segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Ode ao desromantismo


A verdade é que renunciamos sempre, sempre, grande ou minusculamente, esteja a consciência ou não em plena vigília. Se é de uma viagem dos sonhos que se trata, por exemplo, afora o emagrecimento da conta bancária em níveis anoréxicos há a excruciante preparação da bagagem – que só não é excruciante para os que não têm de calcular desde o momento menstrual até a menorzita alteração de saúde possível, para fins de estoque farmacêutico (e isso porque não sou mãe; por essas e semelhantes outras é que não quero). Se a viagem já está de vento em popa, podes crer que ao alumbramento do passeio há de se mixar também a garganta excessivamente seca sob o clima (digamos) europeu, a tentativa dessa garganta de evitar imensas hidratações – para que a busca do banheiro não seja tão eterna quanto Roma –, as onipresentes filas, as discussões de grupo, os desencontros, os calos, as bolhas, o cansaço que não repousa porque caminha o dia inteiro e madruga no seguinte. Estou reclamando? de modo algum, listando apenas; e não sei para vocês, mas a lista desglamourizada e consciente de todas as aborrenúncias me ajuda muitíssimo quando é forçosa a renúncia contrária: se posso viajar, maravilha, que espetáculo, vamos em frente; se não posso (e por enquanto não posso), tudo igualmente bom, é um tempo de descanso de bolhas e malas e sede insaciável. Saber todas as desvantagens me empurra também a ver vantagem em tudo.

Dar aula presencial esgota a voz e os nervos, porém diminui a carga de preparações da versão remota – além do quê, vejam que fabulosidade, o almoço na escola é tão presencial quanto as perrenguices. O calor do Rio nos obriga ao ar-condicionado e nos esgota até a medula, e no entanto eu simplesmente ADORO não ter de abrir a água quente durante o banho. Certo, andar de saia me deixa ainda mais vulnerável à mosquitada que me lancha diariamente, e saia é às vezes indomável, saia voa; mas não é extraordinário passar o ano in-tei-ri-to sem me enfiar no abafamento duma calça comprida? Caminhar de sandália é certamente mais desconfortável do que de tênis – o que não impede de ser notavelmente mais fresco, com o bônus interessantíssimo de não acrescentar meias ao cesto de roupa suja. Estar enfiado no escritório num dia quente e azul não é exatamente o ideal paradisíaco de cidadão nenhum; apesar disso, há grandes chances de se estar aproveitando uma gorda refrigeração do ar sem pagar por ela, e bebericando uma aguinha gelada sem gastar a própria.

Não assistir ao filme no cinema – templo sagrado – é muimente mais caído, desprovido de som profissa, telãozão e cheiro de pipoca; mas em casa não há gente comentadeira e checadora de celular, e há a oportunidade linda de pausar a história se a natureza chamar inelutavelmente. Ter bichinhos é explosão certa de amor e fofura, porém não tê-los é garantia redonda de casa mais limpa, despesas menores e sapatos desroídos (extensivo a filhotes humanos). Não escrever é uma liberdade da qual já sinto falta; escrever é uma liberdade outra, um jeito de passar a mão no idioma de maneira permissiva e quase sensual. Estar na infância é bom com sua ausência de boletos, sua fantasia galopante e seus Natais embrinquedados; ser adulto, no entanto, é fantasticamente insubstituível se existe um mínimo de autonomia e ciência das próprias forças, das próprias asas que batem sem autorização e sem tutela.

Desromantizar é minha romantização assegurada: há paisagem em toda janela.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Narrativas


Narrativas (talvez a palavra mais conspurcada dos últimos anos) servem também para isto: para se prestar a tratamento dos que, como eu, não sabem lidar internamente com o término de coisas boas. E nem falo de coisas boas necessariamente imensas, tipo vidas ou fases; pequenices contam da mesma forma em sua peso-plúmica proporção – músicas favoritas que acabaram de tocar, um sabor particularmente luminoso que se esvaiu com a última fatia, uma novela em que tudo era familiar e redondo mas que precisou, por fado das novelas, ter um capítulo final. Não que não me saiba conformar, bem ao-contrariomente; me conformo com velocidade alarmante e que beira a frieza externa, já que pareço levar embutido esse dispositivo que vai fazendo o shake permanente da insaciabilidade com a indiferença e impedindo, assim, que o coração seja tragado por uma ou por outra. Narrativas.

O fim de uma série ou novela querida é bom porque sabemos finalmente o que ardíamos por saber, e porque paramos de sofrer por aquelas viditas que agora seguirão resolvidas e sãs, e porque teremos de novo mais tempo para outrices, e porque novas histórias virão que nos apaixonarão com querência de outro feitio. Um computador enfartou, mas sua memória ficará literalmente preservada em diferentes manifestações. Acabamos uma refeição magnífica num restaurante que ca-ram-ba, porém há TANTOS restaurantes carâmbicos ainda por conhecer. A música que tocou agorinha eu posso, se quiser, ouvir no celular outras 8.982 vezes seguidas. As férias que (ai!) passam tão ligeiras loguinhamente chegam de novo, fins de semana e feriadões estão sempre aí anyway, você piscou e já é Natal. O amado tempo de Natal escorre depressa, e está tudo bem: mais um ano inteiro para garimpar enfeites novinhos aos poucos. E esse ano inteiro que VOA? problema algum; quanto mais passam mais se aprochega a aposentadoria, nirvana de todos os assalariados sob o sol.

Lógico, não significa que não haja dores simplesmente inapalavráveis, nas quais a narrativa continua acontecendo para dentro mas apenas para dentro; qualquer mínima tentativa de verbalização as inflama. Porque não creio seja necessário dizer tudo, creio somente ser necessário dizer-se em todo idioma reconhecível por nosso pedaço consciente. Acredito no mecanismo fundamental: para o centro de comando não pode haver automentiras, todo canto da casinha mental deve ser muito entrável e limpo, e mesmo no quartinho da bagunça o chão há de estar visível, pisável, povoado só do que escolhemos botar nele e não de baratas ou ratos vindos de fonte ignorada. Não é crucial ser asséptico (nunca serei asséptica), ser funcional é que é preciso; tudo se desenrola fino quando existem mapeamentos e negociações de todas as dores.

Só para fins de navegabilidade pública podemos ser (como o poeta) bocadamente fingidores.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Meu vício desde o início

Acontece que sou uma cracuda verbal.

Tenho uma propensão descompensada para jogos com palavras e cheguei, talvez, ao fundo ou ao cúmulo quando passei a comprar (pela internet, dado o problema de distribuição atrelado à pandemia) só revistas A recreativa que vêm com as cruzadas todas em branco – I mean, sem os quadradinhos pretos para guiar as respostas. Foram dias lokos, emendando desafios e mais desafios como uma mentecapta, até que fiz uma longa pausa que ainda perdura; mesmo assim mantenho sempre uma dessas revistas na bolsa. Just in case.

O que não consegui superar foram os joguitos virtuais de anagrama (notadamente o do Geniol e o do Racha Cuca), de que peguei uma comprida enjoadice mas que, sem mais essa nem aquela, retomei com tudo, nos mesmos moldes obsessivos dos primeiros tempos: fico aguardando cada uma das quatro atualizações diárias e garro no negócio atééé atinar com todas as palavras possíveis – ou todas que os organizadores ACHAM possíveis, já que no estranho léxico das brincadeiras é preciso captar termos como lai ("pequeno poema da Idade Média"; conheces?) e oti (cachaça), porém o banco de verbetes parece ignorar estarrecidamente obviedades como coroa e lavanda. Espumo às vezes minha indignação psicótica com esses descritérios, tremo de insurreição, me afasto, mas passa o motim e acabo voltando para fazer palavras, fazer palavras, fazer palavras. Tanto quanto eu não entendo a graça dum sudoku, gentes de Exatas normalmente não veem o frisson pirlimpimpesco duma carreira de sílabas.

