domingo, 31 de julho de 2011

A tal

Semanas atrás, Artur Xexéo listou uma série de não-aguentos em sua coluna dominical. Entre outras não-aguentices, não aguentava mais que a torto e a direito se respondesse “com certeza”, que se concluísse um pensamento com “enfim”, que atores e atrizes descrevessem o personagem como “um presente do Gilberto” (ou do Aguinaldo, ou do Maneco, ou da Maria Adelaide), que os participantes da “Dança dos famosos” definissem sua performance como um ato de “superação”.

Acenei afirmativamente com a cabeça. Eu também estava em pleno não-aguentamento desta última xaropada e já mentalizava uma postagem em que concordaria solenemente com Xexéo: superação não é nome que se gaste em vão. Há diferença balofa entre enfrentar dificuldade e superar-se, eu alegaria. Superam-se de fato as pessoas como Helen Keller (surda e cega de nascença, que virou intelectual e palestrante), Beethoven (todos sabem em que condições compôs a mais bela das sinfonias, não sabem?), Nelson Mandela, Galileu, torturados que sobreviveram, amputados que ganharam medalha olímpica, filhos de bandidos que deram cientistas humanitários, herdeiros riquinhos que escolheram cuidar de leprosos – eu exemplificaria, catando situações extremas. Estava pronto, ou pensado, um libelo contra o superacionismo piegas. Um grito de ordem nessa bagunça. Então estão achando que podem meter superação em qualquer obstáculo fubá? Semanquice, please!

Pois “semanquei-me”, e eis que discordo solenemente de mim mesma. A própria teima em atualizar diariamente o blog (suadouro mais fubá, impossível) me dá a conta mais exata e humildezinha da coisa. Monte, montanha, cordilheira demandam fúria, fôlego e equipamento adequado de alpinismo, mas de tal maneira se agigantam no caminho que não há muita alternativa: viver ou morrer. Pedregulhos não. Não te deixam na defensiva contra grandes dores; vêm mansos, vêm traiçoeiros, minam a resistência, encontram a brecha, atacam em casa. Nossa coleção diária de superaçõezinhas não chega a uma superaçãozona de sofrimento extremo, mas dá carrinho, chuta a canela, faz tropeçar e quebra dentes.

São, sim, a tal superação: a raiva engolida sem vítimas, a educação mantida sem remorsos, o tapa não dado, o despertador não destruído, a droga não provada, a traição não cometida, o ritmo aprendido, o torcicolo ignorado, o prazo respeitado, a receita reproduzida, o arroz temperado, a dieta começada, a aula concluída. O blog atualizado. Vencer a cordilheira é dor pra mais de metro; vencer a agonia em milímetros é menos agudo, menos excruciante – não necessariamente menos comprido. Onde estivermos, nosso ponto de vista adivinhará ou providenciará arapucas. Fabricará episódios da série. Complicará a novela. Seremos nela heróis: no atacado ou no varejo.

Com certeza.

sábado, 30 de julho de 2011

Eu passarinho

De certas criaturas neste mundão, a gente gosta de graça. A gente as adivinha. Uma delas, viva fosse, completaria hoje 105 anos. Tinha olhos doces, esparramados; tinha bochechas molinhas de vô (embora não houvesse filhos ou netos para apertá-las: desperdício). Tinha sacadas poéticas que valiam compêndios (“A esperança é um urubu pintado de verde.” Como eu ri na aula de literatura!). Tinha a ironia fina, o sarcasmo macio, sem ressentimentos, de responder à mais absurda das injustiças literárias – por três vezes tentou ingressar na ABL, sem conseguir – com um de meus favoritos, o suculento “Poeminha do contra”: “Todos esses que aí estão/ Atravancando meu caminho,/ Eles passarão.../ Eu passarinho!”.

Eu quem? Mario de Miranda Quintana. “Mario” assim mesmo, sem acento por toda a vida, que era para não pesar demais e afivelá-lo ao chão.

Meu causo preferido de Quintana ilustra bem sua passarice d’alma. Por doze anos, o poeta residiu no Hotel Majestic, em Porto Alegre. Foi, porém, despejado quando o jornal Correio do Povo fechou temporariamente e deixou de assalariá-lo. Amadíssimo, Quintana recebeu a ajuda do ex-jogador Falcão (os pássaros se ajudam!), que o hospedou num hotel de sua propriedade. Uma amiga achou esmirradinho o quarto e Mario respondeu, fazendo jus à fama de poeta do simples: “Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas”.

Calculo quantos dias, décadas ou milênios me faltam para chegar a esse grau de flutuância, para restringir-me toda ao poleiro de mim mesma, para ser-me suficiente no lugar em que pouso, para ajuntar em mim o que vou deixando física e emocionalmente espalhado pelo caminho. Tento descobrir quando vou ser mais mária, menos vária, com menos bagagem de sólido e mais de fluido, com menos essencial visível aos olhos, com menos pedaço perdido nesse tantão de espaço que cismo em arrastar. Somos tão ancorados, todos.

Em honra sua, Mario, e à leveza transparente dos (que Manuel Bandeira chamava não de cantares, mas de) quintanares, suspendo as âncoras pelo menos por hoje. Dia de viver e amar baixinho, de não se gritar de cima dos telhados. Dia de pluma, de bolha, de brisa, de luz, flor, asa, arco-íris, perfume. De eles passarão, de nós passarinho.

Na impossibilidade de suficiente dedicatória, entrego-lhe o dia etiquetado com quintanares seus: “Eu queria trazer-te uns versos muito lindos/ colhidos no mais íntimo de mim.../ Suas palavras/ seriam as mais simples do mundo,/ porém não sei que luz as iluminaria/ que terias de fechar teus olhos para as ouvir.../ [...]/ Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas/ do lado de fora do papel...”.

Mas voando de dentro, inteirinhas. Feliz aniversário.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Meu bem, meu mal

Quem não retornou hoje de uma expedição de nove meses à Sibéria sabe que Leonardo (personagem de Gabriel Braga Nunes), um dos vilõezões da novela das 21h, aprontou muitas e más com o irmão Pedro (Eriberto Leão), a cunhada e ex-mulher Marina (Paola Oliveira) e a atual carrasca Norma (Glória Pires). Pois a atual carrasca, que o cria em cativeiro como seu BBB particular, ainda é louquinha pelo pulha. Marina sacou tudo. No finzito do capítulo de ontem, apareceu toda linda na casa de Norma e informou que vinha avisá-la a respeito de Léo. Mas não vinha chover no molhado e listar, como tantos, os defeitos do psicopata. “Quero alertá-la sobre as qualidades dele”, esclareceu a mocinha, descrevendo como o olhar verde e tímido, ao mesmo tempo impetuoso, era capaz de demolir barreiras. Fora a lábia de escroque, o “bico doce” de malandro. Nenhuma novidade para a carrascona, já em vésperas de cair de novo na esparrela do infeliz – depois de ter descido por ele ao Hades, sem parada no duty free.

Taí o nosso problema. Não o nosso problema como Normas, mas como Léos. Temos ruins virtudes, temos olhares de Medusa, temos cantos de sereia. Um bocadim a mais de esforço e conseguimos cortar poderes, transformar Sansões guerreiros em Sansões coelhinhos de pelúcia. Intuímos a coisa desde o berço: quanto mais fofinhos, rosadinhos, rechonchudos, mais garantidos nos descobrimos em artes de manipulação. Bochechas manhosas se tornam o doce ganho antes do almoço. Covinhas irresistíveis viram permissões indevidas. Vozes de locutor de rádio – ou de locutora de aeroporto – persuadem a menores e maiores falcatruas. Sorrisos colgáticos fazem esquecer a tarifa do cartão. Notas dez consecutivas convencem o professor a perdoar a cola só desta vez. Ternos bem cortados, vestidos da última coleção assaltam sem tanta resistência. Carismas e bons históricos roubam em cadeia nacional. Oratórias e antecedentes irretocáveis metem a mão em escala planetária. Mas ele não fez, ela não faz por mal.

Fazemos por mal. Tanto mais por mal quanto mais abduzimos nosso suposto bem. Nada mais covarde que tomar sua literatura, sua enofilia, sua cosmopolitice como escudo para seu Hannibal Lecter. Vá, não queremos mastigar o nariz de ninguém. A gente podia estar matando, a gente podia estar roubando, a gente podia estar sendo psicopata mundo afora. Desculpa porca. Só no tempo em que você flertou para furar a fila, trouxe brinquedo para compensar a falta, beijou para acobertar a traição, assassinou umas oito fadas.

O que a gente tem de tempestade está na cara. É nas horas ensolaradas que tem de ter plaquinha. Pra ninguém se aproximar sem guarda-chuva.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Gripe suína

Ainda a má e velha H1N1? De jeito maneira. A epidemia atual é de espírito-porquice. Não é que um polonês de 34 anos, entediado talvez com o encaixe-a-máscara-afivele-o-cinto recitado pelas aeromoças, resolveu comunicar a existência de uma bomba dentro do avião? Isso aqui no Tom Jobim, com destino a Frankfurt. Polícia Federal chamada, aeronave deslocada para fora do terminal, passageiros e bagagens evacuados, Grupo de Bombas e Explosivos, cães farejadores. Coreografia completa. Nada de bomba, a não ser o adorável polonês, prontamente encaminhado para o presídio de Água Santa. A decolagem marcada para as 21h só ocorreu às 5h30, duas toneladas de resmungos mais pesada.

Num colégio de Nova Iguaçu, um fofíssimo de 16 anos decidiu usar tubo de desodorante para imitar (adivinha) uma bomba. Acabou detido. Já na delegacia – não sei se entre lágrimas de crocodilo ou risinhos de hiena, o que será pior? –, confessou que tudo não passava de “brincadeira”. Nessas horas é que papais e mamães se trancam no gabinete para rediscutir o testamento.

