terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Enquanto você não vem

No sábado de carnaval, o jovem Igor Bezerra foi (de carro) pular todas em Petrolina. Estacionou nas imediações da pipoca, pulou todas e voltou às duas da madruga, quando notou, desgostoso, que o vidro do carro estava aberto. “Danou-se”, qualquer um pensaria. E, de fato, tinha sumido a bagulhada completa: celular, óculos escuros novinhos, duas camisas, perfume, documentos, comida. Ficou só um bilhetinho, cujo teor não sei mas que abespinhou os ânimos do moço; provavelmente algum “vou guardar tudo para você enquanto não volta” ou coisa que o valha, já que o rapaz foi para casa na certeza de que o ladrão ainda tripudiava sobre seu descuido.

Ao chegar à sweet home, Igor foi recebido pelos pais, que haviam ligado para seu número e papeado com outro sujeito – e eis que o tal sujeito jurava ter visto o carro com o vidro escancarado e, junto com a mãe e a namorada, decidido retirar os pertences para que não fossem furtados. No dia seguinte, lá foi Igor (acompanhado de dois amigos, ainda no receio de um golpe qualquer) encontrar o bom samaritano e suas companheiras. Não só recebeu absolutamente tudão de volta como ainda ouviu da mãe do rapaz, ao tentar oferecer-lhes uma recompensa em dinheiro: “De jeito nenhum, vá e faça isso por outra pessoa”. The (happy) end.

É mais uma daquelas histórias que enfofam o dia, e mais: alertam que a generosidade reativa nem sempre é suficiente. Pode não bastar a simples cessão da esmola, da bengala, da força, da ajuda solicitada; pode não ser eficiente apenas dar, pode ser preciso oferecer. Não retirar a responsabilidade do outro, mas completá-la. Zelá-la. Assessorá-la. Ter a finura atenta e atenciosa de quem previne os males malandros para que não seja mais custoso corrigi-los. Voluntariar-se como HD externo do bem-estar alheio, primeiro-ministro do interesse que é nosso porque é do outro, elo devotado que protege a corrente na integridade do elo vizinho. Quanto mais circulamos pelas lacunas do não dito, mais a roda coletiva gira azeitada. Somos todos filhos, afinal – e filhos carecem de rotas independentes na mesma medida em que demandam lanternas que as instruam.

Enquanto o aluno não acorda para o essencial que somos, deixemos em sua caixinha de memória o cabedal para futuros saques. Enquanto o humano certo não chega tomado de ternura adotante, conservemos feliz o filhotinho que será sua alegria. Enquanto o funcionário atravessa o tornado que não lhe permite ter o desvelo de sempre, mantenhamos seus bons créditos de confiança rendendo juros agradecidos. Enquanto o pródigo não retorna de sua temeridade, cuidemos do quarto arrumadinho e do talher que espera na mesa. Enquanto a mãe ou pai sumido não devolve sua incondicionalidade ao pequeno que aguarda, reguemos no pequeno o amor que respeita, aviva e perdoa. Enquanto o primo não regressa de viagem, que as plantas se sustentem verdinhas. Enquanto o afilhado não cresce, que sua herança se desenvolva frutífera. Enquanto os olhos do bem-querer não nos descobrem, que os detalhes secretos e sagrados morem sacramentados em nosso álbum mental.

Não o acaso, mas o amor é que nos protege e resguarda o que vale até que deixemos de andar distraídos. E depois.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Saturações

Fiquei encantada ao saber, por um vídeo simpático, que a empresa americana EnChroma desenvolveu óculos que dão aos daltônicos – mais especificamente, aos daltônicos que têm a famosa dificuldade com vermelho e verde – o acesso a um whole new world de bonitezas. Segundo o vídeo, “as lentes usam um filtro que corrige a saturação entre essas cores [as duas de praxe] e lhes permite observar todas as tonalidades”. Até onde me lembro, não convivo com nenhum descromático, mas tomei pessoalmente a coisa: amo cores demais, até a loucura, e tenho peníssima de não estarem lindamente atingíveis a todos. Tudo bem que os óculos não fazem milagre de eficiência, não botam sempre as mesmas tintas em cada par de olhos, não “curam” ninguém; são, porém, uma ajuda fofa e alvissareira (vocês não adoram dizer “alvissareira”?), que amplia largamente as percepções. Bem-vindo seja aquilo que expande o mundo.

