quinta-feira, 19 de julho de 2012

Comer com os olhos

Minha colega avisou à diretora que iria dar uma saída, comprar algo de almoço. Tinha um certo nariz enjoado da merenda de escola: “Quero comer com os olhos”. Como é que é? “Quero comer com os olhos, ver um negócio que me atraia para tentar colocar alguma coisa no estômago”, repetiu com ar de fome entediada. Assenti, entendendo contente: “Tem de rolar preliminares, né? Amor à primeira vista?”. De fato, de fato; quando se achava em estado assim de quase fastio – precisando de comida sem querê-la –, o único estratagema de consumar e consumir o útil era montando clima para o agradável, ou bem acabava passando o dia desnutrida. Claro: é manha que só cabe em situação de fome circunstancial, civil, sem o imperativo da Fome que tudo aceita e devora sob escassez doentia, sob risco, sob urgência. Fome maiúscula, de sobrevida, desconhece vontades perfumadas. Desconhece o vácuo específico.

Tirada essa hipótese do vazio extremo, porém, apetite é capricho com nome e endereço. Direcionado. Bichinho escolhedor. Sem se limitar à comida, é nela que obviamente nos flagra e desnuda – já que nem sempre somos povo carente de feijão com arroz. Um dia sonhamos o bife sangrando na boca, no outro amamos demasiadamente o alimento com glúten, no terceiro juramos que só um japonês resolve, no seguinte consideramos impossível engolir qualquer sal que não daquela, e nada mais que daquela salada. Por quê? Porque salivamos com a vista; porque o estômago nos ronca de memória; porque a saudade nos faz as vezes de uma segunda (em geral definitiva) natureza. O que comemos em condições normais, comemos por saudade – aquela saudade que nos faz entender sabores como (a)braço físico de nossas projeções.

Tendo saudade, é de nós que a temos – do que imaginariamente fomos ou não impossivelmente seríamos. Daí a gula pelo outro que não apenas sacia, mas transborda a beleza de nossa imagem e semelhança. Daí dizermos que o ser tão amoroso “não é nosso tipo”, daí nos insatisfazermos no trabalho que não produz aqueles 2,6% de faísca inatingível, daí mudarmos de ares e vivências quando a vivência de fábrica já não basta, tão preenchida que ela é de normalidades com feijão e isenta de sobremesa que nos reflita, que nos homenageie, que comamos com os olhos. É geral não servirmos inteiros para o que unicamente nos serve.

(Agora nas férias, viajo: viajar é das maneiras mais felizes e efetivas de merendar a vida com os olhos, visto que é caçar a beleza onde mora a beleza. O Lugarzito, portanto, retorna em alguma dezena de dias.

Espero que não suficientemente saciado.)

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Save Ferris

Revi Curtindo a vida adoidado, sua rebeldia afetuosa. Hoje não seria feito com tanta candura – ou possivelmente carregariam nas cores pastelonas, para atenuar o desconforto com o fato de ações condenáveis se darem integralmente bem. Seja como seja, Curtindo é pérola de estilo, não se concebeu como manual de conduta; foi pensado para ser digno de admiração e delícia na forma, não de imitação no conteúdo. É fetiche; é projeção; é fantasia que, mesmo sob olhar de professora, conserva seu apelo de elogio à liberdade.

Não é de matar aula e gazetear dia inteiro, cidade inteira, a liberdade em questão. Carrega outra (mais profunda) o inoxidável Ferris Bueller, pelo menos duas vezes exaltada verbalmente durante o filme: uma com carinhoso espanto, pelo amigo Cameron, e outra com declarada inveja, pela irmã Jeanie. Ferris tem a liberdade de fazer dar certo. Ferris “sequestra” a namorada na escola com autorização inconsciente do diretor, Ferris arranja mesa em restaurante caro dando carteirada de “rei da salsicha”, Ferris invade o carro alegórico da parada alemã e performatiza duas canções sob as vistas e câmeras de toda a city; enfim Ferris retorna ao próprio quarto no último segundo necessário para fazer teatro de doentim inocente, e para ganhar de pápis e mâmis sopinha e mimo orgulhoso. Métodos discutíveis, id hipertrofiado, malandragens suspeitas – muito parecidas, inclusive, com o nosso tão nefasto “jeitinho”. Tudo isso, sim; e o charme viscoso do jovem Bueller não santifica o conjunto irresponsável da obra. Mas o que reluz em Ferris é a incapacidade de não se crer. Ferris se acredita, e – especialmente – consegue acreditar-se sem lançar mão de força ou arrogância, armas de fracos. Acredita-se transpirando doçura, acredita-se amando a si mesmo com naturalidade e alegria. Acredita-se (eis o fundamental) como se fosse bom e justo ter o direito à sorte e ao reconhecimento; como se o mundo fosse tão lindamente propriedade sua quanto de qualquer outro.

Se há leitores estranhantes do “como se”, não estranhem. Que a gente passa a vida vivendo assim: como se merecesse. “Então não merecemos estar felizes?”, chiará o primeiro militante amofinado. Respondo que sim, sem dúvida, a meu ver é coisa decidida; mas quantos de nós, convictos ou não de cabeça a respeito dessa vocação humana, exibem aí um coração convicto? Ou nos entocamos feito vermes, com autoestima de menos para qualquer ação que vá além de respirar; ou nos autorrepetimos palavras de ordem em mantra, lutando por nos desvencilhar da cuuuuuuulpa que vem com a felicidade no amor, na carreira, na saúde; ou definitivamente berramos a lista de nossos direitos em brinde histérico, já na defensiva quanto aos possíveis adversários e, por isso mesmo, soterrados de cuuuuuuuuuuuulpa. Se há algo extraordinário em Ferris é a ausência da culpa de conseguir. Não confundir com falta de ética e impermeabilidade moral, feiuras próprias a egoístas, meliantes, psicopatas. Falo da alegria limpa e genuína de se descobrir, sem prejuízo alheio, em lugar como o diria Guimarães Rosa: tão de repente bonito.

Save Ferris – o Ferris que em você mora cantante e resoluto, fazendo coleções de “por que nãos?” já vencidos e empalhados. Day off  total no preconceito contra si mesmo.  

terça-feira, 17 de julho de 2012

O não-querer

Em Gabriela, Nacib acaba de tomar um grandessíssimo não da morena de cravo e canela, ao pedi-la em casamento. Não compreende. Ninguém compreende. Então não é o sonho feminino mor dos anos 20 – casar por estabilidade, sustento, segurança, bons olhares e boas ocasiões sociais? “Estou bem assim”, sorri Gabriela com a maior canelice do universo, intuindo muito provavelmente o que o casamento demandava na contrapartida da época: a obediência reclusa, o assassinato longo e lento de alegrias muito explícitas e quereres muito espontâneos, o enquadramento pianinho às convenções muito sisudas e muito inimigas da pipa solta na rua, do pé solto de sapato, dos cabelos soltos, dos seios soltos, das ideias soltas. Gabriela não quer a gaiola almofadada que todas querem: espanto. Gabriela não quer vestir seda, andar no salto, receber brilhante, prender homem, frequentar salão: escândalo. Não choca por ser “mulher perdida” – que também estas, as do Bataclã, se encaixam direitinhas nas sombras e becos sociais, sem ousar ir além do “seu lugar”; Bié choca por simplesmente não se alinhar a fileira alguma, não ser facilmente enfiada na lógica e nos maniqueísmos do tempo, não se prestar a nenhuns objetivos consagrados, não se deixar capturável para conforto das mentezinhas de Ilhéus. É imprevisível, incompreensível, inexpugnável; perigo. Audácia.

