de difícil: “Ah, não vi naaaaada dessa novela, mas aí minha filha cismou de assistir ao último capítulo... eu não sabia quem era ninguém, nem essa tal de Carminha”. Suspiro interno. Completa outro impermeável: “Esse negócio de novela é mesmo uma palhaçada, do mensalão ninguém quer saber. Acompanho nada”. Discuto uma ou duas questões do episódio final com um ou dois seres menos enrubescidos e desisto na sequência. Cheira a peso de chumbo o constrangimento culpadíssimo dos espectadores eventuais, das consciências mortificadas por frequentarem o canal proibido. Das consciências que acham chiquérrimo desprezar por obrigação o que não se encaixa em seu esquerdismo compulsório.

A essas, uma notícia: desprezar (só) por obrigação é a cafonice ao cúmulo.

Vejam, não sou de direita. Nem de esquerda. Não me sinto tampouco forçada a declarar-me do norte ou do sul em termos de arte: ou superpop ou intelectual convicta, ou nerd assumida ou breguelê de pai e mãe. A não ser em termos de religião e casamento (nos quais, a meu ver, o esquema de mais ou menos não combina), “sou Gabriela, só; tá bom não?” – diria a personagem mais preguiçosa de rótulos da TV. Tá bom não, que a gente goste do que gosta e desgoste do que desgosta, sem o terror do julgamento alheio respirando no cangote? Não curte novela, está no seu direito; mas que seja por impaciência estética, toda própria, toda sua. Que não seja pelo discurso, papagaiado até a náusea, de que a Globo isso, a Globo aquiloutro – como se a Record, o SBT, a RedeTV, a BBC, a CNN não o fossem. Que não seja pelo mito da indiferença ao mensalão – porque, até onde sei, temos neurônios aptos a acompanhar (e dosar) múltiplas narrativas, múltiplas importâncias, tanto quanto não deixamos de fazer as unhas porque o caçula tirou 3,5 em Matemática. Que muito menos seja pela vergonha sociológica de nossas preferências, como se o fato de bastante gente partilhá-las automaticamente nos expulsasse de algum Olimpo. Como se a fraqueza de sermos conquistados por qualquer moda nos fizesse descabeçados. Irresponsáveis. Vendidos. Como se o torcer o nariz a toda e qualquer moda não fosse também uma moda.

É de coração que defendo: nada mais elegante que a leveza. Nada mais in do que abraçar-se com tolerância, do que respeitar os impulsos próprios com ternura, desde que (logicamente) não antiéticos ou nocivos. Gosta de Agatha Christie? leia à luz do dia, sem disfarçar dentro dum volume de Guimarães Rosa (saiba, a propósito, que Guimarães Rosa lambia os beiços com Agatha Christie). Tem o sonho recôndito de tirar foto no colo do Mickey? junte grana e caia de boca em Orlando, sem terceirizar a vontade pro seu moleque de um ano e dois meses – e sem economizar muxoxos aos chatões de galocha que juram só identificar vida inteligente em Zurique. Dá suas espiadinhas banhadas em remorso nos heróis do Bial? desapegue das justificativas sociológicas: rir dos participantes vestidos de Galinha Pintadinha não vai fazê-lo herege indiferente às misérias da Terra. Assobia compulsivamente a obra da Galinha Pintadinha nos intervalos do serviço? assuma que não, não tem filhos, netos ou sobrinhos a aliciá-lo para o crime – e ter ido ao tororó beber água e não achar, homessa, definitivamente não o torna uma alma perdida para Mozart, Chico Buarque ou os Beatles. Eu mesma guardo um esmagador cansaço em relação ao justifiquês das criaturas culpadas, muito culpaaaadas de serem somente elas, e vou gritar pra todo mundo ouvir: amo a Disney e tão igualmente quero conhecer a França e a Eslovênia, frequento o Festival do Rio e tão semelhantemente assisto à série dos Vingadores, adorava as melodias do É o Tchan e tão parecidamente me comovo com os versos do Vinícius, curto várias emepebês e vários luan-santanas, diversas cabeçudices e um número inda mais diverso de novelas, uma imensidão de aclamadas bobagens e um exército de seríssimas filosofias. E tudo bem. E tudo bom. É tudo eu. Eu – sem a menor paciência para repetismos e desculpismos hipócritas. Não gostar por realmente não gostar, por totalmente não ir com a cara, ótimo. Não gostar porque não é pra minha idade; não é pra minha classe; não é pro meu nível intelectual; não é pro meu grupo social: olha aqui meu ombrinho, ó. Nem aí. Conceito é excelente, preconceito é inaceitável. Preconceito terceirizado, então, tem de ser engolido de volta com gema crua e óleo de bacalhau.