Francamente não entendo. Entendo o humor, as implicâncias saudáveis, as palavras que nascem dicionariamente ofensivas mas são ditas entre mútua galhofa. O jeito masculino de xingar e amofinar o outro com açúcar e afeto – só compreensível quando a intimidade transborda e a dinâmica do grupo justifica. Estou longe de entender, porém, o conceito de “brincadeira” em que alguém brinca à revelia. Não capto que graça existe em não partilhar a graça, em confiná-la à sua exclusiva vontade. Não percebo que plenitude possa haver em perpetuar o horror numa cidade tão chagada, sobressaltada, apreensiva. Que diversão se possa tirar de se achar tão incapaz, tão mesquinho, tão nadificado a ponto de só se destacar por destruir. Só ser potente o bastante para chutar a segurança alheia, fragmentar autoestimas, pulverizar afeições, demolir respeitos. Ter a mesma utilidade que um artefato de 200, 300g feito com meia dúzia de ferros e pedaços de porcaria.

Gente que merece o título faz o que só gente é capaz de fazer. Abraça, porque qualquer caco de 1cm arranha. Consola, porque qualquer buscapé de festa junina assusta. Anima, porque qualquer vírus de nanomilímetros destrói. Gente que quer aparecer – aparece em álbum de amigo. Gente que quer se destacar – batalha prêmio literário. Gente que quer entrar pra História – pesquisa cura de doença. Gente, mesmo, não derruba gente; junta mais gente e derruba muro.

Volta pro além, ô alma do focinho de tomada. Quem ri por último é porque ficou sozinho.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Filhos próprios

Às vezes guardo, acho e reacho os ditos engraçados do “Entreouvido por aí” que aparecem na Revista de domingo. Outro dia reachei a fala encantadora de uma menininha para as amigas: “Não tenho irmãos. Sou filha própria”.

Isso, é claro, foi pronunciado do alto da sabedoria de quatro, cinco, seis anos, ainda embananados com o vocabulário. Sabemos perfeitamente o que a pequena quis dizer – filha única. Não importa. A jovem autora acertou no que não viu. Filhos únicos, gêmeos, caçulas, com o mais velho no pé ou 37 mais novos pelo braço, uma coisa é crucial: sermos todos filhos próprios.

Nada mais é do que alçar o faça-o-que-eu-faço ao mesmo cargo do faça-o-que-eu-digo, este funcionário do mês, incorruptível, exemplar, que botamos para assumir a educação dos pimpolhos. Que Eu Digo trouxe de Yale o doutorado em nutrição, sociologia, ética, odonto, filosofia, moda e bons modos – e sabe: que você não escovou os dentes, que deve ligar para agradecer, que precisa pedir desculpas, que o short está curto demais, que a conta do celular não está curta o suficiente, que não tem legume suficiente, que tem biscoito de mais, que é urgente estudar, escutar, fechar carteira, fechar torneira. Sabe. Dá meia-noite, filhos na cama, Que Eu Faço assume: deixa a torneira correndo, dorme de maquiagem, entra no cheque especial, exagera no decote, rouba biscoito de mais, não tira legume suficiente. E acorda culpado, rechonchudo, hipertenso, um rombo no molar e outro no bolso, desde que as crianças – ah! as crianças – despertem sólidas, faceiras e educadas. Que pai e mãe ruim que se é da gente mesmo.

Por que nosso Dr.Jekyll cuida (quando cuida) zelosamente dos herdeiros, por que nosso Mr. Hyde nos trata de maneira porca? Tiramos de letra (quando tiramos) o jantar do marido, o aniversário do chefe, o dentista do Huguinho, a natação do Zezinho, a informática do Luisinho. Com o que sobra da gente, nos deixamos órfãos. Não nos pegamos para criar. Não nos amamentamos com a fugidinha pro cinema, com o livro engavetado, com a quinta de sagrada happy-hour, o DVD de sagrado happy-end. Largamos nossa mão na rua. Não nos levamos mais à escola. Nos batemos. Nos ignoramos. Nos pomos de castigo. Como deu tudo errado hoje, vou para a cama depois de três sobremesas.

Procura-se: babá de nós. Pra não dormir em serviço. Qualquer piscadinha, a gente foge da novela e vai preparar o almoço de amanhã.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Que olhos grandes você tem

Hoje é o Dia dos Avós. Gostaria de poder dizer que, dos quatro regulamentares a que temos direito, converti os pênaltis com 100% de aproveitamento. Mas não. O casal paterno viveu e morreu em Portugal sem que eu os conhecesse. O vô materno viveu e morreu – no Brasil – sem que meus pais se conhecessem (embora Mãe fale dele com tanta delícia que lhe tenho saudades). A materna, em compensação, conheço desde o princípio dos tempos. Um dia depois de o caos virar luz, ela já era mãe ao cúmulo.

Eis o problema: mãe ao cúmulo. Acúmulo de mãe. Lindo, se isso significasse colo, histórias e serões de Dona Benta (somados a bolinhos de Tia Nastácia). Significa, antes, uma das personalidades mais estrondosamente difíceis que já pisaram neste hemisfério. Minha avó engoliu o Big Brother. Não é que nos tenha dado uma infância de general – longe disso: brincamos com a saúde feliz de qualquer criança. Mas brincamos com uma carga de cismas, um tanto de preconceitos e alguns exagerados cuidados pesando nos ombros. Vó não era (não é) carinho ou carícia; é exame e posse.

Nem por isso, por não ter recheio de pirlimpimpim, encarnou a Cuca. Vó era a que zangava com a menininha de sete anos que tirou 8,4 em Ciências, mas também a que chamávamos (chamamos) de “você”. Era a que me rotulava desobediente, mas também a que me ensinou a comer torrada com margarina (descoberta olímpica, a margarina!). Era a que ameaçava queixas horríveis quando Mãe voltasse do trabalho – e a que mandava bem no pudim de pão, enquanto Mãe não voltava do trabalho. A que ainda quer ser porteira de nossas entradas e saídas – e a que costurava pacientemente quando eu aprendia a contar até cem em voz alta. A que tem delírios de perseguição – e a que presenteou boa parte do mobiliário de casamento. A que decide não-gostar pra sempre de algumas pessoas – e a que me passou o gosto pra sempre das palavras-cruzadas. A que me matava de vergonha levando galochas para eu trocar na escola – e a que me buscava todo dia na escola. A que me acha feia por estar muito magra – e a que (abençoada seja!) me acha muito magra.

Vó é o personagem azedo e dedicado, sovina de afeto e generoso de gasto, atento de horário e desencanado de pronome – o personagem chantagista e amoroso que Machado, Eça e Dickens não escreveram. Literatura de gente grande para a qual se lamenta não ter chance e ocasião de melhor amor. Amor que exige e repele com igual medida. Seja como seja, benditas as mãos que nos entregaram essa biblioteca de sentires, essa graduação de vida na qual nos bacharelamos diariamente.

(Este texto tão grande é para te ver e amar melhor, vovó, e para te entregar o mais doce da cesta, o mais grato, o mais vero, livre de todo contágio, puro de qualquer mágoa, saudoso de cada momento, enquanto o lobo terrível – Deus o afaste! – não vem.)

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Humildificador de ambiente

Não costumo gostar das típicas xaropices do “Arquivo confidencial” do Faustão, mas foi excelente a participação de Cássia Kiss no programa de ontem. Cássia conseguiu a proeza de ser pouco interrompida pelo apresentador e mandar seu recado com energia saborosamente objetiva: não se pode virar escravo de filho, não é normal nem lícito que a criança seja satisfeita em cada cisma caprichosa, bata nos pais, fale palavrão. A não ser que se esteja engordando de propósito um futuro queimador de mendigos, espancador de homossexuais, brigador de boate, realizador de pegas. Se a intenção é criar gente, mimo é cartilha a ser incinerada pelo MEC.

Mas o que mais me deliciou na entrevista foi quando a atriz – para carimbar a necessidade de os serezinhos humanos crescerem sem se considerar napoleões ou cleópatras – citou uma fala de seu marido. Segundo ele, todos deveriam, ao acordar, passar por um aparelhinho essencial: o humildificador. Chuveirinho de dar banho na alma com substância orgulhicida. Máquina de corrigir o grau dos olhos de dentro, de permitir enxergar no espelho o tanto que a gente é: nem mais nem menos que todos os outros.

Alguns podem torcer o nariz, com o coração já encascorado pela velha confusão de sentidos: humildade = humilhação. Nada mais falso. Humildade não é virar réptil, é ganhar asas. Não é lamber botas, é lustrar as próprias. Lembro-me da professora ensinando Manuel Bandeira, poeta da humildade: é ficar perto do húmus, da terra, plantado sólida e lucidamente no chão. Assumir com ternura seu lugar no mundo, tão próximo das formigas como dos jequitibás, tão irmanado à concha quanto ao Himalaia. Humildade é ver e ver-se com igual nitidez, colocar próprio e alheio nivelados na balança.

Por isso mesmo, Cássia Kiss deu mais uma aulinha de humildade ao aceitar de bom grado os elogios que parentes e amigos lhe fizeram. Recebeu-os emocionada, porém sem a modéstia constrangida que usamos para negar qualidades – aquela modéstia arrogante de, no fundo, ruminar: sou bom como você diz, mas isso é porqueira, tenho condição e obrigação de ser perfeito. Sim, não nos falta condição e obrigação de ser perfeitos. É furada, no entanto, desejar o perfeito de um dia sem assumir (digo de novo: com ternura) o bom de hoje. Ter gana do “perfeito” sem enxergar sobriamente o “bom” é querer, por soberba, furar a fila. É pretender o auge sem passar, como todos passam, pela fase lenta, trabalhosa, diária, paulatina do “melhor”.

Humildifiquemo-nos: única maneira de a gente se respirar como deve.

domingo, 24 de julho de 2011

Desconfiei desde o princípio

Ter razão é, por vezes, prazer que não cobre a despesa (se é que chega a ser prazer e não mero requinte de sadismo). Tem-se razão, basicamente, quando o outro se estrepa. É com certa salivação que lançamos um “eu te disse!” ao lojista roubado pelo sócio, um “viu no que deu?” pro filho que reprovou em Geografia, um “bem que avisei” pra vizinha que teve a luz cortada. Quem mandou eles, os irresponsáveis, não ouvirem sua voz de sabedoria? Taí, ó, é justo, deu no que deu. Pouquíssimo evoluídos que somos, lambemos os beiços com cada desgraçazinha (alheia) que nos atesta a superioridade. Gozo ruim de quem só pauta a própria felicidade em termos comparativos. Ou seja: todos.

