domingo, 6 de março de 2022

Também não gosto de


Muvuca, sinuca, chão com bituca, gente que cutuca. Gente que pergunta. Rede social conjunta. Bebida aguada com gelo. Vento no cabelo, cabelo no casaco. Puxa-saco. Medo ouriçando a nuca.

Mamão; discussão; ostentação; filme arrasa-quarteirão que come os cinema tudo; sonzito fino, agudo, que entra pelo dente. Aluno impaciente, insolente, intransigente. Roupa transparente. Parente abelhudo.

Saia que não é rodada. Manga molhada. Buraco na estrada. Cidadão que grita, irrita, palpita – sendo xiita e sabendo nada. Jornada que acaba nunca, hotel espelunca, espelho com mancha, motorista sem cancha. Sandália que desmancha se guardada.

Alpinismo; gratiluzismo; cinismo; eufemismo; elitismo em todo feitio e feito; todo modo de preconceito. Adrenalina pré-pleito. Ar rarefeito (que sou asmática). Matemática, função fática, criatura dramática. Tática de manipulação grosseira. Tranqueira zero prática.

Luz de sirene, cheiro de querosene, mitene, mitômano, megalômano. Megalópole que engarrafa. Caneta que não autografa. Estafa de tanto causo, de tanta treta; gente careta, picareta, safada que se safa.

Anúncio que pisca. Etiqueta que belisca. Isca de carne durona. Paisagem cafona. Testosterona. Azeitona de qualquer cor, rancor, terror, "doutor", papo conservador, papo de ricaço. Gente sem laço com a terra, gente-motosserra que só tira pedaço.

Cansaço.

sábado, 5 de março de 2022

Sinopses esquisitas que não sei se há, mas poderia haver


Um rapaz se apega à senhorinha fantasma com quem divide o apê; ao ser trampolinado, por questões de trabalho, para uma mudança de cidade, passa a mover mundos e fundos do além a fim de transportar consigo o espectro fofinho que está "preso" ao imóvel.

Uma jovem pesquisadora fica obcecada com o que acredita ser um Código Brás Cubas, intrincadamente distribuído por entre os capítulos escritos ou pontuados do defunto autor. Os vídeos da influencer bombam tantomente o assunto que a caça ao suposto "manuscrito perdido" de Machado chacoalha o país – até que a moça acaba visitada sem intenções amistosas por um suposto descendente oblíquo do Bruxo, interessado em manter casmurramente o segredo de sua existência.

Como herança do pai que não chegou a conhecer, uma mulher recebe um barquinho caidaço e a determinação gritante, sacramentada em cartório, de não vendê-lo ou desfazer-se dele dalgum outro modo sem antes adentrá-lo pes-so-al-men-te (sozinha) ao menos uma vez. Não muito impressionada mas curiosa com a condição excêntrica, a herdeira consente em visitar a embarcaçãozinha – e tem uma full queda de queixo ao descobrir que o minibarco é, da porta do capitão para dentro, um navio operante na época e nos moldes de um Titanic, que vem e vai transportando passageiros completamente ignorantes a respeito desse portal para outro século.

Uma moça se aproxima, no metrô, de outra que está usando um vestido vendido pela primeira num brechó de internet. Ambas acham graça da coincidência e engatam amizade; ao longuinho do tempo, porém, a ex-dona do vestido vai colhendo vários indícios de que o encontro com a atual proprietária não teve nadíssima de casual.

Fissuradaço na filha do vizinho fazendeiro, mas sem remota perspectiva de ser correspondido, um rapaz dá de stalkear seu alvo da maneira mais única e esdrúxula: alternando-se com o espantalho da fazenda, do qual imita perfeitamente o aspecto e o figurino. O pai da moça descobre e – transtornado com o que acredita ser alguma ação coordenada por inimigos – ameaça a vida do jovem, que só não é moído pelo vizinho porque sua musa fica com pena e se arrisca para salvá-lo, assumindo diante do fazendeiro a autoria da pegadinha. O moço entende erradamente que a crush agiu por amor a ele e dá vazão definitiva à sua bad trip; sequestra a guria para resgatá-la. Como o raptor se conserva vestido de espantalho, ocorre à vítima alimentar a fantasia de que ambos estão indo ao palácio do Mágico de Oz, a fim de manipular o deliroide com elementos da história e conseguir que ele a deixe "falar com seus outros amigos" no caminho. Em dado momento ela estabelece contato com a polícia, que vai monitorando virtualmente a jornada e interagindo com o espantalho ensandecido como se o guiasse a uma Cidade das Esmeraldas hospitalar.

Para ele pôr o cérebro no lugar.

sexta-feira, 4 de março de 2022

Mátria


No ritmo do coração, um dos atuais concorrentes ao Oscar, é sem dúvida uma Sessão da Tarde fofinha, mas (aliás: por isso mesmo) seria um descalabro lhe dar a estatueta principal; trata-se dum azarão simpática e infinitamente previsível, 4.587 vezes inferior ao talvez favorito Ataque dos cães – este sim um filmaçaçaço em roteiro, petulância artística e destrinchamento humano. Claro, o desnível acachapante não significa que faltem ao filme sobre Ruby Rossi (única ouvinte numa família de surdos) umas tantas daquelas cenas de guardar na caixinha estética, como a sequência em que a cineasta nos faz ter a mesma experiência dos pais e irmão de Ruby, ou o trecho amorosíssimo no qual o pai da menina dá um jeito de "ouvi-la" cantando, ou o clímax que nos empurra para a emoção compulsória tanto quanto enternece um personagem casual da própria trama. Para quem é mais ligado no dito que no entoado, porém, uma partezinha específica tende a comover até a medula: o momento ardentemente silencioso em que Ruby, a pedido de seu professor, explica como se sente quando canta – e só consegue fazê-lo por meio da língua de sinais, embora seja usuária proficiente do inglês falado. Nenhuma tradução nos é dada, nem a nós nem ao interlocutor, sendo no entanto impossível não compreender a mensagem de delicadeza, plenitude, amor e desabrochamento que as mãos da protagonista recitam na tela.