Relaxa, pessoal encucado. Nem tudo neste mundão ensandecido é culpa da Rrrrrita.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Que você tenha a quem amar

2012 já deu o que tinha de dar, anda com a corda no pescoço e só falta a musiquinha natalina da Leader chutar o banquito. Selar o fim. Nessas épocas – não inteiramente perfeitas apenas porque existe um fevereiro nos arredores –, cismo de lembrar a canção do Frejat que, certa feita, foi usada num comercial como mensagem de festas. É linda, linda, aquela “Amor pra recomeçar”. O que mais me toca é, a cada refrão, a voz repetir decididamente: “Desejo/ que você tenha a quem amar...”. Note-se a mais que acertada prioridade; que você tenha a quem amar, não que seja necessariamente amado. Ser amado é quase essencial, mas menos urgente. Importante, mesmo, e coisa que se queira ao filho único, ao melhor amigo, à prima preferida, é ser agraciado com a capacidade de super-humanamente importar-se. Como se nossos votos fossem: “que sua vida amanheça todo dia fazendo sentido”.

Isso me recorda também uma cena do último capítulo de Laços de família – não sei se já a mencionei aqui. É quando Miguel, o livreiro fofo interpretado por Tony Ramos, conversa com a filha Ciça sobre sua atração quase unilateral pela Helena de Vera Fischer. Ciça está revoltada com o descaso de Helena, e Miguel a repreende assegurando-lhe: se ele tivesse de escolher entre não amar e não ser amado, ficaria com a segunda opção, pois até amar sem grandes esperanças o preenche tão balofamente como nenhuma paixão recebida sem gosto poderia. Superfico com Miguel. Não sermos amados tem a inconveniência de nos fazer sentir porcarias; não amar gera a extrema chateação de nos tornar uma delas. Desprecisando, naturalmente, que seja amor de homem-mulher. Pelo filho, pelos pais, pelo enteado, pelo grupo de amigas-irmãs, pelas irmãs, pela bisa velhinha, pelos doentes assistidos na ONG, whoever: amor (que valha o nome) é bicho fundamental de existir, e único que nos faz bichos aceitáveis de viver. Prova que sofremos de humanidade em alguma instância. Que somos criaturas aptas a realizar o exercício básico de transferir nosso centro um tantinho mais para fora, mais para a esquerda. De outro peito.

Não ser amado é uma queimadura na autoestima; não amar é a implosão (por overdose ou por desuso) da própria. Não ser amado produz um coração sedento; não amar fabrica um esturricado. Quem ainda não achou espírito que o acolhesse pode gastar os dias aprimorando o merecimento; quem jamais encontrou um alguém merecedor pode afundar em avalanche de indiferenças. Não receber é perda passageira, nunca doar é mutilação permanente. O não amado é esperante, portanto fértil; o não amante é desistente, por isso estéril. O não amado ainda busca, se acrescenta, deseja. O não amante encerra. Se encerra.

Quem não sonha aonde ir não melhora o caminho. Só com vontade de amor existindo, para haver pontapé de recomeçar.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Morte súbita

