domingo, 31 de maio de 2020

Sem estima

Foto profissional gratuita de aborrecido, angústia, angustiado

Achei psicologicamente intrigante um momento do romance Dominique, de Eugène Fromentin, no qual o protagonista descreve a relação entre seus dois melhores amigos – o sisudo Augustin e o estroina (vontade de morar no século XIX só para usar palavras como "estroina"! pronto, passou) Olivier: "Augustin acabou por amar Olivier, mas sem jamais estimá-lo muito. Olivier concebeu por Augustin uma verdadeira estima, mas não o amava". 

Embora entenda perfeitamente que possa haver estima sem amor, e seja inclusive algo frequentíssimo (não fosse assim, amaríamos a maior parte das pessoas que conhecemos mais de perto, o que infelizmente não ocorre), me parece mais complicado supor que haja amor sem estima. Se entendermos esta última como um pré-amor, um afeto sereno e não apaixonado, não estaria ela necessariamente presente e contida onde ele estivesse? É provável que sim, se a compreendêssemos nessa acepção; mas não foi certamente assim que o personagem Dominique a empregou. No entendimento do narrador de Fromentin, "estima" é toda feita de admiração, respeito, aprovação – sentimentos que vão do amigo leviano para o sisudo, mas não o contrário. Augustin, o sério, apegou-se afetivamente a Olivier sem lhe aprovar as ações; Olivier, o instável, respeitou profundamente Augustin sem talvez nunca desejar abraçá-lo. Que maçarocas de simpatias doidas somos nós. 

Mas vá lá, na amizade deve ser uma combinação viável; afinal, não é uma afeição exclusiva, colecionam-se amigos de todos os feitios, como tupperwares com os quais você conta de maneiras variadas. Essa diversidade traz opções tão lindas, que ninguém se tortura se a relação com Fulanílson é mais malucamente infantil, mais gratuita e instintiva, enquanto o lance com Beltraneide é um troço mais adulto, mais cabeça, de apoio profissional recíproco. Acontece: é mesmo assim, múltiplo e normal. No entanto, jamais acreditei – e continuo não acreditando – ser possível construir uma verdadeira ligação de casal na ausência da estima, ainda que com a paixão mais tristão-isôldica, mais romeu-juliêtica, mais desesperada do universo. Partindo do princípio de que é relacionamento trabalhado na exclusividade, o que se deseja? Encontrar no mesmo modelo a maior quantidade de gatilhos que nos disparem. É importante o arrebatar físico, é importante a ternura mais suspirosa, mas é definitivamente ESSENCIAL olhar para as palavras, para as crenças, para os atos do outro com orgulho feliz. 

Não concebo, simplesmente não concebo, como se possa mergulhar numa relação de escolha e de convívio diário sem admirar quem nos acompanha tão de perto, sabendo que moraremos também com suas ideias, que exibiremos em público também seus preconceitos, que nem só de pele e carinhas bonitas a coisa se construirá. Toparemos realmente encarar a solidão cruel de dividir o telejornal, mas ter de engolir nossas indignações em silêncio? Vamos mesmo levar de boas o vácuo absurdo na hora de enxergar amanhãs, a agonia de mentalizar muitos anos ouvindo agressões (por mais que não nos sejam dirigidas) e sandices, a perspectiva gelada de lutar contra a vergonha, o cansaço, a náusea mês após mês? Conseguiremos tropeçar em valores tão inimigos dos nossos dia sim, dia sim? Convenhamos: para quem está disposto ao amor, e não a qualquer gambiarra que entulhe o espaço, falta de admiração pelo outro é a total impossibilidade – é a morte mesma. Sem admiração, pode-se manter qualquer outro afeto, em especial os obrigatórios (pais, filhos, irmãos, colegas cujos pensamentos não respeitamos mas que amamos por hábito); o amor de casal, porém, implica a mais ininterrupta parceria, o trato mais espontâneo das vontades, e vontade alguma fica de pé quando já não encontra seus motivos. 

Nesse amor entre dois, se desaba o querer, inexiste qualquer outra cola que lhe seja anterior.

sábado, 30 de maio de 2020

O pulso

Poetry Album - Free photo on Pixabay

A matéria da Revista Pazes é de 2016, porém eterna (guardadas, claro, as atuais impossibilidades relativas à pandemia): no Reino Unido, a associação Kissing It Better organiza leituras de poesia em instituições que abrigam idosos, a fim de deter um bocadinho a perda de memória causada pelo Alzheimer. Os velhinhos reagem lindamente – alguns completando, num sussurro, os versos que decoraram em criança e reemergem espontâneos. Há olhares perdidos em silêncio que se acendem quando começa a leitura, e até registros de respostas mais tocantes, como a da senhorinha que não falara uma palavra sequer desde sua entrada na instituição, mas que se abriu em choro, lembrando a morte do namorado, quando a voluntária do projeto leu um poema sobre um homem que se despedia da amada. 

Os entrevistados da reportagem caminham todos para conclusões irmãs: a poesia "cola no nosso eu mais profundo", "bate na porta da memória", "detona a palavra e as lembranças", "abre as comportas", "devolve confiança aos pacientes" – expressões mais ou menos adaptadas dos personagens ouvidos. Faço coro a essas pessoas queridas, que não conheço e já considero pacas. Poesia é texto afetivo e melódico demais para ser esquecido de todo, se um dia foi realmente sabido e guardado; não põe medo como o bloco duro da prosa, é de estrutura mais rápida, mais molinha aos olhos, bate-se a vista e se pode gostar sem querer e depressa. É a criatura de andar requebrado, feiticeiroso, que se amou com os primeiros encantos da infância e se grudou na mente pelo ritmo, pelo imponderável, mesmo sem glossários e explicações. Pode-se absorver um poema para sempre sem nem entendê-lo, com o fascínio sensorial que dificilmente vai explodir tão gratuito pela prosa. A rima cola, a métrica pede, o corpo intui – pronto: eis uma estrofe inteira de Camões sugada para o arquivo permanente, enquanto dez ou doze sílabas de romance têm pouquinha chance de serem citadas exatamente como nasceram.

Quem não fica com aquelas musiquinhas chicletadas no ouvido por dias, anos, numa jukebox louca e randômica? Poema é tal qual. De vez em quando volta um verso a respeito de nada, como um refluxo: "Sete anos de pastor Jacó servia", "Vozes veladas, veludosas vozes", "Vai-se a primeira pomba despertada", "És bela – eu, moço; tens amor – eu, medo". Não sei se também com vocês, mas eles realmente brotam em pedaços e surpresas feito uma memória do sangue, mais instintiva, encantatória e primária do que as elaborações da consciência. Sou incapaz de ouvir "Ah, que saudades..." sem desfiar, por dentro ou por fora, os oito anos todinhos de Casimiro atrelados aos meus tantos. Se alguém soltar – "Só tu!" –, vou devolver – "... puro amor, com força crua..." –, mais imediatamente do que gostaria; se disserem que alguma ocorrência é na cidade de Marabá, começo: "Eu vivo sozinha, ninguém me procura!/ Acaso feitura/ Não sou de Tupá?". Doida não sou, embora não tenha provas (nem muitas convicções); sou só alguém que levou a adolescência e o princípio da adultice malocada entre estrofes e mais estrofes apaixonadas, mastigando rimas, conhecendo e relendo, amando e repetindo. Já não sou a consumidora voraz dos poetas: agora estou quase somente entre parágrafos. Mesmo assim, os mantras antigos irrompem, cantos de uma família do coração no ouvido de eus antepassados. Todas as pessoas que fui estão coladas para sempre nesse eletrocardiograma de registros sonoros.