Como pessoa de Letras, recebi a seta toda açucarmente fincada no peito: tinha acabado de "ouvir", mais nem menos, uma das mais lindas odes à língua materna, pouco importando se é de fonemas ou de gestos que é composta. Por que Ruby não deu conta de expressar de viva voz ao professor o teor de um de seus amores mais sagrados, se eram justamente os sons esses amores e se não havia nenhum abismo entre seu vocabulário e o dos demais praticantes do idioma? Porque o inglês falado não era a língua materna da jovem, a primeira, a primeiríssima língua, aquela aprendida no berço e usada no universo doméstico quando ainda era o único, quando ainda não havia escola ou vida social que não entre os afetos de origem. Apesar de ouvinte, a protagonista classifica sua fala nos primórdios escolares como "fala de surda" – uma vez que o inglês não gestual acabou chegando a ela já como língua madrasta, um acréscimo de recursos que se lhe incorporou com naturalidade, mas que não nana-nanou suas primeiras manifestações do pensar e sentir. E ah! podemos acabar de ser em qualquer idioma, qualquerzito ou zitos entre o céu e a terra; podemos nos completar e enriquecer com qualquer glossário de empréstimo; entantomente, toda vez que recomeçarmos a ser – toda vez que voltarmos ao telúrico de nós, ao âmago do âmago, ao próprio do próprio – só sentiremos e pensaremos na língua materna, só nos espelharemos nela, como companheira e testemunha inicial de todo o nosso capítulo de inaugurações.

A língua em que nos humanizamos é a caixinha de ferramentas do sistema de afetos; a não ser que um afastamento muito cortante e definitivo asfixie suas memórias, é com os instrumentos dessa bolsa emocional que visceralmente xingamos, que organizadamente nos compreendemos, que setorizadamente nomeamos; é com as serras da caixa que recortamos pedaços de mundo, com seus martelos que imprimimos nossas raivas e apegos, com seus pregos que rotulamos, com seus canivetes que torcemos, esculpimos, abrimos, fechamos, alargamos vias, estreitamos opções. A língua materna, ela apenas, nos fala e fala de nós quando tudo silencia e resta a narração das consciências e inconsciências que hospedamos, o bololô refletido ou impulsivo que nos forma, que nos molda, que nos habita.

Com muitos códigos, dizemos; um só código nos grita.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Glossarices alternativas 4


Aleatópico: preparação do improviso.

Arcabolso: estrutura financeira que dá sustento à tese.

Bicicreta: veículo empregado pelo herói Teseu para mover-se na residência do Minotauro.

Desdesenhar: desvalorizar, por insegurança, as próprias produções artísticas.

Dialétrica: dúvida penetrante na grafia de determinadas palavras.

Gambiarma: instrumento de defesa utilizado por Angus MacGyver.

Geminiantro: ambiente frequentado por indivíduos que se comunicam compulsivamente.

Larbirinto: residência bagunçada e feliz.

Longomarca: comercial que atormenta usuários do YouTube com a impossibilidade de ser pulado.

Loucatário: inquilino de personalidade problemática, tendente a fingir demência quando questionado a respeito de atividades clandestinas e aluguéis vencidos.

Peripétia: aventura de circunstâncias duvidosas vivida por bichinhos de estimação avessos à tranquilidade e à ordem.

Telepatinha: sistema de comunicação estabelecido entre humanos e seus pets.

Trampolimbo: elemento motivador de mudança para não se sabe exatamente o quê.

Depois a gente vê.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Glossarices alternativas 3


Ancestralha: antepassado que (os céus nos poupem dessa desgraça) chegou a tomar parte em atos de opressão contra povos ou indivíduos.

Aprendizaga: treinamento de defesa.

Arrependimesmo: tipo de remorso que tende a ser trocado na primeira curva pela recorrência do vacilo.

Especialírico: indivíduo fortemente dedicado ao estudo da poesia.

Fantasmagótico: referente a uma decoração de Halloween chiquérrima.

Incompetenso: indivíduo que disfarça a mediocridade profissional tocando o terror ansioso no ambiente de trabalho.

Integridádiva: presente selecionado com o único e singular intuito de banhar de felicidade o ser presenteado.

Nebina: estado de incerteza comunicativa ocasionado pela ausência de identificador de chamadas.

Neoclacinismo: escola artístico-filosófica que ri de canto de boca ao pensar quem é que vai pagar as contas se ela realmente for aproveitar o dia.

Parsageiro: casal destinado à efemeridade.

Polvoar: aumentar consideravelmente a quantidade de moluscos existentes numa região.

Tryção: ato de infidelidade que consiste na mera tentativa de consumar uma ação desleal.

(Não me diga que é normal.)

terça-feira, 1 de março de 2022

Outro bocadão de coisas que você não pode morrer sem saber


O grasnido de um pato não faz eco (que seja perceptível).

Por falar em quacks: na Suécia, existe o chamado "Efeito Pato Donald", que tradicionalmente diminui a ocorrência de crimes e acidentes na tarde da véspera de Natal. O motivo é a mania familiar sueca de, em todo dia 24 de dezembro, assistir pela TV a um especial de desenhos antigos da Disney, transmitidos sem intervalos comerciais. A queda nas ligações para a emergência é tão sensível nesse período que o nome do pato rabugento chegou a integrar o subtítulo do livro de uma exposição – realizada no Museu Nórdico de Estocolmo – sobre tradições natalinas.

Compartilhamos cerca de 50% de nossos genes com as bananas (o que NÃO equivale à metade do DNA, já que os genes são apenas segmentos da molécula do bonitinho; marromeno 2% de nosso DNA são semelhantes ao da fruta fabulosa).

Amendoins não são castanhas, e sim le-gu-mes aparentados com ervilhas e lentilhas.

Rouxinóis podem cantar em volumes mais altos que o de motosserras.

O coração de uma baleia-azul é tão imenso que nós caberíamos inteiros em suas artérias, e sua linguinha pode pesar duas singelas toneladas – ou seja: uns dois hipopótamos.

(O leite da hipopótama, aliás, é rosa. Acho fofíssimo.)

Na Idade Média, animais eram julgados por crimes e podiam inclusive receber a pena de execução. Os julgamentos foram mais comuns entre os séculos XV e XVII, mas o primeiro registro encontrado pelo americano Edward Payson Evans – que escreveu um livro sobre o assunto – vem já do ano de 824, quando toupeiras foram excomungadas no Vale de Aosta, na Itália.

A pelagem dos ursos-polares não é branca, é transparente; já a pele desses fofinhos é preta.

Antes da invenção das geladeiras, alguns russos e finlandeses colocavam um SAPO no leite a fim de conservá-lo (conservar o leite, naturalmente, não o sapo).