Nossa Amy Winehouse, por exemplo. Um Big Mac com sundae duplo para os que não se demoraram um segundo pensando: eu já sabia. Questão de tempo. Só podia dar nisso. Não podia ser diferente. Crônica de morte anunciada (os clichês me amam). Duas rodadas de Ovomaltine por minha conta para os que não balançaram a cabeça e suspiraram com reticências: “Também...”. O planeta se chocou, porque 27 anos não são idade decente para um ser humano potencialmente saudável morrer; mas, passado o susto não muito assustado, sobrou a obviedade geral, a certeza triste que todo mundo tinha, a razão que (eu, otimista, finjo acreditar) ninguém queria ter. Você queria?

Se há razão que vale a pena ter, está na convicção de que não, não é cool descolar uma eternidadezinha de culto morrendo jovem. Tuberculoses, absintos e demais despautérios ficam lindos nA dama das camélias hospedada em sua cabeceira. Tremenda cilada o neorromantismo histérico de Janis, Jimmys, Amys e Cazuzas. Vida boa é curtida, não encurtada; qualquer analfabeto em lógica entende o paradoxo existente em estar apaixonado por Silvana e casar com Luísa, dizer que prefere o verde e pintar tudinho de amarelo-ovo. Crer-se um enamorado da vida e flertar clara, franca, pornograficamente com a morte.

Mas isso são sermões que já não se aplicam. Talvez às próximas Amys, LiLos, meninos e meninas que não se amarrem no mastro e mergulhem no canto da sereia. Talvez aos que ainda estão na beirinha do game-over, aos que ainda têm um mês, uma semana, 24 horas, 60 minutos a mais de segunda chance. Terceira. Quarta. Aos que ainda estão na véspera do precipício, brincando na fronteira, rindo e resvalando, embriagados pelo poder de araque de responder à sorte que chama: no, no, no.

Depois não digam que eu não avisei.

sábado, 23 de julho de 2011

Mãos dadas

Os Estados Unidos querem abolir, nas escolas, o ensino de letra cursiva (popularmente conhecida como “de mãozinha dada”). Vê se não é de propósito essa decisão sintomática. Se não é comigo. Eu tento, eles é que não deixam; me obrigam à metáfora-clichê: mãos dadas estão ficando obsoletas.

Nosso tempo decidiu outras prioridades – preparar meninos para a digitação ligeira, para a teclagem eficiente no celular. Aliás, preparar para quê? os tais meninos dependuram-se no teclado antes da primeira chupeta, mandam torpedo pra lembrar o horário da mamada seguinte. Alfabetizar, segundo desejam, pode oficialmente virar tarefa de juntar (ou justapor) letras de forma. Mesmo no papel. Foi-se a época em que elas, as máquinas, tudo que pretendiam era ser gente; computadores ganharam fontes desenhadinhas, redondinhas, direitinhas como a letra aconchegante que só nós, homo-sapiensmente, fazemos. Pra quê? Não é visivelmente mais prático partir pro vice-versa? Não sai mais em conta mecanizar-nos que tentar incutir humanidade em meia dúzia de parafusos? Concluíram os americanos, de uma vez por todas, que sim. Tomemos então posse de nosso novo DNA, nós monstros de Frankenstein, Edwards Mãos-de-Tesoura sem lâminas – com celulares – nas pontas dos dedos. Mais do que nunca: replicantes. Aperte-se o botão vermelho para iniciar a transfusão.

Estou sendo dramática? assumo. Um minuto de silêncio em memória da caligrafia. Dos enfeitadores de nomes em convites de casamento. Das cartinhas amorosas de próprio punho (com borda de hidrocor lilás e adesivo Amar é). Dos textos de Tia Elisa no quadro-negro. Dos bilhetes clandestinos durante a aula. Do caderninho de escrever redondo. Da assinatura. Pois é: como é que fica a assinatura? (Talvez, modernamente, voltemos às digitais – o que não foge à coerência gramatical. Estamos ou não em processo de digitalização progressiva?).

Quem está limpando a garganta para discursar sobre os encantos das novas mídias, faça o favor de apontar esses argumentos pro outro lado. Acho bárbara a evolução – mas não consigo ser muderna nesse tanto. Escrever à mão (dada) é feito ikebana, grafite, escultura: não importa se útil, é bonito porque sim. Renunciar a isso é abandonar a última fronteira comunicativa entre humanos e androides. É assumir-se eu-robô. É deixar a personalidade da grafia para abraçar o que nos torna uma multidão de enlatados.

E digo isso (também) ao pé da letra.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Vasto mundo

Você é uma formiga. Vamos, faça comigo o exercício de imaginação: você é uma formiga. Há um gafanhoto no seu formigueiro. Pelo menos há boatos, há indícios, há suspeitas, há testemunhas, há uma agitação fora do comum entre as formigas, embora ninguém consiga apontar uma única perninha verde passeando pela aldeia. Há, porém, um gafanhoto no seu formigueiro – é o que se sabe. É o que se sabe. Sabem, indeterminadamente. Como não houve meio de determinadamente apontar o gafanhoto, invente-se. Você (que, não se esqueça: é uma formiga) não deixou de ser formiga, mas, olhando de certo ângulo, até que não daria um gafanhoto de todo mau. Tem a antena levemente mais longa, tem o olhar de soslaio dos gafanhotos. Pronto, você é o gafanhoto. Antes que abra a boca para gritar (ou seja lá o que fazem os gafanhotos) que é uma formiga, será esquartejado pela tribo. Quem teve a audácia de dizer que você é uma formiga?...

Hoje faz seis anos que Jean Charles de Menezes, gafanhoto eleito à revelia, foi trucidado sem o benefício do tempo – o tempo necessário para apresentar o crachá do formigueiro. 10, 15 segundos a mais que resultariam 10, 15 tiros a menos. Tempo oco, surdo, obtuso, estúpido de disparos e disparates. Por coincidência das que parecem escritas para humilhar assassinos, Jean Charles era eletricista. Seu trabalho era corrente, força, energia, luz. Nem que uma criatura quisesse poderia contornar o clichê, dar as costas à metáfora. Jean, iluminador literal, morreu de escuridão figurada. Não simples e tranquilamente morreu: foi morto de escuridão figurada. Morreu na mais bárbara, na mais paleolítica das vozes passivas. Morreu na ausência mesmo dessa voz.

E que nos importa? não era nosso primo, filho, namorado, amigo, vizinho, irmão. Que não fosse gafanhoto: era-nos formiga anônima. Ele sozinho não dava um Vietnã, uma tragédia de Realengo, um Holocausto, uma Praça da Paz Celestial.

Pergunte a seus primos, pais, namorada, vizinhos, amigos, irmãos se não dava.

A despeito da pieguice, uma cena do fantástico A lista de Schindler resume a questão. Quando, no final, o secretário do protagonista lhe entrega um anel de ouro em agradecimento pelo bem feito aos judeus. No anel, a inscrição: “Quem salva uma vida, salva um mundo inteiro”. Pois é absolutamente correto o vice-versa: quem destrói uma vida, destrói um mundo inteiro.

Para alguém ou alguéns do formigueiro, matar-nos é massacrar a Praça da Paz Celestial, repetir Hiroshima, reeditar o Vietnã. Para alguns não somos anonimato; somos apelido de infância, anedota de faculdade, álbum de formatura, pipoca dividida, ultrassom dividido, bochechas apertadas, almoço na cama, amor na cozinha, bronca pela bagunça, beijo pela lembrança. Somos um universo com pernas. Um planeta com RG. Um compêndio ambulante de História Geral. Para alguém ou alguéns somos tudo – ou parte do pouco – que realmente interessa.

Quem teve a audácia de dizer que você é uma formiga?...

quinta-feira, 21 de julho de 2011

É o melhor para poder crescer

Minha colega de trabalho soltou uma expressão literalmente apetitosa: “Meu estômago não fica de luto”. Achei graça e ela disse que é frase de família; entre os seus, não há tempo ruim em termos de comilança. O que vier, traça-se, na alegria e na tristeza. Nada daquelas frescuras de “fechar a garganta” no meio do fogo-cruzado de prazos, senhas, burocracias, empregada faltando, filho de recuperação. Nada do fastio chique de criaturas assoberbadas. Nem da inapetência exigida pelas grandes comoções – doença e morte, principalmente. “Quê? O filho nesse estado e ela al-mo-çan-do na cantina?”, resmungam os seres etéreos. “Mal perdeu a mãe e já montando festa de quinze anos para a filha?”, escandalizam-se os que vivem de fotossíntese. Por razões absurdas, o mesmo mundo que lhe injeta Prozac na veia, no caso de um suspiro dois segundos mais longo, é o que lhe fiscaliza o tempo regulamentar de luto. Especialmente luto estomacal. Ai de ti se as funções vitais não ligaram na CBN, não viram Globonews, não espiaram pela janela a revolução descer a rua – e continuaram respirando, salivando, roncando, tremendo, até (infâmia!) gozando. Monstro de frieza que tu és, incapaz de sofrer adequadamente para o registro nos autos.

Foi escutar a frase da colega e lembrei, de imediato, o maravilhoso conto de Mário de Andrade: “O peru de Natal”. No drama da família que se divide entre a dor obrigatória (pelo patriarca morto) e a fome envergonhada (de uma boa ceia), rios de humanidade correndo. Retrato da vida penetrando nas frestas, entrando pelos cantinhos, comendo pelas beiradas, procurando buraquinhos no protocolo, escondida no cheiro assado do peru. É só o grupo se distrair que ela entra caudalosa – pelo estômago, como entram grandes amores. Como diria Guimarães Rosa, felicidade se acha é em horinhas de descuido.