Que a poesia, no fundo, é bem isto: o bater do pulso de ancestrais que ainda somos nós.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Síndrome felina

Imagem gratuita: ferrugem, ferro fundido, coroa, metal, corrosão ...

Longe de mim falar mal dos gatos, criaturas transbordantes de fofidão, mas uma particularidade é mundialmente famosa: os danados têm uma delícia mórbida em derrubar qualquer coisa que esteja em cima de qualquer coisa. Copos, chaves, papéis, bibelôs, tudo serve à sanha felina de testar compulsivamente a gravidade. Inclusive outros gatos. 

Pois há humanos e humanoides que, por motivos vários, crescem desenvolvendo a mesma síndrome derrubadora. Porém, fora os personagens histéricos e ricos das novelas – que tacam na parede vasos, pratos e o que mais acharem à mão, quando estão furibundos –, normalmente gente é menos criativa e gosta mesmo de derrubar gente. E nem cheguei ao sentido conotativo do negócio; conforme prova a recente "brincadeira" escolar de induzir um colega a pular para fazê-lo estabacar-se, a idiotia humana chega ao ponto de divertir-se com a queda alheia, não meramente incidental e ridícula, mas desastrosa, provocada. Pois é, existem espíritos de porco suficientes no planeta para que a possibilidade de alguém quebrar um osso, sentir uma dor absurda ou mesmo morrer se torne um entretenimento passível de gargalhada e pipoca. Não sei classificar esse fenômeno a não ser como psicopatia galopante; na mais generosa das análises, como vácuo de caráter, ausência absoluta de cultivo familiar, profunda solidão moral, verdadeiro Grand Canyon onde deveria haver noções, amores, referências. "Puxa, mas assim fica parecendo que os fazedores dessas pegadinhas infelizes são monstros." Breaking news: e são realmente, ou estão em vias de sê-lo se não ocorrer intervenção. Nas histórias de ficção, nos documentários, como você chama aqueles que machucam (ou deixam que os outros se machuquem) por prazer? Pois é. 

Mas há os menos literais, e provavelmente bem mais numerosos: os derrubadores emocionais. Com uma carga similar de infelicidade – e uma muito maior de sofisticação – envolvida. Você conhece o tipo: não podem pilhar um indivíduo contente da vida que logo tratam de corrigir isso, menosprezando as razões alheias ou empilhando uma sééééérie de razões contrárias. Claro que não falo dos aconselhadores sinceros, dos amigos de lealdade atenta, que têm direito e dever de zelar pela criatura amada quanto ela está enfeitiçada demais para ser racional. Não falo dos que avisam com amor, embora se arrisquem à antipatia do outro: olha, calma, seja prudente, refaça as contas, analise as palavras, observe os gestos, não invista agora, não confie tão cegamente, não é por aí. Falo dos que derrubam a coisa pela ilógica dos gatos; não por medo, não por defesa ou cuidado; derrubam a coisa parnasianamente, pelo gozo de derrubar a coisa – só porque ela está ali, existente. 

Assim são os que botam vinagre no elogio recém-recebido pelo outro (ou pelo filho do outro), os que dizem que o sucesso veio por sorte de principiante, os que estressam os já enervados pais de primeira viagem avisando que depois piora, os que acendem o pavio de boatos maldosos sobre a promoção da colega, os que sabotam autoestimas na base do "não é por nada não, mas", os que estimulam inseguranças no próximo para implodir, por tabela, seus níveis de exigência. E por que essas almas desmoronadoras boicotam, envenenam, desestimulam, urubuzam conquistas, acinzentam perspectivas, plantam nuvenzinhas, abusam da acidez e do gaslighting? Porque, basicamente, não se sustentam de pé. Não se realizam em suas próprias expectativas, não acham encanto (pudera) em seu próprio convívio, e à força de rastejarem desejam todos em seu chão, em sua sarjeta. Vivem intuindo tristemente que permanecerão sozinhas em seu pesadume, se não impedirem com urgência que os demais flutuem.

Muito ao contrário dos gatos – imperadores de alma solene –, almas derrubadoras não empurram: puxam. Querem companhia dentro do inferno emocional em que já se encontram de antemão.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Do nosso lado

Fotos vivir juntos libres de regalías | Pxfuel

Teve outra coisa, na participação de Manoel Soares no último Papo de segunda, que me atingiu poderosamente: quando o jornalista, falando sobre emoções marcantes, contou do verdadeiro êxtase que experimentou na juventude ao entregar para a mãe seu primeiro salário. Foi o momento em que o menino se fez adulto na capacidade de ajudar nas despesas – e o prazer dessa potência de cuidado e proteção continuou sendo buscada por Manoel ao longo da vida, em cada quadro familiar. Senti uma travada no peito (com aquele lapso de encanto dos instantes lindos) ao ouvir as palavras do entrevistado a respeito de seu amor por cuidar; em reconstituição aproximada: "Eu sempre quis garantir que as pessoas não iam ficar sozinhas do meu lado".

Poucas vezes escutei algo tão extenso, tão intenso, tão figadal sobre o que é ser humano em todas as instâncias: garantir que os outros não fiquem sozinhos do nosso lado. Em termos filiais, não deixar que os pais se sintam remando, apenas com suas forças incompreendidas, contra toda a maré do mundo plus um peso ancorado no barco. Em termos paternos e maternos, não permitir jamais que toda a maré do mundo pareça mais acolhedora e viável do que a conversa na cozinha, do que a convivência emparedada de quarentena. Com relação aos amigos, não encarar os desabafos como um tiro de largada para um campeonato de sofrimentos. No caso dos amores – ah! que injustificáveis são, quando uma e outra parte não passam de estepes mudos e piorados da solidão física, e o relacionamento é só vigília de corpo presente –, no caso dos amores não há nada mais crucial: impedir, de todos os modos e com todos os desdobrares possíveis à mente humana, que nossa presença se torne um insulto e magoe mais do que a alternativa. 

Socialmente, temos também uma pilha de solidões a derrubar. Precisamos interromper nossas programações para engrossar causas que só se realizam no plural. Precisamos alimentar a vaquinha para que a mãe solteira, desempregada por efeitos de pandemia, não se ache em desamparo. Precisamos nos comprometer com a rearrumação lógica do mundo, para que crianças não se perguntem por que não têm casa e pais, se há tantos endereços e adultos disponíveis. Pre-ci-sa-mos manifestar gritadamente nosso apoio aos irmãos indígenas, cada vez mais sufocados na terra e na luta. É urgente, absurdamente urgente, que sustentemos os profissionais da saúde com muito mais do que aplausos: que os ratifiquemos, encorajemos e protejamos ficando em casa ao máximo, a fim de aliviar-lhes esta hora de horror. É fundamental, em nossos privilégios, doarmos nosso farto espaço de voz aos que deveriam ter assegurado o lugar de fala. É essencial que estejamos presentes com faixas, placas, alto-falantes, panelas, votos, posts, lives, aulas, pesquisas, compartilhamentos, contribuições, textões de Face, e-mails para legisladores, campanhas de conscientização – barulho, muito barulho, muito espernear, muita teimosia para cima dos que decidem ou podem pressionar os que decidem, de modo que ninguém deixe de ser olhado, ninguém seja esquecido nos trancos do caminho. Ninguém nunca fique para trás.