Não é que eu não tenha gostado de Salve Jorge. É bacana, apesar da densidade demográfica (personagem saindo pelos ouvidos); começou ousada e mandou ver na superprodução. Quase um épico. Tem uma Turquia banhada em azul, um Alemão imenso de fardas e cavalarias, uma abertura tudo-ao-mesmo-tempo embalada a versos de Seu Jorge (amei 100%), um Rodrigo Lombardi sorrindo igualzinho ao Rodrigo Lombardi. Tem música nova do Roberto! Só não curti algo que meu Fábio bem observou e que, de fato, vem me incomodando já há algumas novelas da Glória: a paixão do casal principal, aparentemente nascida de uma flechinha de Eros, uma epifania, um particular big bang. No segundo capítulo, a garota era ainda prisioneira de Théo na delegacia; hoje, no terceiro, já andava com ele aos beijos pelo morro e – coleira definitiva – chegou a apresentá-lo pra mãe. Como? quando? onde brotou o amor fulminante? Entre um desacato à autoridade e uma ou duas trocas de acusações, aliás malcriadíssimas quando vindas da heroína Morena. É bonita a moça, verdade. Mas duvido houvesse chance, num mundo real, de alguém tão sentimentalmente instável como Théo ser capturado à primeira vista justamente pela vulgaridade e grosseria da tipa. Não é lá cartão de visitas de princesa encantada que se espere.

Igual abracadabra aconteceu em Caminho das Índias, entre Maya e Bahuan; em América, entre Sol e Tião; em O clone, entre Jade e Lucas. Um encontro fortuito, uma esbarrada, uma olhadela e pow! bate o sino. Não há possível empatia da audiência com amor tão no susto, tão espaventoso, sem a construção calma e tijolinha dos casais que se fixam. Talvez muito por isso, acabam se alterando os rumos dos protagonistas em favor de ternuras mais acreditadas pela plateia. As duplas originais não “pegam”. Estão aí, que não me deixam mentir, os neocasais Maya e Raj, Sol e Ed – erguidos na vivência delicada do matrimônio por conveniência, e dia a dia caídos no gosto do público. Só por teimosia da autora Jade e Said não foram pelo mesmo caminho, apesar da química potencial: acabou vencendo a chochice da “paixão” por Lucas, o protagonista com cara de empada que estava aquenzíssimo do talento de Murilo Benício. Torcimento de narizes quase unânime. Foi casal que começou por espanto e continuou por preguiça.       

Só que amor não começa por espanto. O que por espanto pode começar é a noção (boa, ruim, encantadora, confusa) da existência daquele ser; a constatação inicial de que há uma possibilidade circulando na pista. Amor, em si, não é constatação. É construção. Para que se fizesse nos moldes do “à primeira vista”, necessário seria haver um scanner em nós embutido, leitor imediato de desejos, valores e vida pregressa – porque amor, lenta consequência e não causa apressada, só no conhecimento se baseia. Inviável que fosse um princípio em vez de, senão um fim, um meio; inviável que no primeiro dos encontros, no primário dos olhares, viessem os dados que tudo alicerçam: se também respeita os animais, se também se renova em viagens, se acredita em família, se desacredita em mais direitos que deveres, se o cheiro encaixa, se o papo funciona. Visto que a pessoa, enorme tudão, não nos vem de chofre. Toma tempo de estudo e paciente delicadeza, demanda exemplos e episódios, horas de telefone ou tantos mil caracteres de e-mail, hipóteses e músicas, lanches e TPMs. Pessoas demoram a esbarrar na gente de alma inteira, se é que em vida dá tempo. Pessoas demoram.

Amor não acaba nunca de começar.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

As que ainda estiverem abertas


Fui assistir a Moonrise kingdom. Esquisitamente fofo. Tem toda a bizarrice poética da filmografia de Wes Anderson (Os excêntricos Tenenbaums, A vida marinha com Steve Zissou e demais estranhezas coloridas), porém não transborda: coloca seu exotismo a serviço da história de amor bonitinha entre um escoteiro órfão e uma leitora depressiva – dois desajustados sociais de 12 anos, problematizados, impopulares, que só mutuamente fazem sentido. Sam e Suzy fogem de seus núcleos, porque fugir é a chance inteligível a corações de 12 anos, limpos de quase toda convenção. Mas uma das cenas mais tocantes acaba sendo aquela em que um casal já exageradamente adulto suspira sua vontade e impossibilidade de fugir. Ela (que, por sinal, tem um caso de anos com o policial vivido por Bruce Willis) faz um pedido de desculpas ao marido. Ele pergunta por qual ferida ela está se desculpando. A mulher devolve com a fala mais precisa do roteiro, apesar da aparente vaguidão: “Por todas as que ainda estiverem abertas”.   

