domingo, 28 de fevereiro de 2021

O que resta

"Quero que as coisas dominem e encham a imaginação de quem escuta, de tal modo que o ouvinte não tenha nenhuma lembrança das palavras", disse outro aniversariante ilustríssimo da semana: Michel de Montaigne, 488 aninhos completados hoje. Sou uma evidente fã de palavras e acredito não haja a menor dúvida de que Montaigne também era, ou era muitíssimo mais, porém compreendo a motivação da frase; quem fala ou escreve normalmente deseja, antes de mais nada, exercer uma espécie de sedução sobre a audiência – e sedutores escolhem sim a minúcia dos detalhes para o agrado dos seduzidos, mas seja maior ou menor a alegria nessa escolha é à rendição dos seduzidos que visam afinal. Pode-se cobrir de pétalas o texto, selecionar os termos bordados a ouro, borrifar o ambiente de rimas, amaciar o clima com verbetes 800 fios que embalem a concentração da assembleia num movimento encantatório: o autor mais apaixonado por pétalas, bordados, ouros, perfumes, rimas, delicadezas ainda será mil vezes mais apaixonado pela paixão alheia, e nada dirá ou escreverá sem a mui íntima (e eventualmente desconhecida) esperança de ser correspondido.

Escritores, atores, oradores, palestrantes são bichos carentes; uns mais, uns menos, mas todos – e posso jurar que todos os demais artistas cuja matéria-prima não é a palavra o são igualmente: usam cada pinceladinha para enfeitiçar pelo conjunto da obra, ou, em última e inconfessa instância, pelo si-mesmo. Não é (sempre) de propósito esse autobenefício; o objetivo sincero apontado por Montaigne assume de fato a dianteira, quer-se ter o prazer de dar algum tipo de prazer, de criar uma experiência. Sim, mas afinal por quê? – para ser-se lembrado por ela. O produtor de um livro, uma peça, um filme, um quadro, um discurso, uma escultura, em se desdobrando para derramar suas capacidades naquilo que prepara para olhos e ouvidos de outrem, como que usa uma extensão dos próprios braços para enlaçar os espectadores no abraço mais possivelmente doce, ou (se é sua vibe) uma extensão dos próprios pés para aplicar-lhes alguns chutes; qualquer que seja seu estilo, é inevitável que venha a se transportar em parte para sua obra, que venha a pigmaliar-se com sua galateia, que se confunda com o que cria a fim de que a plateia também o confunda com aquilo que sente a partir do que é criado. Desenvolvedores se pretendem amados, odiados, queridos, polêmicos; ignorados e esquecidos, nunca.

Com certeza essa pessoalidade que demanda atenção não é prerrogativa única da arte e de seus quintais – qual criatura, ora bolotas, não quer ter seu trabalho reconhecido? –, porém é natural concluir que, quanto maior a subjetividade do que se produz, maior a fusão do quem com o quê, sendo o quê profundamente dependente do como. Nenhum receptor de mensagem jamais se desapega do como. Se alguém é pedido em casamento por um cidadão que recita um ato inteiro de Romeu e Julieta, mas que o faz com frieza e indiferença óbvias, provavelmente responderá com frieza e indiferença mesmo que a cena se passe aos pés da Torre Eiffel e entre fogos de artifício; se, ao contrário, é pedido em casamento no boteco da esquina por um ser que nem consegue falar de tanto amor e lágrimas, a tendência é que ambos confundam amor e lágrimas noite adentro, como se estivessem numa Paris eterna. Não é (sábio Montaigne, que devia mandar bem nas declarações) a lembrança das palavras, é aquilo que enche a imaginação e a domina; é o gosto que resiste no céu da alma, o retrogosto da memória, o número de batimentos que vem com a evocação, a pressão arterial que sobra quando o acontecimento se revive. Não é precisamente o que nos é dado; é o que resta.

O que se ama é a saudade da festa.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

O mundo é grande


Henry Wadsworth Longfellow, poeta estadunidense cujos 214 anos são hoje celebradinhos, falou de sua classe literária especificamente, mas o que foi dito se estende a todas as demais: "O que de melhor existe nos grandes poetas de todos os países não é o nacionalismo e sim o universalismo". Aqui leremos, em tradução moral, que o que de melhor existe nas grandes PERSONALIDADES de todos os países não é o nacionalismo e sim o universalismo. Nacionalismo é, de costume, só um tipo de máscara maldita usada para desagregar as gentes, para colocá-las em times de rinha que destroem uns aos outros, para vestir de espantalho um inimigo externo e desviar atenções do verdadeiro inimigo, normalmente interníssimo.

Creio seja desnecessário apertar a tecla óbvia, mas vamos: não é coisa ruim amar o próprio país, ao contrário, é o movimento natural e elegante de quem vê as riquezas de sua terra com olhos lúcidos e não se sente culturalmente inferior a ninguém. O problema começa no sentir-se – ou ao menos proclamar-se – superior, regando assim a raizinha desgracenta dos fascismos, que crescem com a velocidade e potência do joônico pé de feijão; uma vez nutridos, espinham-se rápido, rápido numa cegueira de exclusões, cancelamentos, paranoias e caça às bruxas, tudo utilíssimo para os centros de comando que ficam locupletando-se nas cabines, enquanto os peões vão à guerra. Massas são movidas por emoções brutas, e portanto bem reuníveis em torno de símbolos que as fazem caminhar atrás do guia, feito grupos de excursão ou torcidas organizadas: hinos, bandeiras, cores, suásticas, escudos, gestos, armas, brasões, mil apelos visuais e sonoros e emotivos que desencadeiam as piores febres de pertencimento e, em consequência, as piores fomes de levar os não pertencentes à destruição.

O que se convencionou chamar de "patriotismo" não é apenas cafonérrimo, infantil, superficial, com sua tendência ridícula de exaltar meras convenções sem lhes questionar o fundo (no caso do Brasil, por exemplo: é lá minimamente razoável um "patriota" cuspir marimbondos contra a cor vermelha, se foi ela que DEU NOME ao país, ao passo que as cores selecionadas para o lábaro estrelado designam casas e famílias europeias?). Antes fosse somente estupidez; mas afinal nenhuma grande estupidez fica quieta sem se tornar perigosa, e o afamado "patriotismo" é intrinsecamente isto: perigoso. É pretexto para eliminar os que ousam emitir críticas – ame-a ou deixe-a, lembram? –, para reduzir a pujança da variedade a uma padronização que nega tudo que somos, para relacionar pensamento a traição, para isolar um país e assim fragilizá-lo (país isolado chama hostilidade, boicote, guerra), para sufocar alegrias e orgulhos espontâneos sob a arrogância que só gera desprezos.

"Ah, mas então não é para a gente priorizar nossa terra?" Calma lá: primeiro, dar prioridade à sua terra no sentido cultural não significa prender-se a símbolos e objetos que meia dúzia mais poderosa inventou; uma nação não é o Estado – são suas ruas, línguas, lendas, sotaques, comidas, feiras, artes, músicas, histórias, pessoas; são coisas vivas, não chapadas, não impostas; não são seus brasões. Segundo, valorizar o que é nacional não se opõe a abraçar o que não o é originalmente: TODA cultura é feita de intercâmbios, e, gente! quer mais vocacionado para a antropofagia do que o Brasil? Terceiro: aquilo que temos visto cá nestas plagas (porque não posso deixar de me ater a elas) e que alguns dementes chamam de patriotismo é tudo, menos priorizador da pátria; vem servindo ao exato oposto, ao entreguismo econômico e político lambedor de saco americano, à dessoberanização moral de um gigante por natureza que poderia ser líder, mas tem sido pet. O universalismo poeticamente – e (é inevitável) socialmente – defendido por Longfellow se afasta tanto do real impulso nacionalista de tudo tomar para si quanto deste nosso "nacionalismo" fake, bizarro, de na prática se colocar abaixo de todos. Universalismo seria a pressuposição da igualdade de valor sem a pretensão da igualdade de características, como irmãos numa família planetária: vozes distintas com a mesma altura de ouvir e de se fazer ouvidas.

"Superioridades" são patetices de criança mimada; o mundo é grande e cabe em todas as pontes tecidas.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Outras dez sinopses que também não sei se há, mas poderia haver


De repente um jovem comum começa a receber cartas. Cartas, cartas e mais cartas de todos os lugares, em todas as línguas. Mas as cartas não lhe são destinadas; são as mensagens que se extraviaram pelo planeta e que, por algum motivo, acabam redirecionadas para seu endereço. Como não adianta enviar novamente a cartalhada para os reais destinatários (sim, o jovem tenta – e elas sempre voltam), ele, receptor aleatório da correspondência perdida, se põe a responder a cada remetente, inicialmente apenas com um comunicado padrão, e no decorrer dos meses com um crescente envolvimento nos assuntos de seus amigos compulsórios.

Uma freira reclusa, astrônoma amadora, descobre indícios de vida hostil em dois astros próximos da Terra. Ela precisará sair temporariamente de seu retiro e convencer autoridades mundiais de que não está tendo nenhum tipo de delírio religioso, existem de fato espécies na vizinhança que pretendem nos assassinar beeem aos bocadinhos.

Dois amigos desenhistas de mangá rompem a broderagem quando, num concurso de novos talentos, um rouba a história do outro. O enredo "sequestrado" é premiado, porém os personagens se revoltam contra o afastamento de seu verdadeiro criador e iniciam um motim quadrinesco: mudam falas, sabotam desenhos e se comportam de maneira inapropriada sempre que o falso autor não está olhando.

(Por falar em não estar olhando:) uma mulher cisma que não consegue mais ver a própria imagem no espelho, e que, ao contrário, é esta que fica acompanhando todos os seus movimentos, aproveitando-lhe a distração. Sem observar melhoras no quadro da moça durante o tratamento, sua família decide buscar e contratar uma sósia, que é instruída a aproximar-se da paciente e fazer amizade com ela como se fosse um reflexo fujão a visitá-la, acalmá-la, avisá-la de que só desejava umas férias ligeiras. A princípio a estratégia dá certinho, mas a mulher perturbada logo se pega de obsessão pela presença de seu reflexo e acredita não ser mais capaz de resolver suas questões sem a "própria" consultoria.