(Aliás, minto: fascistas podem sobrar, empoeirados, em tempos e galáxias remotas. Tempos e galáxias vazias de qualquer ar, que é para nem o rosnado desse povo se propagar no vácuo de uma solidão ensurdecedora.)

quarta-feira, 27 de maio de 2020

O direito de lembrar

Photo Album And Coffee Cup In Fall

Como disse Fábio Porchat no maravilhoso Papo de segunda de anteontem, todo dia a consciência de nossos privilégios nos dá uma porrada. Quem assistiu ao programa sabe o quanto o segundo bloco – no qual os quatro meninos de praxe e o convidado Manoel Soares, jornalista e presidente da Central Única das Favelas, debateram sobre as memórias registradas em foto – foi ricamente doloroso. Para mim, para o Fábio (o meu aqui de casa e o Porchat do estúdio), fotografias sempre foram uma realidade afetiva, uma presença familiar em todos os sentidos; mil vezes folheei os álbuns de infância, o do casamento de meus pais, aqueles de pessoas bastante anteriores a mim mas cujos rostos puderam alcançar-me. Investiguei a lembrança acessível de avós e bisavós, me espantei com suas meninices, me reconheci na juventude de minha mãe, vi a carinha dos alunos que ela já não tinha quando nasci, estremeci de fofura ao constatar que saí da maternidade como um esquimó vermelhamente bochechudo. Ainda que seja cria dos anos 80 e só com mais de década de vida tenha começado a conviver com videocassetes caseiros, cresci com registros móveis da primeira comunhão, dos 15 anos, da crisma, da formatura de escola e faculdade; e os eventos menos bombásticos, embora não aprisionados em pleno som e movimento, moram no mínimo em imagens silenciosas, sonolentas, algumas já douradas ou coradas de muita idade – mas que lá estão. Sempre lá estiveram. E, até anteontem à noite, eu nunca havia realmente me demorado na possibilidade de que, para uma quantidade absurda de pessoas próximas, elas jamais tenham estado. 

Veio de Manoel Soares o tabefe no meio da alma: com a mesmíssima idade que eu, ele não possui uma única foto de seu pai. DE. SEU. PAI. E nem é apenas pelo fato de nossa geração (e a passada, e a passada...) ser obrigada a pagar para revelar fotografias, dar uma booooooa volta no shopping ou no quarteirão enquanto as danadas não saíam da câmara escura, num processo demorooooooso e não necessariamente barato. Por isso também; mas a explicação é bem maior e pior. Conforme o jornalista apontou, inúmeras famílias residentes de comunidades/periferias acabam simplesmente PERDENDO essas (já poucas) lembranças no meio de enchentes. Não há tempo, não há condição de salvar senão o estritamente necessário – ou nem ele. Numa "boa" hipótese, resgatam-se os documentos cheios de letrinhas frias que fazem as criaturas existirem para fins legais, em especial para o trabalho (sublinhe-se, aliás, que a foto mais antiga de Manoel é a de sua carteira profissional). Porém o quase imponderável, aquilo que "só" se justifica pelo afeto, esvai-se, afogando camadas e camadas de subjetividades, histórias, referências, resiliências que o Estado não exatamente se empenha em preservar. Nossa ficha corrida como país tende ao exato oposto; não à toa – como o entrevistado fez questão de lembrar –, até hoje não temos um museu que registre suficientemente as milhares de memórias submetidas à escravidão no tempo do império. Mesmo os documentos da escravidão foram queimados (diz-se) por ordem de Rui Barbosa; e, por mais que a intenção do ex-ministro tenha sido (diz-se também, não sei) evitar que antigos "senhores" tentassem pedir indenizações após a abolição, o fato é que um material gigante se perdeu para a História e as histórias, para os livros e as famílias, os arquivos e os descendentes. Perdeu-se também para a devida infâmia dos culpados, já que essas certidões de vergonha infelizmente não assombrarão bastante os álbuns dos nhonhôs. 

Temos de dormir, ou de preferência deixar de dormir, com esta verdade lancinante: no Brasil, as famílias pretas e pobres não têm o direito de lembrar. Suas raízes são incineradas por ordem do Estado ou submersas nos refluxos de desigualdade que o Estado não tenta impedir. Seus pais e avós perdem os indícios de nascimento; seus filhos (como João Pedro) perdem os de morte. Seus ícones de resistência são sumidos, negligenciados, difamados e relativizados – caso de Zumbi dos Palmares, a quem a historiografia branca teima em atribuir escravos, embora (conforme observou o querido Emicida) não haja evidências reais nesse sentido. Seus nomes e sobrenomes de matriz africana são aterrados por nomes e sobrenomes de sílabas europeias, metendo-se uma tesoura cruel nas chances de reconstituir a genealogia. Suas crenças ancestrais são perseguidas e demonizadas. Até seus impulsos de futuro são, em cada ocasião possível, mutilados da construção de uma memória: gerações de negros a fio precisaram crescer quase sem espelhos na mídia, na arte, no mundo dos negócios, na ciência, nos brinquedos, nas passarelas, nos gibis. Não somente a conexão com tudo que foram, viveram, amaram, construíram lhes tem sido criminosa e recorrentemente sonegada; ainda lhes é roubada (hoje menos, graças à maravilhosa atuação dos movimentos identitários) a própria lembrança que não apareceria nas fotos, a lembrança de terem acreditado em tudo que poderiam vir a ser. 

Sim, vivemos num país tão estúpido, tão vexaminosamente constituído, que até os direitos de lembrar e de esquecer são privilégios de cor e classe. O Brasil é uma Medusa que busca petrificar a maior parte de seus filhos no tempo; cabe a nós escapar do empedramento da consciência obrigando-o, di-a-ri-a-men-te, a se confrontar com o próprio reflexo.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Não tenho estômago

Comer Laranja Doce - Foto gratuita no Pixabay

Não quero posar de borboleta sensível, mas confesso: meu estômago é um viúvo porcino. É estômago que age como se tivesse gastrite, sem nunca ter tido. Sinceramente não sei como uma criatura consegue mandar pra dentro maracujá, kiwi, acerola, suco de laranja; só de lamber abacaxi, o esôfago vira esôFOGO e as aftas pipocam. E no entanto, por mais que três ou quatro vezes já me tenham endoscopizado, em busca de um flagrante, nada: o estômago não quer rótulos, não quer oficializar relações, é apenas rebelde e tem preferências. Tem limites, melhor dizendo. Meu orgãozinho teimoso é simplesmente incapaz de ser como os que tomam comprimido ou bebem água sem azia, é incapaz para o ácido e o cítrico (até sombra de ácido e cítrico), e se reserva o direito de não dar explicações. Já foi mil vezes encostado na parede, mas não confessa; é aquela femme de filme noir que olha de banda, em desafio – e, a não ser que saia presa da sala do detetive, vai continuar sendo exatamente o que é. 

Mais alguém tem essa peça rara na barriga? Não recomendo. Inclusive sugiro que cutuque, cutuque, até o infeliz admitir pro analista qual é o seu problema, afinal. Mas não é do estômago físico, embora absurdamente amofinante, que quero falar no fim das contas; é da ausência de estomaguice mental que me faz andar no Brasil sob efeito de um Mylanta permanente. Não se trata da negação do incêndio, ao contrário: estou tão, mas tão consciente do nosso Vesúvio que, se não for pelas doses diárias de aturdimento (gif de porquinho-da-índia mastigando, vídeo de coala adormecido, romance da George Sand), é capaz de eu mesma ficar manifestada na Fênix Negra e sair fulminando outros e uns. Tomar ciência dos números e gráficos – e tomar ciência de quem os ignora – me tornaria potencialmente mortal para mim e o mundo, sem o sal de fruta das palavras cruzadas e dos episódios de Cold case. O ódio a esse império do ódio me destruiria, se eu o visitasse e encarasse constantemente na jaula. Temos de conhecer nossos monstros o suficiente para monitorar onde e de que tamanho estão, porém não com apaixonada intimidade, já que o abismo nos suga quando nos olha de volta.