O não-querer desequilibra porque nos força a admitir a existência de alheias realidades. Desnecessário ir a grande escala. Sou exemplo eu mesma, por gabrielamente me recusar às pequenices: não furei nem hei de furar orelha, por não ter a mais vaga precisão de aumentar em dois buracos os sete que na cabeça já vêm de nascença; não uso maquiagem, por rematada preguiça e nojo convicto da ocorrência de manchas, especialmente de (argh!) batom; não uso esmalte, por estar indisposta a conviver com o mínimo descascado; não caminho nem  pretendo jamais caminhar no salto, por não enxergar a menor justificativa para moer dedinhos a fim de disfarçar uma pouca altura que, em verdade, me agrada. Gosto-me pequena, sem pós nem tintas me escravizando a imagem, sem adornos me violentando o corpo, alforriada de recursos que nunca foram comigo, nunca me disseram respeito. E nem assim me vejo menos feminina; sou, pelo contrário, bastantemente fêmea ante a facilidade de melhor sorrir longe de uma dúzia de instrumentos de tortura – chapinha, secador, escova, curvex, meia-calça. Livre e naturalmente enfeitada, colar no pescoço, pezitos no chão, tecido molinho, mal tenho tempo de me ser; calcule-se o esparrame de minuto perdido fingindo somar, a isso, o que as indústrias bem preferiam que eu fosse.      

Olha só que bacana: a gente pode não querer e não morre (num mundo civilizado, não morre) por causa disso. Pode não querer seguir passeata sem deixar de politizar em forma de crônica, editorial, Facebook. Pode não querer ser de direita ou de esquerda por considerar o preto-branquismo estúpido, e a despeito disso ser firme e posicionado. Pode não querer o título babaquizante de “nerd” sem abrir mão de curtir leituras e camisetas temáticas. Pode não querer sexo com o sexo oposto sem com isso ser gay, pode não querer sexo com o mesmo sexo sem com isso ser militantemente hétero. Pode não querer sexo at all. Pode não querer uma mansão. Pode não gostar de Paris. Pode abominar chocolate. Pode trocar de time. Pode preferir cor quente e sair de azul dos pés à cabeça. Pode defender convicção sem desprezar quem defende a contrária. Aliás: deve.

A gente, como quem cresce em casa um filhote, pode até achar nosso querer mais lindo e mais certo. Não pode é botá-lo para morder o não-querer dos outros.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

A grande família

Sou – sempre fui –, além de cinéfila e leitora convicta, noveleira. Em suma, a dependente clássica e crônica de ficção, o que inclusive me decidiu o futuro profissional: não poderia cursar nada na faculdade que não permitisse ingestão diária de histórias. Foi útil (creio). A gente não inventa histórias senão para espelhar-se individual ou grupalmente, e nisso acabei esbarrando com o quíntuplo de transeuntes, imergindo em seis ou sete universos extras de confidências, transbordando em vinte mil vezes a cota de amigos e amores, a se comparar com quantos me tocariam a vida se tivesse sempre permanecido, muito quieta e isolada, em minha dimensão de nascença. Li, assisti, acompanhei: multipliquei-me. Se poderia, numa condição limitada, ter-me importado com duzentas criaturas ao longo dos anos, nessas existências de empréstimo devo ter excedido o milhão. Facinho. Sendo ou não gente “de verdade”, pouco muda; nós, vampiros de vidas possíveis, é que mais de verdade ficamos sendo pessoas – por conter mais pessoas. Como há quem enfie na orelha aquele aumentador de buraco, dependentes de ficção enfiam-se identidades fictícias, parentescos imaginários. Histórias são alargadores de coração.

Mas é bênção que não deixa de virar maçada. Demora nada e os personagens passam a dar pesadelo; de dia, de noite, é uma suspiração doida pelo destino de Catarina Luísa nas mãos de Veruska Isabela, ou de Gustavo Augusto pela espada de Guilherme Astolfo. Alargando-se o peito para receber mais estes conhecidos e parentes, redobram também as aflições terceirizadas – isto é que é. Não bastantes os aborrecimentos nossos e próprios, e aqueles de nossa turma de carne e osso, herda-se a amofinação de uma criança perdida às seis, a consumição de uma torcida pelo sucesso às sete, a escangalhação de um amor dorido de infância às nove; e tome telona à tarde, carregada de silêncios e explosões e fugas, e tome telinha corujona de madrugada, crivada de sustos e dramas de quatro gerações. Fora o romance aberto no colo, os protagonistas docemente arrastados para as cobertas, nossos, tão nossos – nós embolados neles de sofrer e alegria, um no outro, por breve eternidade. Nada diferimos, em desespero partilhado, das catarses de folhetim lidas publicamente no século XIX, como narrava Alencar no pequenino Como e por que sou romancista: chororô coletivo pela morte de um personagem muito e muito querido. São lutos menos sólidos, menos perenes, da mesma sorte infinitos e influentes na luz do dia enquanto duram.

Parentes por parte de câmera, de página, são igualmente sangue e problema urgente. Tomam-nos tempo, engolem-nos vida. Em compensação cedem matéria de sonho; o feliz assombro de nos reconhecermos em histórias improcuráveis por vias tradicionais; a motivação para um fluir recreativo do pensamento, quando já nos cansa o palpável. É isso a história minúscula: mundo de nos perder, mundo de nos achar. Viagem pra fora da gente em que cada qual pode acabar topando com um viável, um impensado amor que anda aí a esmo.

Até consigo mesmo.

domingo, 15 de julho de 2012

Futuro autônomo

Em sua última coluna nO Globo, Alberto Goldin responde à consulente Júlia, que namorou Marcos na adolescência (“um namoro conturbado pelo ciúme e pela insegurança”), terminou, continuou sendo procurada por ele anos a fio, não cedeu. Enfim, uma década de gangorra depois, resolveu dar uma chance – e aí foi hora e vez de o Romeu tirar o time de campo. Como desatar o perrengue? Goldin explica que o casal teceu-se em mal-entendido e descompasso: “Desligados do calendário, vivem anos sem urgência. Júlia não precisa decidir nada, já que a oferta de Marcos sempre é renovada. Presos a uma armadilha e reféns de uma mútua propaganda enganosa, habitam um mundo que não abre espaço para novos personagens. [...] Estão viciados em esperar um futuro autônomo, que chegará sem arriscar decisões pessoais”. Assim que Júlia passa a querer, Marcos desquer; alguém ousar um passo no xadrez destrói a estrutura perene, contemplativa da princesa que “borda no seu castelo” e do cavaleiro que “circula diante da sua janela”. Antipinóquios: marionetes que se quedam sem um sonhozinho de ser meninos de verdade.