Porque há sempre as ainda abertas. Não sabemos, mas existem os que muito grandemente não nos perdoaram pela implicância feita nos idos da sexta série, de onde veio o apelido (odiento) até hoje arrastado. Ignoramos, mas moram na esquina de nossa mesa no trabalho os que tão magoadamente nos olham pela indiferença até hoje insinuada. Desconhecemos, mas andamos produzindo alunos até hoje ressentidos da resposta; irmãos até agora emburrados de ciúmes; filhos até recentemente transtornados de injustiças engolidas; amores até então desgostosos das críticas distraídas. Impossível irmos vida afora sem arranharmos lataria alguma, sem danificarmos qualquer suscetibilidade num esbarrão de TPM, sem quebrarmos nenhuma vidraça numa escorregada de banana, num tom que saiu mais áspero que a encomenda, num adjetivo que foi menos feliz que a intenção, numa ausência cujo peso subestimamos pela própria modéstia. Quase impossível, pois, não termos largado aí no mundão uma hemorragia ainda ativa, filha nossa – filha não menos legítima que as herdeiras da crueldade calculada.

E por isso nos desculpemos. Ocasionalmente. Não custa fazer, de tempos em tempos, essa dedetização dos erros involuntários, que foram dar cria em ninhos desconhecidos. Não custa desbaratizar as mágoas que, sem querer, semeamos em terreno perigosamente fértil, dado a agonias profundas. Querida, perdoe pelas confissões incertamente sinceras acerca de seu peso; querido, releve as bufadas de paciência irrefreável que escaparam durante o futebol; colega, desconsidere qualquer dureza que se mesclou, indevida, ao feedback do projeto; amigão, esqueça todo comentário pontiagudo que eu venha a ter parido por ignorância. Desculpe a falha. Desculpe a fala. Desculpe a falta. Desculpe o gesto. Desculpe o gosto. O mau gosto. A sugestão. A opinião. A zoação. Com ou sem intenção. 

De coração.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Descasados


Curto montão as irmãs Brontë – Charlotte, Emily e Anne. Desta última, menos conhecida que as respectivas autoras de Jane Eyre e O Morro dos Ventos Uivantes, já li A preceptora e, agora, ando às voltas com o interessante A moradora de Wildfell Hall. É história, avançadíssima para a época, de uma Helen que precisou escapulir do marido narcisista, moralmente assediador, libertino e alcoólatra a fim de proteger a integridade própria e do filhito. Feito um Dormindo com o inimigo com mais espartilhos, bochechas de bebê e sofisticação emocional.

Helen casou-se apaixonada até a borda da medula, entre as fagulhas do primeiro amor e o nojo de seus outros pretendentes – um maçante, o outro velhamente devasso. Ficou, pois, cega às já manifestas inconveniências do caráter de Arthur, ou antes: dormiu na fantasia de que ela sozinha teria pureza pelos dois. Lascou-se, é óbvio. Lá pelas tantas do livro, derramou em seu diário as agonias do casamento unilateral: “Ainda o amo; e ele me ama, de seu próprio jeito – mas, oh!, quão diferente é o amor que eu poderia ter dado e que, uma vez, esperei receber! Quão pouca real simpatia existe entre nós dois; quantos dos meus pensamentos e sentimentos são tristemente enclausurados em minha mente; quanto do melhor e do mais superior de mim está, de fato, descasada [...]!”.

Descasados somos todos, quando a festa acaba depois dos bem-casados. Quando o casal existe socialmente, combina socialmente, brilha socialmente, substitui a necessária intimidade pelo entendimento físico (que, aliás, não seria difícil manter com um milhão de diferentes membros do sexo oposto), e entretanto permanece como que virgem um do outro. São absolutamente solteiros os indivíduos impermeáveis ao interesse alheio, incapazes de mergulho em outra psiquê e mesmo incapazes do reconhecimento de outra psiquê. São absurdamente incasáveis as criaturas que, em dupla, conservam-se ainda na antiga unidade; que se enamoram de nascença pela beleza das próprias vontades e a elas fidelizam-se, infinito adentro. São insomáveis as pessoas que já perfazem mentalmente um inteiro; que tendem a transbordar esse inteiro – perfeito que é – em cima de pobres seres não habitados, potenciais colônias suas. São inexpugnáveis, para efeitos de casamento, os que em si se saciaram de toda chance de deslumbre, os que em si se embebedaram de toda existente personalidade, os que em si se descobriram fonte de toda ciência. Solteiros, viúvos, divorciados, celibatários definitivos independem de estado civil: moram em todo coração onde só tem um prato na pia. Que nem sempre lavam. 