Mas claro, não bastava o vício anagrâmico, toda boa fissura avança para ingredientes cada vez mais fortes – e eis que descobri há coisa de dois meses o tal joguinho Termo, que viralizou não mais que de repente. Em simultâneo encontrei seu pequeno gêmeo, Letreco; de modo que passei a aguardar salivante não uma, e sim duas atualizações à meia-noite (cada uma das brincadeirinhas adota apenas uma palavra de cinco letras a cada 24 horas), além dos geniois e racha-cucas freneticamente acompanhados ao longo do dia. Cabou? cabou não; outros tantos cracudos vocabulares devem ter se arrastado aos pés da galera do Termo com olhos de Gato de Botas, porque os responsáveis pelo jogo adicionaram versões também diárias com DOIS e QUATRO diagraminhas para descobrirmos as palavras ocultas. Sim, ao mesmo tempo: as letras que se chutam para um aparecem escritas para todos, o que maxitiplica a dificuldade e, proporcionalmente, o barato. Vocês hão de convir que a janela cronológica para realizar coisas úteis anda menor que escotilha de submarino de rato.

Um oti, de fato.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Novas verdades para velhos verbetes


Amorosidade: relação afetiva existente entre a principal rede midiática brasileira e o ex-juiz da Operação Lava Jato.

Descomedimento: ato de trocar carreira humorística pela administração de um país, com implicações políticas que não têm graça nenhuma.

Desembolsar: libertar o povo brasileiro do atual ocupante do Planalto.

Enredar: atrelar as opiniões de um indivíduo a memes compartilhados em redes sociais.

Erradicar: defender afincadamente fake news e absurdidades semelhantes.

Escarnecer: tornar inflaçãomente impossível o consumo de carne pela população.

Euritmia: regência do mundo sob batuta EU(A)rocêntrica.

Extrato: acordo que se encontra, por ora, desfeito.

Geogênico: cidadão recém-autodiplomadamente especialista em geopolítica.

Precedente: pessoa ou nação condicionada a fazer as primeiras e maiores concessões.

Tremeluzente: característica de indivíduo que recebeu a conta da Light em tempos de calor mordoriano e bandeira vermelha.

Ululante: aberta e sonoramente favorável ao terceiro mandato presidencial do candidato do PT.

Tipo eu e você.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Eu também


Adoro os comes japoneses – sem usar hashi. Não posso com kiwi. Detesto zumbi, mas vi The walking dead. Chamo de thread os fios twítticos, confio em alguns políticos (com olhos críticos), acho paleolíticos todos os combates, todas as guerras disparates. Não tenho currículo Lattes, que não careci.

Só com palavras é que jogo, e se for solitário o jogo; por medo do fogo não acendo vela, boto cautela imensa no fogão, não tenho condição de pôr pressão na panela. Vejo novela às vezes, sigo fundo as que sigo: não ligo de lhes ser fiel por oito meses.

Em toda refeição raspo o prato. Sou péssima em manter contato e péssima de entender vinho (apesar de ter, sozinho, um bom olfato). Sinto inato um pendor pela França, por dança, não por criança: dispenso tanta mudança. Acho um plano sensato.

Não passo roupa, que muita vida se poupa; passo o carnaval muito quieta; não manjo bicicleta. Só curto homem beta – nada de alfa cretino, cabotino, de espírito leonino disputador de espaço. Eu passo.

Gosto de História; sou time Grifinória; tenho boa memória pra nome de aluno – durante o ano letivo; vivo segurando a bolsa para arredar gatuno. Acho inoportuno o papo em transporte coletivo.

Nunca usei furadeira, tenho birra de madeira (que mancha, que arranha), topo lasanha mas declino nhoque. Rio de frases de para-choque, de placa hilária, de graça involuntária; comédia me atazana. Não conheço Havana, Liubliana, Budapeste, Bucareste, Punta del Este, Varsóvia, Monróvia, Assunção nem Campos do Jordão, Amã nem Amsterdam, Asmara nem Jericoacoara nem Olinda.

Ainda.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Mulher com espelho

O pintor expressionista dinamarquês Carl Holsøe era basicamente um homem caseiro. I mean: não faço ideia de como era o cidadão em sua intimidade civil, porém artisticamente se mostrou sempre caseiríssimo, preferindo eternos retratos de interiores – móveis, janelas, bibelôs, cantinhos com instrumentos musicais – às vezes povoados de mulheres longínquas, recorrentemente flagradas de olhos baixos, de perfil ou de costas. Há uma serenidade de residência silenciosa em seus quadros, um clima de passeio gentil por cômodos iluminados com doçura, nos quais deslizamos pontinhando os pés a fim de não perturbar as mulheres que leem, maternam, refletem, tocam piano, como em cenas incidentais dum filme de época.

Veem o que digo na tela acima (Woman in an interior with a mirror, de 1898)? Não consegui não levar a fisgada logo que dei de olhos na perfeição de suas linhas muito suaves, limpas, generosas. É irresistível nos sugarmos para a cena íntima, empatizarmos com cada pedacinho de linguagem corporal da jovem que se prepara para sair e se testa diante do espelho. Sabemos que é a penúltima olhada, não a última; não é a última porque o chapéu pende ainda dos deditos que mal o tocam para não marcá-lo – e qual senhora ou senhorita sairia sem checá-lo milimetricamente nos cabelos, muito já assentadinho e resolvidinho sobre os fios? Sabemos também que a moça, embora vaidosa a ponto de se estar contemplando antes do arremate, e embora languidamente sensual de se admirar com o xale semiescorregado (e permitir a mechinha escapante na nuca), dá vazão a preferências discretas; é sintomático que o chapéu escolhido tenha a cor exata de seus cabelos e possivelmente se mescle inteiro a eles, tanto quanto o traje não pareça contar com nenhum adorno. Será uma qualqueridade, aliás, que o chapéu case mui perfeitamente com o móvel – e a roupa, com todo o restante ambiente que abraça a musa silenciosa? Será uma qualqueridade que o invisível de seus pés, imersos na sombra do vestido e no mar do piso escuro, dê à jovem protagonista o efeito de flutuância?

Não me parece uma mulher propriamente triste, parece-me uma mulher que leva a tiracolo certa resignação distraída de seu potencial feminil, certa moleza na vontade estética, um conformismo de gente séria que é simplesmente séria e se concede só uns pouquinhos escapes de xale. Mas ama o próprio colo, a moça, ah, lá isso ama; note-se que é sobre ele seu foco reflexivo, e que não à toa o xale permanece arriado, e que o chapéu provavelmente sombreante ainda não foi posto. Por que motivo, senão um enamoramento da parte superior do corpo, uma mulher que se arruma para sair se demora diante dum espelho que nem a reflete inteira (e por sinal é feito e posicionado para olhar de cima os moradores da casa)? Sim, essa jovem se ama com amor discreto, incompleto, como ela mesma é discreta e presumivelmente incompleta, ainda que não o saiba ou admita; quase posso ver-lhe o sorriso descampado durante a visita que fará, o sorriso protocolar de quem se avoou para outras terras ou não chegou a pousar nestas, vaga, flutuante.