Um rapaz se apaixona por uma jovem trans e teme a reação dos pais. Num primeiro momento, sua mãe se mostra realmente angustiada – sem ser, no entanto, pelas razões que ele imagina, conforme ela depois lhe confessa: na verdade, ela mesma passou uma vida tentando ignorar o fato de ser um homem trans, especialmente por temer a reação do filho, e agora não sabe como se sentir ao pensar que ele, provavelmente, lhe teria dado desde cedo o seu apoio.

Três irmãs do século XIX montam um clube secreto de mulheres casadas em que todas aprendem, juntas, como se defender dentro de seus relacionamentos abusivos.

Três irmãs do século XXIII finalmente concluem uma pesquisa sobre teletransporte e começam a disponibilizá-lo no dia a dia; porém, apesar de o processo se provar seguro para a estrutura física dos humanos, começam a pipocar os casos em que repetidas "viagens" parecem estar, psicologicamente, transformando Jekylls em Hydes.

Também no século XXIII (por favor, humanidade, não me decepcione), as pessoas dispõem de um mecanismo que lhes permite, se desejarem, revisitar pesadelos de infância a fim de resolvê-los em definitivo. Aaaaah, mas é claro que pelo menos UM indivíduo vai ficar preso por lá.

Deprimida e desanimada com seu emprego, uma condutora de metrô faz um desabafo tocante no microfone enquanto realiza o que considera ser sua última condução de trem, já que pretende pedir demissão e mudar radicalmente a vida, talvez mochilando pelos continentes. No entanto, os passageiros adoram as palavras, pedem que a funcionária continue a dizê-las todos os dias e ela, surpresa, concorda. As composições guiadas pela moça passam a ficar lotadas, tornam-se um tipo de terapia poético-ambulante e ganham fama internacional.

Um pré-adolescente acha esquisito demais o fato de nunca, nem uma vezinha, ter conseguido lembrar-se de algum sonho. Do nadíssima, sua mente noturna passa a captar (e a mente diurna a reproduzir) figuras, coordenadas, sons que, aparentemente, configuram transmissões feitas da Lua.

(Continua?)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Ele não está tão a fim de você


Todo o respeito e todo o carinho devidos a Domingos de Oliveira e a Jorge Furtado (amo), mas não posso deixar de concordar com os tweets da quadrinista e ilustradora Helô D'Angelo, que ontem desabafava: "Nossa, que agonia que eu tenho desse Todas as mulheres do mundo, o cara parece que tá no açougue escolhendo carne"; "A mesma lenga-lenga do homem branco cis hétero rico triste porque na verdade quer namorar a si mesmo, mas, como é impossível, fica projetando em várias minas. Aí, quando descobre como elas são de verdade, termina. Ou então fica procurando amores impossíveis pra não ter que lidar". Ufa, então não era só minha a impressão. Muitos seguidores da artista também fizeram coro: "Eu assisto e fico: Qual o intuito da série? Exaltar vários tipos de mulheres e relações? [...] Mas todas acabam em traição de alguma das partes, o cara fica querendo outra coisa que não tem [...]"; "Pra mim é a romantização do esquerdomacho"; "O próprio cristal sem defeitos que só ama MUITO todas as mulheres, por isso faz o que faz"; "Eu dropei no primeiro episódio"; "Desserviço total".

Pois é, manas (porque todos os tweets que mencionei são de manas), eu nem cheguei ao primeiro episódio, dropei já nos comerciais. Não me cabe por isso, certamente, fazer qualquer avaliação da série a respeito de sua qualidade artística, elenco, atuações, direção, trilha, montagem – e se o fizesse provavelmente daria vários joinhas a esse conjunto, que ao menos pelas chamadas parece bastante harmônico –, seria ridículo eu declarar a obra péssima ao estilo "não vi e odiei". De alguma coisa serve a propaganda, no entanto; e, se a parte estrutural que nos chega aparenta não ter problemas, o que transpira do conteúdo bate aqui na aorta e no ouvido como um troço NO MÍNIMO duvidoso. NO MÍNIMO, datado. Continua havendo espaço, realmente (não que um dia devesse ter havido, mas, né?), para um enredo don-juânico em que o protagonista se apresenta como um serial lover com seus "pedaços" espalhados e distribuídos a todas as gatas, ainda que com o miocárdio genuinamente pendente só de uma – aquela, por coincidência, inacessível?

Olha; esse negócio de "tô fazendo amor com outra pessoa, mas meu coração vai ser pra sempre teu" é tão século XIX, tão pagode dos anos 90. A velha romantização (como apontaram) do sujeito-poeta-sensível-arrebatado-inconstante-autêntico-adorável é apenas isso mesmo: velha – velha no pior sentido, não de clássica e sim de anacrônica, démodé, clichê. Bem pior: cínica. Não temos mais tempo, irmão, de lidar com o afofinhamento do macho adulto que age feito criança volúvel, mas que é perdoado porque óóóóin, olha que lindinho, olha que cutchuco, como se zangar com essa/esse carinha? É fato que tanto o protagonista Paulo quanto suas várias paixões são maiores de idade e vacinadíssimos, que ninguém sofre assédio até onde eu sei, que as mulheres ficam com ele livres e espontâneas apesar de (pelo menos algumas, acredito) conhecerem a inconstância do rapaz e seu encantamento por Maria Alice, a amada imortal. Isso, porém, não melhora a premissa de tomar como subjetividade central e referente a do moço volátil, e como subjetividades secundárias e episódicas as das moças que lhe mariposam em torno – o que inevitavelmente coloca as necessidades masculinas em primeiro plano, a despeito do título. A série não é sobre mulheres, é sobre como um homem as vê e sobre como cada uma lhe agrada ou desagrada; basicamente como a maior parte da história da humanidade tem sido contada até agora.

Confesso que, desde o surgimento da produção no ano passado, toda a minha curiosidade se voltou para o acolhimento que ela possivelmente teria se se denominasse Todos os homens do mundo, e se a Maria Alice de Sophie Charlotte substituísse o Paulo de Emílio Dantas no controle da situação, com as implicações que podem imaginar: uma personagem principal feminina que se envolvesse com um gajo a cada episódio, eventualmente traísse o atual em prol do futuro, porque afinal todos sabem a que ponto ela é intensa, autêntica, sensível e caidinha pela homarada. Se por acaso essa versão alternativa soa estranha e até inconcebível para alguns, é a prova de que sim, definitivamente temos tido um EXCESSO de histórias similares à versão oficial na veia. Todo o tempo do mundo vai parecer pouco para a urgência de desdonjuanizar nosso inconsciente coletivo e para desabituá-lo à ideia de nunca sermos nós as donas do roteiro.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Infelizes


Há dias compartilhei no Face uma tirinha profundamente brilhante do cartunista carioca Daniel Lafayette, mais conhecido como Lafa; seu personagem azul expressava em três quadrinhos a envergadura filosófica duma dissertação: "Eu não sou infeliz. A gente que não se identifica com o que vem se tornando este país fica triste, é verdade. Mas infeliz mesmo é quem se identifica". Ui.

Lafa e seu blue alter eguinho estão cobertíssimos de razão; apesar de andarmos diariamente tristes, chocados, raivosos, consternados, até desesperados com a nuvem de horror invocada sobre nós pelos Comensais-de-Morte-em-chefe, infelizes não ficamos nem somos (não trato aqui, evidentemente, das situações de depressão e afins gatilhadas pela tensão ao redor, questões de ordem médica), porque não pertencemos à nuvem – somos envolvidos por ela, jamais confundidos com ela. A hediondez daqueles uns nos ataca, nos revolta, nos afeta, porém nos permanece exterior, não nos penetra nem contamina, não nos tenta, não nos substitui em nós: podemos até de alguma forma ser mortos pela atmosfera que nos sufoca, não possuídos. Para haver infelicidade propriamente dita, precisaria haver mutação; seria necessário que nossa essência fosse tomada da burrice e do recalque venenoso que leva ao preconceito, seria crucial que uma desempatia amargosa nos afastasse de todo o bem a ser produzido, seria indispensável que uma ojeriza congelante aos seres do mundo e uma urgência terrível de lhes fazer mal nos atormentasse. Para sermos autenticamente infelizes precisaríamos, anfã, nos transformar em tudo que mais desprezamos.

Infelizes e mal-aventurados são os frustrados afetivos que carecem transferir seu erotismo para pistolas, revólveres, fuzis; infelizes são os ocos emocionais que carecem direcionar a libido para a morte, já que lhes falta o talento de seduzir a vida. Infelizes os que sentem apelo de matar recreativamente um animal inocentíssimo que nem de refeição servirá, apenas de troféu mórbido para uma vaidade cretina. Infelizes as cabeças e corpos tão desarranjados com a própria sexualidade que buscam descarrego atacando a plenitude da sexualidade alheia. Infelizes os de universo estreito não por circunstância, mas por escolha, que guardam ranço da arte, da ciência, da filosofia e de tudo quanto escapa indiferentemente à sua pequeneza de opinião. Infelizes, mil e mais mil vezes infelizes os que apoiam sua autoestima doente na identificação com idiotas cuja mesa nem compartilharíamos num churrasco – idiotas ressentidos de igualdades, justiças, amores, belezas que eles não conseguem reproduzir ou atingir, e em que só veem satisfação como quem baba diante de vítimas a serem destruídas.