Sempre acreditei na metáfora do estômago. Olho com mais simpatia os que, faça chuva ou sol, nunca perdem o apetite. Não é frieza que vejo: é justamente esse calor de vida correndo nas artérias, mais poderoso que as quedas no percurso e as etiquetas de salão. Viver é ter fome. Em todos os aspectos. Como até pouco, por escolha (não por vontade); mas o que como, como feliz. Em todos os aspectos. Mirando o prato, cheirando, degustando, vampirizando o caldo das frutas, me lambuzando quando é devido. Metaforicamente me lambuzo ainda mais: meus olhos cismam de engolir o mundo. Deleitam-se infinitamente no que devoram, querem repetir o prato, insaciáveis. O que me conforta. Tenho tesão bastante no planeta para mais uns 190 anos de vida em comum. De que se trata uma desistência completa, um estado depressivo, senão de um coração que perdeu o apetite?

Agora, muito com licença. Vou caçar na rede leiturinhas pro café. Servido?

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Amor aos pedaços

Há dias esbarrei num lindo post do blog Fluindo o Olhar, sobre como nascem as amizades. Comentei que nascem quando algo de um coração se apaixona por algo de outro. Com a agravante de hoje ser o Dia do Amigo, veio a vontade de não limitar o tema a uma rapidinha – convidá-lo para um café.

Normalmente se entende o apaixonamento como prerrogativa de mulher e homem, nesses laços complicados de casal. Nada. Admitamos ou não, estamos diariamente nos apaixonando por nossos “incríveis” de meio de caminho, como eu dizia na postagem anterior (se não estamos, hora de levar olhos menos azedos para passear). Bateções de santo acontecem, irresistíveis: nossa gargalhada seduz um ouvido, nossa necessidade se enamora de um talento, nossa alegria conquista alegria gêmea, nossa timidez vê num abraço o anfitrião perfeito. Amizade é casar aos pedaços. Desposamos a voz do colega, o ombro do primo, o conselho do professor. O colo da madrinha. O cálculo do sócio. A fofice da irmã. O perfume do marido. Com marido é duplo casar: do todo, pra sempre, e de parte, pra hoje. Dois-em-um da melhor promoção já feita, marido tem a constância que sossega e o susto bom que desafia. Pegar marido é mandar embrulhar o melhor amigo para viagem.

Por bem-humorada coincidência, hoje é aniversário de uma amiga divíssima, repleta de motivos apaixonáveis. Verdade que nossas opiniões de cinema se entendem como árabes e israelenses, que nossas opiniões de criança confraternizam como Tom e Jerry, que nossas agendas batem fáceis como a de Gisele e Lady Gaga. Mas sorriso, histórias, carinho, doação, esfuziância, acolhida, gratuidade, betty-boopice de minha diva preferida não deixam dúvidas: essa é para casar.

(A ela e a meus outros desposados antigos e recentes, um dia de abraço, lanche, papo, lágrima contente, flashback feliz, brigadeiro, confete, serpentina, presente, presença. Até que a morte não nos separe.)

terça-feira, 19 de julho de 2011

Isto é incrível

Que vou fazer se as propagandas de tevê andam me abordando mais que a programação oficial? Sou obrigada a seguir na série “comerciais”. “Qual foi a coisa mais incrível que você já viu?”, intimou-me outro dia o anúncio da Intel, exigindo resposta de bate-pronto. Homessa. Foi entrar a pergunta e o coração saiu do sossego. Culpadíssimo por não trazer a solução do enigma no bolso. Também que pessoa é essa, que não anda de sobreaviso caso o mundo a entreviste?

Confesso, acabrunhada, minha incapacidade de responder. Pelo menos com Resposta absoluta, de caixa alta e tudo. Pô, gente, assim é covardia. Depois de 31 anos de mundo mundo vasto mundo, como é que um ser humano sabe o arquivo onde anotou, a pasta onde guardou, o porta-joias onde malocou, a estante onde abandonou a coisa mais incrível que já viu? Vai ver foi tão perfeito, tão inteiro, tão intenso que a cabeça jogou fora depois de fruir o choque. Engoliu o momento que nem criança gulosa e não sobrou nem esqueleto. Vai ver foi o contrário: a coisa era a mais incrível até ano passado – mas quebrou, desbotou, lascou na ponta. Nosso ideal (como eu anteontem dizia) mudou-se para outro e não sobrou nem endereço. Seja o que seja. O caso é que seria horrivelmente injusto sacar uma delícia nossa para fazer, sozinha, o papel das sete maravilhas de nosso planeta.

Posso, no máximo, tentar escalar uma seleção de craques. Candidatos fortíssimos ao trono. A torre Eiffel iluminada seria um, se a tivesse visto e palpado e cheirado. Mas maravilha virtual não vale. O Castelo da Cinderela, então: metonímia do sonho tão sonhado, da hospedagem no paraíso. Aliás a Disney toda, em sua glória. O cheiro de canela da Disney. O sabonete de espuma da Disney. A entonação do funcionário da Disney. O chão que acende na Disney. A precisão doentia, a luz hipnótica, a música atordoante da Disney – lugar criado para te amar em prosa e verso, do cortejar ao gozar ao cortejar e perguntar se foi bom para você. Com um sorriso Disney nos lábios.

E eu sou mulher de deixar pra ser feliz na Disney? Qual. Felicidade que depende de passaporte demora em excesso. Todo dia deixo os olhos fazerem festa, todo dia eles arranjam seu próprio show de fogos; não os economizo. Lua cheia, turquesa de mar, cerejeira em flor, ipê em flor, buganvília em flor, dente-de-leão, bolha de sabão, crônica da Martha, desenho da Pixar, confissão (legítima) de culpa, pedido (verdadeiro) de desculpas, Moulin Rouge, Amélie Poulain, orquestra, coral, decoração, declaração, festa, surpresa. Tudo que é sólido o bastante de estar, com leveza de partir e plantar saudade. Incrível mesmo é isso: o que planta saudade. Grande ou não, com esperança ou não de reencontro em breve.

Bem-viver é espalhar nossos incríveis no tempo e ter, todo dia, nova linha de chegada.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

O bêbado e o equilibrista

É, não deu pra gente. O Brasil foi, de novo, defenestrado da Copa. Com direito a vexamezinho em cadeia mundial. Mais inacreditável foi a classificação adversária: o Paraguai está dentro sem ter vencido uma vezita. Quatro empates no currículo. Pode até papar a taça continuando na maciota, só administrando zero-a-zeros o bastante para, como ontem, ganhar nos pênaltis. Bonitezas do futebol.

Desmerecido? Injusto? Absurdo? Seja; mas nisso havemos de convir: não muito diferente da vida longe dos gramados. O episódio da Copa América me lembrou irresistivelmente a fábula da lebre e da tartaruga, na qual a coelhona, exímia corredora, perdeu a disputa para a parceira lerda porque esta prosseguiu, sem se dar ao luxo de parar para descansar. Sabedora de não ter nenhuma vantagem natural, a tartaruga fez o seu. Nada de desperdício. Nem um segundinho a jogar fora com lamentações, floreios ou antecipadas desistências. A lebre, abusada, não suportou viver com tanto favoritismo e resolveu chamar a sorte para uma partidinha de pôquer. Literalmente dormiu no ponto. Escangalhou sua chance com a displicência besta dos que se fazem campeões de véspera.

É fato que as lebres bêbadas, as seleções canarinho, os francos favoritos, os gênios incontestáveis nos seduzem por carregarem (aparentemente) o selo de uma estrela, a retaguarda de uma fada-madrinha. Que não se fiem nela. Genialidade mágica funciona ficcionalmente, tem glamour no livro da Carochinha e na Sessão da tarde. Nesta dimensão alheia a histórias-pra-boi-dormir, quem manda bem são as tartarugas equilibristas, os que cerram os dentes (como diria o sobrevivente dos Andes) e vão à luta, carecas de saber que o material das vitórias é tijolo e não fogo de artifício. É mão, não é garganta. É palestra eficiente, não é papo de cafezinho. É estudo benfeito, não é olhada no caderno. É teimosia de formiga, não é prodigalidade de cigarra.

Não se trata de um libelo a favor da mediocridade. Ao contrário. Nada há mais medíocre que a pequenez mental de lançar os próprios dons no esgoto. Sábia é a economia de aproveitar, de aproveitar-se, de fazer de cada seu morango uma torta e de cada limão, pelo menos um molhinho de peixe. Quem dá dois passos pra trás com visibilidade para avançar 50 léguas é medíocre. Quem só consegue avançar 1 mm por vez e não recua nenhum é o cara. Não dá pra enfiar quatro gols em sequência e partir pro abraço? Problema não. É ir correndo das faltas, acertando os passes, fugindo dos empurrões. Fazendo por onde. Fazendo seus ondes, quandos e quês.

E não marcando nenhum gol contra. É o mínimo que esperamos de nós.

domingo, 17 de julho de 2011

Lá maior

Da série “propagandas do Boticário”. Tem-me chamado a atenção um comercial especialmente lírico em que a protagonista, ainda adolescente, deixa uma carta “para eu mesma no futuro”. Pergunta à futura eu como as duas andam de vida, se estão felizes, se mantêm os velhos gostos, e em dado momento se questiona: “Chegamos lá? e se chegamos: continua ?”.

Nunca vi melhor e mais leve resumo de nossa imponderabilidade. Duas interrogações que engoliram vinte tratados de filosofia. Nascemos, crescemos, adultescemos doutrinados pela ideia de não abrir mão dos sonhos. Nunca. Por Fantásticos e Globos repórteres, somos encharcados de exemplos edificantes: a primeira palavra do sujeito foi “Tchaikovsky”, a primeira sapatilha da menina foi de ponta, ele só dormia ao som da sirene de brinquedo, ela só brincava com o estetoscópio de plástico. Pessoas que, desde os 2,5 anos, peitaram fome/ miséria/ falta de estudos/ excesso de estudos/ nariz torcido do pai/ abandono da mãe e sei-mais-o-quê para se tornarem violinistas/ bailarinas/ policiais/ cirurgiões/ veterinários/ mergulhadores. Pessoas que sempre souberam. Sempre. Que nunca desistiram. Nunca, nunca, nunca.