Tema é que não falta para o próximo bate-papo.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Ode ao desromantismo


A verdade é que renunciamos sempre, sempre, grande ou minusculamente, esteja a consciência ou não em plena vigília. Se é de uma viagem dos sonhos que se trata, por exemplo, afora o emagrecimento da conta bancária em níveis anoréxicos há a excruciante preparação da bagagem – que só não é excruciante para os que não têm de calcular desde o momento menstrual até a menorzita alteração de saúde possível, para fins de estoque farmacêutico (e isso porque não sou mãe; por essas e semelhantes outras é que não quero). Se a viagem já está de vento em popa, podes crer que ao alumbramento do passeio há de se mixar também a garganta excessivamente seca sob o clima (digamos) europeu, a tentativa dessa garganta de evitar imensas hidratações – para que a busca do banheiro não seja tão eterna quanto Roma –, as onipresentes filas, as discussões de grupo, os desencontros, os calos, as bolhas, o cansaço que não repousa porque caminha o dia inteiro e madruga no seguinte. Estou reclamando? de modo algum, listando apenas; e não sei para vocês, mas a lista desglamourizada e consciente de todas as aborrenúncias me ajuda muitíssimo quando é forçosa a renúncia contrária: se posso viajar, maravilha, que espetáculo, vamos em frente; se não posso (e por enquanto não posso), tudo igualmente bom, é um tempo de descanso de bolhas e malas e sede insaciável. Saber todas as desvantagens me empurra também a ver vantagem em tudo.

Dar aula presencial esgota a voz e os nervos, porém diminui a carga de preparações da versão remota – além do quê, vejam que fabulosidade, o almoço na escola é tão presencial quanto as perrenguices. O calor do Rio nos obriga ao ar-condicionado e nos esgota até a medula, e no entanto eu simplesmente ADORO não ter de abrir a água quente durante o banho. Certo, andar de saia me deixa ainda mais vulnerável à mosquitada que me lancha diariamente, e saia é às vezes indomável, saia voa; mas não é extraordinário passar o ano in-tei-ri-to sem me enfiar no abafamento duma calça comprida? Caminhar de sandália é certamente mais desconfortável do que de tênis – o que não impede de ser notavelmente mais fresco, com o bônus interessantíssimo de não acrescentar meias ao cesto de roupa suja. Estar enfiado no escritório num dia quente e azul não é exatamente o ideal paradisíaco de cidadão nenhum; apesar disso, há grandes chances de se estar aproveitando uma gorda refrigeração do ar sem pagar por ela, e bebericando uma aguinha gelada sem gastar a própria.

Não assistir ao filme no cinema – templo sagrado – é muimente mais caído, desprovido de som profissa, telãozão e cheiro de pipoca; mas em casa não há gente comentadeira e checadora de celular, e há a oportunidade linda de pausar a história se a natureza chamar inelutavelmente. Ter bichinhos é explosão certa de amor e fofura, porém não tê-los é garantia redonda de casa mais limpa, despesas menores e sapatos desroídos (extensivo a filhotes humanos). Não escrever é uma liberdade da qual já sinto falta; escrever é uma liberdade outra, um jeito de passar a mão no idioma de maneira permissiva e quase sensual. Estar na infância é bom com sua ausência de boletos, sua fantasia galopante e seus Natais embrinquedados; ser adulto, no entanto, é fantasticamente insubstituível se existe um mínimo de autonomia e ciência das próprias forças, das próprias asas que batem sem autorização e sem tutela.

Desromantizar é minha romantização assegurada: há paisagem em toda janela.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Narrativas


Narrativas (talvez a palavra mais conspurcada dos últimos anos) servem também para isto: para se prestar a tratamento dos que, como eu, não sabem lidar internamente com o término de coisas boas. E nem falo de coisas boas necessariamente imensas, tipo vidas ou fases; pequenices contam da mesma forma em sua peso-plúmica proporção – músicas favoritas que acabaram de tocar, um sabor particularmente luminoso que se esvaiu com a última fatia, uma novela em que tudo era familiar e redondo mas que precisou, por fado das novelas, ter um capítulo final. Não que não me saiba conformar, bem ao-contrariomente; me conformo com velocidade alarmante e que beira a frieza externa, já que pareço levar embutido esse dispositivo que vai fazendo o shake permanente da insaciabilidade com a indiferença e impedindo, assim, que o coração seja tragado por uma ou por outra. Narrativas.

O fim de uma série ou novela querida é bom porque sabemos finalmente o que ardíamos por saber, e porque paramos de sofrer por aquelas viditas que agora seguirão resolvidas e sãs, e porque teremos de novo mais tempo para outrices, e porque novas histórias virão que nos apaixonarão com querência de outro feitio. Um computador enfartou, mas sua memória ficará literalmente preservada em diferentes manifestações. Acabamos uma refeição magnífica num restaurante que ca-ram-ba, porém há TANTOS restaurantes carâmbicos ainda por conhecer. A música que tocou agorinha eu posso, se quiser, ouvir no celular outras 8.982 vezes seguidas. As férias que (ai!) passam tão ligeiras loguinhamente chegam de novo, fins de semana e feriadões estão sempre aí anyway, você piscou e já é Natal. O amado tempo de Natal escorre depressa, e está tudo bem: mais um ano inteiro para garimpar enfeites novinhos aos poucos. E esse ano inteiro que VOA? problema algum; quanto mais passam mais se aprochega a aposentadoria, nirvana de todos os assalariados sob o sol.

Lógico, não significa que não haja dores simplesmente inapalavráveis, nas quais a narrativa continua acontecendo para dentro mas apenas para dentro; qualquer mínima tentativa de verbalização as inflama. Porque não creio seja necessário dizer tudo, creio somente ser necessário dizer-se em todo idioma reconhecível por nosso pedaço consciente. Acredito no mecanismo fundamental: para o centro de comando não pode haver automentiras, todo canto da casinha mental deve ser muito entrável e limpo, e mesmo no quartinho da bagunça o chão há de estar visível, pisável, povoado só do que escolhemos botar nele e não de baratas ou ratos vindos de fonte ignorada. Não é crucial ser asséptico (nunca serei asséptica), ser funcional é que é preciso; tudo se desenrola fino quando existem mapeamentos e negociações de todas as dores.

Só para fins de navegabilidade pública podemos ser (como o poeta) bocadamente fingidores.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Meu vício desde o início

Acontece que sou uma cracuda verbal.

Tenho uma propensão descompensada para jogos com palavras e cheguei, talvez, ao fundo ou ao cúmulo quando passei a comprar (pela internet, dado o problema de distribuição atrelado à pandemia) só revistas A recreativa que vêm com as cruzadas todas em branco – I mean, sem os quadradinhos pretos para guiar as respostas. Foram dias lokos, emendando desafios e mais desafios como uma mentecapta, até que fiz uma longa pausa que ainda perdura; mesmo assim mantenho sempre uma dessas revistas na bolsa. Just in case.