O problema, em verdade, é que as lentes mágicas só são vendidas na categoria “olhos de fora”, o que considero intolerável. É maravilhoso se jogar na paisagem e admirar true colors shining through, mas o que fazer com os legítimos deficientes visuais – aqueles que, tendo todos os fotorreceptores para ver, não veem? Que filtro vestir em quem recebeu clarões na escola, mas não decodifica ideias; em quem consumiu vitamina A de Acesso a estudo, internet e leite Ninho, mas não distingue interjeições de argumentos; em quem passou no exame de vista social do Enem, mas é profundamente cegão para as realidades múltiplas? Cadê cirurgia de Q.I. que ajude os desorientados a organizar seus espectros? Cadê transplante de córnea mental que guie os pensamentos extraviados até um eixo de razão humana?

Tem bombado por aí uma ruma de não daltônicos incapazes de ver nuance e de ver clareza. Uma turma que consegue, por exemplo, descortinar no tapete vermelhão do Oscar – um dos maiores prêmios da INDÚSTRIA – o complô ultraesquerdista radicomuna que visa a arrancar o planeta das mãos da branquitude, já que dá os louros (com trocadilho opcional) a um filme de elenco negro. Um povo doido que vê miragens de perseguição quando uma minoria alcança o que ele mesmo sempre teve. Uma gente descompensada dos nervos que percebe discordâncias de pensamento como rejeições pessoais. Umas toupeiras míopes para as feridas dos longínquos e hipervisuais para os próprios arranhões. Uns obtusos vendados para a corrupção que lhes sapateia na cara e clarividentes para especulações a respeito dos desafetos. Uns encataratados diante das necessidades que moram além de seu quintal; uns linces diante dos quereres que estão à distância de um umbigo. Vistas cansadas demais para a lógica e arregaladas para a tolice. Morcegos para o erro próprio, águias para o alheio.

Exaspera e desespera lidar com o daltonismo filosófico, cotidiano e moral – e por isso deixo aqui meu apelo aos cientistas para que se dediquem, amorosamente, à resolução dessas cabeças destunadas. Umas lentes de contato imediato com a vida, uns colírios de desembaçar preconceito, umas gotinhas de dilatar empatia, até um curvex de dobrar arrogância tá supervalendo. O essencial é que o essencial também seja visível aos olhos.

Tudo acerta o alvo se o coração ajusta o foco.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Confete e serpentina

Ele é ponto, ela é traço – ou vice-versa. Um é a objetividade refletida, direta, que pousa inteiro onde está, que está inteiro onde fica; o outro é a subjetividade desvairada que tudo abraça e envolve, tudo ao mesmo tempo olha e inclui. Um não tem paciência social, festeja exclusivamente o que é festejável e nunca se estica muito para longe de seu centro. O outro bota uma perna em cada polo do mundo e não há nada em que não se enrosque: é malandro no trato, sedutor no chamado e ambicioso de gente. Um pode andar em bando, mas importa pouco, porque sua individualidade mansa e feroz o faz solitário quase à revelia. O outro pode ser uma criatura que se basta na capacidade, porém não é coisa nenhuma sem que sua amplidão prenda algumas vítimas – várias, de preferência. Um não está apto para a dilatação pessoal; o outro não tem limites reais nem interesse em amarrar as pontas, só mantém o foco em derramar-se.

Conhece um e outro? amigos? casal? Também. Mas eu diria de um jeito mais chutador de baldes: um e outro somos nós.

Somos confete quando a expansão, qualquer expansão, nos cansa: decoramos o estrito para a prova e não absorvemos o global para a vida; pagamos o tributo de amizade sem enfado, mas sem juros; aprendemos as operações do caixa eletrônico para resolver a rotina com o mínimo de interação humana. Somos serpentina quando tudo que não é expansão nos aborrece: baladinha melosa não vai pro fone, o sacrossanto lar começa a parecer abafento, a cócega das viagens e cachoeiras e montanhas-russas e arborismos nos agita o travesseiro. Somos confete quando, embora iguais, pairamos desunidos: temos o mesmo peso e relevância, mas não temos mão para estender, e o vento sopra um a um para o isolamento e a desproteção. Somos serpentina quando estamos tão ávidos de unidade que as individualidades somem no laço, desaparecem no todo esperando que o todo nunca se rasgue. Somos confete quando celebramos amorosa mas pontualmente; somos serpentina quando cruzamos um quarteirão emocional atrás da inclusão de tudo. Somos confete quando festejamos a meta alcançada; somos serpentina quando nos deliciamos no trajeto percorrido. Confete, quando os olhos acarinham a distância do agora. Serpentina, quando o cavalo doido dos sonhos se desamarra e só volta exausto, suado de correr a esmo pelo que nunca foi.