O costume de socar a fera em sua prisão faz a gente esquecer que a coisa é puxada. Mas é puxada. O Mr. Hyde que me habita quer pegar pelos cabelos nosso Voldemort-em-chefe e alimentá-lo com água do Mar Morto. Quer arrastar cada bovino verde e amarelo para a crueza dos hospitais (não como pacientes, mas como aqueles que limpam, suam, entubam, sofrem, escolhem, se esgotam, não comem, não dormem, atracados na pior batalha). Quer dar na cara de cada negacionista pra ver se o exorciza do transe. Quer meter um aparelhinho de Laranja mecânica em cada olho de cada estrupício acometido de burrice crônica. Quer sacudir com furor cada criatura tomada de paixão energúmena pela economia, cada idiota pobre regido pelo encosto de um canalha rico, cada desgraçado que está vivendo seu sonho de princesa ao usar modelito de Ku Klux Klan. Meu Mr. Hyde está hidrófobo por dentro e Dr. Jekyll por fora, brincando de ter equilíbrio e criando coquetéis mentais de Estomazil.

Por enquanto não tive gastrite, mas minha nacionalidade é uma úlcera.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

A paixão que calhar

Anel Livro Casamento - Foto gratuita no Pixabay

Conheço poucas falas mais lindas sobre a relação do leitor com a leitura do que aquela de Jean Rostand: "Peço a um livro que crie em mim a necessidade daquilo que ele me traz". Exatinho. Por mais que cheguemos àquelas determinadas páginas por uma qualquer força estranha a elas – imposição do estudo ou trabalho, cisma de amigo, amofinação da mídia, tédio molhado de chuva, autocobrança a respeito de nosso score de clássicos –, uma vez entrados para além da soleira da capa, queremos uma espécie de paixão. A que calhar. Esperamos que, apesar do enredo cretino, haja ao menos um personagem com quem trocaríamos piscadelas ou alianças, um daqueles que se nos atravesse para sempre no peito e na garganta. Esperamos que uma frase nos encontre e agarre no meio das linhas mais ociosas – a frase que se atire do banco de reservas ao nos ver e grite: "Viu? Viu? POR ISSO você chegou até aqui, e sua visão da carreira não será mais a mesma afinal!". Esperamos descobrir o verso perfeito e ainda ignorado para música, para um cutucar de vida, uma epígrafe, um nome de filho, uma citação de parede. Mas é direitinho isto: não abrimos um livro com total despretensão. Não abrimos um livro sem esperar.

Claro, ansiamos também um monte com relação a pessoas, filmes, viagens, porém é consideravelmente mais raro trazer alguém para a cabeceira sem prévios interesses e esforços, ou adentrar o cinema no automático, ou casualmente embarcar num voo e esbarrar num país. Para cima de pessoas, filmes, viagens, nós costumamos nos empurrar já um pouco mais planejados – e, portanto, mais conscientes da expectativa. Normalmente não vou ao novo crush ou à Eslovênia dizendo: olha, estou aqui mesmo, né, então me faça gostar de você; as chances são de 10 para 1 de que seja: poooooxa, gostei de você, então estou aqui. No campo dos filmes (séries, novelas, por extensão), a semelhança com a situação dos livros é em tudo maior; a preparação diminui, a probabilidade do fortuito aumenta, há o embarque em histórias que podem seduzir rapidamente, sendo ou não buscadas. Ainda assim, a natureza visual dos enredos filmados costuma impedir que eles cheguem até nós sem terem sido mil vezes entrevistos: no trailer, no comercial, nos memes de Face ou Whats, lá estão as imagens teimando e teimando, chamando e se oferecendo, se insinuando às nossas necessidades, criando-as sem nossa vontade de tê-las. Livros, não. Livros são conchas pudicas, escondedores da pérola, não se revelam na mídia. Podem ser anunciados, mas não se permitem adivinhar nem intuir em duas frases; não se entregam. Nenhuma pré-experiência ou pré-desejo nos mostrará o que só acharemos ao investigar cada uma de suas esquinas. 

Livro é um salto de fé, um namoro instantâneo que vem de esbarrão ou de conveniência, um susto sempre, sempre! – não importam nada as resenhas lidas. Livro é, a um tempo, muito súbito, muito simples e muito íntimo: acontece todo por dentro, não exige ambiente, não pede ajuste de volume, funciona sem a velocidade ideal de conexão, é pegar ou largar; é investir ou não numa trilha nova que vai não sabemos aonde, não sabemos como, só se abriu toda fácil e aguarda que queiramos descobrir que nunca poderíamos ter passado a vida toda sem a visão daquela paisagem final. Pessoalmente, não sigo em qualquer trilha, sou específica em leituras; porém, se for entrar na leitura, entro para amá-la. Chego para ser conquistada, para adicionar o autor a meus amores, para receber uma aula de construção de personagem, de trama e de entendimento humano. É biscoito da sorte, é pescaria de festa junina; não sei o acréscimo que vem. Mas estou totalmente disposta a sempre ter precisado do que virá. 

(E é fato que sempre precisamos. Se tem dúvida, tente eliminar da sua construção todos os livros que foram tijolinho, e veja se toparia voltar a ser o que sobra.)

domingo, 24 de maio de 2020

Bobagens de que a gente gosta mas não vai lembrar em nenhuma lista

Joaninha Mundo Animal Inseto - Foto gratuita no Pixabay

Se me perguntarem coisas que curto fazer, vou provavelmente lançar as informações grandes, como qualquer ser humano com o mínimo de sensatez. O que se espera são verbos amplos e nobres: ler, viajar, ir ao cinema, escrever, dançar. Mas somos feitos de miudezas íntimas, ainda mais agora que estamos inescapavelmente trancados em nós, e acho justo homenageá-las; se não existissem, seríamos um bando de leões enjaulados nos intervalos das grandes ações, batendo cabeça enquanto não chegam os momentos que botamos na biografia. Que vida miserável para os sentidos, essa que pula o cheiro da chuva e só conta os banquetes!

Eu gosto, por exemplo, de entornar o Vanish na roupa durante a lavagem e vê-lo ferver branquinho a qualquer contato com nossos traços orgânicos. Gosto de brincar com os efeitos da luz quando as contas do colar viram pequenos prismas e enchem a parede de arcos-íris bebês. Gosto de descobrir textinhos para provas e exercícios. Gosto de usar nomes esdrúxulos nas provas e exercícios. Adoro tocar o aveludado das folhas recém-nascidas nas plantas. Fico agudamente feliz ao me enternecer por um personagem com tanta força, com TANTA força, que só quero guardá-lo no colo e grudar as pulsações num abraço. Descobrir florezinhas microscópicas naqueles verdinhos que nascem entre a pedra e o cimento me deixa alumbrada.

Me põe bêbada de alegria ver que o luar invadiu a cozinha. Quase morri de contente quando uma joaninha invadiu a cozinha. Gosto de saber significados de nomes. Gosto de ser abordada por escrito e poupada do infinito horror de um telefone tocando. Amo não ser poupada de um gato ou cachorrinho tocando bem-vinda seja sua maciez roçando nas pernas. Tenho uma satisfação automática ao constatar, nos programas de reformas, que há paredes de tijolos e que os armários da cozinha não são brancos. Tenho uma satisfação automática com o silêncio. Com a primeira entrada num quarto de hotel. Com a oleosidade se desfazendo sob o escorrer do detergente no prato. Com a volta ao computador depois de uma refeição redondinha. Com o líquido docinho  mate, suco, achocolatado  que arremata a refeição e oficializa a plenitude. Com o reflexo que nos faz deter a queda de um objeto. Com a mala fechada, lacrada, perfeita. Feita. 