O que não consegui superar foram os joguitos virtuais de anagrama (notadamente o do Geniol e o do Racha Cuca), de que peguei uma comprida enjoadice mas que, sem mais essa nem aquela, retomei com tudo, nos mesmos moldes obsessivos dos primeiros tempos: fico aguardando cada uma das quatro atualizações diárias e garro no negócio atééé atinar com todas as palavras possíveis – ou todas que os organizadores ACHAM possíveis, já que no estranho léxico das brincadeiras é preciso captar termos como lai ("pequeno poema da Idade Média"; conheces?) e oti (cachaça), porém o banco de verbetes parece ignorar estarrecidamente obviedades como coroa e lavanda. Espumo às vezes minha indignação psicótica com esses descritérios, tremo de insurreição, me afasto, mas passa o motim e acabo voltando para fazer palavras, fazer palavras, fazer palavras. Tanto quanto eu não entendo a graça dum sudoku, gentes de Exatas normalmente não veem o frisson pirlimpimpesco duma carreira de sílabas.

Mas claro, não bastava o vício anagrâmico, toda boa fissura avança para ingredientes cada vez mais fortes – e eis que descobri há coisa de dois meses o tal joguinho Termo, que viralizou não mais que de repente. Em simultâneo encontrei seu pequeno gêmeo, Letreco; de modo que passei a aguardar salivante não uma, e sim duas atualizações à meia-noite (cada uma das brincadeirinhas adota apenas uma palavra de cinco letras a cada 24 horas), além dos geniois e racha-cucas freneticamente acompanhados ao longo do dia. Cabou? cabou não; outros tantos cracudos vocabulares devem ter se arrastado aos pés da galera do Termo com olhos de Gato de Botas, porque os responsáveis pelo jogo adicionaram versões também diárias com DOIS e QUATRO diagraminhas para descobrirmos as palavras ocultas. Sim, ao mesmo tempo: as letras que se chutam para um aparecem escritas para todos, o que maxitiplica a dificuldade e, proporcionalmente, o barato. Vocês hão de convir que a janela cronológica para realizar coisas úteis anda menor que escotilha de submarino de rato.

Um oti, de fato.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Novas verdades para velhos verbetes


Amorosidade: relação afetiva existente entre a principal rede midiática brasileira e o ex-juiz da Operação Lava Jato.

Descomedimento: ato de trocar carreira humorística pela administração de um país, com implicações políticas que não têm graça nenhuma.

Desembolsar: libertar o povo brasileiro do atual ocupante do Planalto.

Enredar: atrelar as opiniões de um indivíduo a memes compartilhados em redes sociais.

Erradicar: defender afincadamente fake news e absurdidades semelhantes.

Escarnecer: tornar inflaçãomente impossível o consumo de carne pela população.

Euritmia: regência do mundo sob batuta EU(A)rocêntrica.

Extrato: acordo que se encontra, por ora, desfeito.

Geogênico: cidadão recém-autodiplomadamente especialista em geopolítica.

Precedente: pessoa ou nação condicionada a fazer as primeiras e maiores concessões.

Tremeluzente: característica de indivíduo que recebeu a conta da Light em tempos de calor mordoriano e bandeira vermelha.

Ululante: aberta e sonoramente favorável ao terceiro mandato presidencial do candidato do PT.

Tipo eu e você.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Eu também


Adoro os comes japoneses – sem usar hashi. Não posso com kiwi. Detesto zumbi, mas vi The walking dead. Chamo de thread os fios twítticos, confio em alguns políticos (com olhos críticos), acho paleolíticos todos os combates, todas as guerras disparates. Não tenho currículo Lattes, que não careci.

Só com palavras é que jogo, e se for solitário o jogo; por medo do fogo não acendo vela, boto cautela imensa no fogão, não tenho condição de pôr pressão na panela. Vejo novela às vezes, sigo fundo as que sigo: não ligo de lhes ser fiel por oito meses.

Em toda refeição raspo o prato. Sou péssima em manter contato e péssima de entender vinho (apesar de ter, sozinho, um bom olfato). Sinto inato um pendor pela França, por dança, não por criança: dispenso tanta mudança. Acho um plano sensato.

Não passo roupa, que muita vida se poupa; passo o carnaval muito quieta; não manjo bicicleta. Só curto homem beta – nada de alfa cretino, cabotino, de espírito leonino disputador de espaço. Eu passo.

Gosto de História; sou time Grifinória; tenho boa memória pra nome de aluno – durante o ano letivo; vivo segurando a bolsa para arredar gatuno. Acho inoportuno o papo em transporte coletivo.

Nunca usei furadeira, tenho birra de madeira (que mancha, que arranha), topo lasanha mas declino nhoque. Rio de frases de para-choque, de placa hilária, de graça involuntária; comédia me atazana. Não conheço Havana, Liubliana, Budapeste, Bucareste, Punta del Este, Varsóvia, Monróvia, Assunção nem Campos do Jordão, Amã nem Amsterdam, Asmara nem Jericoacoara nem Olinda.

Ainda.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Mulher com espelho

O pintor expressionista dinamarquês Carl Holsøe era basicamente um homem caseiro. I mean: não faço ideia de como era o cidadão em sua intimidade civil, porém artisticamente se mostrou sempre caseiríssimo, preferindo eternos retratos de interiores – móveis, janelas, bibelôs, cantinhos com instrumentos musicais – às vezes povoados de mulheres longínquas, recorrentemente flagradas de olhos baixos, de perfil ou de costas. Há uma serenidade de residência silenciosa em seus quadros, um clima de passeio gentil por cômodos iluminados com doçura, nos quais deslizamos pontinhando os pés a fim de não perturbar as mulheres que leem, maternam, refletem, tocam piano, como em cenas incidentais dum filme de época.

Veem o que digo na tela acima (Woman in an interior with a mirror, de 1898)? Não consegui não levar a fisgada logo que dei de olhos na perfeição de suas linhas muito suaves, limpas, generosas. É irresistível nos sugarmos para a cena íntima, empatizarmos com cada pedacinho de linguagem corporal da jovem que se prepara para sair e se testa diante do espelho. Sabemos que é a penúltima olhada, não a última; não é a última porque o chapéu pende ainda dos deditos que mal o tocam para não marcá-lo – e qual senhora ou senhorita sairia sem checá-lo milimetricamente nos cabelos, muito já assentadinho e resolvidinho sobre os fios? Sabemos também que a moça, embora vaidosa a ponto de se estar contemplando antes do arremate, e embora languidamente sensual de se admirar com o xale semiescorregado (e permitir a mechinha escapante na nuca), dá vazão a preferências discretas; é sintomático que o chapéu escolhido tenha a cor exata de seus cabelos e possivelmente se mescle inteiro a eles, tanto quanto o traje não pareça contar com nenhum adorno. Será uma qualqueridade, aliás, que o chapéu case mui perfeitamente com o móvel – e a roupa, com todo o restante ambiente que abraça a musa silenciosa? Será uma qualqueridade que o invisível de seus pés, imersos na sombra do vestido e no mar do piso escuro, dê à jovem protagonista o efeito de flutuância?