Sim, tudo cabe nas gavetas da mesma pessoa com a diferença, às vezes, de instantes, e nem por isso há casos humanos de combustão espontânea. Sim, existe em nós fartura de espaço para o eu fixo e o eu extenso, a moderação e a sede, a preguiça e o entusiasmo, o assentimento e a sofreguidão. Somos o baile de ingredientes que sambam, somos mais de mil pedaços no salão, somos o pierrô que chora pelo amor da colombina e o saçariqueiro que leva a vida no arame, somos a mulata bossa nova e a maria escandalosa, somos o chá com torrada e o parati, somos o que dá dois suspiros e o que pega touro à unha. Cabemos todos – confete, serpentina, lantejoula, pandeiro, harpa, gravata, chinelo, peruca, purpurina, abajur, lareira, violão – nessa avenida antropofágica de eus que nos atravessa, que nos desfila. Médicos, monstros, bailarinas, canibais: eis-nos. Felizes de nós se é só por fora que envergamos a fantasia.

(E, tendo dito, por ora muitíssimo com licença; vou deixar-te agora, não me leve a mal. Hoje é carnaval.)

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Pelo menos

Aconteceu de novo (abençoada frequência!): história fofa de amor explícito. Trabalhando num abrigo de pets nos Estados Unidos, Heather Hayes conheceu uma chihuahua velhinha e doentinha, que ninguém adotava – e que só teria mais um dia de vida, os veterinários alertaram. Heather deu de ombros: “Pelo menos, ela será amada por 24 horas”. Mergulhou nessa com o marido e constatou, surpresa, que a bichinha ia vivendo ia vivendo ia vivendo: começou a precisar de um nome para continuar acessível a todos os afetos. Os Hayes batizaram a nova filha de Jay-Z, e – pequenos milagres da alegria – estão até hoje, quatro anos depois, acompanhados de sua vidinha frágil mas teimosa. Jay-Z simplesmente se recusa a morrer: tanto demorou a ser amada que 24 horas lhe pareceram de uma insuficiência ridícula. Quer mais, muito mais; mas quer mais justamente porque alguém se abalou a garantir-lhe o “pelo menos”, a consumação mínima de amor que faz uma criatura garrar apego na existência.

É isso que devemos a quem quer que seja: pelo menos o amor mínimo. Se forem apenas três minutos de compreensão e calor entre o primeiro encontro e o último suspiro, nem por isso deixa de nascer um interminável de memória que tudo preenche e ressignifica. De morrer haveremos todos, mas que morramos amados – e amando; que mesmo um percurso miúdo se faça com ternura de classe executiva; que em assegurar uma pequena eternidade de conforto não sejamos econômicos. Volta e meia, só temos a ligeireza dum abraço para jurar uma presença definitiva: que seja um tão extremo encostar de peito a ponto de cada um, na confusão de ir embora, levar o coração do outro. Às vezes sobra um minutinho de nada entre ois de rouxinol e tchaus de cotovia: que se faça a mágica da incondicionalidade em cada segundo de pele. Aqui e ali, escapa um café clandestino no meio do expediente: que o colega sinta seu dilema queridamente amparado entre os olhos unidos e o chamado do chefe. Cá e lá, acontece um fuga de lua de mel feriada: que os braços virem nuvens recíprocas, que só as vozes mutuamente confinadas sejam a melhor playlist. Que as noites de jogo com o filho se façam Disneys, que a visita apertada aos pais se torne Paris, que os cinquenta minutos de aula pulsem como Harvard, que as horas acompanhadas na sala de espera passem como brisa. Que seja leve e quente e infinito dentro de cada areiazinha de tempo duro.