Amo os primeiros minutos depois do banho, a letra da música finalmente aprendida para o canto, os casamentos felizes da trilha sonora com a cena, o achamento DAQUELA palavra que encaixa no texto como o rei em sua Excalibur, a paixão fulminante por uma estampa, o perfume confortável dos nossos próprios lençóis. Amo os dias do mês em que não temos dor e ficamos sensoriais e fluidas, adoro os dias do ano em que não há frio mas também não há suor, sou louca pelas revistas A recreativa mais malvadas e difíceis. Fico deliciada com as febres de criatividade. Dobro a pontinha das páginas com trechos brilhantes, como se não houvesse amanhã. Sou doida pelos não horários, pelos não agendamentos e pelas não obrigações. Estas têm minha assiduidade e lealdade; amor, não. Tenho alma de fim de semana.

Todo o meu derramamento pela vida é uma imensa sexta-feira à noite, aliviada do que já se resolveu, e o fresco da manhã de sábado, amante do privilégio de não prever.

sábado, 23 de maio de 2020

Eu era tão mais velho

File:Grafite da Avenida Sumaré (Avenida Paulo VI), Vários artistas ...

Minha série favorita – juntamente com a adorada Criminal minds – é a também episódica Cold case, infelizmente suspensa há dez anos. Andou sumidinha aqui das telas, mas no mês passado a redescobri, com o coração dançarino, sendo reexibida pelo A&E, embora numa ordem ligeiramente caótica. Não me chateia tanto o caos, já que a graça da coisa é o eventual e não o contínuo; e uma das graças maiores da coisa está na música escolhida cirurgicamente para encerrar cada episódio. Pois então: foi flechada certa quando ouvi a "My back pages" de Bob Dylan, em versão The Byrds; paixão decisiva ao primeiro refrão: "Ah, but I was so much older then,/ I'm younger than that now" ("Ah, mas eu era tão mais velho então,/ eu sou mais jovem agora"). Significativamente, a canção arremata a história de um policial que foi assassinado por ser gay em 1968 – quando o mundo estava longe de começar a ter juventude suficiente para entender as questões mais básicas do amor. É episódio dolorido, doloroso, que ecoa na gente junto com os versos de Dylan e nos põe lamentosos de tudo que se deixa de ser enquanto o espírito (da época, inclusive) não está bastantemente remoçado.

Para quais atos e fatos já fomos velhos demais, sem frescor, sem leveza, sem a plasticidade do cérebro menino que se predispõe a adotar e aprender? Eu, por exemplo – para citar o lúdico –, durante a infância e a adolescência fui matusalém para montanhas-russas, e só em alegre vigor da adultice descobri que as adorava; primeiro em modo light, e em seguida, melhor ainda, com loopings suculentos. Aos 13 anos, talvez não me imaginasse fazendo arborismo; uma invertida de algarismos e lá estava eu, aos 31, caminhando lépida sobre uma corda a 18 metros de altura. Até mui recentemente, participar de manifestações era algo que eu não considerava, por temerário; pois no ano passado foram quatro, cinco, sei lá quantas entraram na conta, com direito a chuva, espremeção braba no meio do povo, fuga de bombas de gás. Até 2017, nem supor que eu pudesse estar um dia na lonjura, no desgaste, na confusão do Rock in Rio; ano passado, já que pintaram os passaportes para a experiência, tudo bem: vambora. Em dias, em minutos, às vezes em quantificações relógias que nem existem no sistema universal e só dão clique no despertador interno, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Finalmente celebramos o desaniversário certo, finalmente a troca de plumagem nos tira peso e dá a densidade adequada, enfim um chute abre a portinha enferrujada da gaiola e olha só: lá vamos nós, novinhos em folha. O medo era a pele antiga, saímos da crisálida com outra vibe, bem menos rastejantes, bem mais tendentes ao azul.

E ainda assim esse desdobrar de asas – esse que nos abre para festivais e montanhas-russas – não é suficiente para salvar vidas como a de Sean Cooper, o personagem morto em Cold case. Sean não precisava ser acolhido por gente que tivesse a molecagem de andar na corda bamba ou pintar-se de palhaço; precisava de um pai que se orgulhasse dele com a incondicionalidade que as crianças põem em orgulhar-se de seus pais – um pai que não o rejeitasse em nome de vergonhas corroídas de mofo. Sean precisava de colegas de corporação com a alma ainda tenra, sem dureza, sem espinho, sem rigidez, sem teia de aranha. Precisava de um amor com força de fênix autorrenovável, pronto para assumi-lo apesar de toda a ferrugem dos olhares e do sistema. Precisava (como todos precisam) cercar-se de corações macios, modernos, moldáveis, preparados para o aconchego, com a mesma receptividade sempre jovem dos animais e bebês, essas bolotinhas de amor. 

Acolher carinhosamente as novas experiências é coisa linda, acrescenta, mas não necessariamente jovializa. O que de fato coloca nossa biografia em modo Benjamin Button é acolher o outro: interesse no olhar, calor na voz, encantamento na escuta, o tempo sem correrias para a compreensão, o bom humor para a descoberta, a fofura de travesseiro para o abraço. Só isto salva a humanidade – amar-se sem destruir-se. Estar disponível como a manhã de sábado e não surda como a Inquisição medieval. Sem a curiosidade infantil de evoluir, ainda seríamos um bando de répteis que aceitam não ter luz só porque não é hora de haver sol.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Onze nazistas

Não Negativo Muitos - Imagens grátis no Pixabay

Diz um ditado alemão que, se há dez pessoas numa mesa, chega um nazista, senta-se e ninguém se levanta – então na mesa há onze nazistas. Adoro a simplicidade faca-só-lâmina desse ditado, que vai retinha na jugular e não deixa dúvidas, não abre margem de erro. Fascismos são como aquele vírus de filme que zumbiza as pessoas: uma vez feita a contaminação, o que existe de humano falece por dentro e sobra a bestialidade, a fome de destruição cega e surda. Ninguém fica parado na categoria "mais ou menos zumbi"; pode ser um autômato furioso ou aquele pasmacento que se mistura e segue a horda, se arrastando como imbecil. Pode ser zumbi ativo ou passivo, perseguidor ou estrupício: still zumbi. Ou bem você sangra, chora, pensa e o coração bate, ou bem as funções de vida se interrompem e o que permanece se limita à casca móvel. É-se zumbi ou gente.

Não estou aqui dizendo que fascista não é gente; estou dizendo que, dentro do universo "gente", é-se fascista ou não fascista – assim como, no grupo "mulher", ou se está grávida ou não se está. Não há fascista de Schrödinger, uma criatura que pode ter suas fascistices às segundas, quartas e sextas mas é o Martin Luther King encarnado às terças, quintas e sábados. O que pode existir (e existe com fartura) é nazista disfarçado, subnotificado, enrustido. "Puxa, mas o tio que sempre foi gente boazona, paizão pros meninos, alegria da churrascada agora é fascista porque fez uma piadinha de negro?" Não, querido: o tio fez uma piadinha de negro porque é fascista. Pode ser que ele não tenha consciência ou propósito, porém a convicção da superioridade de uma etnia já entrou ali, com carinha inocente, e já se naturalizou a ponto de suar pelos poros de uma piada. Considerando que vivemos em pleno e constante genocídio negro (João Pedro e João Vitor ainda ontem estavam aqui, e hoje são duas vítimas desse inferno ininterrupto), com que possível tranquilidade d'alma, com que nível aceitável de ignorância se ri de pessoas historicamente assassinadas, perseguidas? Se o mesmo tiozão viesse em forma de alemão dos anos 30 e contasse anedotas de judeu em seus salões, quanto você demoraria para reconhecer nele o nazista que nos acostumamos a identificar só de longe, em outros tempos, outras plagas, outros filmes? Sim, amado: não é preciso portar a suástica no braço para tê-la na ideia. Regimes de horrores não se constroem só com os que atiram na testa de alguém; são necessários muitos mais que estejam devidamente confortáveis para testemunhar, relativizar, normalizar e, eventualmente, ironizar o absurdo.