Esperamos, muitos, um futuro autônomo; é tão macio, é tão consolador dormir na sombra dos dias, dos mormaços de juventude, preguiçosos e longos – esperanças compridíssimas que não acabam mais em décadas que nos invadirão milênios à frente, quer queiramos ou não. Tão delicioso crer em alegria como se crê em chuva, fenômeno da natureza que abraçamos impotentes; tão extraordinário ganhar de berço o ticket de esquecer a expulsão do Éden, de postergar ad infinitum o “pão com o suor do rosto”. Vários, sim, querem ser jovens pela energia de construção: mesmo aos atropelos de vontade imatura, escolhem um desejo de infância e o perseguem, e o perseguem, e o perseguem com apaixonada turronice. Outros, no entanto, são esses que se preferem jovens como quem segue a velha máxima de acordar cedo para ficar mais tempo sem fazer nada. Preferem-se jovens porque têm mais tardias urgências, menos necessárias proatividades; podem aguardar a oportunidade de ouro no mercado inventado 47 cursos por ano, de costura a mecatrônica, sem a chatice da escolha faminta e obrigatória; podem dilatar o prazo do amor como se gusta encastelando os medos num ideal romântico impraticável, liberado das guerras da realização. O futuro, para um futurista autônomo, nada tem com méritos e consequências: chega para todos com igualdade injusta, direito adquirido. Já existia integral em si mesmo, pleno, eterno, apenas em certo momento baixado da pátria onde nasceu sem parto. Existia como útero que há de receber qualquer um que de útero saiu.

Quem vive não faz hora, faz as horas; não espera o arquivo descer.

sábado, 14 de julho de 2012

Comove-me

Comove-me o olhar cabisbaixo dos que não se sentem merecedores. Comove-me a insistência dos que não sabem senão teimar pela vida de quem lhe resta. Comove-me a objetividade das florinhas de fresta. Comovem-me as sinceras desculpas. Os eternos e inquestionáveis casais. Os sinais e nomes particulares usados no evento crítico. A casa da infância. O quintal da infância. As memórias desimportantes da infância. As aceitações inesperadas. As reações (boamente) subestimadas. As conclusões descomplicadas. As solidões resignadas à velhice. As desatenções calcadas em alheia fragilidade. Os corais. Os violinos. As músicas precisas na letra. Os arco-íris.

Comove-me o pré-adeus à viagem. O esvaziamento do quarto de hotel. O último café. As últimas fotos. Comove-me qualquer criatura que não receba visitas. Comovem-me estraçalhantemente as criaturas que não recebem visitas – mais que as que adoecem, mais que as que morrem; não receber visitas é ser prematuramente rebobinado de toda existência. Comovem-me as adoções improváveis. As epifanias que botam frio na medula. Os olhos cor de mel. Os olhos úmidos. Os olhos imensos e úmidos. As bonecas esquecidas pela dona já mocinha. O apoio inoxidável da irmã. O tempo passando nos pais. A mãe falando amorosamente do avô. A avó já pensando nos colares herdáveis pelas netas. O instantezinho das decepções (sou incapaz de presenciar qualquer decepção, em especial as intransmissíveis). Um viúvo ou viúva depois de 67 anos de união. A hora em que a gente repete “na alegria e na tristeza”. Os que chamaram pra festa e não veio ninguém. Os finais de novela. As famílias do Extreme makeover. As acácias. As cerejeiras.

Comovem-me as crônicas de Martha, Clarice, Rubem Braga, Rubem Alves, Paulo Mendes Campos. Comovem-me as ternuras de Guimarães Rosa. Comovem-me os patinhos que interrompem o trânsito de São Paulo para atravessar a rua. Comove-me a declaração dos que não queriam declarar-se. O êxito dos que não queriam arriscar-se. Comove-me a lua muito, muito cheia; o céu muito, muito limpo. O anjinho muuuuito, muito simples (sorridente) que colocávamos sobre a manjedoura no Natal. Comovem-me os solitários do Natal. A lembrança do pudim de Vó comido nas últimas do ano, diante da São Silvestre. Comovem-me as crianças brincando igual com o colega diferente. Os sinos chamando para a missa. Os jovens indo buscar a senhorinha no meio do vagão para ceder lugar. Os donos de comércio local cumprimentando na rua como em cidade pequena. As vítimas recomeçando do comecíssimo. Os pinguins órfãos de filho tentando adotar o filho alheio. As cartas – que são cartas – na caixa do correio. A floração da dama-da-noite. As corujas. Os jumentinhos. Os vaga-lumes. Os beija-flores. As borboletas.

Comovem-me poderosamente os que perderam transplante ou casamento de filho por causa do atraso no voo. Comovem-me os que pensaram ter o aniversário esquecido. Os que sentam sozinhos no recreio. Os que não são escolhidos para o time. Comove-me a alegria tão inteira que não acha jeito de palavra. Comovem-me as lojas infinitas que abrem falência. Comove-me o tempo empregado elogiando. Comove-me a manutenção da vida com sacrifício de si mesmo. A manutenção dos princípios de si mesmo com martírio da vida. Comove-me a umidade das matas. O cheiro da umidade das matas. Comove-me o ato de doar uma medalha. De doar uma medula. Sangue. Órgão. Tempo. De ler para cegos, cantar para tristes. Fazer biscoito caseiro para tristes. Comove-me a coincidência enregeladora. A quermesse ou bingo para levantar fundos. Meninos fazendo literal malabarismo de fogo, rapazes tocando violino na esquina. Marido dormindo em sossego quente. Marido. Madrugada. Lírio. Cisne. Piano. Serenata. Soneto.

Comove-me o que entra nos medos maiores: ter ou perder.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Freaky Friday

Não sei que hei de achar das superstições de sexta-feira 13. Acho talvez engraçadas, de humor tristonho talvez. Está longe do meu feitio emitir julgamento sobre crenças alheias, mas entendamos que há o espaço da crença espiritual itself – sempre respeitável, uma vez que envolva práticas iluminantes de paz e bem – e o lado da crendice baseada em preconceito alastrado e gratuito, que é o que pode existir de mais cabeça-oco. Há o espaço da religiosidade que edifica alguns condomínios de bondade sólida e o lado da cisma de araque, destinada exclusivamente a ampliar nosso repertório (já nada insignificante) de tolices.

A aversão a gato preto, por exemplo. Rolou até campanha dos mais esclarecidos no Facebook em prol da saúde dos bichanos, sujeitos a ações intempestivas de ignorantes. Calcule viver na pele de uma criatura cujo tom não agrada a uns e outros, just because – apenas porque se necessitou confeccionar uma realidade favorável a alguns específicos, entregue redondinha de encomenda aos fanáticos do branco. Gato, ainda por cima, tem a audácia suprema de encarar como igual, em vez de curvar-se desarrogante como os cães, que nos lambem a vaidade. Na disputa, quem vence como mascote do azar: o que se atira aos pés como servo ou o que peita com inaceitável independência? Pois lá veio a fama injusta para os felinos escurinhos, que a um só tempo reúnem lenha para alimentar duas fornalhas feitas de horror à diferença. Meu palpite: azar mesmo é cruzar com tigre não fartamente almoçado. De qualquer cor.

A própria palavra “azar”; há muitos, excessivos, que a ela preferem a expressão “falta de sorte”. Não digo que não haja motivação neurolinguística: o cérebro não gosta de negativas, e, portanto, ao dizermos “falta de sorte”, o que registramos para os devidos fins é “sorte” mesmo. A crermos que a mente procura criar em torno de si o que repete verbalmente, o efeito é compreensivelmente benéfico. Por esse lado, vá. Passa. O que me aflige é esperarem uma torrente de maus fluidos vinda da repetição ocasional e distraída do termo, como um vaticínio de “abracadabra”. E para se vingarem de terem dito, nas escapulidas do papo, a palavra que se queria – mas não se devia –, toc, toc, toc! madeira. Outra peculiaridade que me pasma: em madeira dando sorte, canelada no móvel não haveria de ser proibido? Em algo fixamente dando sorte, por que discordam as culturas que creem no oposto? Se o número 13 é maldito para americanos, por que é o apaixonado de Zagallo? Por que, em milhões de anos de história vivida e navegada, não houve ainda exemplos bastantes de gente fulminada por trezes e gatos e escadas e sextas-feiras, a ponto de gerar uma coerente e tranquila unanimidade?