Pessoas que nos matam de culpa, sufocam-nos com seus precedentes. Como é que nós, desenhistas natos, ousamos nos apaixonar pela faculdade de Estatística sem autorização da família? Com que direito encostamos a raquete e nos casamos com o oboé? Com licença de quem decidimos que somos mais o fotógrafo de agora do que o mágico que mamãe exibia às visitas? Muita audácia nossa, esse tal de amadurecer. Que falta de consideração não sermos ad infinitum o retrato que nos explicava, o rótulo que nos encaixotava, o sonho que nos tornava definíveis. Mal-agradecidos que somos de varrer tanta expectativa pro tapete e tomar posse de nós. Traidores que somos de mudar nosso (doce ) no meio do caminho, de trocar nossos maiores desejos da vida quando ninguém estava olhando.

Acontece. Acontece-nos. Os anos têm isso de curioso: vão trazendo mais coisa do que os anteriores. Com fúria ou gentileza, vão nos descascando de algumas camadas, pincelando outras. Nós e o coração trocamos de epiderme, de penugem, de floração. Diminuímo-nos. Acrescentamo-nos. E nem sempre nos chega a correspondência com o alvará de soltura dos sonhos antigos, nem sempre nos avisam de abrir espaço no armário para os recentes. Na pressa, no despreparo, nos invadimos; hospedamo-nos de surpresa em nós.

Pelo sim, pelo não, é bom deixar um jogo de toalhas no banheiro. Pro caso de algum futuro vir dormir aqui.

sábado, 16 de julho de 2011

De volta ao começo

Rubem Alves – ele de novo! – e eu concordamos que a mais bela declaração saída de mão humana está nos versos de Fernando Pessoa: “Quando te vi amei-te já muito antes/ Tornei a achar-te quando te encontrei”.

Não que eu seja das tais que creem em paixões à primeira esbarrada, amores de outras vidas (uma já não dá e sobra?), destinos e maktubs. É passar muita procuração para outrens fantásticos, atirar a culpa em arrebatamentos convenientes. Não fui eu, foi o boto, a moira, a lua, a estrela, o signo, o ascendente, a faísca, a fatalidade: toma que o filho é dela. Amor não. Amor não adentra, não violenta, não nasce de magia doida. Amor transpira, sai – depois que pausadamente se instalou, após semanas arrumando as prateleiras. Meses. Anos. É com magia que permanece, vá lá, mas não magia involuntária. O abracadabra do bilhetinho “esquecido”, o hocus-pocus da data lembrada, a poção do milkshake-surpresa no lanche, o feitiço do perfume borrifado no pulso. Sem asas de morcego, sem crina de unicórnio na fórmula: 10 ml de delicadeza dissolvidos em 10 mil litros de suor. Paixão bate que nem virose; amor é erguido, tem andaime, dorme com uma eterna placa de “estamos trabalhando para melhor servi-lo”. Amor é Disney: full-time job com jeito de brinquedo, paraíso de férias sobre bastidores de labuta, fantasia aparente sobre cimento oculto. Amor tem expediente, tem manutenção. É a casa de tijolos dos Três Porquinhos, a faca só lâmina de João Cabral. Voa com asa adjetiva, mas pisa em chão substantivo. Amor não é bolinho. Amor demora.

Amor demora tanto para entregar chaves e escritura que começa a ser construído antes de ter comprador. Quando, então, vemos o amado pela primeira vez, já tínhamos aberto licitação em nós e iniciado a obra. Chegamos com a fundação prontinha. Mas tome estrada! até o olhar virar morar, até a base virar parede.

“Quando te vi”, meu Fábio, foi num velho setembro; quando te vi com ver diferente, muitas sextas-feiras depois; e foi no 16 de um certo julho que nossa base virou parede, que olhares dados viraram mãos dadas. Há vários julhos me surgiu a impressão de eu sempre ter sido dois. Há vários julhos, deixou de ter havido o antes: todo o percurso se fez chegada. Não nos juntamos como metades perfeitas, juntamos inteiros somantes – mais inteiros quanto mais tempo nos soma. Amo o que ficamos sendo e o que esse nós fez meu eu passar a ser. Eu que era rascunho de mim.

Tornei a achar-me quando te encontrei.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Agora é que são eles

Todo mundo já deve ter visto as propagandas feitas pelo Boticário para este 15 de julho (mais conhecido como hoje), o chamado Dia do Homem. Não é comemoração internacional nem nada, não sei por que cargas d’água escolheram esse espaço na folhinha e, claro, estou ciente de que não passa de mais uma desculpa para o comércio faturar o seu. Mas que achei simpático, achei. Capaz de alguns cidadãos considerarem machista a ideia. É perfeitamente o contrário: existir um Dia do Homem mata as piadinhas referentes ao Dia Internacional da Mulher, segundo as quais o resto do ano inteirim pertenceria aos rapazes. Que tirem o cavalinho do toró. A regra é clara: 8 de março para nós, 15 de julho para eles. O que sobra a gente manda cortar à francesa e cada qual abocanha conforme o apetite.

Várias senhoritas talvez ainda argumentem que eles – eles! – são todos iguais, uns issos, uns aquilos, e não fazem jus à homenagem. Grossa injustiça. Afirmar que todos os homens são (por exemplo) mulherengos safados cai no mesmo grau de idiotismo que classificar todas as mulheres de vadias interesseiras. Coisa de gente tão machucada ou malcrescida que ficou burra. Homens são integrantes diferentes de um time igual. Tão nossos opostos em ideias e gostos quanto outras mulheres. De quereres tão distintos dos nossos quanto nossa mãe, irmã e BFF. Homens são o Maníaco do Parque, mas também Michelangelo; são o miserável do teu ex e também São Francisco. Assim como nós temos como parceiras de cromossomos Lucrécia Bórgia, Madre Teresa, a babá espancadora do noticiário e a professorinha favorita. Xizes, ípsilons não nos fazem: permitem somente que nós nos façamos.

Eu, felizarda, entre os melhores espécimes de XYs fui nascida e crescida. Meus XYs me apareceram fáceis de amar (cartão de visitas dos bons). Consequência: amá-los todos. Preferi-los, até. Rejeitar luluzices, bolices, panelices sexistas; querer-lhes com mais paciência, mais alegria. Uma tolerância cúmplice. E daí que não percebem 7 mm a menos ou duas mechas a mais no cabelo, que não encontram o café no pote onde está escrito “café”, que não chegam a identificar cinco cores além de branco e preto, que não distinguem o batom fúcsia do maravilha? Eu não percebo 3 mm a menos ou um jogador a mais na regra do impedimento, não encontro a Rua General Fulano nem pela plaquinha de “Rua General Fulano”, não chego a identificar duas ferramentas além do martelo e não distingo o batom fúcsia do maravilha. Descemos ao mundo em empate técnico.

Aos meus queridos exterminadores de barata, toleradores de cólica, abridores de mantimentos, encontradores de endereços, escaladores de seleção, não-pedidores de informação, coreógrafos de torcida, eletricistas de feriado, bombeiros de circunstância, devotos de times e brasões, devotos de nós – um feliz dia seu, com todas as cores ignoradas e conhecidas. Hoje estão dispensados da louça. Soldado, descansar!

Amanhã a gente, tecnicamente, empata.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Allons enfants!

Quem não era serial killer das aulas de História sabe que hoje se celebra a Queda da Bastilha (lembra? quando a Revolução Francesa berrou um tá-tudo-dominado na prisão-símbolo do antigo regime). Dia de olhar com fúria e faca no dente para nossas bastilhas de bolso, para as cadeias particulares que criamos (ou que nos criam) em cativeiro. Hora de alumiar com archotes nossos corredores mofados, libertar os vexames que trancamos em máscaras de ferro, invadir nossas penitenciárias de pedra. Botar moral na gente mesmo.

O pânico de aeroporto que lhe decepa as asas, por exemplo. Analista nele. Naah, nem pense em folhear essa agenda: hoje!

A declaração sempre engolida em seco, porque a moça é omelete demais para a sua frigideira. Meu filho, escute tio Machado: antes cair das nuvens que de um terceiro andar. Mete bronca.

O receio de ser preterido por um profissional dez anos mais velho ou três salários mais novo. Cair das nuvens (ou de um terceiro andar) é que a vaga não vai. Tá aqui, ó, o envelope pro currículo; o RH é na primeira à esquerda.

Ressentimentos cheirando a naftalina? lixo. Preconceitos herdados? lixo tóxico. Orgulhos adquiridos? leitura. Autoestima no pé? trabalho voluntário. Autoestima no céu? trabalho voluntário. Dependências de corpo? clínica e vontade. Dependências de bolso? vontade e poupança. Dívidas? poupança. Dúvidas? vontade. Terrores diurnos? pó de fada e pensamentos felizes. Noturnos? caráter gordo e ceia leve. Saudade? carta. Confissão? e-mail. Pendência? telefone. Perdão? abraço – estão para inventar delivery melhor.

Seja qualquer a certeza, natureza ou Marselhesa da revolução em miniatura, é pegar na nhanha, agarrar pelo chifre, partir para a saudável ignorância com nossas covardias pasmadas – agora, agora, anteontem, mês passado, quem sabe não espera acontecer. Fora os murinhos de Berlim que nos apartam de nós, fora os fossos que nos empurram do mundo, fora as masmorras em que nos torturamos, fora os feudos em que nos absolutizamos. Guilhotina nas autoinvenções que separam a vida tida da tão longamente querida. Agora, hoje, sem malas prontas, sem folheadas de agenda. Le jour de gloire est arrivé.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Fala que eu te escuto

Um dos programas de segunda-feira no Discovery Home & Health é o angustiante Enigmas da medicina, cheio de pacientes (bota pacientes nisso) que ficam meses, anos, décadas lutando contra os sintomas mais disparatados, sem que uma alma médica consiga descobrir a origem da perturbação. É criança que chora só de ficar ao ar livre, olho que vira pro lado errado, músculo que não vira pra lugar nenhum, perda de sentidos ao volante, vômito que vem de madrugada, dor de cabeça que vem a qualquer hora (e, geralmente, não vai). Um House da vida real. Por fim, certo jaleco iluminado identifica a síndrome de Whtyrhtwhkljman, a doença de Kokeshitoshibasashimi ou uma gripe megalomaníaca. Alívio do telespectador. Ficamos gratos por tabela ao doutor ou doutora que promoveu o happy-end. Mas o maior agradecimento do paciente em questão costuma ser: “finalmente achei um médico que me escutou, que não disse que eu estava inventando, que não me considerou maluco(a)”. Fosse qual fosse a moléstia, cada processo de cura do programa não começou com tomografia, hemograma nem diploma de Harvard na parede; começou com um bom par de ouvidos.