São vazios de possibilidade conjugal os que só em primeira pessoa de excessivo singular se conjugam.

domingo, 21 de outubro de 2012

Lixo extraordinário

Lixeiros – os Senhores Incríveis de laranja, homenageados no 21 de outubro – têm das profissões que mais admiro, ou pelas quais mais guardo afeto. Só no dizer isso já sei: aceitarão sem questionices a parte do afeto; torcerão discretamente o nariz no pedaço da admiração. Mas sustento. Não creio em só admirar funções que teoricamente produzem, que botam no mundo o que aí nunca estivera, seja ou não seja produto material: atores, professores, publicitários, engenheiros. Acredito, tão respeitosamente quanto, em manter suave veneração aos que eliminam resíduos de dores e abundâncias, aos que aram ruas para cultivo de outro dia útil, aos que (como a babá traz apresentável aos pais o pequeno lambão) devolvem o planeta em condições de higiene antes do beijito de boa-noite. Mães não são fãs encantadas de filho e genro médico? Pois lixeiros são isso, médicos de cidade; é fato que com muito menos estudo e ciência, e menos ação individual, mas mais aplicação coletiva. Lixeiros saram as ressacas de festa na praia, limpam colesteróis de bueiro, debelam criadouros de aedes safadões, desintoxicam praças de restos temerários de comida. Entregam saúde depois do caos, desviam males antes do cúmulo. Medicamente.

Sou compelida, além do mais, a olhar com espantada ternura os capazes de realizações que, para mim, moram no impossível. Nós que muitíssimo a custo, e com exagerado nojinho, matamos um inseto ou espiamos de relance uma lixeira de banheiro; nós a quem o cheiro de qualquer casca de laranja ou a presença de qualquer grupinho de cabelo no chão causa promessas de vômito; nós para cujo hor-ror! basta o pensamento hipotético de um corte no vidro ou espetadela de agulha – imagine-se este acovardado nós intrometendo-se inteiro, cabeça-corpo-membros, entre ninhos de asas e antenas proliferantes, cascas eternamente azedantes, papéis das mais várias formas empregados, florestas de esparadrapo sujo, garrafas, arames, seringas. Fosse depender de minha coragem, o universo afundava em sobras. Aplaudo, sim – de coração tão completo como aplaudisse a atuação fenomenal dum pianista ou a descoberta revolucionária contra o câncer –, a bravura desses adoráveis heróis sem capa; dançarinos no abismo do acaso, dependentes da atenção de cada segundo, grandes o bastante para descerem ao Hades de nossos desperdícios e voltarem ainda não nos desprezando excessivamente. Sobretudo, aplaudo a valentia suprema de se aceitarem transparentes, quando mesmo no abóbora alucinante do uniforme se tornam parte do cenário: sempre ali estiveram, sempre ali estarão, discretos e perenes, supostos indiferentes à nossa indiferença em tempos fanáticos por aparecer. Essenciais invisíveis aos olhos.

Lixeiros, garis: justiceiros desmascarados que, plena luz do dia, vestem nossas prioridades distraídas como identidade secreta.

sábado, 20 de outubro de 2012

A doença de ser

Foi embora, ontem, um dos maiores folhetins ever escritos. Acompanhei com razoável constância; verdade que não segui muito lá pelo meio, quando a mocinha envilãzou, engoliu um soldado da SS e deu de torturar a vilã principal – ficou sádico demais envolver cortes de cabelo (o que são cortes de cabelo, mulheres? homicídios de personalidade) e outras humilhações do gênero. Mas depois Nina reassumiu o traje de fofinha e meu estômago pôde retornar à novela, contente de alívio. Problema é o luto que perdura tão logo o enredo cumpre sua função, tão logo nos esfregam o the-end no nariz, tão logo os comerciais da trama seguinte deixam de nos violentar a novela preferida para virar alternativa única. Comerciais da trama seguinte são todos carminhas; todos madrastas más, que anunciam a morte de nossa história de origem e a troca involuntária de família. Tanto faz se melhor ou pior nos virá o próximo enredo: somos inevitavelmente órfãos de lixão.  