Porque são bodinhos de que lançamos mão, nós, nós exatamente; são “laranjas” de nossa incorrigível pulsão de controle, são elementos terceirizados de nossa particular mania de explicação e domínio, nossa petulância de formiguinhas. Tomamos a repetição de “azar” como cortina de fumaça para a preguiça de batalhar sortes, como desculpa de resignação à ausência de chances. Pegamos o gato para ícone de nossa incompetência, o treze para símbolo de tanta desistência, a sexta para celebração de autocomplacência, o mundo como responsável direto por nossas responsabilidades inconfessas. Apossamo-nos da insignificância concreta para controladamente fingirmos que não controlamos inclusive o que não gostaríamos de controlar.

Sorte nossa ter um dia para achar normal o azar.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Atraso de vida

Fiz post outro dia comentando: que bom que há quem nos apresse. Quem careça de nós tão imediatamente, tão sem tardança que não nos reste minuto hábil para hesitações – para dar de comer aos terrores e perfeccionismos neuróticos. Maravilha. Mas há também a maravilha contrária, fundamental em pé de igualdade com a outra: que bom! que há quem nos atrase. Que existe aquela santa criatura do mesmo modo predisposta a barrar-nos a onipotência, confiscar-nos o cetro, meter-nos ingerência nos desesperos inúteis. Para o rápido e para o devagar, receber golpe de estado é nossa fantasia de estimação.

Bateu o insight quando me peguei atrás da senhorinha mais zen da galáxia, numa escada rolante de shopping – esta aqui que vos fala, como sempre, tinindo de pressa nervosa. Não havia espaço razoável de ultrapassagem, nem a avozita parecia minimamente inclinada a acelerar a chegada contribuindo com passos próprios (como, aliás, é justo que seja, uma vez se tratando de engenhoca concebida para nos substituir o trabalho das pernas; isso de somar nosso esforço ao da máquina é direitinho coisa de citadino psicótico). Eu que fiz? Faleci por culpa de seis ou sete microssegundos? Cortei os pulsos com a rebarba metálica do degrau? Atirei-me dali mesmo para esquecer a desgraça de não poder cortar caminho pela vovó passeante? Prova que não: estar eu aqui, corada e sã, relatando o caso. Sobrevivi e bem sobrevivida, lá no fundinho satisfeita de alguém atirar no Mr. Hyde que os ansiosos trazemos por dentro – o bicho eternamente prestes a azedar os dias azuis com ressacas de adrenalina.      

Na semana do Rio+20 foram as passeatas. Ah, as passeatas! tantas e tão constantes que mergulharam as idas e voltas de trânsito em extraordinário caos. Minha colega de trabalho teve quase orgasmo múltiplo de ser forçada a chegar tardíssimo para a aula, refém do nó entre a Marcha dos Esquimós contra o Efeito Estufa e o Bloco das Recepcionistas pelo Direito à Minissaia (não googlem). Assim o usuário que perde o metrô incapaz de espera, e daí a meio minuto liga adiando a revisão no dentista. Assim o escalado para o serão no escritório, a quem o destino libera da DR caseira. Assim o universitário que não consegue matrícula num ano por burocracia interna, e adentra justo a turma na qual sorri a futura parceira de bodas de prata. Assim o adolescente brecado pela mãe de ir pra escola sem café da manhã decente – adolescente este que, saísse 30 segundos antes, teria pego o ônibus sem o cartaz que lhe deu epifania profissional. Assim todos; todos que por causa de alheias demoras, de impensados obstáculos, de incontroláveis pedregulhos se veem tão subitamente libertos, isentos, repousados, abonados, perdoados. Todos que acham felicidade imediata ou tardia naquilo que nos aborda antipático, com ares de minissequestro.

O paraíso também são os outros.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

A muralha

Um comercial recente da Nissan, ainda em transmissão, mostra a velhinha descongelando o marido após cinquenta anos de uma promessa: ela só o traria novamente à vida quando os dois pudessem comprar um carro japonês. Agora podem, IPI reduzido, altas promoções, tal e coisa. Ariovaldo, porém, mantido garotão por décadas de freezer, olha para a simpática senhorinha logo após o descongelamento e lasca: “Vovó!!...”. Ela faz cara de indignação desapontada, a gente acha engraçadíssimo, cai o pano. Programação que segue.

O comercial é engraçado, bem sacado, benfeitinho. Mas tem uma graça triste. Tem uma graça triste porque, por mais que brinque com o surreal fantástico, é de um real imediato que fala inevitavelmente. É de um descompasso temporal que fala inevitavelmente. O descompasso que pousa em alguns casais e aí se instala, empurrando para um lado o congelado, para outro o congelante. Um vai, outro fica; um evolui, outro permanece; um ganha maturidade, outro se mantém bebezão infinito. Feitiço de Áquila intransponível. Um dia, um susto, um átimo e os trens descarrilam, desparalelam, entrando o primeiro em progressão geométrica, o segundo na aritmética. As linhas do tempo atadas na marra, tangentes à força durante o período de sedução hardcore (alegrias de descoberta nos nivelam), tornam às condições normais de temperatura e pressão: cada um em seu ritmo, com seu passo, com sua corrida ou demora. Programação que segue.     

E nisso se desenha a história do ogro com síndrome de Gabriela (nasceu assim, cresceu assim, é mesmo assim, vai ser sempre assim) que vira estátua nos doze anos mentais e casa com a colega de escola que, aos trinta, já leu e refletiu por pelo menos quarenta e sete. Nisso se constrói a fábula da princesinha mimada que acumula duas décadas de luta pelo sapato ideal, e se une ao moço classe-médio que acumula duas toneladas de labuta pelos gols do sindicato. Nisso se conta o conto em que um dos apaixonados, ciumento, põe-se a afundar o trabalho do outro em vez de exaltá-lo; nisso se canta a cantiga na qual ou o rapaz ou a senhorita confidencia à mãe detalhes escabrosos do casamento, em vez de embalá-los na discrição do amor maduro; nisso se tece a trama em que ele ou ela paira leviana ou indiferentemente acima do solo comum, em vez de fazer companhia a ela ou ele que continua focadíssimo na terra e na secura do sol a sol. Há os apegados a quadrinhos e a heróis que se ligaram a corações incapacitados para infâncias. Há os seres com 820 anos de rabugice que noivaram com criaturas de alta leveza e plena adolescência. Há pré-históricos grudados em renascentistas. Há medievais colados a surrealistas. Românticos fazendo par com modernos. Futuristas montando dupla com barrocos.

O mal do que não começa junto é a pouca chance de que junto acabe. O pouco jeito de que, ainda em vida, não se fique órfão um do outro.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Só sei que algo sei

No metrô, admirando a cena. Mãe e filhinho. O guri a contemplava embevecido, sem grandes interesses que não lhe espalmar as mãozitas no rosto, sentado de costas para o geral do mundo. Ela, não por incômodo (porque abundava carinho paciente), tentava de todo jeito conduzir-lhe a atenção para outrens, para os tantos encantos mostráveis e apontáveis. Fazia gosto visível em indicar ao pequeno as normalidades que para ele eram jovens maravilhas: letreiro da estação, composição correndo paralelamente, movimento na plataforma. Gosto visível – era isso que eu contemplava – gosto visível em ensinar.  