Sorriso de mulher que apenas pressente merecer uma tirada de chapéu.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Mais coisas que você não pode morrer sem saber


Fogo não tem sombra.

Gatos não sentem o sabor doce.

A chance de um homem ser atingido por um raio tende a ser seis vezes maior que a de uma mulher.

A maioria dos ataques cardíacos acontece às segundas.

As pegadas dos astronautas ainda estão na Lua; afinal, não há possibilidade de erosão eólica ou pluvial por aquelas bandas.

Já tentaram vender a Nova Zelândia no eBay.

O tatu-canastra dorme cerca de 18 horas por dia.

Olhar da direita para a esquerda é um bom método para encontrar coisas, já que nossos olhos estão habituadinhos a ler da esquerda para a direita e podem, nesse sentido confortável, deixar os detalhes escaparem.

No Japão existe sorvete de alho.

Bebês só vêm a chorar COM LÁGRIMAS mais ou menos um mês após o nascimento.

Nosso corpo produz uma luz muito suavinha, embora não sejamos capazes de enxergá-la.

A girafa macho bebe a urina da fêmea a fim de saber se ela está no período certo para o acasalamento.

Durante a Revolução Industrial, algumas pessoas começaram a trabalhar como despertadores; podiam, por exemplo, lançar ervilhas com canudinhos nas janelas das criaturas acordáveis.

O medo excessivo de palavras longas demais tem o nome de hipopotomonstrosesquipedaliofobia.

Que ironia.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Coisas que você não pode morrer sem saber


Rapunzel, segundo consta, é a única princesa Disney de olhos verdes.

Falar em Disney: o nome do robozinho Wall-E foi inspirado em Walter Elias Disney, The Man da empresa.

Aurora tem pífias 18 falas em A bela adormecida.

As dubladoras de Ariel e Bela fazem pontinhas no filme Encantada.

Bruce, o tubarãomigo de Procurando Nemo, recebeu o mesmo nome do animatrônico usado na filmagem de, hum, Tubarão.

(Opa, pegando o embalo zoológico e dando um descanso pra turma das orelhinhas redondas:) a audição das cobras é praticamente nula, o que caracteriza como TOTAL caô aquele teatro de "encantar a naja".

Bichos-preguiça nadam bem, movendo-se, por sinal, três vezes mais rápido na água do que em terra.

Quando corvos voam baixo, pode crer que vem toró.

Ter o tipo sanguíneo O e beber cerveja são fatores atraentes para mosquitos (e eu, que não carrego o primeiro e odeio a segunda, realmente não sei o que faz de mim um McDonald's de inseto); aliás o lance etílico parece ser uma constante entre esses zumbidores insuportáveis, já que mosquitos machos de determinada espécie, quando rejeitados pela fêmea, tendem a se tornar alcoólatras.

Vacas, em geral, não conseguem descer escadas. E elefantes são os únicos mamíferos incapazes de saltar.

Existe um Campeonato Mundial de Arremesso de Celular.

E também de boxe-xadrez – esporte cuja partida inclui, alternadamente, seis rodadas do jogo de raciocínio (cada uma de quatro minutos) e seis da pancadaria (cada uma de três minutos). Sério. Não é em toda modalidade que se pode ganhar tanto por xeque-mate quanto por nocaute.

A presença de certos genes faz algumas pessoas sentirem gosto de sabão no coentro.

Na direção da constelação de Sagitário, parte mais brilhante da galáxia, é que a Via Láctea tem seu centro.

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Glossarices alternativas 2


Barbúrdia: discussão de boteco.

Caretime: grupo cujas ideias conservadoras beiram o reacionarismo.

Escabroxidade: ação/ideia de natureza repulsiva desenvolvida por criatura sexualmente frustrada.

Estilooping: característica de indivíduos REALMENTE apegados ao uso de suas peças favoritas.

Geografalho: ser que não sabe mencionar capitais de estados vizinhos, porém demonstra plena confiança em sua expertise geopolítica. Cf. geografraude; ucrano-palestrinha.

Kamikazen: criatura que empurra compromissos para o último segundo com serenidade acachapante.

Parcimonte: quantidade indefinida (e tendente ao infinito) de itens que deveríamos cumprir num autoacordo. Ex.: docinhos a serem comidos em época de dieta, ou minutos a serem gastos na rede social antes de se conciliar o sono.

Relativizinhar: contestar pesquisas e estatísticas com base no caso específico de um morador do prédio ou em exemplos colhidos no transporte público, no salão de cabeleireiro ou no zap do tio Rubão.

Ressentimedo: rancor provocado pelo receio da própria incompetência em lidar com necessidades e motivos alheios.

Usurpadono: equivalente a grileiro.

Vicissitudo: indivíduo empenhado em vencer qualquer campeonato imaginário de desgraças, seja qual for o perrengue vivido por seu interlocutor.

Xeroxigênio: tipo de filme ou livro a que se recorre insistentemente, para fins de spa das células cerebrais.

(Depois tem mais.)

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Eu


Há anos não leio revista. Odeio dentista. Esqueço sempre a palavra "maniqueísta". Seria romancista se houvera coragem. Só faço lista para blog e viagem. Concordo com vagem, amo batata. Sou procrastinadora nata. Curto programa de psicopata e quadro impressionista.

Vim noveleira da infância; não tolero intolerância; tenho fragrância de estimação, asco de mamão, paixão por saia rodada, nervoso de videochamada. Sou dada a atraso. Só nado no raso. Não crio caso por (quase) nada.

Não topo carnaval, excesso de sal, canal de esporte, esporte, corte em filme de tevê, óleo de dendê, clichê, dublê deslumbrado de herdeiro, programa açougueiro. Estou farta de fevereiro. Deixaria o ano inteiro a árvore de Natal.

Adoro cor de opalina, enxovalzito de menina, vitamina, pescaria de festa junina; detesto faxina mais que posso dizê-lo. Não tomo banho sem lavar o cabelo. Tenho pesadelo de escola, zero jeito com bola, montes de sacola; fico o pó da rabiola em dez segundos de corrida. Nunca na vida provei carambola.

Me amarro em gente sardenta. Não engulo os anos setenta. Sou lenta de manhãzita, não curto visita, tenho alma eremita, boto laço de fita em presente. Prefiro o tempo pra frente, mas amo os mil e oitocentos. Dispenso rebentos. Quero divisões aos centos numa bolsa favorita.

Não deixo música tocando, não me movo em bando, nem sei quando tem jogo do time. Cansei de regime. Acho um crime o capitalismo (ou milhares). Sou doida em colares, e prática da nuca aos calcanhares, amando embora o Romantismo. Visto um otimismo de cores singulares.

Sou uma abreviatura de abismo.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Simples assim


Uma aluna veio pedir conselhos sentimentais, com essa fé ainda mágica que adolescentes de 13 ou 14 anos têm na visão adulta. Tímida e bem-humoradamente como é seu costume, comentou que gosta de uma menina mas se sente muito aflita, já que a crush em questão anda conversando demais com um garoto e ela, minha aluna, teme que os dois acabem namorando; ao mesmo tempo, não sabe como interpretar os "te amo" que a outra guria lhe envia todo dia ou noite: afinal é amor ou amizade? Eu, que de toda a treta triângula só conheço uma ponta, não tinha lá muito como opinar – sugeri apenas que a menina (reservada em excesso para ser direta) procure, de início, sondar a outra a respeito dos sentimentos pelo moçoilo, sem comprometer-se; se houver realmente uma atração entre as duas pontas de lá, fica o não dito pelo não dito e paciência. Superconcordo não ser a atitude mais valente, mais arrojada, porém falei com a sinceridade de quem faria precisamente isso em minha cautelosa introversão: sentir o terreno antes de me expor de alguma forma. Na falta de qualquer base psicológica, só me saiu do cinto de (in)utilidades uma honestidade absoluta.