Que sejamos, pelo menos, imortais em nosso posto quando alguém nos chama.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Minha ternura dentuça

Ainda Manuel Bandeira – que, no hilário “Poema para Santa Rosa”, fez o eu lírico dizer à amada levemente resmungona: “Meu bem, minha ternura é um fato, mas não gosta de se mostrar:/ É dentuça e dissimulada”. À moda de Bentinho, eu não sabia o que era ternura dentuça, mas dissimulada sabia, e entrei a pensar se a minha podia se chamar assim. Concluí que sim, minha ternura é um tanto capitumente dissimulada, porém ainda mais dentuça talvez – se por “dentuça” Bandeira quis designar aquela afeição discreta e sobriazinha em público, como a menina vexada que evita o sorriso aberto e é avessa à exibição.

Definitivamente não sou do grupo dos melosos, dos que falam teletubês com o parceiro diante de plateia, dos que gritam apelidinhos dantescos ou derramamentos de carícia aos quatro ventos, dos que telefonam para dizer boa-noite, dos que entram em guerra açucarada para decidir quem desliga primeiro (por sinal, tenho ganas de fazer a cada telefone do mundo o que Julieta fez a si mesma, ao ver Romeu defuntão). Não esperem de mim, na amizade inclusive – e na irmandade, e na filhidade –, o cumprimento do velho manual I-just-called-to-say-I-love-you; uma sopa de timidez, pudor estético e alergia ao clichê me proíbe horrorizadamente. Amores, não vou ser nunca a que compra caneca “melhor pontinho pontinho pontinho do mundo”, almofada de coração, camiseta com foto ou nome de gente querida. Não vou fazer tatuagem de grupo, não vou usar metade de pingente que encaixa na metade alheia. Minha ternura gauche, dentuça e esquiva não curte ser a que se aguarda.

Gosto do que irrompe sem se aguardar, presentes sobretudo. Tenho carinho especial pelos mimos que entram na ordem do inesperado e desnecessário – que encanto tem a escolha do puramente desnecessário! Minha primaverice d’alma exige que eu cubra os amados do supérfluo, que lhes dê o que não se dariam, que os investigue e os pressinta pelas beiradas, pelas frestas. Não calha de acertar toda vez, mas me representam mais essas mostras desenjauladas e ariscas do que toda e qualquer manifestação padrão que bate ponto na catraca. Sou incatracável; amo substituir um dos beijinhos da praxe carioca pelo abraço de esmagar costela, mas me deixe sempre as mãos livres, me deixe catucar dedos, unhas e papéis à minha vontade e ao fluxo do pensamento. Amo o que pode ser escrito, o que foge ao falado, mas não me peça incluir WhatsApps porque só quero estar incógnita no meu ritmo e na minha paz. Rio-lhe com apetite das piadas realmente boas, mas não se assombre do meu afastar discreto quando emergir meu natural baldio e melancólico. Lembro datas com afeto espontâneo, mas não pasme se o enjoo da obviedade me desencorajar a mensagem no Face. Sou sim carinheira, mas não grudenta; atenta à pessoa e à conversa, mas organicamente saudosa de liberdade. Uma amorosa perpétua com vício de solidão igualmente perpétuo.

Bem-vindo o amor que se entende com as demonstrações oblíquas! Quanto menos gasto de holofote, mais energia nos fica para o que excede a visão. 

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Os esquecidos

Manuel Bandeira desmancha corações em seu poema “Minha grande ternura”, verdadeiro totem da doçura de sua obra, dada ao amor pelas pequenices. O final, especialmente, é de não deixar pedra sobre pedra cá por dentro: “Minha grande ternura/ Pelas gotas de orvalho que/ São o único enfeite/ De um túmulo”. Como isso é lindo, como isso é triste: saber que existem ou existiram aqueles cujos amados o tempo varreu, exilou, libertou de sentirem a ausência, e então sobraram só as menores delicadezas da vida a homenageá-los – gotinhas diamânticas, folhinhas chovidas pelo vento, borboletas que pousam quase de pantufas sobre seu sono de granito. É belo e doloroso, e muito mais isto que aquilo, conhecer essa lei do mundo inóspito; conhecer que há/houve almas respirando nas esquinas, dando história às sepulturas, guardando verdades bombásticas, e no entanto vem a pressa curiosa de viver e delas se desapega, ficando só o orgânico da natureza para embalá-las em seu ciclo hospedador.