Infelicidade vem sim duma fartura de origens (cada um é infeliz à sua maneira, mais ou menos diria Tolstói), mas não há que duvidar: nenhuma tão eficiente quanto aquela composta dos cacos de si que cada qual põe sobre o próprio muro, a fim de massacrar tentativas de entrada e encarcerar ainda mais a não-saída. Embora gêneses alternativas – involuntárias – de infelicidade tenham também alguma chance de dar a última palavra, desamar por opção é, definitivamente, a fonte mais segura.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

A experiência do lago


Temos hoje o bicentenário redondinho da morte de John Keats, (considerado o) último dos poetas românticos ingleses e, dentre eles, aquele que morreu mais jovem, com tenros 25 anitos (um matusalém perto de vários meninos românticos nossos, é verdade: meu amado Casimiro foi-se com 21, Álvares de Azevedo com 20, Castro Alves com 24. PÉSSIMO gosto esse da época, de La Belle Dame sans Merci ir levando consigo tantas crianças). A obra de Keats só começou a ser publicada quatro anos antes de o poeta-menino encantar-se; porém, dos versos de abertura aos de encerramento, seu talento evoluiu de maneira febril, talvez literalmente. Gosto de uma sua citação – acredito que colhida em material de correspondência – que diz, pouco mais ou menos: "Ainda não sei fazer [ou trabalhar] um poema. Um poema precisa de compreensão por meio dos sentidos. O objetivo de mergulhar em um lago não é nadar imediatamente até a margem, mas estar no lago, para se deleitar com a sensação da água. Você não trabalha o lago, é uma experiência além do pensamento. A poesia acalma e encoraja a alma a aceitar o mistério".

Apesar de literariamente me esbaldar em lagos românticos (e quase que exclusivamente neles) desde sempre, sou inclinada a ver a questão poética muito como o eu lírico de Pessoa, atribuindo mais transpiração e cérebro do que arrebatamento à reconstrução artística das dores que o poeta não tem. Mas também não creio na vibe racional-bossa-nova operando de maneira unívoca, em especial numa mente fogosa como a do pequeno John – claramente uma subjetividade rock and roll, por mais que, aparentemente, não se considerasse rock and roll o bastante, ou exatamente por causa disso. Concordo com o jovem Keats no sentimento da poesia como uma experiência de imersão, como uma espécie particular de inebriamento e gozo, em que é preciso haver tamanha sedução de linguagem que a entrega chegue ao nível mencionado pelo autor: um abraço alumbrado e relax na beleza mesma, um efeito de feitiço superior ao julgamento e dele desvinculado, tal qual o que se acha numa catarse musical ou num instante de paixão profunda por uma tela – independentemente de se compreender a letra da canção ou a intenção do pintor. A arte já valeria só pela "fruição do lago", toda sensual, sensorial, encantatória? Completamente. Mas é por acaso possível, sobretudo no domínio das palavras, criar para outrem a experiência do lago estando-se todo imerso no mesmo lago? Que me perdoem os dadaístas: isso é que não.

Autor que pretenda trabalhar a poesia para ser lago e, ao mesmo tempo, permaneça no estado alterado de consciência que quer provocar parece equivalente a, digamos, um imagineer da Disney que só queira se divertir nos brinquedos em vez de criá-los. Claro que o imagineer é o primeiro a girar na montanha-russa ou voar no simulador de asa-delta que sua mente concebe, mas isso somente depois de parir o concebido; antes da entrega, da catarse, do voo, há um esforço bárbaro de engenharia, ajustes, ajustes, engenharia; há muito detalhe a ser minuciosamente confeccionado, muita estrutura a ser pensada, muito perrengue a ser vencido com a mais calculada das criatividades. Assim o poeta, que, mesmo incapaz de criar o lago – como o pintor não cria a ponte, a mulher, a montanha, o cachimbo –, é capaz de reproduzi-lo, ladrilhando de palavras sua proposta artística para nela piscinar o leitor. Acontece paixão, acontece mistério e, sim, um trabalho árduo de bastidores, a fim de que a audiência tenha uma aproximada noção do que o escritor deveras sente.

(E vire ela própria a poesia, não mais que de repente.)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

De pedras e flores


Podem me chamar de mórbida, mas há alguns dias passei um tempinho simpático caminhando no site Find a Grave (Encontre uma Sepultura), autodenominado "a maior coleção de túmulos do mundo". Gosto de histórias, vocês sabem, e era inevitável que me tornasse afeita a pensar nas tantas quantas permanecem mudas e insabidas sob silêncios de cemitério – aliás, como desamar cemitérios se tão banhados, simultaneamente, de histórias e silêncios? Esclareço aos apreensivos que não fico passeando nem montando piquenique em nenhum, meu oitocentismo não chega a tanto; chegou só até o rolê virtual pelo site pitoresquíssimo, especialmente pela seção Epitáfios Interessantes, que é autoexplicativa.

Levei horas esquecida do mundo (ao menos do nosso) entre as frases gaiatas, comoventes, fofas, turronas escolhidas pelos ocupantes dos túmulos ou por seus parentes para a hora do, digamos, check-out (obs.: todos os escritos destacados estavam em inglês; procurarei manter o – cof, cof – espírito na tradução e reproduzir os originais dos casos mais difíceis): "Eu preferiria estar em Acapulco!"; "Eu lhe disse que estava doente"; "Aqui estou e esta lápide torna isso oficial"; "Causa da morte: Reaganomia" ("Cause of death: Reaganomics"); "Ninguém nunca me escutou"; "Caminheiro, fica um pouco/ e reza por mim aqui./ Logo haverá um outro/ a ficar e rezar por ti" ("Wanderer, stay a while/ and pray for me./ Soon there shall be another/ to stay and pray for thee"); "A ideia é morrer jovem o mais tarde possível"; "Por que você está olhando para cá? Eu estou lá em cima!"; "Eu avisei a vocês que isto iria acontecer./ Muita informação ele leu/ Muita informação o aborreceu/ Muita informação – e agora morreu" ("I warned you this would happen./ Too much info he has read/ Too much info in his head/ Too much info – now he's dead"); "Não estacione a não ser que seja o Bob". Oscar de melhor epitáfio e melhor montagem para Jack Lemmon, cuja lápide diz simplesmente: "JACK LEMMON in" – e nossa visão seguinte é a da grama verdinha que cobre seu repouso, the end de todos nós.

Mas duas despedidas feitas de pedra, em especial, me enterneceram quase às lágrimas. Uma, a de um soldado de 19 anos, Joseph C. Reynolds, morto em 1864 na Guerra de Secessão americana: "Mãe, um de nós tinha de ir. Por que não eu?". Para qualquer um que não seja psicopata, não há ler uma tal declaração de amor, humildade, irmandade sem sentir um bagulhinho triste no estômago. A outra das frases mais pungentes é dedicada a uma Ronda Kay Winton Marconi, e configura o que de mais maravilhoso se pode dizer duma pessoa, acredito: "Ela poderia plantar uma pedra e fazê-la florescer". Não te conheci, Ronda, mas as menos de dez palavras com que sua gente escolheu resumi-la me fizeram amá-la por tabela; a partir do momento em que deparei com essa joia de epitáfio, inclusive, fazer a Ronda perdeu de todo o tom de vigilância solitária e recebeu ares novinhos e frescos, muitíssimo mais apropriados para um mundo que NÃO precisa de mais pressão e mais armas, precisa sim de criaturas com dedo verde metafórico que extraiam e colham o melhor de tudo. Bem-aventurados os que veem potencial florescente na pedra; deles são as mãos que botam a terra o mais aparentada possível do céu.

Eu? não podendo pretender que um dia mereça algo semelhante ao epitáfio nobélico de Ronda Marconi, já me daria bem por contente com a versão simples e honestíssima gravada na tumba de uma chamada Viola Spurlock: "Ela tentou". Ou qualquer coisa vizinha – quanto mais amodestada, melhor – à marotice do genial Billy Wilder: "Sou um escritor, mas afinal ninguém é perfeito".

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Ouro nativo

Consta que 21 de fevereiro foi escolhido como Dia Internacional da Língua Materna devido ao horror vivido nesta data, no ano de 1952, em Daca, capital de Bangladesh. Bangladesh nem sempre foi assim chamado; era, antes, o Paquistão Oriental, que se revoltou quando o governo do Paquistão declarou o urdu como (única) língua oficial do país – sendo que a maior parcela da população morava na porção oriental e tinha como língua materna o bangla/ bengali/ bengalês. Ora, nada mais justo que o bengali fosse PELO MENOS reconhecido como um dos idiomas nacionais. Foi o que acharam os alunos da Universidade de Daca, que montaram protestos e comícios robustos, em franco desafio à proibição de reuniões grandonas decretada pelo governo (vocês sabem como essa coisa de pensamento, especialmente relacionada a universidades, costuma amofinar chefias de Estado incompetentes e arbitrárias). No fatídico fevereiro de 52, a polícia abriu fogo contra esses comícios, com os resultados que podemos imaginar – e foi em honra aos mártires paquistaneses do amor ao idioma de berço que a UNESCO topou acatar o projeto de fazer do hoje, 21, a festa das primeiras palavras que nos embalam e nos cantam.

Por adequadíssima coincidência, calhou de ser hoje também aniversário de W. H. Auden, autor anglo-americano que foi dos maiores do século XX e estaria completando gloriosos 114 anos. Coincidência adequadíssima porque é de Auden uma frase muito própria às homenagens da data: "Um poeta é, antes de mais nada, uma pessoa loucamente apaixonada pela língua" – na realidade, fique como adendo que onde se lê língua pode-se também ler (mais oceanicamente) linguagem, uma vez que o termo original language se presta à dupla tradução. E não é fato que poetas, grosso modo e lato sensu, são perfeitamente isso? gentes apaixonadas, tomadas dum amor de perdição pelas linguagens que exploram? Pois eu iria ainda mais ao fundo do específico, aproveitaria a carona do calendário e, no caso dos poetas verbais stricto sensu, declararia que cada um deles é sobretudo uma pessoa loucamente apaixonada pela língua materna.