Por falar em Carminha, houve quem duvidasse que a megera mais oioioi de todos os tempos pudesse redimir-se. Totalmente discordo. Carminha faz parte do exato grupo de megeras que podem redimir-se: as capazes de sentir. Note-se que não era nenhuma psicopata a ex-mulher de Tufão. A seu modo troncho, amava o filho Jorginho, não deixava completamente de se importar com a caçulinha Agatha e tinha lá seus esquisitos afetos pelo amante, cuja morte (por suas próprias mãos oxigenadas) parece ter-lhe sido o turning point da consciência. A ruindade que apresentou desde o primeiro capítulo não nasceu com ela, não era condição inerente e orgânica, não era a mutilação emocional que vem no pacote desses Kevins aí da vida. Carminha ficou Carminha. Adquiriu ao longo dos anos a doença que largamente a acometeu, que quase a inutilizou para tudo o mais. Adquiriu-a quando entendeu, aos mais ou menos seis anos, que um pai poderia matar uma mãe e jogar a culpa na vizinha que perdera a filha; que o mesmo pai poderia abusar de uma criança e depois fazê-la de traste a ser jogado no lixão; que a mesma criança poderia crescer catando lixo para um bêbado, mais tarde poderia ter de prostituir-se para garantir o almoço. Justifica? Não justifica. Mas explica. Explica como um coração – inicialmente tão potável quanto qualquer outro – conseguiu poluir-se o bastante para ser nublado dos sintomas básicos de humanidade. E explica como um golpe extremo pôde detonar o extremo cansaço. O cansaço dos doentes que se exaurem da revolta e simplesmente desistem de alimentar de raiva o monstro já feio pela própria natureza. Carminha se re-generou porque outra vez gerou-se, fez-se nova gênese; rebootou-se, reciclou-se, nadou para o ar após imergir em si mesma até a náusea. Manteve a grosseria e a arrogância, como quem mantém os óculos sem grau depois da cirurgia que corrige a visão. Muletas. Já que as curas que não são milagrosas deixam sempre um nicho do tumor extirpado.

Ser o que a gente é teve começo. Pode logicamente ter fim. Maldade adquirida também é coisa que dá e (na marra) passa.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Eu prometo

Então é assim: voltei. Três meses redondinhos de férias, como nos tempos de aluna – tempos anteriores à crença tonta de que mais dias letivos fazem o milagre do conhecimento. Naquelas boas épocas, metíamos a cara saudavelmente no estudo, em período previsto, e bem nos sobravam quatro meses com folga (um trio deles no fim do ano, uma unidade no meio) para brincar gordamente. Pois: acredito em férias longas, incapazes de serem excessivas. Acredito em apertar um stopão quando a atividade, forçada ou escolhida, começa a nos arrancar o ar. A roubar posses de tempo, a chacoalhar prioridades antes inextinguíveis.

Acredito em respirar na marra – muito especialmente quando vira artigo de luxo.

Vai daí que eu, doravante, não mais prometo postagens diárias sem dar aquela cruzadita nos dedos. Juro desjurando. Não prometo largar sempre o cesto de roupa suja em solidão pidona; não prometo empurrar a criação de provas bimestrais para as madrugadas de computador; não prometo abandonar as leituras de metrô (felizes!) pelas odiosas, corridas, ensandecidas rabiscações a caneta, entre estação e outra. Prometo escrever no que escrever tem de alegre e livre, de leve e divertível, de suave e tesudo. Prometo não escrever assim que o escrever virar estreitamento de glote, engaiolamento de prazo, sufocamento de horário, desespero dos poucos segundos vagos de escola ou vazios de casa. Prometo.

Logo que puder, descumpro.