O que me deixou encantada, no entanto, foi a naturalidade com que a aluna expôs o drama adolescente, sem um mísero segundo de autoestranhamento pelo fato de estar interessada numa menina; que lhe importa? importa que a pessoa de seu interesse lhe corresponda, em vez de entabular namoro com um terceiro – os gêneros dos vértices envolvidos simplesmente não entram em questão. Uma tal leveza, quase impensável há coisa de dez anos, tem transbordado muito e muito dessa geração mais nova, visivelmente menos estressada com supostas determinações externas a respeito de orientação sexual e identidade de gênero; está longe, é certo, de haver tranquilidade pleníssima, em especial no embate com o povo mais velho (não faltam famílias a continuar inaceitando os selfs que despontam), mas a mudança é clara, substancial e – acredito – irreversível. Ir-re-ver-sí-vel apesar das hordas furiosas que bufam de perder o controle dual sobre o mundo; irreversível apesar dos recalques que espumam, dos pavores e raivas não psicanalisados que babam sua frustração. Os tempos: não há controlar-lhes os ventos.

Quem está em sala de aula e observa os neojovens já deve ter notado que o que vem por aí são pessoas mais tranquilas com relação às diferenças de todo tipo – até porque o número de alunos incluídos entre os neurotípicos tem subido bastantemente –, pessoas com mais referências midiáticas para entender o que sentem, pessoas menos engessadas em ous, menos ocidentalmente maniqueístas, menos intimidadas em expressar-se, em ousar no look, em assumir suas vontades. É perfeito? Eeeeita, muito aquém disso; porém estamos caminhando com passos que se alargam de um ano para o seguinte. No girar maciinho do planeta, o sapiens esperadamente evolui, desfaz-se de cismas caducas, de preconceitos vários, e quanto maior a altitude do salto – mais azul e simples o panorama fica.

A gente é que (ainda) complica.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Glossarices alternativas


Apptecer: ceder a seduções gastronômicas via iFood, Rappi e tais quais.

Asconcordância/asconvergência: fraternidade estabelecida pelo fato de todas as pessoas envolvidas sentirem repulsa pelas mesmas figuras e ideias.

Danônimo: consumidor misterioso (em ambiente doméstico ou profissional) de iogurtes adquiridos e reservados por outrem.

Desapairecimento: notória técnica de aborto masculino.

Estabulocimento: local frequentado exclusivamente por bolsomínions.

Estradança: hábito de costurar kamikazemente por vias intermunicipais.

Feudaliso: indivíduo dotado de baixo poder de compra e altas doses de ideologia reacionária; aka pobre de direita.

Gratilho: rompante de cólera provocado pela exposição a elementos e seguidores da filosofia gratiluz.

Ivermectinder: aplicativo voltado para relacionamentos entre negacionistas que, por enquanto, sobrevivem.

Lantejoule: unidade utilizada para medir a quantidade de energia mecânica, friccional e lavatória despendida na remoção de resíduos carnavalescos.

Levianta: criatura usualmente frequentadora de estabulocimentos e compartilhadora de disparates defendidos no zap do tio Rubão e na programação da Jovem Pan.

Tórpico: assuntorpe de raízes não necessariamente verídicas abordado em mídias isentas de sinais civilizatórios, como o zap do tio Rubão e a programação da Jovem Pan.

(Sempre um novo absurdo amanhã.)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Mais sinopses distópicas que não sei se há, mas poderia haver


Numa sociedade futuro-ditatorial, bebês não pertencem necessariamente às famílias que os geram: é preciso que os pais apresentem um "projeto de atuação" em até duas semanas após o nascimento da criança, explicando detalhadamente como pretendem educá-la para o bem do processo civilizatório. Acontece que famílias de menor instrução e poucos recursos raramente conseguem dar conta da burô, e em sua maioria acabam perdendo a guarda para casais mais capacitados. Cientes da treta, um casal de recém-pais apela para o extremo: o homem esconde o filho numa galeria subterrânea especialmente construída, e deixa lá sua irmã, tia da criança, como ama de leite (já que ela recentemente perdeu um filho no parto); em seguida, pai e mãe apresentam o cadaverzito do sobrinho como seu – e ganham, na qualidade de consolo estatal, o certificado de parentalidade do bebê morto. Era o que esperavam para poderem acorrer ao esconderijo do filho real e fugir com ele, agora devidamente documentado, antes que as autoridades identifiquem a existência de uma criança sem registro; previsivelmente, no entanto, descobrem que a ama fugiu por sua vez com o pequeno rechonchudo, e se põem na cola da raptora apavorados de que ela venha a ter confiscado o bebê do qual não tem a "posse" oficial.

Em outra sociedade futuro-ditatorial, amores são considerados elementos de desordem e punidos com a forca. Muitos casais sinceramente apaixonados, portanto, precisam armar para que sejam obrigados a casar-se por conveniência, de preferência mostrando uma certa antipatia recíproca.

Uma nova espécie de microvida parece alimentar-se de todas as cores existentes no planeta, que desbota consideravelmente na mesma medida em que os organismos cromofágicos se agigantam.

Um mundo inteiramente agrotoxicado é habitado apenas por humanos que desenvolveram uma resistência específica, mas também alguma espécie de mutação colateral: peles encouraçadas, olhos horrendamente esbugalhados e sanguíneos, substituição dos cabelos por espinhos agudíssimos etc. A verdade universalmente defendida é que somente elementos do mesmo "grupo mutante" conseguem procriar – o que não impede, óbvio, um Romeu que só respira embaixo d'água e uma Julieta que solta fogo a cada fala de se apaixonarem estapafurdiamente.

Como, aliás, toda a gente.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Sinopses distópicas que não sei se há, mas poderia haver


O governo sequestrador de determinado país proíbe árvores de Natal. Nem desenhos em cartões, nem luzinhas em palmeiras de rua, nem cones: pro-í-be. Pessoas adequadamente rebeldes dão de costurar e vestir roupas verdes com acoplamento de luzinhas, formando uma Gangue da Árvore de Natal que frequenta locais públicos encarnando as cujas – manifestos vivos, protestos perambulantes pelo direito à festa pressentida.

Uma jovem cientista desenvolve uma fórmula que a torna temporalmente fluida, apta para rolês curtos em eras alheias. No entanto, o colega psicopata (que tem pela moça daquelas típicas obsessões dúbias) rouba uma parte da substância e, para vingar-se da rejeição sofrida, vai ao passado matar ainda no berço alguns gênios inspiradores da cientista e guias da humanidade. Isso naturalmente atrasa horrores a evolução do planeta – e quando o vilão revela tudo à jovem, num presente alternativo em que ela nunca chegou a virar cientista, a revolta e o senso de responsabilidade a fazem sentir que é preciso desenvolver seus próprios recursos para repor a História num eixo mínimo.

Restolhos de poluição começam a reagir quimicamente com o ar e outros elementos, o que gera colateralices calamitosas: um ruído constante, rascante, insustentável que vai levando à loucura populações de grandes cidades. Algumas poucas pessoas imunes a essa influência precisarão atravessar hordas raivosas, praticamente zumbizadas, para conseguir abandonar suas próprias vizinhanças e buscar um locus amoenus o mais possivelmente rústico.