Não é que um poeta não possa se expressar e fazer poesia em outro idioma que não o de seu nascimento; pode, claro, e muitos o fizeram. Mas uma coisa costuma ser aprender cedo e até dominar, com fabulosa proficiência, uma língua que não é a materna (ou uma das maternas), e outra coisa é ter uma língua tão absolutamente entranhada em si, desde as primeiras memórias, que o movimento mais natural de exclamações, orações, xingamentos, declarações – tudo que vem mais do coração ou do fígado – vai ocorrer sempre nessa terra verbal tão conhecida, antes de sequer ter a chance de atingir as camadas de conhecimento a ela superpostas. Por mais fingidores que poetas sejam, é indiscutível o componente emocional chovido sobre a obra; (creio que) acima de tudo: é fundamental o conforto sentido pelo autor no ambiente vocabular em que cresceu – e é do ponto de vista técnico que o digo. Se uma língua foi suficientemente vivida para dar ao escritor todas as lições iniciais do dito e do grafado, inevitavelmente deu-lhe também o maior glossário de que dispõe, o mais introjetado conjunto de regras, o maior conjunto de regras a serem quebradas com maior intimidade e segurança. Entendemos de nosso idioma original mais do que gramáticas e sinônimos, entendemos intuitivos como usá-los ou não usá-los, o que se pode subverter e o que não, o que tende para o descolado ou o cafona, qual o mecanismo essencial de construir ou esfacelar verbetes. Décadas a fio que estudemos uma segunda, terceira, quarta língua não materna, após termos sido embalados no colo só de uma, não serão bastantes para reproduzir esse à-vontade confiante e sentimental, tanto quanto nenhum tratamento nos altera o DNA e nenhuma mudança de vida apaga mera e simplesmente a história pregressa.

Simbionte que desde cedo se nos amalgama, traje que veste os sonhos, extensão da natureza que assumimos, a língua de infância é o quê de bruta mina e de ganga (im)pura que há de estar colada em cada pequeno esplendor nosso – assim como um bocaducho dela vai sempre descer conosco à sepultura.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Missão Marte


Então a sonda Perseverance (adorei o nome e fico dizendo em voz alta: parrrsavírance!) pousou lindamente em Marte com engenho e arte, já diriam Camões e Drummond. Vai lá ficar o roverzinho correndo bons 20 quilômetros por uns dois anos, à cata de sinais de vida em companhia do parceirito Ingenuity, um robô helicóptero que fará jovens voos exploratórios de 3 a 10 metros de altura. Parrrrrsavírance deve perfurar o solo marciano, recolher, acondicionar e lacrar amostras de rochas, que provavelmente chegarão até nós quando uma planejada missão de 2026 for buscá-las – se será missão tripulada não sei dizer, não acredito já disponhamos de tecnologia para isso; mas que seria coisa bacana de ver com pipoca, seria. Eu, que em julho de 1969 ainda era uma das alminhas fofíssimas que brincavam na Escola da Vida de Soul, gostaria de ter agora a chance de acompanhar ao vivo esse segundo grande salto para a humanidade.

Enquanto os robozitos se aclimatam e desfazem as malas no quintal vizinho, ocorreu-me preparar uma pequena lista de encomendas para que, nas vaguinhas do expediente, garimpem pelos corredores do Planeta Vermelho, se não for abuso. Nada luxuoso não, só bricabraques que por acaso se extraviaram de nossas plagas azuis, como Bics que um dia foram e nunca voltaram; quem sabe não andam por lá, ou quem sabe não continuam fabricados em outra órbita depois que aqui saíram de moda ou de linha? Na dúvida (e na esperança), segue o rol devidamente blutufado para nossos heróis:

* Uns caramelos Nestlé de saudosa memória, que pelo menos segundo as leis da Terra grudavam no dente de maneira impossível;

* Um queijito cremoso Alouette sabor ervas finas; dava a rodo nos mercados e não mais que de repente escafedeu-se, transposto, talvez, para mercados mais aléns;

* Um ou dois celulares de botãozinho, já que o planeta anda em processo galopante de smartphoning e eu continuo com rematado horror às telas touch;

* ALGUÉM de qualquer formato, ou composto de qualquer substância disponível no universo, que me mate a dúvida cruel de muitos anos: qual PITOMBA de comercial antigo tocava aquela música "One more kiss, dear", da trilha de Blade runner? (Por gentileza, terráqueos, não me digam que nenhum; conheci a canção em alguma propaganda, eu sei, eu sei!);

* Algum sisteminha desobsoletador dessas máquinas que de 4 em 4 minutos ficam mais gagás. Em Marte não tem capitalismo (ainda) não, tem?

* Mais livros da George Sand: a produção terrestre é INSUFICIENTE, pronto, falei;

* (Nunca fui fã e continuo não sendo, mas em consideração aos que foram sempre:) um episódio satisfatoriamente filmado que salve os garotos da Caverna do Dragão, afinal;

* Um McArábia da Copa de 2002, pleeeeeeeease!

Nem é tanto assim, queridões; façam seu melhor, sei que conseguem, gorjeto bem. De repente já deixo até agendado para daqui a meia década um uber space que resgate alegremente os pacotinhos, sem que vocês precisem dar pinta no Rio (perigoso demais, eu compreendo). Qualquer item do pedido que encontrarem em prateleiras siderais – e que fizerem chegar a esta que vos blutufa – já vai configurar serviço 397.876.445.982 estrelas.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Uma vontade de estar aqui um pouco mais

Lindo quando a gente se vê num poema, como este da paulistana Mariana Ianelli: "Ela não quer fechar os olhos, é uma vontade/ De estar aqui um pouco mais, só mais um gole,/ É essa sede de ver que não se deixa adormecer,/ Vontade de que a noite transborde, e seja agora/ Mais um jasmim, mais um azul, mais uma volta/ O corpo já boia no ar entre dois braços, é uma criança/ Que dorme, mas é de olhos abertos que ela dorme...".

Por que me vejo? Porque conheço devidamente bem "essa sede de ver que não se deixa adormecer", e tanto e de tal forma que fico não sendo exemplo para ninguém, já que não raro sacrifico horas fundamentais de sono pelo impulso de brincar mais, um pouco mais. Brincar, sim; ocasionalmente pode ser até questão de trabalho (em vida de professor não é improvável que seja), porém o nervoso maior e mais constante é similar ao infantil, guardadas as proporções – não um frenesi de fazer batalharem super-heróis de plástico ou de desfilar bonecas, mas em todo caso uma inquietação por coisas legais, que parecem não caber de nenhuma forma razoável em meras 24 horas. Em especial por não serem 24, ó roubo!; há o tempo das obrigações, há o tempo do descanso inconsciente. Qual acaba garfado? O último, claro; o que precisamos fazer é o que precisamos fazer, sem grandes negociações: roupas não se lavam sozinhas, almoços não brotam espontâneos na mesa, atividades escolares não se elaboram nem se corrigem autônomas; mas com o sono sempre se arranja alguma conversa, algum cambalacho, tirando-se umas aparas daqui e dali para esticar os projetos da vigília. O sono, porque mais nosso, mais elástico.

Vem desde eu criança essa luta contra a gravidade das pálpebras, feito a menininha do poema; dizem que nos primeiros anos, se acontecesse de eu cochilar à tarde, reinaugurava-me de péssimo humor e de trato enjoadíssimo – não só porque o reinício no meio do dia me deixava aturdido o relógio interno, mas porque era CLARO desperdício de lápis de cor, TV, brinquedo, quintal. Como assim dormir, em detrimento de tantas possibilidades acordadas? Mudei pouco nessas paranauíces: verdade que os cochilos não me mal-humoram como antes, nem são as mesmas (óbvio) as esferas do brincar, porém a resistência ao sono se manteve; aliás evoluiu, conforme lhe foram adultamente evoluindo os recursos para avançar pela madrugada sem outros adultos mandando ir para a cama. Livros como brinquedos, computador como lápis de cor AND imenso quintal maior que um mundo, TV ainda como TV (se bem que um milhão de canais mais gorda) – de que maneira persuadir o cérebro a cessar de explorações e correrias quando a noite silencia tudo e o planeta é dele, só dele? Então acorrem as duas, as três, as quatro badaladas antes que os neurônios se animem a cessar a valsa, embora se arrependam recorrentemente quando horas depois levantam imprestáveis, tornados abóbora.

A quem desinteressar eu possa, não recomendo o sistema, que tem o primor de ser péssimo para a memória, a concentração, o vigor, a agenda, a saúde, o apetite; se ainda pratico é porque a sede de ver vira rápido, rápido um alcoolismo moral de curiosidade, sôfrego de mais uma dose de internet, um gole do programa, uma página, uma hora. Estamos trabalhando, no entanto, para pegar esse vício no indesperdício e melhor desatendê-lo, já que encarna o desperdício ele próprio; a exaustão, as olheiras não são certamente a melhor estrada para quem se toma da vontade de estar aqui um pouco mais – muito mais. Para mais um jasmim, mais um azul, mais uma volta (e outras, e outras, e outras neste carrossel da Terra), estou ciente: nada tão sensato quanto estacionar a carruagem num hotelzinho e aguardar o sol para seguir viagem de olhos bem abertos.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Tudo que aceitamos sobre nós

Se viva, a escritora e ativista Audre Lorde completaria hoje 87 anos. Entendo celebrá-los compartilhando uma sua frase linda, linda e empoderadora como o quê: "Nada que eu aceite sobre mim pode ser usado contra mim para me diminuir". Acordemos com um barulho desses.

Evidentemente Audre não está "liberando", com seu dito, a ação de bullyingadores e agressores tais, sob algum falso pretexto de que, se a vítima é desconstruidona das ideias, não se sentirá atingida. Seria uma interpretação absurda, que atribuiria a efetividade do xingamento à falta de autoestima dessa vítima e não à crueldade do xingador mesmo (algo como a lógica de encarar a pessoa estuprada como responsável por seu próprio estupro). Uma leitura tão mais nonsense quanto mais nonsense é a premissa da qual ela parte – a de que um agressor só se baseia em características "reais" do agredido (dados como a origem, a cor da pele, a orientação sexual etc.) para atacá-lo, negativando o que não é negativo, mas não INVENTA do zero alguma injúria verdadeiramente escabrosa. É assim que funciona? Todos sabemos que não é assim que funciona, não vigora nada parecido com uma "ética do insulto"; gente baixa o suficiente para ultrajar alguém por puro ódio não se constrange de criar fake news as mais disparatadas e sórdidas, a respeito das quais inexiste resiliência possível. Uma coisa, por exemplo, é ser bruxa e não se atormentar quando um infeliz tenta fazer disso uma ofensa; outríssima coisa é ser bruxa e ver que o infeliz anda espalhando que seus "feitiços" prejudicam famílias, animais, crianças. Uma coisa é lidar com criaturas ociosas e recalcadas; outríssima coisa é lidar com criminosos.