Não me parece uma mulher propriamente triste, parece-me uma mulher que leva a tiracolo certa resignação distraída de seu potencial feminil, certa moleza na vontade estética, um conformismo de gente séria que é simplesmente séria e se concede só uns pouquinhos escapes de xale. Mas ama o próprio colo, a moça, ah, lá isso ama; note-se que é sobre ele seu foco reflexivo, e que não à toa o xale permanece arriado, e que o chapéu provavelmente sombreante ainda não foi posto. Por que motivo, senão um enamoramento da parte superior do corpo, uma mulher que se arruma para sair se demora diante dum espelho que nem a reflete inteira (e por sinal é feito e posicionado para olhar de cima os moradores da casa)? Sim, essa jovem se ama com amor discreto, incompleto, como ela mesma é discreta e presumivelmente incompleta, ainda que não o saiba ou admita; quase posso ver-lhe o sorriso descampado durante a visita que fará, o sorriso protocolar de quem se avoou para outras terras ou não chegou a pousar nestas, vaga, flutuante.

Sorriso de mulher que apenas pressente merecer uma tirada de chapéu.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Mais coisas que você não pode morrer sem saber


Fogo não tem sombra.

Gatos não sentem o sabor doce.

A chance de um homem ser atingido por um raio tende a ser seis vezes maior que a de uma mulher.

A maioria dos ataques cardíacos acontece às segundas.

As pegadas dos astronautas ainda estão na Lua; afinal, não há possibilidade de erosão eólica ou pluvial por aquelas bandas.

Já tentaram vender a Nova Zelândia no eBay.

O tatu-canastra dorme cerca de 18 horas por dia.

Olhar da direita para a esquerda é um bom método para encontrar coisas, já que nossos olhos estão habituadinhos a ler da esquerda para a direita e podem, nesse sentido confortável, deixar os detalhes escaparem.

No Japão existe sorvete de alho.

Bebês só vêm a chorar COM LÁGRIMAS mais ou menos um mês após o nascimento.

Nosso corpo produz uma luz muito suavinha, embora não sejamos capazes de enxergá-la.

A girafa macho bebe a urina da fêmea a fim de saber se ela está no período certo para o acasalamento.

Durante a Revolução Industrial, algumas pessoas começaram a trabalhar como despertadores; podiam, por exemplo, lançar ervilhas com canudinhos nas janelas das criaturas acordáveis.

O medo excessivo de palavras longas demais tem o nome de hipopotomonstrosesquipedaliofobia.

Que ironia.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Coisas que você não pode morrer sem saber


Rapunzel, segundo consta, é a única princesa Disney de olhos verdes.

Falar em Disney: o nome do robozinho Wall-E foi inspirado em Walter Elias Disney, The Man da empresa.

Aurora tem pífias 18 falas em A bela adormecida.

As dubladoras de Ariel e Bela fazem pontinhas no filme Encantada.

Bruce, o tubarãomigo de Procurando Nemo, recebeu o mesmo nome do animatrônico usado na filmagem de, hum, Tubarão.

(Opa, pegando o embalo zoológico e dando um descanso pra turma das orelhinhas redondas:) a audição das cobras é praticamente nula, o que caracteriza como TOTAL caô aquele teatro de "encantar a naja".

Bichos-preguiça nadam bem, movendo-se, por sinal, três vezes mais rápido na água do que em terra.

Quando corvos voam baixo, pode crer que vem toró.

Ter o tipo sanguíneo O e beber cerveja são fatores atraentes para mosquitos (e eu, que não carrego o primeiro e odeio a segunda, realmente não sei o que faz de mim um McDonald's de inseto); aliás o lance etílico parece ser uma constante entre esses zumbidores insuportáveis, já que mosquitos machos de determinada espécie, quando rejeitados pela fêmea, tendem a se tornar alcoólatras.

Vacas, em geral, não conseguem descer escadas. E elefantes são os únicos mamíferos incapazes de saltar.

Existe um Campeonato Mundial de Arremesso de Celular.

E também de boxe-xadrez – esporte cuja partida inclui, alternadamente, seis rodadas do jogo de raciocínio (cada uma de quatro minutos) e seis da pancadaria (cada uma de três minutos). Sério. Não é em toda modalidade que se pode ganhar tanto por xeque-mate quanto por nocaute.

A presença de certos genes faz algumas pessoas sentirem gosto de sabão no coentro.

Na direção da constelação de Sagitário, parte mais brilhante da galáxia, é que a Via Láctea tem seu centro.

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Glossarices alternativas 2


Barbúrdia: discussão de boteco.

Caretime: grupo cujas ideias conservadoras beiram o reacionarismo.

Escabroxidade: ação/ideia de natureza repulsiva desenvolvida por criatura sexualmente frustrada.

Estilooping: característica de indivíduos REALMENTE apegados ao uso de suas peças favoritas.

Geografalho: ser que não sabe mencionar capitais de estados vizinhos, porém demonstra plena confiança em sua expertise geopolítica. Cf. geografraude; ucrano-palestrinha.

Kamikazen: criatura que empurra compromissos para o último segundo com serenidade acachapante.

Parcimonte: quantidade indefinida (e tendente ao infinito) de itens que deveríamos cumprir num autoacordo. Ex.: docinhos a serem comidos em época de dieta, ou minutos a serem gastos na rede social antes de se conciliar o sono.

Relativizinhar: contestar pesquisas e estatísticas com base no caso específico de um morador do prédio ou em exemplos colhidos no transporte público, no salão de cabeleireiro ou no zap do tio Rubão.

Ressentimedo: rancor provocado pelo receio da própria incompetência em lidar com necessidades e motivos alheios.

Usurpadono: equivalente a grileiro.

Vicissitudo: indivíduo empenhado em vencer qualquer campeonato imaginário de desgraças, seja qual for o perrengue vivido por seu interlocutor.

Xeroxigênio: tipo de filme ou livro a que se recorre insistentemente, para fins de spa das células cerebrais.

(Depois tem mais.)

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Eu


Há anos não leio revista. Odeio dentista. Esqueço sempre a palavra "maniqueísta". Seria romancista se houvera coragem. Só faço lista para blog e viagem. Concordo com vagem, amo batata. Sou procrastinadora nata. Curto programa de psicopata e quadro impressionista.