Na impossibilidade de lembrar todos os que não sei nem nunca soube, e mesmo os que vi sem deles reter memória, mando então, aqui, minha sincera e coletiva ternura aos esquecidos. Mando na brisa, na asa da borboleta de pantufas, todo o amor abraçante aos velhinhos que aguardam silenciosamente a visita que não chegará. Mando toda a solidariedade quentinha às crianças que esperam inutilmente na saída da escola. Mando toda a brandura compassiva aos presidiários que jamais reencontraram os olhos da família. Todo o meu afeto aos que, encarcerados num qualquer vício, soltaram-se até da noção de que existiu família. Toda a minha fraternura aos artistas vistos um momento e, depois, lançados ao limbo dos poemas, vozes, imagens descartáveis. Toda a minha esforçada compreensão aos jovens desperdiçados que vingam, no crime, a indiferença que os cobriu no berço. Toda a minha empatia carinhosa aos pequenos que chamaram os coleguinhas para a festa e não foram prestigiados. Toda a minha afeição irmã aos pedintes que já não acham ânimo senão para estender o olhar aos impassíveis que passam.

Toda a minha chocada piedade aos vizinhos que morrem tão, tão solitários que só os bombeiros os descobrem, e só após semanas de decomposição abandonada. Toda a minha amizade camarada aos que atravessam sozinhos os recreios no colégio, aos que não são incluídos nos trabalhos de grupo, aos que surgem na foto da turma mas ninguém recorda, aos que são escolhidos por últimos nos times da Educação Física. Todo o meu carinho comovido aos que mofam nos hospitais sem o abrigo ou a consciência de um rosto familiar. Toda a minha estima sorridente aos que são empurrados do centro da conversa, aos que são alijados da piada e do mistério cúmplice, aos que são isolados no canto do almoço, aos que dormem sem perspectivas na ceia de Natal. Toda a possível fofura aos que, por uma insanidade de motivos, ninguém namora, ninguém vê, ninguém afaga, elege, prefere, mima, serve, escuta, preza, reconhece, fotografa, distingue. Toda a minha simpatia prioritária a esses órfãos de mundo, a essas vítimas da preguiça coletiva, da obviedade aguda de quem só busca gente alfa.

Irmãs e irmãos esquecidos, irmãs e irmãos deixados no cesto das vidas recicláveis: a vocês minha grande, minha imensa ternura de pequenina. Eu em verdade não os sei, vocês não me sabem, mas espero que nos esbarremos por aí numa amorosa festa de não nos sabermos juntos – num programa de sociedade do qual não se possa viver nem morrer à beira. Numa sonhada, suspirada e melhor terceira margem. 

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Magnum opus

Abro aspas para o escritor americano Henry David Thoreau: “As nações são possuídas pela louca ambição de perpetuarem a sua memória com a soma das esculturas que deixam. Que tal se esforços semelhantes fossem despendidos no sentido de aperfeiçoar e polir a sua conduta? Uma obra de bom senso seria mais memorável que um monumento da altura da Lua. Prefiro contemplar as pedras no seu local de origem”.

É verdade que Thoreau, ao publicar sua autobiografia poética e filosófica Walden, em 1854 – livro onde mora o trechinho aí de cima –, narra seu mergulho cabal em algo que, para os árcades, era só fingimento literário: uma vida retirada e florestal, simples, sem luxos, com móveis e imóveis feitos com as próprias mãos; uma espécie de Capitão Fantástico way of life. É verdade também que poucos de nós iríamos tão longe; eu mesma sou exemplo de quem adora cinemas e farmácias sempre à mão (embora inveje loucamente os dois anos em que o autor viveu plantando seus amigos, seus discos – se houvesse discos – e livros, e nada mais). Mas apesar do radicalismo de Thoreau e da improbabilidade de seguir sua entrega e seus passos, não desreconheço o quanto me toca sua observação sobre as construções, sobre as esculturas. Uma coisa é simpatizar com as comodidades básicas; outra, diferentíssima, é dar glórias ao cimento, é identificar evolução e cultura com as toneladas mortas de granito e mármore que constroem uma cidade grande.