Feita a ressalva, vamos nos ater à grandeza da frase da escritora – um elogio ao fortalecimento do ego contra idiotices circundantes. Se a provocação envolve o emprego pejorativo de um nosso componente real, cabe muitíssimo aí, como antídoto, a autoaceitação mencionada por Lorde: me abraço como negro, como gay, como trans, como portador de tal ou tal sotaque dessa ou daquela região; abraço meu peso, minha altura, minhas curvas, minhas rugas, meus sinais, minhas presenças e ausências, minhas potências e fragilidades; abraço minha religião, minha história, meu trajeto, meu trabalho, meus ascendentes e descendentes, minhas incapacidades e vocações; e, em me abraçando afetuosamente com tudo que tenho e sou, me dialogo para dentro, me dou a chance de desabafar com honestidade, para mim, sobre o que me incomoda porque me incomoda e sobre o que me "incomoda" apenas porque parece incomodar os outros, ou dar-lhes pretexto de descarregar para meu lado seus próprios bloqueios. Não sendo viável mastigar e digerir tantas questões em solidão, me digo que tudo bem e me conduzo carinhosamente à terapia que melhor encaixe em minhas necessidades, até que eu e mim estejamos em suficiente paz e só levantemos ombros indiferentes a quem quer que se dedique a estorvar nossa relação.

NÃO se trata, diga-se, de passar paninho para nossos defeitos e não nos deixar afetar por nenhuma crítica (que seja exatamente isso, CRÍTICA, não ataque). De jeito nenhum; o ego legitimamente vitaminado é menos, e não mais narcisista, como um organismo que fica robusto de massa magra em vez de gordura. Narcisismo é colete à prova de balas vestido pelo eu, porém de tão péssima qualidade que qualquer cara feia, qualquer pisão no pé o perfura; enquanto a autoestima bem nutrida, bem moldada, é vestimenta confiável que pode até sentir o impacto de influências negativas, mas não se deixa avariar e muito menos destruir. Faz-se emergencial, todos os dias, alimentar esse amor de si – que, como todos os amores dignos do nome, não é cego nos percalços nem exageradamente complacente ou indulgente, sem com isso ser vulnerável às pressões externas tampouco. Amor é coisa de resolver entre um amado e outro, tendo no máximo um terapeuta no meio.

Nós & nós – infinitos enquanto maduros.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Mamihlapinatapai


Não é bonita essa palavra que acabei de aprender, pertencente à língua yagan (idioma indígena da Terra do Fogo que tem atualmente, como falante, uma única pessoa)? É termo preferencialmente voltado para a esfera romântica, mas combina à maravilha com a situação política de boa parte da história do Brasil como a conhecemos. Explico: mamihlapinatapai significa "um olhar trocado entre duas pessoas no qual cada uma espera que a outra tome a iniciativa de algo que as duas desejam, mas nenhuma quer começar". Familiar ou não? Realmente não sei como nenhum (creio que nenhum) outro sistema linguístico do planeta gestou palavra de semelhante significado, principalmente nosso português brasileiro, situado tão na vizinhança geográfica e indecísica.

Não pretendo de modo algum desmerecer todas as lutas que foram e continuam sendo aguerridas na trajetória daquele Brasil raiz, concebido e levantado por nós e nossos ascendentes – o Brasil que é e que batalha para ser, para assumir-se, para libertar-se. Também não pretendo sugerir irresponsavelmente que, neste momento de coronavirulência desenfreada, as pessoas da resistência nos exponhamos em manifestações e aglomerações de pressão ao "governo". Reconhecer, porém, que há entre nós um país que já pelejou consideravelmente, e um país que só devido à pandemia deu um tempo de estar nas ruas pelejando ainda mais, não implica negar que tenhamos "encostado" em nós um outro país perplexo, perdido, pasmacento que fica exatamente como descreve o termo yagan: entreolhando-se em meio ao caos para sondar a quem cabe a iniciativa. Vou nem contar, nesse processo, os abutres que deveriam proteger-nos da calamidade e são precisamente nossos maiores inimigos – sim, eles delegam e culpam uns aos outros, mas em nenhum momento com a remota intenção de acertar, de pegar alguma parcela de responsabilidade, apenas de esquivar-se e safar-se; afinal, abutres. Estou contando somente brasileiros propriamente ditos (não vampiros, sanguessugas, canalhas acoplados à nossa terra na esperança de ressecá-la inteira e vendê-la para o ferro-velho), brasileiros reais, normais, de propósitos limpos, atacados pelos parasitas e no entanto paralisados diante da ideia de reagir a eles.

É compreensível; temos um largo, infelicíssimo histórico de chibata, tortura, coronelismo, milícia, represália, "circulando, circulando, nada pra ver aqui". Massacrou-se uma quantidade absurda de gente que atrapalhava a construção do mito (horrivelmente falso, como todos os mitos) da brasilidade passiva e dócil, aquela que dá uma boiada pra evitar a treta. Massacrou-se, da mesma forma, a história dessa gente que ousou peitar o sistema, e de modo geral se assumiu o ponto de vista dos esmagadores para desencorajar futuros malês, Zumbis, Dandaras. Como estranhar que tantos de nós estranhemos a posição de luta, preferindo nos salvaguardar na individualidade em vez de nos envolver em coletividades (partidos, movimentos, quilombos, cooperativas, sindicatos, ocupações) que os parasitas difamam e perseguem? Não é nem um pouco de assombrar que, após séculos de persuasão para fechar a boca, seguir com a vida, fingir que não viu, deixar pra lá, boa parte do povo estoure de indignação mas se limite à troca de olhares – encarnada nos esbravejares de barzinho, nos comentários inócuos de rede social, nas vagas reclamações em família. Embora não seja culpa desse povo privado de informações sólidas e do tempo de consumi-las, não se pode isentá-lo da responsabilidade que, queiramos ou não, todos herdamos; o Brasil nos calhou em sorteio e já se faz tarde a hora de chuparmos decentemente esta manga.

Precisamos, sobretudo (seja isso providenciado pelo próximo governo de esquerda, amém), de educação política desde os primórdios: como o país funciona, como se estrutura, o que as leis realmente nos asseguram, a quais organizações e instâncias podemos recorrer quando ninguém nos assegura o que as leis supostamente nos asseguram, que outros degraus podemos subir quando essas organizações também falham, para quais e-mails podemos escrever incessantemente, que eventos podemos combinar internauticamente para botar pressão relativa a projetos que exigimos ou rejeitamos. Precisamos que brasileiros descubram por que convém fortalecer e apoiar sindicatos, por que a mídia deve ser regulada – e por que isso nada tem a ver com censura, é ao contrário oposto a ela –, de que maneira se montam eficientes revoluções também no silêncio que não é alienado, na desobediência que tem claras direções, no boicote que se torna eloquente no mercado e nas urnas. Precisamos de conhecimento, de objetividade, de logística, de opções. De alternativas.

Um pelo outro, cabe a nós olhar; mas não precisamos continuar olhando um para o outro pra ver quem começa.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Caminho de neve

Às vezes gosto de empreitar enredos ficcionais a respeito de pinturas das quais desconhecemos o contexto, como uma espécie de exercício reverso em que se ilustra com palavras a imagem. E por que não homenagear por tabela um aniversariante do dia – o fazedor de 180 aninhos e pintor impressionista Armand Guillaumin? Amigo de Cézanne, Pissarro e Van Gogh, porém jamais tão reconhecido quanto eles (no caso do querido Vincent, estou naturalmente falando do renome póstumo), Guillaumin teve a extraordinária sorte de, aos 50 anitos, ganhar 100 mil francos na loteria, o que lhe permitiu a felicidade de largar o emprego formal para mergulhar exclusivamente na arte. Não posso dizer que não bateu invejinha.

Já não invejo a trajetória da pequena personagem de Hollow in the snow, tela gerada pelo artista em 1869 e acima reproduzida. Para mim, é a jovem Vivienne Morin que vai pelo caminho, pontuando de vermelho a paisagem azul (esse vermelho específico é o do lenço em sua cabeça – seu melhor lenço –, embora os cabelos não destoem tanto do calor do tecido e sejam de um belo castanho arruivado. Ela não confessaria nunca que se orgulha docemente desses cabelos, desse veludo exuberante que considera sua única beleza. Mentira, não é de nenhuma forma a única; apesar do rosto já excessivamente cansado para meros 27 anos, ou até em parte pelo cansaço que os adoça e melancoliza, que olhos, que olhos! tem a moça, grandes e xarás de cor da amada trança. Que pena não os podermos ver agora). Para onde vai Vivienne, solitária como a árvore que já mal aguenta avistar todos os dias? Vai do trabalho, em casa da família Badeaux, para a casita onde moram seu pai Donatien e seu irmão Jérémy. Nossa heroína exausta dorme na residência dos patrões; no entanto, como o velho Donatien está em rápido declínio de doença, e é por todos os ângulos pesado demais para os magros 16 anos de Jérémy, ela atravessa diariamente 5 quilômetros de ida e 5 de volta para dar força e direcionamento ao caçula.