Restolhos de poluição começam a reagir etc. etc., o que gera a colateralice ainda mais calamitosa de ninguém saber mais se acordará. Literalmente. Uma estranha doença faz os cidadãos simplesmente "desligarem" durante o sono, sem garantias de que voltarão de cada dormida. Pesquisadores se debruçam, óbvio, sobre a moléstia que parece passar como o anjo bíblico da morte no Egito, mas existe a chata inconveniência de uns cientistas precisarem manter os outros permanentemente acordados e se arriscarem a matar/morrer também por privação de sono.

As máquinas não obedecem mais. Não parasitam a humanidade, não roubaram o sol, não desejam se esfalfar dominando o mundo: apenas não obedecem, fazem o que lhes dá no HD. É preciso que determinados profissionais (que passam a ser os mais disputadíssimos e remuneradíssimos) convençam a robozada insurgente a trabalhar como dantes, na base de uma nova psicologia. Claro está que esses maquinalistas humanérrimos se transformam, pouco a pouco, nos mais recentes ditadores do mundo, guerreadores entre si para ver quem controla a maior quantidade de tecnopsiquês.

E tudo já era, outra vez.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Piluleatórias 3


O termo lavável tem duas manifestações: "pode lavar que sai" e "pode lavar que não sai".

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Uma obra sem título é como um filho que não se pode pegar no colo; a desidentidade verbal guarda uma imaterialidade, uma angústia de inexistência.

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Haver calçados de tecido branco prova que a humanidade escamba a razão pela alegria de ser randômica.

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E os palheiros reiteradamente pintados por Monet provam a beleza como predicativa – não pertence: vem.

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Sou tão de humanas que chego a ver espíritos de palavras onde elas não moram, ter miragens vocabulares inteiras no meio de paisagens que elas não frequentam. Médium dicionária.

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Bicicletas não têm um parentesco romântico com relógios e moinhos?

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Cafeína (também olfativa) aumenta o volume em que falam os livros.

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Trata-se de um mal-entendido natural que não haja uma pedra preciosa – cor de âmbar – chamada alméride.

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Certas colchas de retalhos parecem um buquê de pipas.

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O Windows 11 sabe dar a má notícia da bateria arriada com a doçura dum barulhinho que não invade nem espanta; é quase um pedido de perdão legítimo por nos fazer intermediários de tomada.

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Bichos-da-seda almoçam a folha com circunspecta organização: uma fileira, outra fileira, outra fileira. Perdem nunca o fio da meada.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Juro que também existe


uma linha reta de até 56km esperando para ser traçada, dentro de cada lápis.

uma lei californiana que proíbe carros sem motorista de rodar a mais de 100km/h. É, eu também ia perguntar; acho melhor não.

mais salgadume no Oceano Atlântico do que no Pacífico.

um inventor galês, Bill Frost, que parece ter criado uma máquina voadora já em 1895, mas sem muito sucesso; más línguas históricas fofocam que a geringonça desabou numa árvore logo após decolar e foi, mais tarde, destruída por um vendaval. Não é todo mundo que nasce para Santos Dumont, né, migues.

capacidade, nos cães, de distinguir um idioma familiar de um desconhecido, além de perceber a diferença entre fala e bobagem sonora aleatória.

um "Castelo de Frankenstein" perto de Darmstadt, Alemanha, acreditadamente assombrado pelo alquimista Johann Konrad Dippel. Não sei o que Dippel andou fazendo por aquelas bandas (e tudo indica que o castelo ruinento nem está tão dippel assim – mil perdões por isso), mas contam que Mary Shelley se inspirou na construção para escrever sua famosa história monstrinha.

a megainsólita tradição venezuelana de ir para a igreja de patins, na manhã de Natal.

um lugar na Nova Zelândia modestamente chamado Taumatawhakatangihangakoauauotamateaturipukakapikimaungahoronukupokaiwhenu.

uma iguaria tailandesa feita de saliva – saliva de andorinhão, no caso, que forma o ninho salgadinho e cobiçado da ave.

uma lenda a respeito do batismo do computador HAL, vilão de 2001: uma odisseia no espaço; note que as letras em questão antecedem aquelas que formam o nome IBM. Entantomente (e infelizmente, já que desmancha toda a treta), HAL vem de Heuristic ALgorithmic. Que puxa.

um episódio de Gilmore girls que cita a Xuxa.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Juro que existe


um torneio de remo alemão, na cidade de Fambach, em que os barcos são abóboras gigantes.

um costume, na Espanha, de as crianças deixarem seus dentitos de leite para o Raton(cito) Pérez, que sai de sua caixa de biscoitos – onde mora com a crush, La Ratita Presumida – para se apossar da prenda e retribuir com um presente.

um animal marinho (a moreia-fita) capaz de mudar de sexo várias vezes em sua úmida existência.

uma lei antigaça em Milão que força os cidadãos a sorrirem o tempo todo.

e uma lei na França que proíbe que se batize um porquinho de Napoleão.

(por falar nisso, existe uma impossibilidade física de os porquitos olharem para o céu.)

um crustáceo PELUDO chamado caranguejo-yeti, que vive a mais de 2 mil metros de escuridão e profundeza.

um livro cujo título contém 670 palavras. Fineza não me perguntarem qual.

uma determinação natural de as formigas caírem para a direita quando são intoxicadas – o que considero uma dica biológica redondíssima.

uma fobia específica que consiste no medo de estar sendo observado por um pato.

um método empregado por algumas empresas japonesas para infernizar tanto tanto tanto a vida dos funcionários indesejados que eles mesmos acabam se demitindo (perdendo, assim, os benefícios que conservariam se o empregador os defenestrasse). Eis a safadeza: mandam-se os empregados que estão na mira para as oidashibeyas, ou "salas de banimento"/"salas de expulsão", onde são obrigados a fazer apenas tarefas horrivelmente maçantes e inúteis. Relegados a essa humilhação por semanas, meses, os infelizes enfim cometem o harakiri financeiro que é do gosto dos patrões.

gente estocolmizada que ainda acredita que no capitalismo há alegres exceções.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Piluleatórias 2


Florença é um dos raros, salteados casos nominais em que o original não faz jus à tradução.

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Tenho uma simpatia agradecida pelos que olham a mistura verdeazul e cravam: "esse objeto turquesa". Não dizem cá, não dizem lá, não puxam para o azul nem para o verde; mandam "turquesa" assim lotericamente, com observação passada na peneira de tão fina. Amo a sofisticação (simplíssima no entanto) de se chamarem coisas pelo preciso nome que têm.

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(Nazista, por exemplo.)

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Entre outros 8.974 desníveis de rotina, homens nunca saberão a frustração de ter uma blusa perfeita em mil âmbitos e, muito porém, olhá-la triste: será decotada demais para o trabalho? A violência nos traspassa desde o grande nicho do medo até o nicho suspiroso do desperdício.

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Devíamos usar mais, também, palavras com belo ditongo crescente, como subitâneo.

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Paisageado pelos cabelos da moça de costas no metrô, o brinco era direitinho, em silhueta, o relógio do Museu D'Orsay.

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Tell me about incompatibilidades da vida, você que também gosta de blusas AND saias estampadas.

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A geladeira dá estalos agonizantes. Eu gelo.

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O sono nos faz lançar ideias no quarto da bagunça – depois haja lanterna e lucidez para um outra-vez.

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Às vezes o estômago anda tão discutível que chega a se anojar de cores, recusar-se a vestir tons com náusea física. Às vezes o mesmo tom lhe dá obsessões. Não é um estômago, é um gato digestório.