Cidade não pode aparecer grande na estrutura e ínfima em ser-humanidade. Escolas, hospitais, habitações frescas e boas são paredes obrigatórias, ninguém discute, mas no mais é preciso evitar tijolos antes de se edificarem ideias. É preciso que a alma dos teatros palpite no que é intenso e filosofável, e não apenas na ostentação do patrocínio ou na curiosidade da moda. É necessário que as estátuas dos parques estejam abençoadas pelo afeto público, não somente pelo vazio respeitador ou pelo olhar que não picha, mas também não enxerga. É fun-da-men-tal que as assembleias, tribunas, prefeituras não sejam acarpetadas de salas impenetráveis, de corrimões veneráveis e hostis, mas sejam sim tomadas pelo povo, feitas de povo, transbordantes de povo por veias e artérias. Museus devem ser baús de memória rendada, carinhosa ou difícil, mas afetiva sempre, como histórias de avós – e não templos de intocabilidade e símbolos de chatice ritual. Universidades e mecas de eventos devem ser debatódromos. Igrejas devem sobretudo ser roçados de amor, e não novos santuários de dinheiro. Secretarias têm a obrigação moral de nos ser secretárias. Bibliotecas – nossos parques de diversão. Shoppings – nosso ar-condicionado gratuito, acolhedor a todos que compram ou não compram.

Não adianta, ó caros, ter massa urbana bonita e dourada se o recheio não for de gente. Acaba só ficando para nós um bruto mar de concreto cercado de ilhas por todos os lados. 

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Enucleadores

Pode se horrorizar, irmão: gosto de programas de psicopata, tanto verídicos quanto ficcionais. Evidentemente (espero que evidentemente) não tenho a menor tendência para a psicopatia; sou pouco sentimentaleira por motivos de introspecção, desajeitamento e superego, mas não CONCEBO como alguém possa desamar gratuitamente – e o que há de mais pavoroso: ter gratuito prazer em causar dor. Céus, fico um dia inteiro me açoitando mentalmente se falo mais grosso com um aluno. O simples fato de não conceber atrocidades, porém, é a exata garantia para curtir essas séries, como um salvo-conduto (“oooolha como eu e meus amigos somos legais, nunca seríamos capazes de cometer umas tais aberrações”). Mas há outros porquês. Um deles: prefiro esperar o melhor sem deixar de conhecer o pior de nossa espécie, para entender, para identificar os prenúncios. Um segundo motivo, e mais assustador que os monstros mesmos: vendo programas de psicopatas longínquos – que matam lááááá nos Estados Unidos ou mataram há muuuuuitas décadas –, a gente deixa o terror igualmente distanciado, canalizado, redomizado. É tanta e tão extrema a malvadeza desse povo que vira troço irreal, e mesmo o que não é ficcional parece sê-lo. Aí vem a razão essencial: assistimos a tudo sob a promessa de segurança das paredes ar-condicionadas que nos abraçam.

Não se assustem, portanto, de eu não me assustar com episódios (televisivos) de gente mergulhando gente em ácido, fazendo peruca com cabelo de gurias assassinadas ou enucleando os outros por esporte (sim, tem psicopatia que cisma até de arrancar os olhos alheios). São estapafurdices isoladas, improváveis, coisas de Jigsaws específicos. Mas quer me deixar 100% doente d’alma? No Brasil atual, tá moleza: me exponha à perversão sinistra, kafkiana, enraizada e coletiva que se tornou esta distopia de fazer Orwell babar de inveja. Me mostre a náusea de um sistema criminalizando ex-presidentes – legítimos – por um certo manejo e aplaudindo “presidentes” golpistas pelo mesmo manejo. Me esfregue na cara um projeto sugerindo ensinos em que História e Geografia não sejam perenemente obrigatórias (e uma propaganda exibindo vítimas que vão para o abate sorrindo de orelha a orelha). Me obrigue a ver manifestações em que aposentados apanham por não receber, em que professores e médicos levam bala e gás por não quererem ser duplamente descontados. Me soque no queixo com uma chantagem emocional pública, falsa, repugnante, nojenta, um pretexto imundo para privatizar apenas a água –  a.k.a. o maior bem e maior recurso do terceiro milênio. Me faça vomitar com campanhas em que trabalhadores de ar-condicionado (e de expediente terça-quarta-quinta, e de auxílio-paletó, e de gorda aposentadoria após menos de uma década) convencem fofamente o lavrador que trabalha desde os onze a achar top se aposentar depois dos 65. Me ponha diante desse nível repelente, torpe, asqueroso de deformidade humana, próxima e pairante, e aí sim – aí sim encarnarei a mocinha de Thriller, com gargalhada em off mas sem fim de pesadelo.