Vivienne se sente exatamente como essa árvore: débil e insuficiente no meio de um estradão ora quente de rachar os ossos, ora congelante e monótono de anil, como recentemente tem estado (Vivienne gosta dos tons de outono, que ela mesma representa; odeia frio e odeia azul. Ninguém sabe que ela odeia azul, tanto que sua patroa lhe deu o vestido usado com que ela ora enfrenta o trajeto de neve. Por isso o lenço vermelho: uma rebeldia muda). As duas, a mulher e a árvore, são débeis e insuficientes, mas são as únicas disponíveis em suas categorias, e resistem às neves e aos quilômetros – no que toca à moça, também aos desgostos fundos, fundos: Jérémy é um bon garçon sem dúvida, e ainda assim incapaz de lidar com o père Morin, porque impaciente, inseguro, infantil; e Donatien é daquelas presenças amarguradas e tóxicas que drenam o ambiente, drenam as vidas, as almas. Andar os 5 mil e tantos metros não é apenas meio de transporte, é meio de adequação mental; Vivienne não se incomoda de rumar, mas não quer chegar, chega somente porque tem o percurso para ajeitar as gavetas íntimas – e somente retorna ao serviço porque tem o mesmo percurso para regrudar os cacos.

Vivienne ama? Ela sinceramente não sabe; reconhece que Gilles, um seu colega de emprego na casa dos Badeaux, lhe dirige atenções interessadíssimas – porém como avaliar se são amores? Nossa protagonista de tela perdeu a mãe aos 11 anos, não se lembra de ter presenciado nenhuma ternura entre os pais, labuta desde os 15 numa família em que só percebe uma educada indiferença; lê pouco, nunca leu um romance, nunca lhe contaram histórias arrebatadas; que escola de afeto frequentou? Pelo bocadinho que captou da vida, desconfia que sim, aquilo com Gilles pode ser amor, pelo menos parece. Seu pânico de estimação: afundar mais e mais em seu caminho de inverno, caso se una a Gilles e o incorpore ao conjunto de homens que a usa, manobra, consome, esgota, respira.

Lamento comovidamente não ter condições de saber se Guillaumin aprovaria minha versão para seu Hollow in the snow (embora creia com honestidade que a heroína ficcionalizada combina macio com o título). Só me deixem aqui com um pensamentozinho de consolo: que, se o querido impressionista pintasse o casamento de Gilles e Vivienne, não a faria enfeitar-se com (mais) nada que fosse azul.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Dos outros lados da vida


Meio atrasadita como sempre, assisti a Soul, a mais recente obra-primazinha da Pixar hospedada na Disney+. Para quem não viu só digo que: veja. E digo também que evite ler o resto do texto, a não ser que pertença ao estranho grupo de pessoas que adoram cheiro de spoiler pela manhã.

(Continuou mesmo assim? não posso parabenizar pela escolha, mas OK, então vamos.)

Antes de mais nada, Soul não é para crianças, ainda mais profundamente do que seus "irmãos" Viva e Divertida mente não eram; o fato de desta vez termos um protagonista adulto, aliás – ao contrário das duas outras animações, centradas respectivamente no menino Miguel e na menina Riley –, já diz muitíssimo sobre o longa. Miguel e Riley apenas começavam a viver, no sentido cronológico do termo, e seus sonhos, conflitos e fragilidades muito facilmente encontrariam eco na audiência mais novinha; o Joe Gardner de Soul, porém, é um professor de meia-idade adultissimamente dividido entre contentar-se com o emprego estável e investir na paixão pela música, entre cumprir as expectativas da mãe e sentir que sua passagem pela Terra tem significado, entre abraçar o sim que consegue e desmentir sua coleção de nãos – sem perceber que, na aflição obsessiva de seu (im)possible dream, foi subestimando uma montanha de sins pequeninos e rotineiros. Como parceira acidental e perfeito contraponto, Joe "ganha" a alma não nascida 22, provavelmente a maior veterana e a pior enfant terrible da Escola da Vida (local de pré-existência repleto de alminhas fofas e cabeçudas); 22 simplesmente SE RECUSA a viver tanto quanto o músico se recusa a morrer, o que torna bastante irônica a circunstância de ser ela a verdadeira instrutora de vida de seu suposto monitor.

Apesar de alguns furitos no roteiro e algumas situações aparentemente inconclusas (por que a mãe de Joe não sabe sobre o acidente? por que Joe "expulsa" o conteúdo do gato – e, nesse caso, como o gato volta a ser gato? o que aconteceu com o personagem Paul após aquele ligeiro trauma? Joe ligou para Lisa, afinal?), que fazem de Soul uma obra menos resolvida e redondinha que as outras duas citadas, ainda temos um produto Pixar com todas as suas pixarices encantadoras. Está ali a incrível habilidade de traduzir em concreto o que é absolutamente abstrato – com fartura de soluções e conceitos fantásticos como o Salão de Todas as Coisas, os Zés sem identidade ou forma definidas, o grupo dos Místicos sem Fronteiras, os viventes apartados da competência de viver; está ali o maravilhoso blend de fofura, drama, humor (com destaque, neste último quesito, para as hilárias interações entre 22 e seus diversos monitores); está ali a sensibilidade pixariana de, em sábia decisão artística – e comercial, claro –, desatrelar o processo pré e pós-morte de qualquer religião específica, optando por um caminho lindamente ecumênico. Mas é mesmo da relação de Joe com 22 que saem os dois fios mais comoventes do longa. Em primeiro lugar, o elogio extraordinário à figura do professor, retratado como alguém que consegue inspirar mesmo quando parece passar despercebido e desapercebido; é quase impossível segurar as lágrimas ao ouvir Joe se oferecendo para acompanhar 22 em sua maior viagem, sendo alertado de que "não vão deixá-lo ir" e respondendo – numa representação de todo educador que só pode conduzir cada aluno até certo ponto, a partir do qual o formando precisa seguir sozinho – que tudo bem, "não vão, mas vou até onde eu conseguir".

O segundo fio interpretativo mais impressionante de Soul constitui sua própria essência, sua própria "moral": o nicho que precisa ser preenchido em nosso peito, a fim de que contemos com um passaporte seguro para o mundo, não necessariamente está relacionado a fazeres e afazeres, propósitos, missões – ou principalmente: profissões. Não é sine qua non que nosso encantamento pelo privilégio de viver se manifeste com qualquer sentido utilitário, se prenda a qualquer encaixe nosso como peças de uma grande engrenagem produtiva, como batedores de metas, como superadores de obstáculos. Por sinal que muitas vezes (ilustra-o bem a indiferença do protagonista músico à música do rapaz no metrô, em contraste com o total alumbramento da alminha virgem diante da apresentação) é a própria obsessão de bater metas e superar obstáculos que nos esvazia de um entusiasmo original, visto que somos empurrados a perseguir os quês e não os comos. É o desespero ou a obrigação de chegar lá que nos faz esquecer por que estamos indo para lá anyway.

Enquanto a vida só-ela-purinha, com seus sóis e carretéis e pizzas e pirulitos, já é mais do que suficiente para manter e renovar o spark das almas todas e ainda algumas. A vida – sendo ela mesma – basta.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Pálido Ponto Azul


Esse do título é o nome de uma famosa foto da Terra, tirada em 14 de fevereiro de 1990 pela sonda Voyager 1. A querida Voy tinha, na ocasião, a missão de fazer várias imagens do Sistema Solar (que formaram um mosaico chamado Retrato de Família, não é fofo?); já havia cumprido sua parte e estava batendo em retirada quando, a pedido de Carl Sagan, virou a câmera e fez um último clique de nosso planetinha – mais inha do que nunca – perdidíssimo no meio de um raio, afogadíssimo nas profundezas do mar espacial sem fim. Uma poeira. Um pixel. Um projeto de pulga. Conseguem vê-lo? é aquela coisiiiiiiinha ínfima, ridiculamente minúscula, pousada no meio da última faixa de luz. Pois é, eu também demorei para achar, mas é bem nesse negocito que moramos todos nós – nosso Pale Blue Dot, por enquanto a casinha única de que dispomos no universo, embora tantos vivam como se contassem com pelo menos 1.047 refis.

Sobre a eloquência da foto, discorreu Sagan em palestra dada na Universidade Cornell: "A Terra é um cenário muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, na sua glória e triunfo, pudessem ser senhores momentâneos de uma fração de um ponto. Pense nas crueldades sem fim infligidas pelos moradores de um canto deste pixel aos praticamente indistinguíveis moradores de algum outro canto, quão frequentes seus desentendimentos, quão ávidos de matar uns aos outros, quão veementes os seus ódios. As nossas posturas, a nossa suposta autoimportância, a ilusão de termos qualquer posição de privilégio no universo, são desafiadas por este pontinho de luz pálida. O nosso planeta é um grão solitário na imensa escuridão cósmica que nos cerca. Na nossa obscuridade, em toda essa vastidão, não há indícios de que vá chegar ajuda de outro lugar para nos salvar de nós próprios".

Duas verdades acachapantes, essas apontadas pelo astrônomo: como são vexatórias as tretas em que nos envolvemos pela posse de mais metro menos metro de um CISCO feito a Terra, e como é crucial introjetarmos que somente nós nos salvaremos de nós, nenhum árbitro de planeta vizinho vai mandar um deixa-disso ou apitar o jogo. Convém, aliás, fazer o exercício (apropriado para tempos carnavalescos) de vestir a fantasia imaginária dalgum etê das redondezas que observasse nossa Lilliput e considerasse a possibilidade de interferir no formigueiro; imaginemos, apenas IMAGINEMOS nossas próprias reviradas de olho ao constatar que aquela gente pitoca se recusa a parar de destruir sua ilhazinha infinitesimal, que meia dúzia de três ou quatro pitocos julga ter o triplo do direito de todo o resto, que algumas pessoinhas ridículas puxam o cabelo e dão na cara umas das outras por causa de um crush de fim de semana, uma cadeira no cinema, um garfo, uma careta, uma opinião, uma tangerina. Dá pra culpar o Thanos ou os aliens enraivecidos de Guerra dos mundos por desejarem nos pulverizar? Somos insuportáveis, lastimáveis e irritantes exatamente porque não vemos o quanto somos incríveis, potentes e talentosos, e de quão pouco tempo dispomos para sê-lo, e quão estúpida é a decisão de gastarmos esse pouco tempo sendo insuportáveis, lastimáveis, irritantes e devoradores do coleguinha.