Vim noveleira da infância; não tolero intolerância; tenho fragrância de estimação, asco de mamão, paixão por saia rodada, nervoso de videochamada. Sou dada a atraso. Só nado no raso. Não crio caso por (quase) nada.

Não topo carnaval, excesso de sal, canal de esporte, esporte, corte em filme de tevê, óleo de dendê, clichê, dublê deslumbrado de herdeiro, programa açougueiro. Estou farta de fevereiro. Deixaria o ano inteiro a árvore de Natal.

Adoro cor de opalina, enxovalzito de menina, vitamina, pescaria de festa junina; detesto faxina mais que posso dizê-lo. Não tomo banho sem lavar o cabelo. Tenho pesadelo de escola, zero jeito com bola, montes de sacola; fico o pó da rabiola em dez segundos de corrida. Nunca na vida provei carambola.

Me amarro em gente sardenta. Não engulo os anos setenta. Sou lenta de manhãzita, não curto visita, tenho alma eremita, boto laço de fita em presente. Prefiro o tempo pra frente, mas amo os mil e oitocentos. Dispenso rebentos. Quero divisões aos centos numa bolsa favorita.

Não deixo música tocando, não me movo em bando, nem sei quando tem jogo do time. Cansei de regime. Acho um crime o capitalismo (ou milhares). Sou doida em colares, e prática da nuca aos calcanhares, amando embora o Romantismo. Visto um otimismo de cores singulares.

Sou uma abreviatura de abismo.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Simples assim


Uma aluna veio pedir conselhos sentimentais, com essa fé ainda mágica que adolescentes de 13 ou 14 anos têm na visão adulta. Tímida e bem-humoradamente como é seu costume, comentou que gosta de uma menina mas se sente muito aflita, já que a crush em questão anda conversando demais com um garoto e ela, minha aluna, teme que os dois acabem namorando; ao mesmo tempo, não sabe como interpretar os "te amo" que a outra guria lhe envia todo dia ou noite: afinal é amor ou amizade? Eu, que de toda a treta triângula só conheço uma ponta, não tinha lá muito como opinar – sugeri apenas que a menina (reservada em excesso para ser direta) procure, de início, sondar a outra a respeito dos sentimentos pelo moçoilo, sem comprometer-se; se houver realmente uma atração entre as duas pontas de lá, fica o não dito pelo não dito e paciência. Superconcordo não ser a atitude mais valente, mais arrojada, porém falei com a sinceridade de quem faria precisamente isso em minha cautelosa introversão: sentir o terreno antes de me expor de alguma forma. Na falta de qualquer base psicológica, só me saiu do cinto de (in)utilidades uma honestidade absoluta.

O que me deixou encantada, no entanto, foi a naturalidade com que a aluna expôs o drama adolescente, sem um mísero segundo de autoestranhamento pelo fato de estar interessada numa menina; que lhe importa? importa que a pessoa de seu interesse lhe corresponda, em vez de entabular namoro com um terceiro – os gêneros dos vértices envolvidos simplesmente não entram em questão. Uma tal leveza, quase impensável há coisa de dez anos, tem transbordado muito e muito dessa geração mais nova, visivelmente menos estressada com supostas determinações externas a respeito de orientação sexual e identidade de gênero; está longe, é certo, de haver tranquilidade pleníssima, em especial no embate com o povo mais velho (não faltam famílias a continuar inaceitando os selfs que despontam), mas a mudança é clara, substancial e – acredito – irreversível. Ir-re-ver-sí-vel apesar das hordas furiosas que bufam de perder o controle dual sobre o mundo; irreversível apesar dos recalques que espumam, dos pavores e raivas não psicanalisados que babam sua frustração. Os tempos: não há controlar-lhes os ventos.

Quem está em sala de aula e observa os neojovens já deve ter notado que o que vem por aí são pessoas mais tranquilas com relação às diferenças de todo tipo – até porque o número de alunos incluídos entre os neurotípicos tem subido bastantemente –, pessoas com mais referências midiáticas para entender o que sentem, pessoas menos engessadas em ous, menos ocidentalmente maniqueístas, menos intimidadas em expressar-se, em ousar no look, em assumir suas vontades. É perfeito? Eeeeita, muito aquém disso; porém estamos caminhando com passos que se alargam de um ano para o seguinte. No girar maciinho do planeta, o sapiens esperadamente evolui, desfaz-se de cismas caducas, de preconceitos vários, e quanto maior a altitude do salto – mais azul e simples o panorama fica.

A gente é que (ainda) complica.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Glossarices alternativas


Apptecer: ceder a seduções gastronômicas via iFood, Rappi e tais quais.

Asconcordância/asconvergência: fraternidade estabelecida pelo fato de todas as pessoas envolvidas sentirem repulsa pelas mesmas figuras e ideias.

Danônimo: consumidor misterioso (em ambiente doméstico ou profissional) de iogurtes adquiridos e reservados por outrem.

Desapairecimento: notória técnica de aborto masculino.

Estabulocimento: local frequentado exclusivamente por bolsomínions.

Estradança: hábito de costurar kamikazemente por vias intermunicipais.

Feudaliso: indivíduo dotado de baixo poder de compra e altas doses de ideologia reacionária; aka pobre de direita.

Gratilho: rompante de cólera provocado pela exposição a elementos e seguidores da filosofia gratiluz.

Ivermectinder: aplicativo voltado para relacionamentos entre negacionistas que, por enquanto, sobrevivem.

Lantejoule: unidade utilizada para medir a quantidade de energia mecânica, friccional e lavatória despendida na remoção de resíduos carnavalescos.

Levianta: criatura usualmente frequentadora de estabulocimentos e compartilhadora de disparates defendidos no zap do tio Rubão e na programação da Jovem Pan.

Tórpico: assuntorpe de raízes não necessariamente verídicas abordado em mídias isentas de sinais civilizatórios, como o zap do tio Rubão e a programação da Jovem Pan.

(Sempre um novo absurdo amanhã.)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Mais sinopses distópicas que não sei se há, mas poderia haver


Numa sociedade futuro-ditatorial, bebês não pertencem necessariamente às famílias que os geram: é preciso que os pais apresentem um "projeto de atuação" em até duas semanas após o nascimento da criança, explicando detalhadamente como pretendem educá-la para o bem do processo civilizatório. Acontece que famílias de menor instrução e poucos recursos raramente conseguem dar conta da burô, e em sua maioria acabam perdendo a guarda para casais mais capacitados. Cientes da treta, um casal de recém-pais apela para o extremo: o homem esconde o filho numa galeria subterrânea especialmente construída, e deixa lá sua irmã, tia da criança, como ama de leite (já que ela recentemente perdeu um filho no parto); em seguida, pai e mãe apresentam o cadaverzito do sobrinho como seu – e ganham, na qualidade de consolo estatal, o certificado de parentalidade do bebê morto. Era o que esperavam para poderem acorrer ao esconderijo do filho real e fugir com ele, agora devidamente documentado, antes que as autoridades identifiquem a existência de uma criança sem registro; previsivelmente, no entanto, descobrem que a ama fugiu por sua vez com o pequeno rechonchudo, e se põem na cola da raptora apavorados de que ela venha a ter confiscado o bebê do qual não tem a "posse" oficial.