Ouvir, ouvir de verdade, é tão cascudo que devia ser carreira de vestibular. Ouvir recebendo a pessoa, e não se jogando nela. Ouvir refletindo, mas não simplesmente se espelhando. Ouvir com uma ficha em branco diante de si, não com um cadernito de receitas. Ouvir sem precompletar. Ouvir sem predesenhar. Ouvir sem predeterminar. Ouvir noventa-porcentomente, falar apenas dez (dá e sobra). Ouvir em pouso, sem pausa, sem modem, sem celular. Ouvir também com os olhos. Ouvir, de preferência, sem os braços. Ouvir de virar abrigo, de virar maca, de virar berço. Ouvir de se tornar casa. Ouvir de nem ser tanto escola. Ouvir de convidar pra morar na gente. Ouvir de quase não pesar, de quase não fazer barulho, de não espantar pensamento, de andar no outro com a ponta dos pés. Ouvir de usar pantufas. Sshhh, não perturbe: gente falando.

Ouvir profissionalmente. Pedreira. Tanto que Rubem Alves sugeriu novo curso para compensar a superênfase que damos à oratória: estudemos escutatória. Todos. Antes de dar uma chegadinha em Harvard, diplomemo-nos na arte que ainda vai impedir este planetinha de virar terra de gente rouca. E corações surdos.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Come out, come out, wherever you are

Ontem falei que os motivos de existir uma campanha universal pelo descontentamento me fogem à compreensão. Menti. Ao menos parcialmente. Não é que eu atine inteiramente com a razão de se tornar quase obrigatório um mínimo de resmunguice diária, mas o Fantástico do último domingo mostrou a ponta do novelo. Quem viu o programa deve ter se impressionado com a visita de Clayton Conservani e sua equipe ao Vale das Lágrimas, parte da Cordilheira dos Andes marcada pela tragédia inclassificável de 39 anos atrás. Ali desabou o voo de um time de rúgbi; dos 45 passageiros, somente 16 sobreviveram, e na base da pior refeição que se possa conceber: carne de companheiros mortos. Dois meses e meio de inferno congelado. Comentando o episódio, o sobrevivente Gustavo Zerbino deu-me luz ao explicar que não fazia sentido as vítimas do acidente ficarem lamentando sua sorte depois da queda do avião: “Quem reclama da vida está bem. Quem está mal, quando está realmente mal, cerra os dentes e segue em frente”.

Pronto. Eureca. Pequenas ranzinzices, apesar de aborrecerem bastante se exageradas, são socialmente desejáveis na dose certa porque significam nada menos que um sinal de vida. Resmungar é supérfluo: gasto luxuoso de energia. Só se escuta a ranhetice daquele que está (ou se sente) ainda na beirada do poço; quando muito, no meio. Do que já desceu tudo que podia, ouve-se apenas o silêncio gritante – o som do corpo ou alma em regime de urgência, da força hibernando, do ser que decretou estado de calamidade pública. Não há tempo, não há calorias senão para existir, para manter um equilibriozinho de abismo. O resto é desperdício de carbono. Nas fuças da morte física ou mental, reclamar é suicida.

Entendo o raciocínio, embora discorde da premissa. Nosso Ocidente é cronicamente incapaz de distinguir silêncios: aquele com sinal vermelho na porta e aquele grávido de paz. O calar de quem expira e o de quem se respira. O de luto e o de sossego. Na (nossa) impossibilidade de saber qual é qual, por via das dúvidas se quer barulho, muito barulho. Para as mães, pirralho quietinho demais está doente ou arrumando jeito de ficar. Para os amigos, membro do grupo não medita nem se entristece: passou um dia lendo ou dormindo, mergulhou na deprê. É mundo que nos toma o pulso, mede a pressão e confere os batimentos de dez em dez minutos, com zelo neurótico. Resmungou! ufa, está respirando. Se tem índole de monge tibetano e não resmunga, prepare-se para beliscões eventuais. A dor nos torna detectáveis pelo radar.

(Não que a humanidade se oponha aos que resolvem ser felizes com moderação, é claro. Desde que o sejam em voz alta. Para a gente poder ouvir da cozinha.)

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Nem parece

Adoro aquela seção “Entreouvido por aí”, da Revista dominical dO Globo. A cada semana, pérolas de conversas recolhidas de passagem – em ruas, shoppings, mercados, praias e afins. Algumas edições atrás, veio uma de academia, dita por uma aluna para a funcionária da cantina: “Você é casada? Nem parece, é tão feliz”. Se um pretendente caiu na esparrela de pedir a mão de alguma leitora naquele dia, tomou na orelha.

Por motivos que me fogem à compreensão, existe uma campanha universal pelo descontentamento. Quem não está descontente com algo deve tomar vergonha na cara e parecer. Nem é de bom-tom mostrar-se tão satisfeito o tempo todo. Empregado que não dá sua sagrada resmungada de 15h20? que nunca se candidatou a promoções porque adora seu cargo? Puxa-saco, vendido, pamonha, sem ambição. Esposa que não tem um ai pra dizer de futebóis às quintas, de tábuas de vaso levantadas, de cuecas perdidas pela sala? Ingênua, tadinha, ainda está em lua de mel. Espera só pra ver quando ele...! Sócio que não briga com sócio? Vai ser roubado. Genro mimado por sogra? Ainda não morou com a velha. Torcedor achando o máximo a nova escalação? Cegueira de apaixonado. Fiel que não vê a menor necessidade de fazer um sandubão de seus preceitos com os de outras crenças? Fanatismo religioso. Impossível ser sujeito decente, pagador de impostos e ao mesmo tempo tão pleno, tão adequado a seu espaço, tão desavergonhadamente feliz. Dá um Tylenol, isso passa. Repouso, vitamina C, canja e uma reclamadinha de duas em duas horas.

Mas nem pense em ser triste. Triste também não pode, há contas a pagar: deixa de frescura e manda ver no tarja-preta. Cidadão que se preze tem de exibir aquela dose respeitável de amargura, sabendo meter na conversa dois ou três comentários ácidos muito bem-vistos socialmente; só o bastante para não oprimir ninguém com sua insuportável alegria – e nem tanto a ponto de seu interlocutor pensar que vai ter de resgatar você da sacada do 27º andar, daqui a 15 minutos. Não queremos assustar um desavisado, queremos? Menos sentimentos, por favor. Pelo menos, não neste horário. A não ser que um excêntrico você prefira ser reconhecido em si mesmo e creia que vale o risco de um atentado ao pudor sair com a alma obscenamente pelada rua abaixo.

Até parece.

domingo, 10 de julho de 2011

O fator dicionário

Numa de suas crônicas fenomenais, Martha (sempre que eu aqui disser Martha, é a Medeiros) observa que a gente conhece a índole das pessoas através do banheiro de serviço. O índice Nasdaq em questão é o papel higiênico da empregada. Igualzinho ao do resto da família? bom sinal: gente evoluída, que não acredita na divisão entre casa grande e senzala. Se, ao contrário, é daqueles mequetrefes – que dão duplo expediente como lixa de unha –, bola fora dos donos da casa. Nessas pequenezas é que nos jogamos inteiros. As partes gritam o todo.

Lembrei-me da crônica de Martha enquanto assistia a um episódio de Extreme makeover: home edition, exibido pelo Discovery Home & Health (canal 55 da Net). Para quem não sabe, o programa pega famílias com histórias de vida sofridérrimas e, conforme diz o título, promove uma reforma extrema em sua residência, geralmente erguendo uma nova da estaca zero. Bota nova nisso. Fazendo jus ao nome, a atração assume o papel de fada-madrinha até a medula: arranja bolsas de faculdade, doa carros esplendorosos, constrói dormitórios e quintais recém-chegados do Magic Kingdom. Cada lobby é um parque, cada corredor é um flash. Requintes coloridos de pirar criança.

A família desse episódio (de sobrenome Wilson) morava em um trailer. Móveis literalmente colados com durex. Nada vezes nada: “só” educação e amor. Uma avó, cinco netos. Vem o programa, levanta um palacete, faz quarto do Homem-Aranha, faz quarto de basquete, coloca “teia” de escalar na parede, traz autógrafo do Tobey Maguire, transforma a área numa Shangri-Lá de balanços e bicicletas. Os pequenos, obviamente, deslumbrados. Mas o que mais pareceu encantá-los dormia na prateleira da sala de estudos. “Temos um dicionário só para nós!”, exclamou um dos pixotinhos com felicidade comovente. “Tenho livros no meu quarto!!”, sorriu o mais velho assim mesmo: em negrito, itálico e duas exclamações. Livros doados pela vizinhança, nem de primeira mão. Porém, naquele grupo de pessoinhas que acabara de realizar o sonho da casa própria, quarto próprio, TV própria, banheiro próprio, Disney própria, a descoberta da biblioteca própria trouxe o Natal.

Desnecessário espiar o banheiro de empregada no lar dos Wilson. O fator dicionário adverte: alto índice de desenvolvimento humano. Grandes poderes trazem grandes responsabilidades, mas não há que duvidar: o que quer que os meninos Wilson venham a ser depois das bolsas na faculdade, será bem sido. Mission accomplished.

sábado, 9 de julho de 2011

Foi ele que começou

Sala de aula. 40 gremlins de uniforme. Um deles faz algo ligeiramente mais excêntrico que o caos nosso de cada dia. Cruza a sala e esmurra o melhor amiguinho, digamos. Desaba da cadeira de tanto rir, no meio da prova final. Atira a carteira na melhor amiguinha. Seja qual for o ato de candura ou a providência que você, resignado mestre, venha a tomar, não tenha dúvida: o cidadão se virará indignadíssimo com a sua injustiça. E soltará um inevitável – “Mas foi ele que...!”. Me chamou, me cutucou, me roubou, me sacudiu, me bateu chateou arranhou cuspiu xingou obrigou a subir na mesa riscar a parede tirar a roupa quebrar a porta (seus neurônios de resignado mestre já não conseguem processar as vírgulas em tempo real). Acompanhando a declaração de que “foi ele”, um gesto vago, apontando tanto o colega da direita como o de oito mesas atrás. Foi ele, qualquer ele, desde que não tenha sido eu. Foi o não-eu. Foi o mundo.