Fôssemos um grupo de lilliputianos sensatos, imprimiríamos a Pale Blue Dot e a grudaríamos na porta da geladeira, a fim de recebermos todo santo dia o salutar estímulo baixador de bola. Embarcou numa de acreditar que nenhum psicólogo da espécie humana seria capaz de entender suas questões, tão formidavelmente transcendentais elas são? Mergulhou na trip de que sua tese é a do gênio dos gênios, e de que nada será como antes na galáxia depois que você a revelar? Passou a noite inteira empapando o travesseiro de chorar pelo namoro que era O Namoro infinito e único, cujo término talvez desalinhe a órbita dos planetas? Oh, please, veja quem somos, onde estamos: nesta bolinha de gude indecentemente microscópica no meio do próprio sistema, que dirá no meio de bilhões e bilhões de sistemas outros. Não é que por isso devamos desistir de tudo, pelo contrário; devemos investir em tudo que faz cada rotação da bolinha valer a pena, descartando todos os comedores de vida – disputas cretinas, vaidades idiotas, preconceitos (desnecessário qualificá-los, já que são todos imbecis), desamores, mil nhenhenhices que atravancam areia-movediçamente nosso tempo e espaço tão limitados. Se somos assim nanicos, frágeis, sujeitos a peteleco, o bom senso recomenda que nos conservemos tão unidos em prol da preservação coletiva quanto atentos às verdadeiras demandas individuais (muito diferentes de pulsões implantadas e egoístas); carecemos do máximo bem-estar entre os membros da equipe para que a pequena e débil nave mãe continue operável pela maior eternidade possível.

A grandeza que nós – pulguinhas – tanto perseguimos, só a recolhemos de nossa insignificância.

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Como um patinho


Estava caçando imagens, esbarrei com algumas fotos lindas de cisnes com seus cisnitos e de repente me ocorreu: nossa, mas como a história dO patinho feio é escrota. A história em si e todas as produções de TV, teatro e cinema que bebem desse lago. Certo, não há muito exagero na caracterização literária das avezinhas – pelo menos os baby cisnes que vi eram realmente feiositos, de penugem cinzenta e incerta, um ar de rascunho –, mas independe de maior ou menor precisão biológica a minha antipatia; o que de fato me deu e dá assomo de irritação é considerar que, no conto, só existe final feliz porque o patinho fake se revela um cisnão imponente, e que provavelmente continuaria a haver a mesma desolação no personagem, o mesmo bullying, se ele fosse verdadeiramente um pato, nada mais que um pato fora dos "padrões". Que feio.

Em geral se conta essa historinha às crianças para persuadi-las a ter paciência, resiliência e confiança no futuro – caso se identifiquem com o protagonista rejeitado –, ou para mostrar-lhes que "estão vendo? não façam isso com ninguém, um dia quem vocês desprezam pode dar um baile em vocês" – caso os leitores/ ouvintes tendam para o grupo dos rejeitadores. Nenhuma das duas perspectivas está exatamente errada: sem dúvida, um serzinho que hoje se acha desengonçado e sem graça pode florir de maneiras insabidas, e idiotas que perseguem os "diferentes" não raro se chocam, anos depois, de ver que sua antiga vítima se tornou übermodel, estrela do rock ou ganhador do Nobel. Acontece. A possibilidade de vir a ser um fato, no entanto, não equivale à CERTEZA de isso ocorrer; muitomuitomuito principalmente: a possibilidade de vir a ser um fato NÃO DEVERIA ser importante. Usar a velha narrativa para engendrar pequenos condes e condessas de Monte Cristo que sonham espezinhar seus espezinhadores, ou então para levar espezinhadores a se comportarem por mera autodefesa, me parece quase tão horrível quanto não interferir no processo.

"Patinhos feios" podem sim virar cisnes – mas podem não virar. E está tudo perfeitamente bem, não têm a menor obrigação de virar; o que funciona perfeitamente mal é uma cabecinha que se impõe a condição de uma futura maravilhosidade para obter respeito e pior, desforra. Ninguém precisa (nem deveria ser incentivado a crer que precisa) fazer 38 plásticas, perder 97 quilos, ganhar 5 milhões, comprar título de nobreza ou retornar tietamente para Santana do Agreste a fim de ajustar contas com seu passado. Ninguém precisa passar de loser a winner, segundo o sistema de avaliação competitivo-capitalista, antes que seus algozes se arrependam sinceramente dos maus julgamentos. Até porque, diga-se, isso TAMBÉM é reforçar a visão cruel e embaçada dos algozes: é nivelar-se e valorizar-se pelo ponto de vista DELES; é apreender tácita ou explicitamente que apenas beleza, riqueza, inteligência identificadas como aceitáveis capacitam para a consideração social, a amizade e o amor. Adianta? Não adianta. Aquilo que era sofrimento infantil somente é promovido a meta, ideia fixa, e motorizado na força do ódio; curar-se, não se cura.

O que cura de uma vez por todas é (auto)aceitação plena desde sempre, ensino do amor incondicional ainda no útero, desestímulo ao julgamento e à competição, assassinato dos preconceitos antes que sequer respirem, encorajamento da colaboração em todos os casos, ensino de que, num mundo realmente próprio para consumo, eu sou porque nós somos – e cada um tem seu lugar assegurado (o que quer que deseje assumir pelo bem comum) e suas características abraçadas. "Ah, mas o mundo não é assim": não é porque não o fazemos ser, contentando-nos com dizer que o mundo não é assim. Se ele ainda não é, pois que tire o traseiro da cadeira, arregace as mangas e fique sendo; o espaço que caminha para a extinção, para o esgoto da História, é o da discriminação fantasiada de cultura, o do comodismo de permanecer intolerante, o da preguiça de rever as próprias burrices em nome de uma "autenticidade" que é simples covardia, ruindade, recalque, mau-caratismo.

Feio, feio, feio.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Impossível e cia.


O que, para vocês, é da ordem do brabo, do possivelmente inviável, do eventualmente impossível? Para mim: usar o telefone. Usar um smartphone. Compreender físicas, químicas, matemáticas. Passar roupa (com decência). Escrever ficção longa. Me deixar hipnotizar – duvideodó que um dia eu relaxasse o suficiente. Dormir numa “hora certa”. Portar qualquer coisa na orelha que não sejam óculos: nada de brincos, fones quase nunca, elásticos de máscara só com extensor. Assistir a competições esportivas (a ginástica olímpica é honrosa exceção). Sair sem perfume. Sair sem bolsa. Sair sem tudo na bolsa.

Discutir sem me sentir culpada, mesmo que tenha razão. Olhar para a cara, ouvir a voz ou pronunciar o nome do coiso. Me maquiar. Me embebedar. Boiar. Brigar. Andar de bicicleta. Andar de roupa comprida e não barafustá-la nas pernas miseravelmente. Tomar café e não me afundar em azia. Distinguir carros. Dirigir carros (nem tento, credo). Jogar xadrez. Ver a entrega do Oscar com tradução simultânea – o melhor meio de não entender bulhufíssimas em língua alguma. Ter animais em casa (adoro, mas não consigo lidar com filhos de nenhuma espécie). Comer dobradinha. Comer camarão. Ser da Sonserina.

Frequentar, em parques, os brinquedos que rodam de um modo maníaco. Ler textos que não são de literatura. Ler e-books: não têm cheiro, case closed. Acampar. Escalar. Fazer mapa astral. Puxar ou alimentar conversas de metrô. Voltar ao cabelo comprido da adolescência. Curtir programas ou filmes de comédia. Suportar meio nanossegundo de heavy metal. Aparecer na TV – voluntariamente, I mean. Arriscar a vida sem ser para salvar alguém. Consumir abacaxi (afta e esofagite monstronas em 3, 2, 1). Consumir qualquer outro cítrico. Participar de fã-clube. Montar conta no Instagram. Tocar em arma de fogo – mas neeeem se a rainha da Inglaterra sobrevoasse a London Eye num hipopótamo alado recitando Os lusíadas. Ela ou o hipopótamo, tanto faz.

Dizer o necessário e não menos. Nem mais.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Os entretantos


Dia do bem-humorado dramaturgo francês Bernard le Bovier de Fontenelle: módicos 364 aninhos – dos quais, espantosamente, o autor viveu cem quase redondos (falecendo apenas um mês antes de completá-los). CEM ANOS, em plenos séculos XVII-XVIII, quando uma pessoa com a metade disso já era considerada idosa! Efeito do consumo de morangos, segundo Fontenelle, eterno apaixonado do garfo e do copo. Aos 92, o dramaturgo teve seu joie de vivre comparado por um observador ao de um jovem de 22; e já no finzito de sua última década teria dito a uma bela mulher que conhecera: "Ah, senhora, se eu tivesse oitenta de novo!"

Ser agora apresentada a essa figura pitoresquíssima combina à perfeição com uma frase sua – "É verdade que não podemos encontrar a pedra filosofal, mas é bom que ela seja procurada; procurando-a, descobrem-se muitos bons segredos que se não procuravam". Na condição de perseguidora de assuntos, eu não conseguiria concordar mais ou assinar embaixo com entusiasmo maior; sou exatinhamente dessa vibe. Confesso, aliás, que tendo mesmo a preferir os segredos não procurados, os que se oferecem alegres pelo meio do caminho, as surpresas interessantes: lojinhas insólitas não calculadas no roteiro da viagem, notícias que quebram a banca das expectativas, peças de brechó que de repente assustam de tão perfeitas, filmes que pegamos passando numa tarde de segunda e se tornam favoritos, autores descobertos em sebos que alargam o repertório. A vantagem óbvia é que, não havendo planos para um esbarrão com o tesouro, não há também ocasião de desapontamento; tudo que chega é lucro total, limpão de impostos, alegria líquida. Uma trip sem a tensão de arrumar bagagem.