Em outra sociedade futuro-ditatorial, amores são considerados elementos de desordem e punidos com a forca. Muitos casais sinceramente apaixonados, portanto, precisam armar para que sejam obrigados a casar-se por conveniência, de preferência mostrando uma certa antipatia recíproca.

Uma nova espécie de microvida parece alimentar-se de todas as cores existentes no planeta, que desbota consideravelmente na mesma medida em que os organismos cromofágicos se agigantam.

Um mundo inteiramente agrotoxicado é habitado apenas por humanos que desenvolveram uma resistência específica, mas também alguma espécie de mutação colateral: peles encouraçadas, olhos horrendamente esbugalhados e sanguíneos, substituição dos cabelos por espinhos agudíssimos etc. A verdade universalmente defendida é que somente elementos do mesmo "grupo mutante" conseguem procriar – o que não impede, óbvio, um Romeu que só respira embaixo d'água e uma Julieta que solta fogo a cada fala de se apaixonarem estapafurdiamente.

Como, aliás, toda a gente.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Sinopses distópicas que não sei se há, mas poderia haver


O governo sequestrador de determinado país proíbe árvores de Natal. Nem desenhos em cartões, nem luzinhas em palmeiras de rua, nem cones: pro-í-be. Pessoas adequadamente rebeldes dão de costurar e vestir roupas verdes com acoplamento de luzinhas, formando uma Gangue da Árvore de Natal que frequenta locais públicos encarnando as cujas – manifestos vivos, protestos perambulantes pelo direito à festa pressentida.

Uma jovem cientista desenvolve uma fórmula que a torna temporalmente fluida, apta para rolês curtos em eras alheias. No entanto, o colega psicopata (que tem pela moça daquelas típicas obsessões dúbias) rouba uma parte da substância e, para vingar-se da rejeição sofrida, vai ao passado matar ainda no berço alguns gênios inspiradores da cientista e guias da humanidade. Isso naturalmente atrasa horrores a evolução do planeta – e quando o vilão revela tudo à jovem, num presente alternativo em que ela nunca chegou a virar cientista, a revolta e o senso de responsabilidade a fazem sentir que é preciso desenvolver seus próprios recursos para repor a História num eixo mínimo.

Restolhos de poluição começam a reagir quimicamente com o ar e outros elementos, o que gera colateralices calamitosas: um ruído constante, rascante, insustentável que vai levando à loucura populações de grandes cidades. Algumas poucas pessoas imunes a essa influência precisarão atravessar hordas raivosas, praticamente zumbizadas, para conseguir abandonar suas próprias vizinhanças e buscar um locus amoenus o mais possivelmente rústico.

Restolhos de poluição começam a reagir etc. etc., o que gera a colateralice ainda mais calamitosa de ninguém saber mais se acordará. Literalmente. Uma estranha doença faz os cidadãos simplesmente "desligarem" durante o sono, sem garantias de que voltarão de cada dormida. Pesquisadores se debruçam, óbvio, sobre a moléstia que parece passar como o anjo bíblico da morte no Egito, mas existe a chata inconveniência de uns cientistas precisarem manter os outros permanentemente acordados e se arriscarem a matar/morrer também por privação de sono.

As máquinas não obedecem mais. Não parasitam a humanidade, não roubaram o sol, não desejam se esfalfar dominando o mundo: apenas não obedecem, fazem o que lhes dá no HD. É preciso que determinados profissionais (que passam a ser os mais disputadíssimos e remuneradíssimos) convençam a robozada insurgente a trabalhar como dantes, na base de uma nova psicologia. Claro está que esses maquinalistas humanérrimos se transformam, pouco a pouco, nos mais recentes ditadores do mundo, guerreadores entre si para ver quem controla a maior quantidade de tecnopsiquês.

E tudo já era, outra vez.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Piluleatórias 3


O termo lavável tem duas manifestações: "pode lavar que sai" e "pode lavar que não sai".

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Uma obra sem título é como um filho que não se pode pegar no colo; a desidentidade verbal guarda uma imaterialidade, uma angústia de inexistência.

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Haver calçados de tecido branco prova que a humanidade escamba a razão pela alegria de ser randômica.

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E os palheiros reiteradamente pintados por Monet provam a beleza como predicativa – não pertence: vem.

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Sou tão de humanas que chego a ver espíritos de palavras onde elas não moram, ter miragens vocabulares inteiras no meio de paisagens que elas não frequentam. Médium dicionária.

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Bicicletas não têm um parentesco romântico com relógios e moinhos?

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Cafeína (também olfativa) aumenta o volume em que falam os livros.

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Trata-se de um mal-entendido natural que não haja uma pedra preciosa – cor de âmbar – chamada alméride.

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Certas colchas de retalhos parecem um buquê de pipas.

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O Windows 11 sabe dar a má notícia da bateria arriada com a doçura dum barulhinho que não invade nem espanta; é quase um pedido de perdão legítimo por nos fazer intermediários de tomada.

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Bichos-da-seda almoçam a folha com circunspecta organização: uma fileira, outra fileira, outra fileira. Perdem nunca o fio da meada.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Juro que também existe


uma linha reta de até 56km esperando para ser traçada, dentro de cada lápis.

uma lei californiana que proíbe carros sem motorista de rodar a mais de 100km/h. É, eu também ia perguntar; acho melhor não.

mais salgadume no Oceano Atlântico do que no Pacífico.

um inventor galês, Bill Frost, que parece ter criado uma máquina voadora já em 1895, mas sem muito sucesso; más línguas históricas fofocam que a geringonça desabou numa árvore logo após decolar e foi, mais tarde, destruída por um vendaval. Não é todo mundo que nasce para Santos Dumont, né, migues.

capacidade, nos cães, de distinguir um idioma familiar de um desconhecido, além de perceber a diferença entre fala e bobagem sonora aleatória.

um "Castelo de Frankenstein" perto de Darmstadt, Alemanha, acreditadamente assombrado pelo alquimista Johann Konrad Dippel. Não sei o que Dippel andou fazendo por aquelas bandas (e tudo indica que o castelo ruinento nem está tão dippel assim – mil perdões por isso), mas contam que Mary Shelley se inspirou na construção para escrever sua famosa história monstrinha.