Feliz ou infelizmente sofremos disso. Todos. Todos – muito além daqueles que temos esse impulso como profissão, daqueles que passamos meses e meses no esforço de enfiar alguma coisa em cabeça alheia, numa labuta de cinzel. Ninguém no planeta foge incólume à mania de ensinar. É inato, para empurrão contínuo da espécie. Compulsão: em pequerruchos, atochamos os pais com esclarecimentos sobre séries só de nós (achamos que só de nós) conhecidas, dados fartos sobre a vida pessoalíssima de coleguinhas, macetes preciosos sobre a passagem de fase no Playstation, detalhes sórdidos sobre a dissecação de sapos na escola. Em crescendo, não escapamos à sina de explicar Geografia pro primito que agoniza antes de levar bomba, à fome de mostrar fotos de lua de mel com minúcias discursivas sobre os lugares, à síndrome de professor que nos acomete quando ousam, do nosso lado, errar nome de rua e música e novela que nos são íntimas de infância. Só nós lembramos o ator que fez o personagem, só nós entendemos a fundo a situação econômica, só nós conhecemos a vida pessoalíssima do galã da hora, só nós temos no topo da língua o endereço do melhor macaron de Paris. Só nós, um segundo que seja, uma partícula de instante que seja, sabemos; em consequência, só a nós ora veem e escutam; só nós somos então – e por isso se movem continentes e oceanos, dinastias e gerações – absolutamente necessários. Guardar a micrologia certa, na hora certa, para o público pedinte de ser saciado: eis o que nos junta as pontas da vida e a justifica.

Navegadores fomos feitos. Só existimos de verdade no transbordamento.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Inimigo íntimo

Minha colega de trabalho contou de uma ocasião em que deixou não sei que alimentícios na geladeira da escola, identificados como seus, e um gaiato afanou-os. As circunstâncias apontavam que não era aluno, só podia ser funcionário. Professor, inspetor, esses alguéns. Minha colega ficou danada, e narrando jurou: nem era de ressarcimento que fazia questão; queria era ter certeza de quem fora o gatuno, porque temia simplesmente o susto de identificá-lo entre os companheiros de alta confiabilidade. Afinal descobriu (de fato se tratava de um dos professores, um que a profissão meio endoidecera), e, ao descobrir, não tirou satisfações nem nada. “Respirei de alívio”, afirmou. Observei que ela só desejava a segurança de saber onde estava pisando. Assentiu: “Nada mais angustiante do que o inimigo desconhecido”.

Inimigo é palavra forte para ladrãozinho de sucos e requeijões, mas fica por força de expressão. Estava certa, estava muito certa minha parceira de equipe. Não à toa bombam sucessos na telona em que o antagonista nunca é visto senão por metonímia, senão por barbatana cá, olho raivoso acolá, folha ou água balançando ali. Bombam os terrores que ameaçam tubarãomente, rondando, flertando, se achegando sem nos dar a vantagem das minúcias. É disparado o pior horror – o de barata voadora no escuro, o do pânico indirecionado, refém inteiro das circunstâncias, abandonado de estar sujeito a si mesmo. Não é a dor (ou, creiam-me, a barata) que tememos unicamente; tememos o súbito, tememos o despreparo, tememos ser traídos pela emoção imprevista no meio de uma serenidade agendada, tememos que nosso coração não suporte a novidade para a qual não fez enxoval ou workshop. O que nos apavora não é o desengano. É o desengano acachapante, que nos tocaia à covardia justamente na esquina entre crédito e conforto.

Ninguém quer achar um larápio no brother de profissão e sala, mas antes a consciência a respeito de um, como exceção, que a suspeita de todos como regra. Ninguém pretende atinar que o filho seja verdadeiramente culpado da tramoia, mas antes desiludir-se e catar alternativas educacionais do que apegar-se ao engano fofinho e regar de mimos um mau-caratismo. Ninguém exulta de ver suas tragédias matrimoniais no Com quem $%#& me casei?, mas antes expor TVmente um alerta de decepções que engrossar estatísticas de gente morta por cianureto. Antes a frustração pontual que o coração na defensiva imaginária; antes a sujeira trazida aos holofotes que a cegueira alegrinha de vítimas futuras; antes a pancada de realidade crua e seca que receios etéreos cancerizando o mundo.

Se no meio do caminho tem um iceberg: melhor saber.

domingo, 8 de julho de 2012

Os esperados

Uma dessas historinhas cafonetes de Facebook, que a gente gosta de ler inconfessavelmente, contava dum soldado que pediu permissão ao superior para ir buscar um colega abatido em campo de batalha. O superior negou; defendeu não ser sensato arriscar uma vida por uma morte, já que o tal colega obviamente não resistira ao ferimento. Soldados, porém, são pessoal tinhoso, e lá foi o jovem herói escondidamente resgatar o amigo. Chegou ele mesmo cuspindo os bofes; também se ferira, estava banhado de exaustão, mas não voltou sem o corpo do companheiro acomodado no ombro. “Tá vendo?”, gritou o comandante furioso com a desobediência, “então valeu a pena colocar a própria segurança em risco para trazer um cadáver?”. O rapaz sorriu tranquilidades (todos os bravos sorriem tranquilidades, que há muito ultrapassaram adrenalinas de escolha) e, sem responder, respondeu: “Quando cheguei até ele, ainda estava vivo; me olhou e disse: ‘Tinha certeza de que você viria’.”.

Certo, a historinha é cafonete (ninguém pode dizer que não avisei). Daquelas com trilha violínica de fundo. Mas admitamos que rola comoçãozinha; rola a identificação de nossa fantasia intrínseca: sermos esperados. Por estes dias falei de sermos precisados – animarmo-nos a investir em autopreservação pelo fato de alguém nos ceder preferência –, e também recentemente escrevi de evitarmos incorreções para não botar desapontados os que nos amam. Eis este terceiro viés: não só fugirmos ao erro, mas proativamente perseguirmos, com decidido acerto, o que sacia a pressa dos que nos esperam. Espetacular cafeína essa; senhor empurrão, arrombador de nossas paralisias. Porque há quem nos espere (embora, ou de preferência, sem caso de vida e morte), há urgência libertadora. Há glorioso recesso de hesitações. Há o tesão do impulso puro e simples, sem mais o tempo excessivo de sentir medo – mais sofrido que medo: dúvida. Se o filho está se afogando e você considera que não sabe nadar lá essas coisas, mesmo assim não pula? pula. Se a mãe vem sozinha da primeira viagem de avião e aguarda cicerone particular no aeroporto, balofa de ansiedades felizes, você não larga a reunião importantíssima? larga. Se o marido foi transferido de súbito para outra região, vai na frente para arrumar a casa e em dois dias protesta saudades colossais, você não abandona as longas despedidas de amigos-cidade-família, faz as malas pra ontem e parte pro abraço? abandona, faz e parte. Sofrendo, mas arrancada na marra de qualquer culpa possível – aquela que nos devora e escangalha com a tortura das alternativas.