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Um país: vagão aleatório.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Dias que não


Há dias que não, simplesmente não. Um não que não mora necessariamente no que acaba sendo de maneira torta, mas no que de toda maneira deixa de ser: a vontade geral que resmunga e dá de ombros, o apetite que não suspira por nada e faz cara de aceitação indiferente, o sono que nem se concilia nem deixa de pesar nas pestanas, o fastio que muxoxa toda leitura e todo programa, todo assunto e toda tarefa, toda iniciativa e todo ensaio. São uns dias imprecisamente tristes, ou nem tristes, mas ocos por angústia vaga – dias que não inspiram e que correm se-empurrentos, ao mesmo tempo rápidos demais para todas as obrigâncias que flutuam feito minifatalidades. Dias neblinos.

Hoje é um dos tais, dum cinza-qualquer-coisa e uma impressão exausta que vem mezzo de sono indormido, mezzo de sonho perturbador, confuso, irritante como aqueles episódios do Pica-Pau com protagonista esbugalhado e claramente cocainômano. Não sinto cores ao escrever, nem especiais sabores, nem músicas (que em geral, aliás, me perturbam o juízo tocando no modo randômico de dentro); sinto uma fadiga de gente atrasada, tão atrasada que beira uma resignação sonolenta e simplesmente vai porque tem de ir, anda porque tem de andar. Sinto como uma vontade debruçada em janela de avião quando há apenas branco, branco, branco do lado de fora, enjoado, tedioso, despaisajado, cheio de constantes desestímulos e de simultâneas insuficiências para se qualificar de tristeza; não é tristeza, é funcionamento mental em regime burocrático, é uma carimbação de papel psicológica. Não se anima nem para o desfastio.

É interessante que possamos nos dizer assim sem que nos diagnostiquem uma depressão supurante (que, prometo, não é o caso): ter a liberdade de um ou outro dia de platitudes e compreender docemente que são normais as visitas dessa mansa desmotivação. Já sou de natural remansosamente melancólico, que é o jeito de estar também permanentemente alegre sem muita fadiga; nessa toada, encarar vez ou outra um recolhimento da energia não é desesperador nem exige reação de urgência, é apenas algo a receber um autoabraço solidaríssimo, um aceno cordial. Acontece, existe, passa – é belamente humano, e o humano por sinal rebentaria se habitasse os píncaros todas as horas. Um dia não, sem exaspero, pode muito bem ser incubadora oxigenada dos dias sim.

Sem ai-de-mim.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Não é conversa de botequim


 (E que Noel me permita cantar assim:)

Ô justiça, faz favor de reagir depressa,
Gente da suástica é pra ser encarcerada
Um ser decente, quando bebe à beça,
Não diz "heil" e só vomita a cervejada

Bota essa extrema-direita pra ver sol quadrado
Leva lá pro esgoto e deixa a gente aqui no sol
Vai o nazista e quem 'tiver do lado,
Que se ficou do lado é do mesmo rol

Se permanecer na mesma mesa
Também é cúmplice, até por fraqueza
Não se inclui a exclusão
Nem em papo de banheiro,
Nem em bom-dia no portão

Não precisa estar gritando "mito"
Pra ser fascista já de gabarito,
Nem rosnar o tempo inteiro:
Basta ver algum nazista
E achar corriqueiro

Ô justiça, faz favor de reagir depressa,
Gente da suástica é pra ser encarcerada
Um ser decente, quando bebe à beça,
Não diz "heil" e só vomita a cervejada

Bota essa extrema-direita pra ver sol quadrado
Leva lá pro esgoto e deixa a gente aqui no sol
Vai o nazista e quem 'tiver do lado,
Que se ficou do lado é do mesmo rol

Bora pôr pra jogo as nossas leis,
Como a querida sete-sete-um-seis
Não é só palavrório
Tem artigo feito luva
Contra o bando de finório

Ô, justiça, mete em cativeiro
O malfeitor que se diz galhofeiro
Não convém ser transigente:
Quem assiste a essa torpeza
E se cala – consente.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A torre de cavalos azuis


Opa, níver de 142 anos do expressionista alemão Franz Marc, fãzaço de cores vivíssimas e de animais, especialmente cavalos. Como há cavalos na obra do pintor! Cavalos vermelhos, cavalos azuis em abundância – aliás é o exatinho espírito da tela acima, The tower of blue horses (1913), em que o autor agrupa logo quatro equinos de enfiada. A pintura não tem como ser mais alegórica e mítica, com seu título que daria romance grandalhudo, seus animais fabulosos quase que feitos de céu (talvez literalmente, já que a criatura exibida em primeiro plano traz no corpo uma lua crescente e uma cruz sugestiva de estrela), seu arco-íris alternativo ao fundo, tinto apenas de verde, amarelo e laranja. Tão épico parece, tão talhado para sagas, que não tenho como não imaginar uma qualquer lenda escocesa, élfica, românica, nibelunga relacionada ao quadro – dessas histórias de muito espectro, muita cavalgada noturna com som e sem imagem, ou com imagem e sem matéria, ou com famílias milenares de cavaleiros encantados que pipocam das molduras.

Em minha lenda imaginária (com o perdão da redundância), há sim um clã ultradicional daqueles tempos sem tempo, no qual nasceu um jovem notavelmente rebelde e discrepante chamado Yaloth. Não é que não quisesse adequar-se à rotina de cavaleiro que todas as gerações pregressas haviam encarado; era, entretanto, incapaz de dominar um cavalo sem sofrer horrivelmente com o sofrimento que julgava infligir ao animal, e ao mesmo tempo tinha um apetite tão furioso pelo mar que era invariavelmente encontrado correndo junto às ondas, correndo, correndo, correndo com ganas iguais de quem busca e de quem foge. Quando a família procurou casá-lo, como uma tentativa antiquíssima de curá-lo da loucura, Yaloth a princípio desesperou-se; amava o mar e só ele, não queria comprometer seu coração oceânico com ninguém que não fosse aquela vastidão. Não imaginavam, porém – nem ele, que temia uma influência ameaçadora, nem os parentes, que esperavam uma decisiva –, o tipo de reação apaixonada da noiva Zandess ao conhecê-lo: como nada escapava a seu olhar de feiticeira secreta, e como ao primeiro relance ela compreendeu que jamais seria correspondida, decidiu consigo mesma torná-lo feliz a fim de tê-lo de alguma forma. Se era o mar que o moço desejava, assim fosse; Zandess esgotou toda a sua generosa magia transformando Yaloth em ondas sem que ele perdesse sua individualidade, algo possível porque ela lhe atribuiu um formato específico, apesar de fluido: fez do noivo um cavalo todo de mar, em homenagem ao enorme respeito do jovem por esses animais e em alusão a suas corridas extremas, mais parecidas com galopes solitários.

Quando os familiares descobriram a traição da moça que deveria trazer Yaloth a seus supostos deveres, em vez de libertá-lo, acusaram-na de bruxaria e a aprisionaram numa torre inacessível, de onde a exaustão de seus poderes não lhe permitia fugir. Mas o rapaz metamorfoseado revoltou-se contra essa violência e, em dívida de gratidão, foi adentrando as terras feito tsunami equina, tudo derrubando e tudo varrendo até chegar à torre em que estava a noiva encarcerada. Quem sobreviveu ao formidável maremoto contou ter visto cavalos e mais cavalos líquidos, azuis, marítimos se empilhando para atingir a janela de Zandess, que fugiu da prisão montada no cavalíder e usou suas últimas forças mágicas para fundir-se ao amado: gravou-se para sempre ao corpo deste em forma de lua e estrela, símbolos de casamento em sua cultura. Tempos afora, sempre que um prisioneiro injustiçado desaparecia do cativeiro, alguém inevitavelmente dizia ter visto uma torre de cavalos azuis e uma tempestade de ondas enfurecidas no entorno – e, ainda que ninguém dissesse, eram visíveis os efeitos duma tormenta marinha até em regiões muito distantes da costa. Sustenta-se tenha sido (e continue sendo) parte da luta dos incompreendidos Yaloth e Zandess para libertar todos os acusados de cometer liberdade urgente.