Não significa que nunca mais nos sentaremos à mesa com familiares, conhecidos, colegas, clientes e demais relações compulsórias (excluo aqui os amigos e amados porque esses a gente escolhe, né, fofos?), no caso de essas pessoas estarem infectadas pelo germe maldito. Significa, sim, que nunca mais nos sentaremos à mesa com seus pensamentos, falas, conceitos, piadas, posições, atitudes malditas. Significa que não dividiremos o ambiente com o fascismo existente nelas sem escancará-lo, sem pô-lo a nu. Não ouviremos brincadeirinhas homofóbicas, machistas, racistas sem pedir docemente que o interlocutor as desenvolva com explicações detalhadas – até que se engasgue, roxo, com o refluxo do injustificável. Não sorriremos amarelo ante a insinuação da barbárie; não compactuaremos nem com o mais leve elogio do extermínio; não fugiremos, por preguiça social, de espremer a afirmação cruel a ponto de a vergonha alheia rebentar em pus. É compromisso matrimonial com a humanidade: tornar óbvio o quanto a exclusão é cafona, botar holofote e ridículo na total falta de nexo dos recalcados, gargalhar da burrice que rejeita a ciência, relacionar as bravatas do macho branco a toda uma série de incompetências íntimas. Ideário fascista é uma Hidra de Lerna que se degola, crema e enterra, sem mais. Qualquer toleranciazinha faz as ramificações rebrotarem na deep web do tempo.

Os que têm como foco a destruição do outro não tiram férias. É nossa obrigação moral garantir que o curso da História os demita.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Para João Pedro

Rosa Flor Seca - Foto gratuita no Pixabay

João, você não teve tempo nem coração de se preparar para deixar um mundo que ainda conhecia tão pouco. Era muito, muito cedo, e a inocência se espanta sempre (nem há como ser de outro modo) com o míssil da injustiça que não deveria chegar nunca. Lá estava você, em casa, fazendo o que se espera durante uma pandemia, quando de repente foi baleado pelo choque de isso não ser suficiente; você era pobre, era negro, João, e por isso prévia e ancestralmente condenado em nossas terras, caçado por um Estado que nem sabia quem era você – nem ligava. Você não entendeu nada (ou entendeu absolutamente tudo em três segundos, o que é ainda pior), não sabia que fazia parte de um projeto bem anterior a você e até àqueles homens, não tinha antes se dado conta de que nossa história genocida não espera a presa ir à rua: o carrasco de hoje vai buscar almas e corpos pretos em casa, para destruí-los, da mesma forma que ia buscá-los e destruí-los em seu continente materno. Você não compreende, João; nem eu; ninguém compreende, porque não existe lógica no ódio. O ódio é justamente a resposta dos que não argumentam – apenas babam, grunhem, rosnam, destroem. O ódio é um inferno não verbal que não poderia ser compreensível para seu coração de criança que vivia dando orgulho a seu pai.

Sim, você era criança entre as crianças até a polícia chegar, mas, no momento em que ela entrou, abateu sua infância antes de abatê-lo; você já não era um dos pequenos, era o jovem que precisava garantir vivos a si e aos seus, em puberdade incompatível com a natureza. Eu só posso imaginar sua dor simultânea de tentar proteger e de constatar que você não seria protegido. A solidão dolorosa desse primeiro e último golpe de vida adulta, desse susto feroz misturado com a confusão infantil de não ter seus pais ao lado enquanto você era obrigado a se despedir de tudo: o improviso mais perverso com que se pode estrangular uma existência. Num relâmpago, num instante de granada, num átimo de absurdo social, aquele mundo inteiro que só começou a germinar num peito de 14 anos foi esfacelado pela raiz – pelas raízes. Não sei o que você queria ser, João (talvez médico, talvez guitarrista, professor como sua mãe, escultor, descobridor de vacina ou um monte de coisa ainda não suspeitada nem sentida); porém, embora não o conhecesse, sei o que você era: a doçura, a juventude, a inteligência, a promessa, o potencial de construção borbulhando nas veias, o dom que só você tinha e ninguém repõe, a memória de um jeito de rir que não cabe no álbum, a música preferida cantarolada pela voz que fica ecoando, o delicado processo acompanhado e celebrado com mais de dez bolos de aniversário, o sonho de alguém. O amor da vida de alguém.

João, nós nunca nos encontramos e eu não sou capaz de, apenas pela vontade, desfazer as maldades do mundo; mas eu espero humildemente que você aceite e receba o meu desejo de abraço retroativo, e pelo menos a ambição da acolhida de amor que um país inteiro ficou lhe devendo. Eu sei, não podemos nos redimir com você em nada, porém podemos semear e polinizar dia e noite a paixão de proteger outros Joões, outras Ágathas, outros primos e irmãos seus, outras crianças como você foi e como os seus filhos que nunca serão. Não lhe foram dados anos suficientes para criar uma família, e jamais saberemos quantas gerações deixaram de existir com a sua ausência; só no resta devolver simbolicamente o tempo que lhe foi amputado, plantando os anos que ainda temos nessa luta, nesse compromisso de vida. Não temos mais o seu tempo para ressarci-lo, mas temos o nosso. Que ele floresça em benefício de meninas e meninos como você, João. Que emperremos, enferrujemos e (talvez um dia) quebremos definitivamente o sistema genocida que nos rege, para que mais nenhuma história seja devastada. 

Os brasileiros pedimos perdão, João; mas o Brasil não tem desculpa. Cada brasileirinho como você é o que temos de belo, forte, impávido colosso. Cada tombar desses brasileirinhos nos escancara como o borrão da América.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Nem que o mundo caia sobre mim

Still Waiting For My Train | Henry Burrows | Flickr


Cantarolei no modo aleatório aqueles versos do Lupicínio – "Nunca,/ nem que o mundo caia sobre mim,/nem se Deus mandar, nem mesmo assim/ as pazes contigo eu farei..." – e fiquei automaticamente pensando em quais seriam os meus nuncas. A primeira ocorrência vem logo das entranhas: eu nunca, nunca, nunca! daria qualquer espécie de apoio a essa fábrica de aberrações que agora nos governa. Nunca trocaria nem aperto de mão, nem aceno de cabeça, nem o mais ligeiro bom-dia com o Voldemort-em-chefe, pela simples razão de que não respiraria por dois segundos o mesmo ar – a não ser que eu depusesse contra a criatura num tribunal internacional, com grandes exclamações, requintes e demoras. Mas não, também não o deixaria morrer sem atendimento, se dependesse de mim. A força de humanidade, creio, se sobrepõe a qualquer memória de desumanidade, nojo, desprezo, rancor. Eu o socorreria, sim, que não sou desses Comensais da Morte que o servem.

Fica implícito, pelo parágrafo anterior, que eu nunca permaneceria a menos de cinco galáxias de distância de nenhuma suástica, capuz da Klan ou camisa verde-amarela de mesma laia. (Aliás, nunca torcerei pelo Brasil com esse agora uniforme de capitão do mato, maldito por todo o sempre.) Nunca endossaria qualquer tipo de preconceito – e esse não endossar implica nunca tolerar os intolerantes. Jamais renegaria a minha fé – e esse não renegar implica jamais me agregar aos que segregam. Eu jamais trairia. Jamais teria opiniões de encomenda. Jamais entraria em esquema de propina. Jamais maltrataria um animalzinho, incluindo os de nossa espécie (OK, não posso prometer muita coisa com relação a baratas, formigas e assemelhados; mas estou tentando, estou tentando). Jamais usaria um casaco de pele legítima, JAMAIS caçaria se a morte não fosse a única alternativa – embora eu ainda consuma carne e ainda tenha no armário algum cinto ou bolsa de couro. Estou tentando, pô.