Ter alguém esperando agora, já! significa mergulhar no prazer de agir estando isento de decisão. Fazer exatamente a coisa certa tão desejada, ainda quando foge às conveniências. Ainda quando fere exigências de trabalho, ainda quando implica desobediências hierárquicas, ainda quando envolve corte de nosso tempo preciso de melancolia, ainda quando nos coloca num xeque absurdo às fobias de tantos anos, tantas décadas alimentadas. Fazer a coisa certa porque é o único jeito, é agora ou nunca, é dá ou desce. É o resgate necessário às secundarices que sequestram.

Correr aos esperantes é salvar quem nos salva.

sábado, 7 de julho de 2012

Very important people

NO Globo de domingo (mais conhecido como comprado-no-sábado-à-tardinha), Xexéo faz um perfil saudoso da “dama das estreias”, Ivone Kassu – assessora de imprensa badaladíssima, contato de quinze entre dez famosões, falecida por estes dias. A crônica afetiva predispõe a gente inteiro para Ivone; ela dava uma força essencial a jornalistas, ela era fonte que botava sustança nas colunas vazias de assunto, ela arranjava entrevistado de última hora pro Sem censura, ela se quisesse sentava todo o elenco da novela das nove na plateia da peça estreante. Mulher maravilha. Mas a primordial das façanhas vem no último parágrafo: “Ivone Kassu tinha uma qualidade rara. Tratava os integrantes das duas pontas da linha em que trabalhava como VIPs. O cliente tinha tratamento VIP, o jornalista, do outro lado da linha, também. Do iniciante ao mais experiente, eram todos importantes. Ela vai fazer falta”. Vai – e ainda que não fosse por nada mais, ao menos por isso. Faz falta toda criatura iluminada o suficiente para não só pregar, para propagar o simples (que é o de compreensão mais árdua): somos todos VIPs. Todos urgentes. Todos essenciais. Todos figurões. Ausentando-se dois de nossos braços, uma de nossas cabeças, alguma coisa fica malfeita, fica incompleta, fica não dita, fica não pensada, não resolvida. Desajambra-se. Em se extraviando a parte, perde o todo; ninguém mais se encaixa tão a 40 graus leste, nesta latitude, nesta longitude, com tamanha precisão de habilidade e agudeza. Em morrendo 1%, ficam os 99 lamentavelmente órfãos.

Francamente não entendo quem vira a cara pro gari e lustra as botas do chefe com a língua, ou quem preenche camarotes de gala com mulheres hortifrutigranjeiras em vez de convidar médicos, taxistas, professores. Entendo, claro, o mote; não entendo a justificativa. Ah, a Mulher Tamarindo é mais importante que a tia Elisabete de Matemática – por que mesmo, hein? Sem desmerecer as formosudas do pomar, que são belas pela inquestionável finalidade de serem belas, quero ver enfiar na cabeça de 42 godzillinhas a ideia de cateto e hipotenusa, dar de mamar aos gêmeos no intervalo entre duas elaborações e duas correções de teste e ainda ser tratada como Scotch-Brite particular do governo. Quero ver. Quero ver chegar às 6h30 e sair às 17h30, espremida na hora extra e no rush, aguentando TPMzinha de gerente estressado e grude de Excelências que não escolhem cueca sem secretária. Quero ver deixar Copacabana manualmente limpinha no dia 2 de janeiro. Quero ver desconectar o coração de um peito e acomodar outro, ignorando a sangueira que esguicha enquanto se recompõe vasito por vasito. Quero ver passar o dia no quartel. No barco. No frigorífico. Na diretoria da escola. Na emergência do hospital. Sob ameaça da serra, sob o zunido da pressão atmosférica, sob a metralhação da britadeira, sob o paredão da mina. Como o inspetor que atura desaforo de fedelhos, como a catadora que se arrisca entre resíduos pontiagudos, como o revisor que põe decência em frases inexpugnáveis, como o carteiro que suporta verões convictos e cachorros duvidosos. Meus ídolos.

Se tratar bem depende de a criatura fazer parte dos que “são vistos”, seja por isso não. Colocar o nariz na janela, o pé na rua basta: centenas, milhares de desconhecidos topam com a nossa cara por dia, a não ser que o cidadão se eremite. Mas não. A credencial para ser ou não VIPado consiste em frequentar tevê, esse pedestal moderno que tudo legaliza. Foi com vestido curto, provocou grita na faculdade e bombou no noticiário, pronto: VIPou-se. A não ser assim, só com um patrimônio da desgrama. Minto, aliás. Não dá pra não ser assim. Por mais que o bilionário pose de discreto, tevê nenhuma é indiferente a um patrimônio da desgrama. Cumpre-se, involuntário, o ritual de adoração; leva-se ao antipelourinho o novo faraó que combinamos de deusificar em bando.

Ainda cumprimento com maior alegria aqueles com menos ocasião de cair das nuvens que de um andaime no terceiro andar.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Memória colorida

Não chego a sofrer de sinestesia aguda – aquela condição orgânica em que se faz um mix incontrolável de sensações: enxerga-se um som retangular, um perfume gritante, um sabor macio. Não vejo barulho se tornando espectro, não escuto Chopin ao morder barrinhas de cereal. Mas carrego memória colorida. Memória difusamente colorida. Muitíssimo olfativa também, e sobretudo colorida. Desde criança. Certo, a escola dos primeiros anos ajudou a reforçar essa tendência; mandava-nos pintar partezinhas da folha quadriculada conforme o número a ser aprendido, e cada qual tinha sua tonalidade intransferível. Resultado foi que, para mim, até hoje o um é branco, o dois é de azul fechado, o três é vermelho, o quatro é verde, o cinco meio azulado meio oliva, o seis laranja, o sete amarelo, o oito entre marinho e preto e roxo, o nove marrom. O zero, por natural equivalência de sentido, fica transparente. Vai daí, desse jeitinho é que estranhamente registro datas, senhas, telefones, querendo ou não querendo: uma enfiada de cores, uma quantidade com matéria e espírito.

Se fosse só isso. Por extensão de semelhança, ou sem qualquer explicação razoável que não a logística mental, letras (consequentemente, palavras) receberam também suas chuvas de tinta. Cada porçãozita soa a um tom, porém o quadro final nem sempre leva em conta apenas individualidades: a palavra tanto pode sair mosaico quanto degradê, ou mesmo assumir por inteiro a cor de uma das letras – não precisamente a de fonema mais forte. Meu nome, por exemplo: é rosado, por causa do agrupado de enes. Fábio tem um tanto de vermelho e só um pontinho azul-noite, embora brilhe claro e aberto. Minha irmã Renata recebeu denominação fluida entre azul, branco e verde-água à praia tropical. Lembro-me de, em pequena, visitar algumas vezes o trabalho de Mãe; nunca estava lá um determinado colega que, ela dizia, iria gostar de me conhecer. Bem mais tarde ela fez referência ao mesmo colega e eu recordava direitinho: Lúcio. Impressionaram-se de eu ter conservado a informação, dado tratar-se de gente desconhecida. “Sei que era um nome azul-escuro”, justifiquei criançamente. Ninguém contestou.

Brasil é meio anil, meio tomado de transparências, ainda que aqui se viva no país do oculto e do opaco. Rio de Janeiro principia branco e termina em crepúsculo amarelo, um tanto salpicado do preto de gaivotas em silhueta. Paraty tem cor de palmito. Mãe é fogueira de matizes quentes. Irmã é rosa levinho, tom de sutiã com renda. Chão é escuro. Anel, dourado. Lua, lilás. Sábado, azul. Talvez, de amarelo ácido, cítrico, tendendo a preto. Chuva é plúmbeo. Pássaro é solar. Ninguém é vermelho. Matemática é vermelho. O que termina com ade guarda laranja, com ado é cinzento, com aço já é grafite. Porta tem alma esverdeada, janela e tigela rimam de cor – amarela. Vidro é da cor inexistente do zero; cristal, de translucidez inda mais branca e maior. Domingo é pele rosadinha de férias. Olho tem cor de sombra.