É sempre o mundo. Esse conspirador, esse desconhecido. Você, resignado mestre, discursa pela quaquicentésima vez que não, não foi ele, quando um não quer dois não brigam, a gente tem que assumir a responsabilidade e blás, muitos blás. Todos blás verdadeiros. Mas, em um daqueles momentos-joão-batista, você é a voz que grita no deserto. Está arraigado, grudado em gente brasileira feito visgo, desde criancinha. Primeira noção básica de brasilidade: a culpa é dele. Somos, basicamente, um país que se terceiriza.

Foi a colonização que a gente teve. Foi a Inglaterra que exigiu nosso ouro, ora pois! Foram os nobres da época que exploraram, escravizaram, se venderam. Foram os pobres da época que exploraram, escravizaram, se venderam. Foram seus filhos que puxaram os gritos de guerra subversivos. Foram os Estados Unidos que meteram seus filhos nessa guerra. Foi o candidato do PQP que começou essa obra. Foi o governador do TNT que deixou essa dívida. Foi o FMI que nos ferrou. Foi o FBI que nos obrigou.

Foi a Light que ganhou a concessão. Foi a CEG que não fez a manutenção. Foi a Globo que plantou a informação. Foi a escola que deixou ele entrar. Foi a escola que fez ele sofrer. Foi a minissaia que fez ele se excitar. Foi a lotação da casa que prejudicou o funcionamento. Foi a falta de chuva que impediu o abastecimento. Foi a União. Foi o estado. Foi o município. Foi a lata de lixo que não chegou mais pra cá. Foi o carro da frente que não chegou mais pra lá. Foi mamãe que mandou. Foi papai que deixou. Foi o Juca que quebrou. Foi ele que...!

Com o primeiro país que disser “Fui eu!”, eu caso.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Bem-vinda à casa de bonecas

A filósofa Viviane Mosé (li eu na coluna de Joaquim Ferreira dos Santos) esbravejou recentemente contra o hábito de certos restaurantes “chiques” entregarem um cardápio diferente para as mulheres, no qual não aparecem os preços dos pratos. “Isso é de um machismo absurdo, uma ofensa! Dá a entender que a mulher não pode ou não deve pagar a conta. Parece que estamos na Idade Média”, irritou-se Viviane. Com todíssima razão. Até arrisco um esforço para entender a tentativa feita pelos donos de restô de se mostrarem cavalheiros (tortos), mas a coisa derrapa feio, o agá se perde na freada e esses senhores saem mesmo como cavaleiros da triste figura. Por que artes e meios adivinham o contracheque de um casal? Com que direito assumem nossa tutela? Com que autoridade afastam os olhos de bancárias, banqueiras, advogadas, empresárias, executivas dos cifrões que lhes são velhos colegas de trabalho? Independentemente, aliás, da atividade que as senhoritas em questão venham a ter: donde vem a audácia de “pouparem” as maiores economistas domésticas da ciência de suas escolhas?

Não sou queimadora de sutiã (por sinal, adoro um bojo); tenho, porém, gana crônica de ver preconceitos e petulâncias virarem churrasquinho. Gentileza é caprichar no buquê de rosas vermelhas, simplesmente porque. Abrir portas, puxar cadeiras – vá lá. Gestos de perfumaria; peixinhos que alimentam o sagrado hábito de fazer a corte. Ocultar preços, no entanto, já entra em terreno de paternalismo: área pantanosa. Irrelevante quem paga ou deixa de pagar. Venenosa é a presunção de que as damas, tenhamos renda ou não, necessitamos de um sugar daddy que nos banque mentalmente, fazendo a devida filtragem de informações. Conhece alguma donzela-em-perigo que se encaixe? Nem eu. Não com mais de três anos. E as dessa idade, se têm mamães e papais espertos, espiam Jornal Nacional, ganham sua mesadinha, fazem depósitos em sua conta-porquinho e estão fartas de ouvir sobre desemprego. As demais residem, talvez, em 1984.

Mocinhas quebradiças? Tolinhas de capa vermelha aguardando o braço do caçador nos desviar do mau caminho? Me poupe.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

In-hearts

Depois de ouvir duas moças falando (mal) dos respectivos cunhados, numa lanchonete, minha irmã recordou a máxima de uma amiga sua: “Se cunhado fosse bom, a palavra não começava desse jeito”. Calúnias, pensou. E comentou comigo, fofinhamente, que gosta muito mais de como os falantes de inglês chamam seus aparentados por parte de casamento: in-laws. Brother-in-law, sister-in-law – novos irmão e irmã pela lei, laços que a caneta criou onde o sangue já não podia. “Se bem que eu preferia”, completou ela a fofice, “que o nome fosse brother-in-heart”.

Comprei a ideia à vista. “In-laws” é consideravelmente melhor do que os termos pouco charmosos que usamos para nomear os parentes herdados, mas ainda peca pela sisudez. Tem aquele pesadume de decisão judicial, a letra fria de uma obrigatoriedade civil: decreta-se na presente data que o supracitado passa a ser seu pai, mãe, irmão pela força da lei, revogando-se quaisquer disposições suas em contrário. Em vernáculo: vire-se. Morra de amores pelo sujeito ou queira defenestrá-lo na primeira visita, o importante é tratar de tirá-lo da frente do juiz e ir pra casa com ele ser feliz para sempre. Ao menos não cometer um pouquíssimo civilizado sogri ou genricídio por causa da piadinha infame, do cheque sem fundos, do cortador de grama. Não na frente dos vizinhos.

“In-hearts”, pelo contrário, tem a doçura da escolha. Tudo bem que o clã vem no pacote, mas a gente adota ou não – até aquele no qual se nasce. Aglomerados de leucócitos, hemácias e certidões não atam nem desatam nós sem o carimbo da vontade. Pois eu tive a gloriosa sorte de ser adotada duas vezes: pelo sangue confirmado pelo querer e pelo querer que dispensa o sangue. Pelo meu lar e pelo de meu Fábio. Por quem me trouxe até ele e por quem ele me trouxe. Família pra mais de metro.

Sem acaso, hoje é aniversário de minha (com o perdão da limitada palavra) sogra, que desmente todo e qualquer samba do Dicró. E a quem devo um saldo acumuladíssimo de parabéns e obrigadas: pela alegria de olhar e vida, pelo filho, pelo zelo, companhia, apoio, conselho, carinho em todas variadas formas – abraços, mimos, telefonemas, instruções, almôndegas e bolos de cenoura. Felicidades também para mim, alegremente impossibilitada de chamá-la senão:

Minha mother-in-heart.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Passageiro da agonia

6 de julho é – acredite – o Dia Mundial Contra os Passageiros Indesejáveis. Mais uma comemoração com algo de estapafúrdio e muito de necessário. Ou alguém nunca se irritou com os fulanos que (mesmo 432 estações antes daquela em que saltarão) aglomeram-se na porta do metrô? Com os viajantes que distribuem mochiladas com seu casco de tartaruga? Com os cidadãos que estão convencidos da excelência do próprio gosto musical e fazem questão de dispensar o fone para compartilhá-lo? Com os tipos que, em falta de assentos, apoiam-se nos sentantes? Com os sentantes que insistem em meter uma conversa no meio do sono, livro ou simples ócio mental do próximo? Com os donos de pernas que só se ajeitam nas cadeiras em ângulos de 140 graus? Isso para não falar dos elementos hardcore: portadores de ataque-de-pelanquite. Eles estão lá, azucrinando aeromoças por meio cubo de gelo a menos, aborrecendo vizinhos por meio centímetro de bagagem a mais, dando carteiradas como se. Sweethearts que fazem a gente olhar as janelas dos aviões e considerar se uma despressurizaçãozinha não valeria a pena afinal.

Mas esses, os garotos-enxaqueca do transporte nosso de cada dia, não são os piores. Marvados mesmo são nossos parasitas de estimação, os indesejáveis que levamos para passear no cá-dentro e, horror, voltam para casa conosco, acampam em nosso travesseiro, enchem de papel de bala nosso chão d’alma. A cisma do não-vai-dar-certo, a convicção do eu-não-mereço, a mágoa do eu-mereço-muito-mais, o veneno do ele-me-paga, o desespero do ele-não-me-paga, as toneladas do o-que-é-que-eu-tenho, a angústia do eu-já-deveria-ter – todos esses substantivos nada abstratos e mais do que compostos. Bando de persona non grata. Urubus de carniça. Convidados bem trapalhões que não pagam passagem e hospedagem, mas deixam a coisa porcamente situada para os verdadeiros inquilinos.

Problemas para abrir a janela? Veja se no banco desses tipinhos não tem um botãozito de ejeção. Se não tem, tome aqui um saquinho de pó de fadas reservado para emergências – e não se esqueça dos pensamentos felizes. Bon voyage!

terça-feira, 5 de julho de 2011

Todo dia é dia, toda hora é hora

Uma senhorinha nossa amiga, com quem só encontramos nos finais de semana, veio parabenizar minha irmã no domingo anterior ao aniversário dela. “Mas o presente eu só trago no domingo que vem”, completou. “Dizem que não é bom a gente comemorar antes do aniversário, né?”

Dizem; e até hoje não entendi por quê. Soa supersticioso e medievalmente culpado: ah, verme! achaste que já merecias celebrar mais um ano, cantaste vitória antes de cruzares a faixa? Audácia! Noventa chibatadas e um atropelamento na véspera do grande dia para deixares de bestice! – é crível? Talvez se vivêssemos sob a batuta dos rancorosos deuses do Olimpo, que, sem NET Virtua, não tinham mais que fazer além de vingar-se de cada mijadinha fora do penico. Talvez nem.