Para subir a esferas mais leves, posso jurar que nunca vou acampar voluntariamente em regime de "ó, o banheiro é ali no mato". Me recuso sequer a pensar em comer algum acepipe que Timão e Pumba comeriam e que ainda esteja se mexendo. Nas novelas, eu não seria o personagem imbecil que cede à chantagem, e escancararia logo o segredo pra geral (eu, hein; sou bagunça? Sem tempo, mano). Nas ficções teen, eu não deixaria o colega "esquisito" da sala desabraçado e descarinhado – por sinal, os outros é que são esquisitos. Em nenhuma realidade oficial ou paralela eu seria craque em esporte, xadrez, sudoku, videogame; nem beberia até transtornar as ideias; nem seria tomada pelo encosto do ciúme a ponto de escarafunchar redes e roupas do crush, assim como sob NENHUMA hipótese aceitaria o ciúme de quem quer que fosse. Nunca, nunquinha mesmo, jamé. E não trocaria de time, não usaria salto agulha, não fumaria, não furaria a orelha, não me hospedaria num hotel de gelo, não aprenderia a dirigir, não dormiria em barraquinhas à espera de ingressos ou de ídolo algum (não, nem se eu tivesse filho e ele ensaiasse uma greve de fome), não faria plástica just because, não escalaria Everests de nenhuma altura, não pisaria num clube de tiro, não tocaria sequer numa arma de fogo. Asco. Horror.

Há nuncas que não posso lavrar em cartório: fazer tatuagem, voar de ultraleve, mudar de país e outras tantices. São improváveis, mas não a ponto de jurar em tribunal. Barreiras de medo, cisma ou desinteresse podem cair com o tempo, molinhas – e é necessário e saudável que haja espaço para muitas simpatias se abrirem. O que nos revolve nas profundezas dos princípios, no entanto, não está em negociação, e não se supõe que devamos fraturar o esqueleto que nos forma em nome de qualquer mindset desconstruidão. Sou esvoaçante, gulosa de vida, curiosa, adaptável, amiga de experiências felizes e seguras; mas abrir mão de uma paz convicta só por quererem me colonizar com alguma necessidade importada?

NEVER.

terça-feira, 19 de maio de 2020

O amor nasceu ontem

Banco de imagens : luz, vidro, cabo, linha, verde, cor, Trevas ...

"O meu amor nasceu ontem. Eu nasci um segundo depois." (Miguel Esteves Cardoso)

Sim, nosso amor nos antecede; nem que seja por um segundo, tem de ser mais velho que nós para fazer nosso parto. Pode-se nascer sem o colo do amor do outro, sem ter sido projetado e desejado, mas não se nasce sem desejar. Pensar em nascer sem desejar é como supor que um novo humano vá sair do ventre e automaticamente flutuar, sem precisar de berço; que não necessite de uma razão que o acolha, de um objetivo que o aconchegue. A possibilidade, a sina, a destinação de amar – como queiram – é a nossa gravidade. É o amor que nos pousa.

"Ah, mas há seres que não amam." Há sim. Uma coisa, porém, é não terem ainda endereçado essa pulsão ancestral de amor para nenhum algo ou alguém, e outra é não terem a tal pulsão. Isso é impossível, tenho para mim que francamente impossível. Mesmo os psicopatas, ainda que sejam realmente incapazes de amar, não creio que consigam escapar ao menos da febre ou da faísca de desejarem ser amados; mesmo um cérebro aleijado de empatia será assombrado sempre pela aflição de querer – senão a de se dar, no mínimo a de ser recebido. Está preso à nossa condição um gatilho de preservação para além de nós. Nascemos cofres com uma ou mais chaves perdidas, e sem a perspectiva de uma abertura não nos justificamos. O que guardaríamos tanto para nós, se o tão guardado não tivesse uso?

Nosso amor, nossa causa, nosso alvo de vida, nosso recipiente para transbordamento, nossa vaga de estacionar uma alma saltitante, nosso motor, nossa explicação, nosso destinatário – abre os olhos antes que nosso coração homo-sapiano abra os seus, para que esse pobre e recente coração seja convencido a bater. O caminho não é decidido, mas a fome da caminhada é compulsória. Nascemos com a paixão do percurso; as hipóteses já estavam lá para nos pegarem no colo e nos serem madrinhas, as sereias já cantarolavam nosso tema de abertura antes da inauguração, a sedução que nos injetaria a fúria da vida foi nosso primeiro sopro e já nos fez entrar no mundo com choro e gana. Não somos só pessoas, somos perseguidores.

O que escondem, não raro, é que muitas vezes somos barquinhos encarregados de construir seus faróis.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Apesar

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Não parece – porque estamos com a nossa jangadinha num Atlântico de novas ansiedades e de notícias deprimentes –, mas tem coisa boa colorindo o mundo; mesmo o Brasil, esta última estação antes de Mordor (inclusive na temperatura). Eu sei, isso não nos consola totalmente nem põe a nocaute o Kraken fascista que quer nos merendar, mas dá uma força. Até porque, de acordo com o otimismo orgânico que é minha mais enraizada teimosia de vida, é matematicamente impossível que eles sejam maioria. Se os "krakeners" (os destruidores, os devoradores de universos, os gananciosos de divisão e morte) fossem maioria, já não tínhamos planeta. As anacondas mais vorazes são em geral as mais ricas – consequentemente, as mais raras; embora levem o Thanos na barriga e tendam a colecionar todas as joias, são numericamente inferiores às almas protetoras. Não, a destruição não é inevitável: nós somos homens e mulheres de ferro. 

Olhem só. Apesar de toda a propaganda, os clientes estão fugindo do Madero, aquele restaurante que tem um ótimo hambúrguer e um péssimo dono. Apesar de todo o jornalixo de grande empresa praticado em nossas terras, surge de repente uma potência luminosa em forma de Gabriela Prioli, que torce, mastiga, janta e faz passar vergonha no debate qualquer heil-hitlerzinho que lhe ponham na frente. Por sinal, a mesma Gabriela Prioli começa a fazer a querida Anitta e seus seguidores entenderem um pouco mais de política, compreenderem a grandeza e a importância de ter um posicionamento. E a mesma Gabriela Prioli integra a equipe de O mundo pós-pandemia, conversa das noites de sábado na CNN, sempre com entrevistados deliciosos que acendem um lampiãozinho no coração. 2020 is a bitch, mas já estaria perdoado nem que fosse só pelo advento de Gabriela Prioli.

E nem só. 2020 colocou cervos descansando sob cerejeiras no Japão – uma cena em que eu cobiço viver e pousar como meu novo endereço. 2020 pintou quadros fofíssimos de demais animaizinhos recuperando, curiosos, os espaços que temporariamente abandonamos. Mulheres brasileiras de 2020 também cultivaram espaços de amor e beleza, criando grupos nas redes sociais em que se apoiam, se fortalecem, pagam-se contas recíprocas, trocam serviços, se abraçam em depoimentos. Crianças de 2020 inventaram ajustadores de máscaras (para que o EPI não aflija as orelhas dos profissionais de saúde), desenvolveram a "cortina do abraço" (para que avós sejam convenientemente amassados contra o peito sem risco de contágio). Pessoas de 2020, em geral, passaram a fazer compras para vizinhos antes desconhecidos, bateram palmas nas janelas para heróis antes subestimados, deram online um suporte psicológico gratuito para os angustiados, teceram amizades improváveis mesmo entre distâncias proibitivas, penduraram em varais máscaras novinhas para a colheita, uniram-se em ONGs que alimentam, disponibilizaram hotéis, tocaram violino nas varandas, botaram todo o condomínio em aulas de ginástica presenciais mas remotas. A maioria ama, se importa, se comove, compreende o importante mesmo que não capte o científico, colabora, auxilia, empatiza. A maioria continuará seguindo a evolução – essa, sim, inevitável – que, a despeito de todos os espécimes frustrados, nos empurra como gente.