O mundo, balé de maravilhosa inexplicação.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Música de higiene

Não me refiro, não, à cantoria a que se pode tradicionalmente proceder no chuveiro, ou durante o ato de lavar prato e roupa, aproveitando a acústica natural do ambiente onde água escorre. Longe disso. Falo da música que higieniza por dentro – e também não tem a ver com questões meditativo-religiosas, sons de dizer xô ao estresse, CDs lounge-acalmantes, Enya ou seus pares. Tampouco com as canções que a gente brada ou dança enlouquecido, gritando e rebolando o desabafo terapêutico. Still longe disso. A coisa, aqui, são as músicas não obsessoras, as que se combinam quimicamente com a fórmula da cabeça de jeito que permitam um buraquinho por onde se pense. As que nos frequentam deixando-nos ainda úteis à reflexão, capazes de nos ouvir sem barulheira mental. As que se adesivam a nós não necessariamente como lazer – embora a música de higiene precise ser minimamente querida –, mas como maneira única de asfaltar o pensamento, alisá-lo de todas as melodias desesperadoras e entregar-nos de volta a nós mesmos, tábula-rasados quanto possível. Dotados de todo o possível silêncio.

Digo isso porque – não sei vocês – só consigo trabalhar em silêncio, condição que não atinjo simplesmente quando o vizinho desiste de provar seus dotes vocais. Ou quando os alunos partem para o recesso do lar ao fim do turno. Ou quando as comadres param de matraquear fatos bafônicos para todo o metrô. Além de contar com a colaboração do vizinho, do aluno, da comadre, da novela, do telefone, da festinha na creche, do carro da pamonha, só enfim atinjo silêncio quando o radinho interno consente em emudecer os sucessos do momento. Não precisam ser do momento, não precisa ser sucesso: quando o radinho interno consente em sintonizar na música que domino, na música que não me escapa, que não subjuga, que não estupra a atenção. Vão exemplos. Anda por aí um esparrame de trilha sonora recheada de visgo, verdadeiro complô de gomas melódicas; tchus, tchás, tchês, oi oi ois, ai ai ais, adeles, rita lees, ex-my-loves, empreguete-pego-às-sete, nasci-assim-cresci-assim, the horror. Porque detesto as cançonetas? quem me dera: porque gosto de todas, e a consequência natural é que se revezem singelamente na cuca, tomando o dia completo e impossibilitando qualquer tentativa de concentração. Infelizmente nenhuma delas me calhou de ser a necessária música de higiene, a que você deixa tocando por dentro no repeat, sem prejuízo das metas de produtividade. Só com uma funcionou a loteria (em geral só funciona com uma por vez): “Depois”, de Marisa Monte. Encontrei-a, ela me encontrou. A única que consente ser cantarolada inteira em off, again and again, sem atropelar de vontade própria o raciocínio em franco nascimento.

Posso, como disse, ser assombrada por hits de outra época (e o canal Viva está aí para que eu tenha chance de a-gra-de-cer), mas a música de higiene não. Esta tem obrigatoriamente de ser uma síntese de seus próprios tempos modernos, sob pena de eu embarcar em viagem cronológica – novo, pior desequilíbrio – enquanto busco me equilibrar. O que significa: nada de “O cravo brigou com a rosa” ou de repertório do Trem da Alegria. Mudou a novela (se à novela pertence), mudou aos poucos a música de higiene, para inaugurar um mais atual período. Lamentei que, por exemplo, precisasse despedir-me do suave “tempo, tempo, tempo, tempo” de A vida da gente, mas filas andam; surgiu o tema triste e aconchegante de Avenida Brasil, a vida da gente foi mudando de gostos e hábitos, reinventei-me com a mais recente melodia de base. Curioso notar que a mesma voz de Marisa, bombando simultaneamente no hit principal de Amor, eterno amor, virou neste caso razão de tormento. Gênios compatíveis em termos de preferência pessoal; incompatibilíssimos com relação ao ponto de serenidade. Como dois gêmeos entre os quais se ama um, ao outro não se ama. Lógica inteira própria. Lógica inteira nossa, insondável a nossas vãs filosofias.

Lógica de música de higiene é a dos apaixonamentos maduros: parece que se volta para casa.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Benesse é dívida

Um trecho da revista falava sobre trabalho voluntário. Impressionou-me pelo puxão de orelha sem papas: “Não espere ser paparicado só porque está agindo de boa vontade. Esteja preparado para críticas e exigências”. Bingo. Assim mesmo agimos, sem tirar nem pôr; temos a mania pilantra de considerar favor como passaporte a todo privilégio, como investimento em poupança afetiva que renderá novos maiores favores – monetariamente corrigidos. Ajudamos para criar bônus, somos corretos para somar milhagem, oferecemos mãozinha para galgar benefício. Nossa gratuidade tem no mínimo a ambição dum “obrigado”; somos cobiçosos nem que seja de um olhar reverente, um especial trato, uma credencial de sentimento, um visto permanente para o país dos insuspeitos. Somos bons também para sermos VIPs. Somos bons também a fim de fazer escravos.

Escravos – porque nada nos agrada tão intimamente quanto sentir o gostinho do reconhecimento alheio, cheio de amorosa dependência. Em terra de necessitados, planejamos entrar com o auxílio que pouco nos custe, ou que mais facilmente nos brote, e ser reis; ao nosso modo, ao sabor de nossos ventos, sem precisamente nos ater às minúcias ou preencher os nichos específicos da carência a ser atendida. Pretendemos mandar na bondade; dar ordens dentro do império de autogenerosidade onde somos coroa e lei. Pretendemos estender a mão em presença e esmola, e recolhê-la com nova dezena de súditos. Pretendemos nos privar do que superficialmente nos tange em prol do que fundamente nos abala: a faísca da adoração. A que não suportamos ver ameaçada pelo mais insignificante “porém” de análise racional. A que não conseguimos ver estragada pela cisma que os outros têm de desenvolver necessidades incompatíveis com as nossas paciências e disposições.

Todo bem oferecido de verdade há que nos causar algum incômodo.

terça-feira, 3 de julho de 2012

A causa secreta

Li por aí de alguém que, recordando a infância, admitiu: quando fugia de fazer coisa errada, não era por medo da bronca do pai – era de receio afetivo de decepcionar a mãe. Uma verdade bonita. Inda que Maquiavel tenha concluído como melhor, como mais garantidora a capacidade de ser temido, isso é negócio que se escoa em raiva, que finaliza fácil (ou difícil) tão logo o ser amedrontador suma do posto de vigilância. Não se atinge o objetivo de estabelecer bom hábito, antes se reforça a fome do extremo oposto: se papai me espanca de cinto por sair de saia três dedos acima do joelho, não vejo a hora de me pirulitar de casa num modelito que é só o cós. Inexistindo convencimento, motivo, persuasão, inexiste permanência. Medo prossegue um tanto de tempo; trauma prossegue um bom tanto de vida; mas mesmo o pavor se trata e se esgota, sem deixar obra que mereça segunda olhada. A motivação carinhosa, não. De amor ninguém fica curado.