A sermos honestos, cada vividinha dentro do planeta é coisa digna de parabéns, parada militar e banda com trombones. Não arredondou mais um níver? Realmente sofreu o famigerado atropelamento de véspera? Vá lá; porém celebrou de antevéspera e morreu ainda com os acordes do Celebrare na cuca. Não sei para você, mas a mim me parece consideravelmente mais divertido do que ter morrido de qualquer maneira – apenas sem os acordes, balões e brigadeiros que, por razões óbvias, não ficariam acumulados para mais convenientes datas. Avareza de alegria investida em fundo perdido.

Festeje, sim – antes, durante e depois do natalício, que para esse saldo não tem conta-poupança (mas o cartão tem limites: nada de exaltações!). Se não é níver cravado, há sempre Dia do Telefonista, da Marchinha de Carnaval, 517 anos do Tratado de Tordesilhas, 9 do primeiro beijo no cinema, festa de Santo Atanásio ou Santa Eudóxia. Dia da Árvore? opa: piquenique com a galera no Jardim Botânico. Contratação em novo emprego? solta uma churrascada para cantar a fartura! Aniversário de extração da amídala? um sundae em memória da pobre. Junho, julho, agosto? já é! bandeirinhas coloridas na sala! Anote aí a prescrição sem data de validade: uma gratidãozita de 60 em 60 segundos. Beba com roupa nova – ou Roupa Nova –, saia rodada e goles de paraíso.

(Senão eu vou mandar a Cuca te pegar.)

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Declaração de independência

Declaro minha independência da fúria tecnológica, da urgência eletrônica. Concedo-me o direito de só trocar o celular por ocasião de seu último suspiro, de não tuitar do metrô nem ver RJ-TV na fila do banco, de esquecer o telefone desligado na bolsa por não me querer encontrável. Renuncio ao prestígio de ser emergencial, uma vez que médica, mãe, babá, mecânica ou analista de sistemas não sou. Dou-me o dever de almoçar sem interrupções e os parabéns por ter usado duas versões do Windows, olhe lá, em minha não longa existência. Declaro minha independência de kindles, tablets, iPads, iPods, mp3s, notebooks pendurados no pescoço. Das câmeras digitais, confesso-me leal vassala; mas declaro minha independência das filmadoras.

Declaro minha independência dos preconceitos, todos – o que não quer dizer, absolutamente, que não tenha conceitos próprios. Proclamo a liberdade de discordar sem humilhar, isolar ou agredir. Declaro minha independência dos comentários à boca-pequena, dos apelidos implicantes, do jornal de boatos, das anedotas racistas, das manifestações pitboycas, das revistas de celebridades, dos programas exploradores, das pegadinhas estúpidas, das torcidas organizadas, das fofocas (que dispensam adjetivo: não há senão as maldosas). De tudo que foi “pensado” – se é que se aplica o termo – para fazer parecer que os respectivos criadores estão em melhor situação humana que suas vítimas.

Declaro minha independência de nicotina, cafeína, álcool, drogas, chiclete, chocolate, baralhos, roletas, tabuleiros, mentiras e muletas tais (embora ainda tome um pouco mais de analgésicos do que o aceitável). Declaro minha independência do cartão de crédito, mas não da vitrine. Do salto, mas não do sapato. Da maquiagem, mas nunca! do perfume. Da chapinha, mas não do leave-in. Do esmalte, mas não da lixa. Da esteira, mas não da bicicleta. Da Coca-Cola, mas não do Ades. Do samba, mas jamais! do cinema. Da maternidade, mas não da fraternidade.

Declaro minha independência de todo colonizador que não esteja com o nome na portaria, ou que não queime seus navios bélicos imediatamente após a entrada.

Sem mais, assino-me.

domingo, 3 de julho de 2011

Espelho, espelho seu

Segundo aqueles sites doidões de cartões virtuais, hoje é o Dia de Cumprimentar Seu Espelho. Críticos de si mesmos: tremei. Mulheres que abominam suas sardas, suas pintas, seu narizinho arrebitado ou embatatado, bochechas mui longas ou pescoço muito curto, orelhitas maiores ou menores do que é decente, seios mais ou menos centimetrados do que é devido, cintura e pernas mais ou menos abauladas do que a lei permite: estamos de olho. Homens que observam deprimidos a fita métrica envolvendo braços, bíceps, tríceps e otras cositas: beware! Teens que amanheceram trancados com um arsenal de guerra da Cacau Show, chorando as espinhas derramadas: libertai-vos! Vós que discutistes cobras e lagartos com a régua e a balança, sem esperança de reconciliação: contemplai um novo mundo. Choro, hoje, só de cavaquinho; vela, só em alto-mar desfraldada. Dia de dar um french kiss em si próprio e cair de boca na vida.

Grite um bom-tarde descarado à sua imagem, experimentando pouco se lixar para os fios grisalhos, as sobrancelhas grossas, o queixito proeminente – qualquer neurose de estimação. Você não nasceu Angelina ou Brad, e daí? nem eles: construíram-se. E, não houvessem se construído, seriam igualmente plenos de alegria e imperfeição. Contanto que seu espelho não o cumprimente com a estampa de um sujeito que não merece a boa cara que tem (seja a cara que for), tudo certo. Contanto que o reflexo visível fique sempre vários níveis aquém do invisível, maravilha. Seu coraçãozinho desfila na vida com pernas e requebros de Gisele; seus pezitos andam caminhos que os tornam dignos de Cinderela; seus braços e ombros dão inveja em peitoral de Hugh Jackman na hora de consolar as amizades. Não aparece? Azar dos míopes. Fica só entre a gente e nosso espelhinho embutido.

Mas cumprimente o espelho de fora mesmo assim – quanto mais não seja, por educação. O coitadinho não sabe o que está perdendo.

sábado, 2 de julho de 2011

Mil e uma noites

Em sua coluna de ontem no caderno Rio Show, dO Globo, Deise Novakoski relatou o caso de um amigo que, sem muita habilidade para contar historinhas de boa-noite, fazia os filhos dormirem sugerindo-lhes problemas estapafúrdios. Por exemplo: como poderiam levar um elefante (ou girafa, ou zebra) ao dentista? Os pequenos matutavam, às vezes, noites a fio na dúvida cruel – e tanto torravam as celulazinhas cinzentas que acabavam capotando no travesseiro. Nem preciso dizer que adorei a técnica. O primeiro misto de revista Coquetel com boi-da-cara-preta de que já tive notícia.

O curioso é que, normalmente, são os problemas que nos mantêm acordados. E não digo isso no mau sentido da insônia, daquele virar e revirar na cama que não resolve nadinha (nascemos com baterias ecologicamente corretas: recarregam mesmo é na luz do sol). Falo conotativamente, recordando Sherazade. Problema – desde que não seja gravíssimo, coisa mais de morte que de vida – é o maior gancho de nosso folhetim. É impulso, é combustível. É bicho que não nos deixa sossegar numa pasmaceira improdutiva. Termos vida razoavelmente imperfeita é o que mais contribui para irmos nos achegando à perfeição – ainda que devagarinho, de levinho, aos bocadinhos. Problemas nos aporrinham e nos salvam. Salvam-nos de nós mesmos, da overdose de nós. Quanto mais nós substantivos, menos nós pronomes; menos ego enjaulado em sua própria inutilidade.

Problemas alheios valem? Valem. Valem mais, por sinal (contanto que nossa preocupação seja de amor e não de mexerico). Valem tão mais quanto nos distraem de nossas pequenas necessidades. Colocam-nos em perspectiva. É bom e justo gastarmos tempo de mundo nos desviando do ócio para o desafio; mais justo e bom (e urgente) é migrarmos do desafio para o serviço. O ócio hiberna; o desafio desperta; o serviço movimenta. A quem se põe a serviço, não sobra tempo de ter medo de careta ou da Cuca que vem pegar. Pode vir, vem. O corpo dorme, mas o coração leva as horas de olhos bem abertos.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Obrigado por minha ajuda

Eis que o Tremendão Erasmo Carlos está completando 70 anos de (boa) vida, 50tinha de carreira, e vai ter festa de arromba no Municipal – com direito a Rei Roberto e Marisa Monte dividindo os vocais. Uma brasa. Mas, apesar de achar que Erasmo põe mesmo para derreter e tem mais é que celebrar em grande estilo suas bodas de ouro com o Brasil, nem foi isso que considerei o mais bacana. Curti montão o fato de o cantor declarar que vai repassar toda a renda do evento para o Criança Esperança. E, principalmente, curti montanhão o que disse, ontem, em entrevista ao RJ-TV: “Agradeço aos organizadores do show por me permitirem fazer isso”. Erasmo não agradecia por ajuda recebida: agradecia a ajuda aceita. Não só não via nada de extraordinário em seu gesto como ainda se mostrava encantado que lhe tivessem concedido esse favor.

Sermos úteis é um favor que nos concedem. Um empréstimo que fazem à nossa autoestima, um selo do Inmetro em nosso amor-próprio, um asterisco feliz no verbete de nossa enciclopédia particular. Aceitar uma doação parece a muitos oportunismo, esperteza, comodismo, humilhação, dependência e coisas tais – e no entanto é generosa oferta: prova de confiança (de que o ato gratuito não virará cobrança moral), delicadeza de namorado (é preciso permitir aos amantes a alegria de presentear), porta aberta para que o outro prive de sua vida íntima (que há mais íntimo do que a necessidade)? Por outro lado, que há de mais frustrante para os amorosos do que a dor que se fecha orgulhosamente em si mesma, a autossuficiência turrona fantasiada com o luto da discrição?

Ajudar sem pesar em ombros alheios é uma arte; aceitar o auxílio com a leveza que mora entre a ingratidão e o sentimento de dívida eterna requer o dobro de dotes artísticos. Tão difícil necessitar com elegância. Palmas duplas, portanto, para a equipe do Criança Esperança e sua doçura de receber. Presenteia duas vezes quem dá licença de ser acolhido no abraço dos irmãos camaradas e amigos de fé.