Estamos aqui, ainda somos nós, apesar de 2020. Resta saber o que ainda seremos por causa dele.

domingo, 17 de maio de 2020

Internamente

cadeira, cátedra, descalço

Se há um troço bonito no confinamento, é o fato de as pessoas ficarem reduzidas à sua forma mais simples, como as frações. Não a mais simples de mais simplória, e sim de essencial – essa coisa tão linda. De repente foi descoberto que você é perfeitamente capaz de pensar e trabalhar usando uma samba-canção do Mickey, em vez de dois sufocos de manga comprida e um pedaço de pano amarrado no pescoço. De repente você é competente descalça e com o rosto pintado só de luz; incrivelmente, não há qualquer necessidade de se equilibrar a 15 cm do chão, até pelo contrário, já que o cérebro pode dar seus passos sem lidar com um bizarro desvio de foco. De repente os ouros e pérolas ficaram na gaveta, tolos, inúteis, só mais uma tranqueira a ser desinfetada em caso de saída. Pedaços de pano bem basiquetes, sim, riem da cara dos diamantes na condição de acessórios do momento  embora nunca, em hipótese alguma, amarrados no pescoço. 

Não desgosto de enfeites ou da rotina de pensar a roupa para outrem: a blusinha temática de mandar mensagens, a alegria quase infantil de estrear um colar fabuloso. Divertido. Mas sou professora; meu dress code é fluido e vário, ninguém me cobra saltos que não sejam de fé, ninguém me faz passar as maledettas mangas compridas  só passo matéria e exercício , deixo pros boletins o vermelhinho que não uso nos lábios. Pelo menos ESSAS amofinações não pesam sobre uma classe já naturalmente amassada e descabelada. Fico pensando mais nas carreiras atochadas pelas mil regrinhas de superfície, esses nhenhenhéns da "boa apresentação" profissional, que queimam mais tempo, conforto e calorias do que os neurônios gostariam de admitir. Com a eliminação momentânea dos escritórios, o que conta, o que fica? Ficam só as ideias, as palavras lançadas com ou sem batom, digitadas com ou sem esmalte; ficam as sinapses firmes e fortes, mesmo de pijama. Ficam as essências desmascaradas do artifício. Só as inteligências. Os talentos. As emanações.

Sei: é um pensar romântico, tio Platão estaria orgulhoso, mas a coisa não é tão plana assim. Não é, claro. Still, por mais que a quarentena nos chateie e tire de nós a sociabilidade que nos humaniza como espécie, também (re)força a autoconsciência que nos humaniza como indivíduos, uma vez afastados dos personagens para consumo externo. Se cada um de nós costuma ser pelo menos dois  uma pessoa de andar em casa e outra de sair , neste instante praticamente só nos resta o eu mais íntimo, para alívio das almas quietas e transtorno das derramadas. Evidentemente, há as casas (não poucas) em que o eu está íntimo mas não está isolado, as casas em que muitas individualidades atropelam suas aflições, as casas em que sequer existe o luxo de uma mudança de realidade. Falo aqui especificamente, porém, de um mundo classe-médio que está se confrontando na marra com o ridículo de seus consumos, com o patético de seus códigos, com a piada de suas etiquetas, quando a primeira coisa que se faz é arrancar o supérfluo ao primeiro sinalzinho de apocalipse.

2020 nos ensina dando livradas de capa dura na cabeça, como o professor Snape, mas consegue passar lá suas liçõezinhas  que enxergamos porque não sobreviveríamos de outra forma. In the end, the love you take (de si próprio, inclusive) equivale ao que você vem a ser ou continua sendo sem janela, sem live, sem treino, sem uber, sem story, o gosto que fica quando o volátil evapora, o noves-fora de toda a construção de dentro. Você  você realmente  é o que sobra após o contexto e a plateia.

sábado, 16 de maio de 2020

Distraídos morreremos

Iceberg São João - Foto gratuita no Pixabay

Num meme que andou passeando recentemente pelas redes, alguém suspirava que não queria mais ser testemunha ocular da História: muito exaustivo. Não posso discordar. Os que nascemos entre a rabeira do século XX e as primeiras manhãs do XXI vivíamos simplesmente encantados com a mansidão de estudar História nos livros; nossos choques eram distanciados, seguros. Peste bubônica matou a Zoropa toda? Nossa, que horror, felizes de nós que não crescemos entre a ratalhada do mundo medieval, aquele período remelento. Crash da Bolsa? Que droga, hein; força aí, gente. Fascismo, nazismo, ditadura? Misericórdia, QUE TIPO de povo pode ter deixado isso acontecer??? (interrogações, interrogações etc. etc.). Ainda bem que estamos isentos, ainda bem que nossa era é outra, esperta, evoluída, tecnológica, estável, de uma normalidade quase tediosa. Quando éramos crianças, História era coisa já ida e feita; não morta, mas sonolenta, em seu transcorrer de papel no qual não parecíamos estar inseridos. No máximo um Plano Real aqui, um advento de iPhone ali: abalos episódicos que sacudiam sem revirar as entranhas.

E aí 2013 nos deu aquele primeiro susto arregalado de filme-catástrofe, godzíllico como a tsunami cuja gestação não se vê, não se suspeita. Ainda dopados de infância e adolescência, batemos no iceberg e ele nos rasgou. Não nasceu ali de madrugada: sempre ali esteve, imenso, uma inevitabilidade surda. O portal nos atropelou com sua paciência de esperar que caminhássemos para ele, e engoliu como não engoliria se entendêssemos de leme – se apenas tivéssemos nos dado ao trabalho de crer que é preciso ter sempre um plano B contra monstros que engordam no silêncio e na calmaria. Vieram outros anos e seu ciclone de horrores, suas Cilas e Caríbdis que iam acordando em cada quarto do inferno, e nós chocados, indefesos, negacionistas, as entranhas finalmente reviradas, o coração demoroso de entender que nunca estivemos protegidos, nunca houve garantias, nunca na aventura humana existiu navegação serena. Inocentes de nós, que somente nascemos na entressafra e não tínhamos ainda presenciado a troca da guarda. 

Mas está aí; o fato se impondo, o mundo esfregando na nossa cara que é sobre nós que os futuros alunos lerão (provavelmente resmungando: que gente burra), o roteiro do filme sendo impiedoso com os que já tiveram tempo de perceber que deu ruim mas insistem em permanecer na cadeira de balanço, empaspalhados, sem fuga nem reação. Se PELO MENOS a ficção se coçou para tentar ensinar o mínimo a toda uma geração de distraídos, foi que: os egoísmos sempre agravam qualquer ameaça; os egoístas costumam ter a cabeça comida primeiro e ser os primeiros esquecidos pelo público; existe um protagonismo ardente em quem age, mas ele só se torna possível com a assessoria de quem estuda e analisa; o monstro que acreditamos mais improvável é o que mais tempo tem para se fortalecer nas sombras; as histórias contadas por pais e avós vão fatalmente repetir-se em escala Júpiter; os paralisados de horror não terão a folguinha do coffee break: ou descongelam ou se veem (junto com os seus) destruídos. Toda a bananice que desprezamos num personagem é a mesma que precisamos desprezar em nossos egozinhos bocejantes e nossos entendimentos incompletos. 

Alecrins dourados de uma era de transição, achávamos que era tudo literatura, cinema, spielberguice. Quem diria: era workshop.