É-se às vezes separado por morte, por distância, por divórcio: o que nos foi implantado, se houve amor e respeito houve, permanece. Permanece o senso de que Mãe – lúcida ou falecida, viva ou inconsciente – não aprovaria a matação de aula no curso, não nos reconheceria xingando o outro motorista, faria careta pro boicote ao regime, faria tsc-tsc pra lorota contada ao filho. Permanece a ciência de que o mestre preferido nos puxaria a orelha por causa da vocação estagnada, estrangulada. Permanece a vozinha da avozita segredando no ouvido, “vai com calma, minha filha, é com mel e não fel que se prende mosca”. Permanece a convicção de não ser assim, taciturnos e desenxabidos, que nos quereria ver o caçulinha (partido tão precocemente). Permanece a certeza de não ser nesse desmazelo que nos quereria reencontrar a doce Maria Clara (namorada tão antigamente). A vontade de agradar a nossos amores de elite, o ímpeto de não decepcionar a nosso histórico de olhares, a nosso staff de afetos, a nossa banca de queridos julgadores – permanece. Permanece a lealdade aos ídolos emocionais. A esperança de não constranger as referências. O sonho de fazer jus ao sobrenome. De não trair a herança construída. De não jogar fora as expectativas depositadas. As predições favoráveis. As previsões otimistas.

O que tantas vezes nos salva a integridade é não conseguirmos existir sem filial.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Os precisados

Não é estrutura decente em português, sei bem. Não se trata de uma passiva possível. Mas quando há quem precise de nós não somos indubitavelmente necessários, já que podem querer-nos pelo ato de querer, sem o peso da utilidade. Somos precisados, acabou-se – “precisar” tem natural diferença de “necessitar”, que afinal este verbo último vem bem da ordem da urgência, da carência pela qual se morre, pela qual se esgota e se esvai. Precisar, podemos precisar do que nem necessitamos; precisar por criação de afeto, precisar por invenção emocional, por hábito ou até comodidade. Precisar pelo motivo simples de que a vida pode seguir inabalável e orgânica sem o ser precisado – mas abdica de sorrir.

Entrei nessas considerações por culpa dum poeminha de Bertolt Brecht, recém e mimosamente descoberto. Se não me engano, “Para ler de manhã e à noite”: “Aquele que amo/ Disse-me/ Que precisa de mim.// Por isso/ Cuido de mim/ Olho meu caminho/ E receio ser morta/ Por uma só gota de chuva”. Há indiferença possível? se é o retrato mesmo da doçura amorosa, do desvelo último, máximo, que é o tratar de si não (sobretudo) por si próprio, mas pelo aconchego sentimental do outro, pelo sossego de espírito dos que em perfeitas condições nos terão? Porque existe aquele a quem faria falta meu perfume ou livro na cabeceira, a quem atormentaria a ausência de minhas bagunças e meus afagos, de minhas lembranças e meus cacoetes, de minhas escolhas de fruta e minhas compras de padaria – porque aquele existe, cuido de existir tão bem quanto permitem as circunstâncias. Cuido de insistir na vida, de teimar nos bons pensamentos, de consumir as boas verduras, de visitar médicos indesejáveis e espiar nas duas direções. Persisto em gostar de mim, minimamente; o suficiente para atingir a noite com alegria digna, com o relativo equilíbrio das criaturas dotadas da vocação de existir. A gente diz que é porque ainda tem muita coisa para fazer na vida: verdade. A superior das coisas, porém, permanece sendo garantir o contentamento alheio; se não é o de amados, amigos, filhos, pais já tidos e beneficiados, é ao menos dos ainda descobrindos, ainda encontrandos. Dos que acharemos no meio do caminho prontinhos para sentir um vácuo do nosso tamanho.

Não tem aquela música “saber amar/ é saber deixar alguém te amar”? Pois. Os que não se querem, os que não se consideram adequados para viver, não é que ignorem ou desprezem por mal o persistente afeto alheio; não abraçam simplesmente sua condição de precisados, de desejados, de inclusive necessários, de não raro essenciais. Não é que não sejam capazes de amar, os autodestrutivos; falta-lhes, porém, alcançar inteiro o sentido do que sabem racionalmente, mas só enxergam de longe, como festa emocional cujo ingresso perderam. Falta-lhes convencer-se de dentro, por dentro, falta-lhes a persuasão íntima e intransmissível da ferida que largariam aberta, caso desistissem de contribuir para sua permanência. Falta-lhes a absorção sincera do fato de que facilitar a própria ausência é, direcionado aos demais, um ato de castração.

Amar também é existir por gentileza.

domingo, 1 de julho de 2012

Triste em gotas

Céu de um azul abissal neste Rio de Janeiro, um sol pornográfico para dias oficiais de inverno. Tudo lindo – por isso mesmo, momento mais que adequado a se falar das pequenas tristezas (adequado, sim, por questões de equilíbrio; é ou não é preferível tratar das coisas melancólicas quando há ambulância a postos, estacionada num dia azul?).

Pensei nas pequenas tristezas ao passar defronte uma vitrine daquelas com produto espalhado – um sapato no norte, outro no sul –, em óbvia tentativa de disfarçar o clima pré-fechamento. Gosto nem um pouco de vitrine com produto espalhado. Paira o constrangimento de sugerir e ao mesmo tempo esconder a falência; é a véspera das mortes de loja, o penúltimo ato dos fins de sonho comercial. Toda vez que se estendem assim, em exibição, as peças solitárias do estoque, equivale a desfraldar bandeira no navio que se sabe condenado, resignado a estar sob mira de canhão. É a despedida, a famigerada e lenta e ritual despedida, e não há que negar: despedida é muito pior que o final próprio, pois nela mora a ansiedade de aproveitar as últimas alegrias, enquanto o encerramento guarda o alívio do que remediado está. A loja com tapume é desoladora; a loja escassa é desafiante, e fere mais fundo a humilhação de nossa impotência.    

O que mais é pequenamente triste? (não entrarão aqui doenças, fomes e mortes literais, por lógica: são as tragédias inapequenantes). A criança que guardou o bocado mais gostoso para saciar-se no fim e, sem querer, desaba-o no chão. A jovem que gastou dinheirama em vestido e esperanças e não é olhada por ele na festa. O adulto que não foi contratado porque o curso ganhou baixinha classificação do MEC. O idoso que não atravessou a rua porque seu olhar não pilhou braço de auxílio. O cartaz do show que você queria ver – com a data de ontem. A bolsa tão preferida com a alça rasgando. O sapato tão preferido com a sola descolando. O jeans se recusando a atravessar o quadril. A comparação (infeliz) com o retrato de há poucos meses. O dia começando a ganhar quentume e gente na rua. O metrô começando a encher. O comércio começando a fechar. As cadeiras sobre mesas, para a faxina – que tristes, as cadeiras trepadas! O primeiro samba na Globo anunciando o fim de dezembro e suas natalices europeias. O jornal largado no ônibus. As revistas de onze meses atrás amarelando na banca de jornal. Os sofás de tecido sujo. As pinturas de paisagem em tom berrante. O bilhete de alguém que já morreu. O recado na secretária eletrônica de alguém que já morreu: pequeneza de estraçalhar muito, muito. A peça de teatro com dez espectadores. O e-mail de resposta automática. O sinal de fim de recreio.

À tristeza não se dá de comer; onde a houver, respeita-se. Argamassa de poema não se faz sem essazinhas tirando suco da gente.