(Se por acaso sentir cheiro de mar onde não cabe: já sabe.)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Good-vibeísmo


Claro, ninguém quer ou merece ficar na órbita de gente ranzinzeira, que arranja três torós pra cada nesga de céu azul – gente que faz campeonato de sofrimento, que gruda feito dementador nas conversas, que manda a energia pras cucuias, que desoxigena qualquer ambiente com sua insistência em desencorajar iniciativas e azedar resoluções. Vade retro, eu, hein; carrapatize outro. Agora: por acaso tem coisa mais enervante que a versão oposta, o good-vibeísmo que GALOPA sobre o sagrado direito de não estar bem? Chega a haver plaquinhas absurdas de decoração que determinam "Good vibes only" para os que adentram o recinto, algo provavelmente escolhido com inocência individual, mas promovido por uma neurose coletiva detestável. "Good vibes only" é o teu nariz, plaquinha mocreia; não há ser humano possível que se sustente de boas com uma frequência tão comprida, e, mesmo que sustente a aparência, não pode responder pela vibe que emana, a não ser que tenha alcançado frieza de androide ou elevação de monge do Tibete.

Convenhamos, um Homo sapiens com um mínimo de informação e taxa zerada de psicopatia não haverá de andar good-vibing no Brasil atual, este epicentro de horror que nos suga a alma como um guarda de Azkaban. A consciência de que 'stamos em pleno mar ainda e sempre, embora já tenhamos mudado algumas vezes de século; a exaustão no trato com pessoas doidas, desvairadas, alucicrazy que veem o diabo em tudo, menos onde (e em quem) ele mora; o cansaço de variante emendada em variante, antivax atrás de antivax, disparate sobre disparate, inflação puxando inflação, fake news and more fake news – tudo se junta em complô para nos adoecer feio, para nos enlouquecer se bobear. Desconfio, inclusive, dos improvavelmente sãos, e desconfio em especial dos inalteravelmente felizes; NINGUÉM que tenha acesso a informações e viva nesta bagaça sem ser quaquilionário (se for quaquilionário não é desconfiança, é certeza) pode manter sorriso perene e sinceríssimo e, ao mesmo tempo, um caráter impoluto. Se é são e gente boa não há de estar alegre, se está sempre alegre e é gente boa não é são; se é são e está sempre alegre... lamento, mores, mas digamos seja no mínimo deslizante para um universo de indiferença onde nada coletivo sangra, nada dói, nada – além do perfilzito bombante no Insta – importa. Good-vibes-onlying é atividade que se indispõe com a menor faísca de vida (real).

O que quer dizer escondidamente a famigerada plaquinha exposta? Que: não venha me amolar com papo de política, não quero saber, acho mais macio considerá-los todos iguais; nada também de vibração de doença, somos jovens e vamos carpe-diar adoidado; também nadinha de suas noias de depressão, ansiedade e aparentadas, leva isso pra lá, aqui é zoeira na veia. Evidentemente não sou contra zoeira, sou além disso 100% a favor de fofura explícita e gratuita, e compartilho de umas e outras todos os dias – porém não compartilho nem entendo que se possa compartilhar ONLY. Only o engraçado, only o bonitinho, only o descompromissado e inconsequente sem indignações, sem preocupações, sem revoltas, sem inseguranças emocionais e financeiras, sem pulsação, como o cachorrinho do meme que sorri sua tranquilidade histérica no meio do incêndio. É hilário o meme? é hilário, mas não se o cachorrinho em questão é o amigo/parente gratiluz que não mantém olhos nos olhos porque NÃO quer ver o que você (pensa, sente, sofre,) faz.

Com o coração em serviço não há quem passe bem demais.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Os defeitos que por acaso não temos


Ugo Foscolo, autor que produziu uma espécie de Werther italiano (As últimas cartas de Jacopo Ortis) e que hoje aniversaria de 244 anitos, tem entre sua baciada de frases fabulosas uma que espicaça agudo: "Os homens que só pelo seu esforço não são capazes de ganhar a estima dos outros nem a de si próprios procuram elevar-se opondo, aos defeitos dos vizinhos, os defeitos que por acaso não têm". Nooooossa, como esse sapatinho encaixa nas Cinderelas de virtude performadas por nós nas redes sociais – aliás performadas fora das redes sociais, desde que gente é gente e desde que os elementos da espécie se agrupam. Do primeiro episódio de autofrustração humana nasceu, sem dúvida, a primeira comparação desabonadora para o coleguinha, a primeira maledicência encapotada de moralidade, a primeira indignação que nunca foi senão a euforia de não se ver tão solitário na própria miséria. Com a internet e seus ramos, cidadão pode tocar sua Inquisição particular em escala planetária, julgar/condenar no atacado, no varejo, aqui no quintal ou ali na Rússia: vai haver eterna fartura de bruxas caçáveis e apontáveis como o cúmulo da degradação por existirem indiferentemente a seus avaliadores.

Porém os defeitos ou "defeitos" que por acaso não temos – quão melhores nos tornam, se há um completo desesforço em não os termos? Eu, por exemplo (sei que a prática aqui criticada se apoia justamente em trazer o eu para conversas aonde ele não foi chamado, mas trago de fato como exemplo e não self-abono, prometo), com que autoridade poderia meter o dedo na cara dos que são vítimas do alcoolismo, uma vez que sinto uma repulsa natural pelo gosto amargo da bebida e, portanto, jamais tive de lutar contra exageros ou vícios? Que tipo de superioridade demonstro por não me engalfinhar com ninguém em briga de rua, se não se trata de nenhum autocontrole e sim duma obediência à minha índole preguiçosa e introspectiva? Que mérito tenho em não maltratar um filho, se antes de sequer haver essa possibilidade eu já tendia tão decisivamente para nunca ter filhos? Não há merecimento algum em prováveis 98% dos defeitos que não me couberam; não me couberam e acabou-se, sem que haja sido necessário nada além de adequação à minha própria conveniência. Seria dum cinismo vigoroso eu me dar tapinhas nas costas por cumprir exatamente o que me agrada, ou seguir o que foi transmitido por outrem, ou não apresentar determinadas necessidades e carências graças ao tipo de vida proporcionado por esses outrens. Caso não me tivessem embalado circunstâncias sociais e familiares que independeram de minha escolha, não haveria talvez desenvolvido fragilidades muito diferentes das atuais?

O indiscutível: não nos são nenhum salvo-conduto os defeitos que por acaso não temos, aqueles que sequer nos empenhamos em não ter. Se não os temos, temos outros claros e vários, que por sua vez jamais estiveram no radar de pessoas que censuramos por possuírem alguns opostos aos nossos. Que grande heroísmo existe em dar livre curso a falhas que são efetivamente nossas, sob o patrocínio imaginário daquelas que não são sem nos custarem nadita? Não nos falte coragem, ao menos, entre tudo o mais – a coragem de não amargar mais nossos amargos, adoçando-os com a falsíssima doçura das comparações que mentem sempre, por sempre nivelarem unidades incompatíveis. Sermos honestamente melhores implica evoluirmos num gráfico particular, com xizes e ípsilons individualizados, calculados à imagem do que somos e, em especial, do que temos condições gordíssimas para ser.