a megainsólita tradição venezuelana de ir para a igreja de patins, na manhã de Natal.

um lugar na Nova Zelândia modestamente chamado Taumatawhakatangihangakoauauotamateaturipukakapikimaungahoronukupokaiwhenu.

uma iguaria tailandesa feita de saliva – saliva de andorinhão, no caso, que forma o ninho salgadinho e cobiçado da ave.

uma lenda a respeito do batismo do computador HAL, vilão de 2001: uma odisseia no espaço; note que as letras em questão antecedem aquelas que formam o nome IBM. Entantomente (e infelizmente, já que desmancha toda a treta), HAL vem de Heuristic ALgorithmic. Que puxa.

um episódio de Gilmore girls que cita a Xuxa.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Juro que existe


um torneio de remo alemão, na cidade de Fambach, em que os barcos são abóboras gigantes.

um costume, na Espanha, de as crianças deixarem seus dentitos de leite para o Raton(cito) Pérez, que sai de sua caixa de biscoitos – onde mora com a crush, La Ratita Presumida – para se apossar da prenda e retribuir com um presente.

um animal marinho (a moreia-fita) capaz de mudar de sexo várias vezes em sua úmida existência.

uma lei antigaça em Milão que força os cidadãos a sorrirem o tempo todo.

e uma lei na França que proíbe que se batize um porquinho de Napoleão.

(por falar nisso, existe uma impossibilidade física de os porquitos olharem para o céu.)

um crustáceo PELUDO chamado caranguejo-yeti, que vive a mais de 2 mil metros de escuridão e profundeza.

um livro cujo título contém 670 palavras. Fineza não me perguntarem qual.

uma determinação natural de as formigas caírem para a direita quando são intoxicadas – o que considero uma dica biológica redondíssima.

uma fobia específica que consiste no medo de estar sendo observado por um pato.

um método empregado por algumas empresas japonesas para infernizar tanto tanto tanto a vida dos funcionários indesejados que eles mesmos acabam se demitindo (perdendo, assim, os benefícios que conservariam se o empregador os defenestrasse). Eis a safadeza: mandam-se os empregados que estão na mira para as oidashibeyas, ou "salas de banimento"/"salas de expulsão", onde são obrigados a fazer apenas tarefas horrivelmente maçantes e inúteis. Relegados a essa humilhação por semanas, meses, os infelizes enfim cometem o harakiri financeiro que é do gosto dos patrões.

gente estocolmizada que ainda acredita que no capitalismo há alegres exceções.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Piluleatórias 2


Florença é um dos raros, salteados casos nominais em que o original não faz jus à tradução.

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Tenho uma simpatia agradecida pelos que olham a mistura verdeazul e cravam: "esse objeto turquesa". Não dizem cá, não dizem lá, não puxam para o azul nem para o verde; mandam "turquesa" assim lotericamente, com observação passada na peneira de tão fina. Amo a sofisticação (simplíssima no entanto) de se chamarem coisas pelo preciso nome que têm.

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(Nazista, por exemplo.)

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Entre outros 8.974 desníveis de rotina, homens nunca saberão a frustração de ter uma blusa perfeita em mil âmbitos e, muito porém, olhá-la triste: será decotada demais para o trabalho? A violência nos traspassa desde o grande nicho do medo até o nicho suspiroso do desperdício.

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Devíamos usar mais, também, palavras com belo ditongo crescente, como subitâneo.

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Paisageado pelos cabelos da moça de costas no metrô, o brinco era direitinho, em silhueta, o relógio do Museu D'Orsay.

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Tell me about incompatibilidades da vida, você que também gosta de blusas AND saias estampadas.

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A geladeira dá estalos agonizantes. Eu gelo.

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O sono nos faz lançar ideias no quarto da bagunça – depois haja lanterna e lucidez para um outra-vez.

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Às vezes o estômago anda tão discutível que chega a se anojar de cores, recusar-se a vestir tons com náusea física. Às vezes o mesmo tom lhe dá obsessões. Não é um estômago, é um gato digestório.

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Um país: vagão aleatório.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Dias que não


Há dias que não, simplesmente não. Um não que não mora necessariamente no que acaba sendo de maneira torta, mas no que de toda maneira deixa de ser: a vontade geral que resmunga e dá de ombros, o apetite que não suspira por nada e faz cara de aceitação indiferente, o sono que nem se concilia nem deixa de pesar nas pestanas, o fastio que muxoxa toda leitura e todo programa, todo assunto e toda tarefa, toda iniciativa e todo ensaio. São uns dias imprecisamente tristes, ou nem tristes, mas ocos por angústia vaga – dias que não inspiram e que correm se-empurrentos, ao mesmo tempo rápidos demais para todas as obrigâncias que flutuam feito minifatalidades. Dias neblinos.

Hoje é um dos tais, dum cinza-qualquer-coisa e uma impressão exausta que vem mezzo de sono indormido, mezzo de sonho perturbador, confuso, irritante como aqueles episódios do Pica-Pau com protagonista esbugalhado e claramente cocainômano. Não sinto cores ao escrever, nem especiais sabores, nem músicas (que em geral, aliás, me perturbam o juízo tocando no modo randômico de dentro); sinto uma fadiga de gente atrasada, tão atrasada que beira uma resignação sonolenta e simplesmente vai porque tem de ir, anda porque tem de andar. Sinto como uma vontade debruçada em janela de avião quando há apenas branco, branco, branco do lado de fora, enjoado, tedioso, despaisajado, cheio de constantes desestímulos e de simultâneas insuficiências para se qualificar de tristeza; não é tristeza, é funcionamento mental em regime burocrático, é uma carimbação de papel psicológica. Não se anima nem para o desfastio.

É interessante que possamos nos dizer assim sem que nos diagnostiquem uma depressão supurante (que, prometo, não é o caso): ter a liberdade de um ou outro dia de platitudes e compreender docemente que são normais as visitas dessa mansa desmotivação. Já sou de natural remansosamente melancólico, que é o jeito de estar também permanentemente alegre sem muita fadiga; nessa toada, encarar vez ou outra um recolhimento da energia não é desesperador nem exige reação de urgência, é apenas algo a receber um autoabraço solidaríssimo, um aceno cordial. Acontece, existe, passa – é belamente humano, e o humano por sinal rebentaria se habitasse os píncaros todas as horas. Um dia não, sem exaspero, pode muito bem ser incubadora oxigenada dos dias sim.

Sem ai-de-mim.