Ao focar unicamente na pedra filosofal – a paixão absoluta, a festa das festas, o restaurante dos restaurantes –, entramos na aventura com roupa de gala, com as vontades trajadas de longo ou de smoking para o Grande Momento, e é então inevitável: a manga, a gravata, o sapato apertam, a barra do vestido arrasta e amarfanha e atrapalha, a procura fica duas vezes mais exaustiva porque o espírito errou no dress code e só visa ao finalmente em vez de se divertir com os entretantos. Nada brilha, a não ser a imaginária meta – lógica bovarista que não costuma acabar em cenário florido, de tão febrilmente que o buscador se apega à imagem do cenário florido; febre é um dos maiores sintomas de desarranjo, todos sabem. Quem viu A noviça rebelde (beijo, querido Christopher Plummer; que você esteja no maior campo de edelweiss do universo) também sabe perfeitamente a importância de ter roupas de brincar, aquelas com as quais se corre, se dança, se canta, se respira, se sobe em árvore, se pega fruta no pé. Não existe o Grande Momento, não existe o gozo da meta alcançada, não existe a excelência da felicidade SEM o encantamento por todo o processo, por todo o percurso, por todos os detalhes, por todas as chances de beleza, por todas as experiências espalhadas: a felicidade É a construção, É o processo. A vida, guria que não cessa de acontecências e travessuras, não fica parada batendo continências, fica entoando seus dó-ré-mis em cantos inesperados, tocando violino no metrô, aparecendo com sugestões para uma live MARA, apresentando amigos eternos no Facebook, flechando amores definitivos no ponto de ônibus – não sossega, a criança. O que espera de nós? que a acompanhemos sempre, que lhe sigamos o ritmo e lhe demos a mão na ciranda, em vez de sentarmos suspirosos num banquinho enquanto ela brinca e nós perdemos o timing de vê-la crescer.

Pedras filosofais são bons pretextos, desde que mantenhamos lúcida a noção de que, no caminho, nem tudo que não reluz deixa de ser ouro.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Favor chorar


Outra daquelas adorabilidades do perfil Frases de Crianças, que aqui reproduzo:

"A Luiza [4 anos] fazia balé na escola. A mãe dela é muito séria e reservada. No dia da apresentação de final de ano, a Luiza pediu:

– Mamãe, quando eu estiver no palco dançando, você pode chorar, por favor?"

Ao contrário do desejado pela pequena Luiza, a gente ri, mas só até a página 5; sua diretíssima solicitação infantil pode soar engraçada pelo absurdo latente – pedir que alguém chore, a não ser que se seja um diretor de atuação, não é exatamente igual a pedir-lhe que bata palmas, por exemplo –, porém não deixa de ser tocante como um alerta de que amor não é suficiente: é preciso o testemunho desse amor. Miudinha que é, Luiza certamente não tem recursos bastantes para identificar as sutilezas do comportamento adulto; seu termômetro de medições limitadas provavelmente tem captado, como marcador seguro de afeto, o derramamento visível dos papais e mamães de seus coleguinhas nas apresentações, e vai convencer uma criatura de 4 anos de que não é obrigatório ser assim? Ignoro de que forma a mãe de Luiza respondeu – posso apenas suspeitar que, caso haja tentado mostrar à filha que ausência de lágrimas não significa menor orgulho, tenha ouvido como argumento que todas as mães choram no balé, o que seria um raciocínio compreensível. Sabendo uma criança que a suposta frieza de um familiar, além de pouco aconchegante, chamaria atenção entre seus pares e deporia contra seu próprio valor no "mercado afetivo", naturalmente acabaria adotando como principal objetivo o ser todo mundo.

Sei bem, ninguém é todo mundo e há meios e modos diferentes de demonstrar amor (em suas inúmeras vertentes). A questão é que, pela lógica, há também meios e modos diferentes de receber amor, e muitíssimo já tem girado o planeta em torno de como conciliar as tendências destes e daqueles. Na maior parte das vezes não se trata absolutamente de "ter razão" ou não, mas reza o bom senso que existem, sim, prioridades – e o sagrado direito de uma criança se sentir suficientemente amada é uma delas. Mamãe e papai são obrigados a chorar no balé? impossível "obrigá-los" a uma reação que só vem espontânea (salvo se forem psicopatas ou formados pelo método Stanislavski); ficam eles obrigadíssimos, no entanto, a comparecer ao balé com o mais explícito dos enternecimentos, a cumular a bailarina ou bailarino de beijos e abraços e mais beijos e mais abraços, a deixar patente nos olhos toda a sua admiração, se não for pedir muito até a puxar um lencinho. Um filho não precisa de pais perfeitos, ricos, infalíveis; mas que necessita do maior número de confirmações diárias de não ser um estorvo, que necessita da maior quantidade de provas de ter suas carências respeitadas, que necessita da mais farta segurança de contar com o suporte familiar – é coisa que não se discute.

Não apenas crianças: TODOS merecem relaxar sobre a convicção de que são vistos, acompanhados, apreciados. Obviamente não falo de grude nem de transbordamentos escandalosos, cafonas, aos quais sou a primeira a ter urticária; falo de demonstrações que podem ser elegantemente moderadas, mas têm de ser inequívocas. Se é difícil declarar o tamanho da benquerença tête-à-tête, não custa deixar bilhete na geladeira, no computador, na mochila. Se o gênio de um não é o de organizar festa surpresa para o outro, não custa montar ou patrocinar um jantarzito íntimo, em pas de deux. Se um é tímido demais para carinhos ou declarações em público, não custa segurar a mão, ajeitar os cabelos do parceiro, providenciar os pequeninos toques que mantêm a mornidão do eu-estou-aqui. Se se é sério e reservado como a mãe de Luiza, não custa mesmo assim fazer um movimento, dar um passo, adivinhar um gosto, cuidar para uma decoração especial no quarto, um passeio especial no níver, um ingresso para o show dos shows. Há manifestações mil, de todas as cores e formatos, algumas mais fáceis para os introvertidos porque desprendidas de exposições muito pessoais como um choro na escola; o crucial é manifestar, com a melhor constância e a maior obviedade. Ser até discreto, mas ser óbvio – sem alimentar o tormento da dúvida por nenhum ângulo.

Não é só no cancioneiro popular que somos todos chegados a evidências. Mais do que tudo, queremos ouvir alguém dizer – mostrar – que sim.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Puxando fios


Ao menos de acordo com nosso calendário gregoriano (na Rússia de sua época, seguia-se o juliano), completam-se hoje 140 anos de morte do fabuloso Fiódor Dostoiévski, falecido com irrisórios 59 após uma hemorragia pulmonar associada a enfisema. Para tão curta vida – talvez não tão curta dentro dos padrões oitocentistas –, tão longa obra; não preciso dizê-lo, nem seria viável fazer aqui elogio bastante. Vou me ater à insignificância do texto (do meu, claro) e destacar unicamente, por ora, uma frase dostoiévska que eu poderia adotar carinhosamente como lema lugarzito, tanto nela creio: "Não há assunto tão velho que não possa ser dito algo de novo sobre ele". Quando me acho muito e muito repetitiva, e sou, à força de rabiscar aqui alguma coisa todo dia, peço vênia e consolo à fala de Dostô, peço o respiro de imaginar que mesmo nas reiterações e repetições e reúsos e reciclagens haverá algo de fresco, algo de minimamente inédito. Uma expressão, um ângulo, uma ideiazinha que seja – mas nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia; nenhum tema passa, nenhum tema realmente passará.

(Não que eu esteja ousando comparar um mero blog à literatura em si, porém,) se Dostô não estivesse certo, a literatura há séculos não seria possível, já que os humanos temos uma quantidade limitada de assuntos centrais: a vida, a morte, o sagrado, a guerra, o sonho, a exploração, o convívio, a injustiça, a identidade, a liberdade, a arte, o ódio, o amor. Para onde quer que os textos de todo um mundão – incluindo aqueles destinados a teatro, TV e cinema – venham a fugir, disso não fogem muito; narram diferente com personagens diferentes, usam estilos distintos em abordagens distintas, e no entanto esvoaçam eternamente em torno das velhas questões, as essenciais, as célebres. O que nos cabe, e não é pouco, é ir puxando fiozinhos diversos do mesmo tecido, bordando novas figuras com a mesma matéria-prima, arrumando de outras maneiras as mesmas cores (tal qual os compositores rearranjam infinitamente as mesmas notas), a fim de que o planeta continue uma casa interessante em suas histórias e discussões. A julgar pela produção ininterrupta e sempre renovada de genialidades – dOs lusíadas aO nome da rosa, de Romeu e Julieta a Crime e castigo, de Dom Quixote a Grande sertão: veredas, da Odisseia a Ulisses –, continua.

Então o amor, o exaustivamente decantado amor, não pode ser cômico e turbulento em A megera domada, sombrio e exasperado em O morro dos ventos uivantes, ácido e pungente em A culpa é das estrelas, inocente e brejeiro em A moreninha? A guerra não é uma coisa em Tolstói, outra coisa em Anne Frank e uma terceira em H. G. Wells? A formação do eu não é incrivelmente discrepante em Jane Eyre, em O vermelho e o negro e em Memórias póstumas de Brás Cubas? Os descalabros sociais de Os miseráveis não têm contexto bastantemente dessemelhante dos de Fome e dos de Vidas secas? Que sejam iguais os fermentos: em cada mão a massa é uma; este autor vai temperar o clássico enredo de vingança com um toque de fadas e uma anedota de família, aqueloutro vai escavar o ciúme com uma pegada sufocante de tão seca e uma ambientação oriental, um terceiro vai ajustar a narração de um julgamento à oitava camoniana – e daí não sairão nem O conde de Monte Cristo, nem Dom Casmurro, nem Perry Mason, mas pratos literários em tudo avessos a seus xarás de tema. Um alívio, aliás, ter plena certeza de que nunca nos cansaremos de nós, nunca renunciaremos ao "e se fôssemos por aqui?", nunca deixaremos de encontrar aquis. Nunca, jamais perderemos a arte por falta de assunto.

(Não é de objetos que um texto é feito: é de um sujeito.)