É até a morte – e eternamente para dentro – que avançamos em nascer.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Não gosto de


Saia plissada, atividade suada, momento de piada, calçada que venta, estampa dos anos setenta. Polenta. Palmito. Vocabulário erudito. Gente gritando "mito" e crendo em facada.

Cerveja; peleja; essência de cereja; brotoeja de verão; suco de limão, laranja, acerola; parede de escola dividida em duas cores; jardim sem flores; entrevistas de jogadores; esporte com ou sem bola.

Novela mexicana, curvador de pestana, banana que não seja prata. Papo de magnata. Regata de alcinha. Pegadinha. Dobradinha. Caipirinha. Almofadinha que promove farinata.

Nabo, quiabo, cabo de aparelho, lavabo sem espelho. Chá de boldo; toldo na ventania; nostalgia; academia; programas de porn dermatologia (aqueles que espremem cravo). Loja que deve centavo. Saia com assimetria.

Purê de inhame. Exame. Madame. Esparrame de elogio ao vivaço. Sono sem cansaço. Palhaço (com exceção do meu Coringa). Torneira que pinga. Gente que rezinga. Gente que rouba espaço.

Cheiro de macela; gordura de mortadela; vizinho tagarela; vela com perfume. Noite sem vaga-lume. Ciúme. Tapume. Telefone. Interfone. Zumbido de drone. Píncaros de volume.

Filmes de três horas, chamadas sonoras, senhoras patriotas. Chacotas. Lorotas. Seres medievais criticando as cotas. Chiclete. Dezessete. Gente-marionete. Fim do videocassete. Caça que não é de comida. Fãs do genocida. Compra retida – ou salgada no frete.

Atrasos de vida.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Sessão (semi)chateação


Tudo bem, admito: o último capítulo de Nos tempos do imperador foi lindamente melhor do que eu esperava, com soluções que não tinham como não emocionar os mais empedernidos; a decisão de arrematar a novela fazendo uma tripla homenagem ao Museu Nacional (e seus reconstrutores), ao eterno sonho do imperador de apenas ter sido o professor Pedro de Alcântara e ao maravilhoso colégio que carrega seu nome e seu sonho – eis algo impossível de ver a seco, a não ser que a gente se pegue metamorfoseado num monstruoso inseto. E a falar em insetos monstruosos: que arremate elegante para o assassinato de Tonico, escalando-se exclusivamente mulheres para dar cabo do psicopata! Foi a merecida consagração especialmente da personagem de Paula Cohen, ES-PE-TA-CU-LAR intérprete de Lota Pindaíba, que tinha tudo para resvalar na afetação, no histrionismo e na insuportabilidade e, entretanto, selou sua participação como talvez o maior destaque da novela. Paula foi COLOSSAL ao nos obrigar a desenvolver afeto por uma criatura tosca, egoísta, amoral, mal-educada, inconveniente, preconceituosa: sustentou (como se brincasse) um arco dramático dificílimo, que ia das atitudes mais sórdidas aos momentos de solidão e sofrimento feminino/materno mais tocantes, da comédia rasgada às cenas de comover placas de granito, das maiores baixezas às maiores doçuras. Não há palmas que cheguem para honrar a composição da eterna Baroa do Ferrrrvedouro.

Mas é aquilo – sou chata, e chatamente não tenho como não comentar um ou outro deslize dentro do bom resultado geral. Uma grande pena, por exemplo, que tenham esquecido ou sido obrigados a tesourar alguns fios anteriormente puxados, tipo a fantasmice rebelde de Licurgo e Germana (que em certo momento até "possuíram" Vitória e Lupita, porém não retornaram manifestados em nenhuns corpos de empréstimo, como as cenas posteriores à morte dos personagens haviam sugerido que aconteceria) e o suposto mistério relativo à mãe de Pilar e Dolores (sobre a qual o coronel Eudoro parecia querer revelar algo importante, antes que a tuberculose o levasse). Outras pendências podem integrar a lista: afinal, qual era a atividade a que Lupita e Lota se dedicavam – não a simples venda de cocadas, segundo o que a atitude de ambas deixava transparecer – quando saíam juntas em capítulos recentes, ou quando a baroa tentava acompanhar sua ainda cativa? E por que Lota era tão aferradamente apegada a um bibelô específico de "sua" casa, uma escultura em formato de papagaio ou ave similar? nesse último caso nós éramos supposed to deduzir algum motivo, hum, travesso, ou havia outra explicação que acabou sumariamente cortada?

Há também, apesar do grande cuidado demonstrado pelos autores em encaixar todos os elementos relacionados à morte de Tonico, umas coisinhas que permanecem interrogativas. Era assim TÃO incompetente a guarda da Câmara a ponto de deixar o vilão – que supostamente já estava cercado pela polícia ao entrar no prédio, e sairia dali presíssimo – fugir com Dominique debaixo do braço, sem que nenhum agente da lei fosse capaz de segui-lo e apenas Lota e Celestina descobrissem o trajeto? Era razoável supor que Pedro, por mais que estivesse chocado com o retorno do Marquês de Caxias absolutamente DO NADA, fosse por este destrancado do gabinete onde Luísa o trancara (destrancado sob um total de ZERO comentário da parte do militar, diga-se) e logo em seguida entabulasse uma longa conversa com o marquês, ENQUANTO o filho da mulher amada estava sendo sequestrado por Tonico e ela mesma corria para se expor ao vilão? Era coerente que Dominique e a mãe conversassem como conversaram após o rapaz fugir do sequestro – dando a entender que as pessoas iriam perguntar o que acontecera e ele precisaria de alguma versão alternativa –, se o máximo que o moço fizera fora pegar a arma de Tonico, ameaçá-lo e escapar da fazenda sem sequer saber dos tiros dados por Dolores e Lota?

Sim, sou chatíssima como espectadora, concordo; mas juro que as minuciazinhas semitortas (comuns em qualquer novela) não me impediram de colocar Nos tempos do imperador na prateleira das tramas mais queridas. Reitero que o protagonismo poderia/deveria NÃO ter sido da família imperial, e ao mesmo tempo não vejo condições de não reconhecer os avanços no tratamento da questão negra em história situada no século XIX; diferentemente da maioria acachapante entre as produções do gênero, procurou-se evitar o vício do white-saviourismo galopante e destacou-se muito mais a atuação de negros escravizados ou livres em prol da abolição: a revolta dos malês, as estratégias e tecnologias para promover a fuga de cativos e encaminhá-los para o quilombo, as lideranças e organizações da Pequena África (não tinha ainda o nome de Pequena África, eu sei), os manifestos dos Guerreiros, a escola de Justina, o trabalho jurídico de Luís Gama, os embates de Samuel e Olu com Caxias e Pedro a respeito da "alforria" de escravizados apenas para lutarem e morrerem na Guerra do Paraguai. Além, claro, da belíssima representação das religiões de matriz africana, com um respeito e uma reverência que não me recordo de ter visto em tramas anteriores. O conjunto da obra não foi de modo algum impecável; entretanto, mostrou qualidades que espero, com a alma todinha, ver fortemente aprofundadas nas histórias que estão por vir – com o título, os créditos iniciais e a lente da câmera enfim voltados para aqueles que têm o sagrado direito de contá-las e protagonizá-las.

Mudar o foco é a única coisa que salvará um Brasil onde o ódio ainda impera.