Vou te contar: o que os meus e os seus olhos já não podem ver é exatamente o que devem. O que precisam. Não tem FBI que resolva coisas que só nossa união pode deter. Fundamental, infelizmente, é que seja generalizado o horror: é impossível fazer a revolução sozinho.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Defendendo o mundo

A menininha no restaurante (não devia ter mais de oito anos) usava blusa estampada com três heroínas dos quadrinhos e a legenda: “Girls defend the world”. Fiquei orgulhosa da pequena e dos pais que lhe puseram figurino tão superpoderoso. Nada contra as princesas Disney; amo todo o universo Disney, e as protagonistas vêm tendo a beleza e autenticidade de se tornarem o que sempre deveriam ter sido: garotas porretas que não precisam de marmanjos para salvá-las, para lhes fornecer metas de vida ou garantir o happy end. De qualquer modo, as lindinhas das animações para-toda-a-família acabam se tornando ícones de estilo vaporoso e delicado, enquanto as gurias de capa – mais urbanas, menos de época, mais com cara de gente que come pão na chapa, estuda e bate ponto – envergam a praticidade que melhor lhes permita voar, saltar e chutar caçando bad guys. Mais parecidinho, em verdade, com o jeans esperto, a legging e o uniforme que tantas heroínas factuais usam para matar quarenta e sete leões antes do almoço.

Sim, as meninas defendemos o mundo – e eu nem preciso dizer de quem. Em geral não somos nós que entabulamos guerras (Jesus, que coisa mais cretina a guerra!), em geral não somos nós que passamos o dedinho na verba pública, no geral não fomos nós que ligamos calhordamente a motosserra em cima do planeta. Não venham nos acusar de ter promovido a maioria das cruzadas, de ter criado a tortura das crucificações, de ter escrito o Martelo das feiticeiras, de ter sedimentado as bases do nazismo. Certo, não somos inocentes, fomos muitas vezes alimentantes da fera (síndrome de Estocolmo detected, sisters), mas somos em grande parte sobreviventes e paladinas desta Terra sistematicamente violentada.

Se já criamos armas, não sei; infelizmente, é de crer que sim; sei, porém, que sem Maria Beasley não havia botes salva-vidas, sem Anna Connelly não havia escadas de incêndio, sem Maria Telkes e Eleanor Raymond não havia painéis de energia solar, sem Letitia Geer não havia seringa médica, sem Stephanie Kwolek não havia coletes à prova de bala, sem Ada Lovelace não havia algoritmos de computador, sem Hedy Lamarr não havia sistema Wi-Fi. Porque alguém tem de pensar nas alternativas: no que fazer quando um testosterônico monstro do mar afunda, quando a fumaça rouba as fugas dentro da maior construção que seja, quando a energia do chão extorquido se esgota, quando o peito fica exposto à droga de bala já inventada, quando os fios começam a confinar os passos. Mulheres somos sinuosas e acostumadas a desviar da dureza, a driblar o limite; o mundo masculinizado é pedra, nós somos água. Temos a força do vento, da abelha, do escudo. Somos o poder menos óbvio, a contundência do sutil que dá bug no circuito do colossal. Meninos: fazemos amor enquanto vocês brincam de guerra.

Antes de ficarem ressentidos, superboys, pensem com ternura nas mulheres da Mesopotâmia e da Suméria, que há mais de 7 mil anos criaram e aperfeiçoaram a cerveja. Cheers! 

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Não ser obrigada

Sempre curti programas ao estilo Esquadrão da moda, desses que pegam um ser humano desmazelado e sem noção – que anda no mercado de pijama, só usa modelito de dominatrix, coleciona peças de número dezessete vezes maior ou menor, vai com camiseta do Bob Esponja aos casamentos de família –, repaginam, repenteiam, remaquiam e voilà! transformam em capa da Vogue ou boniteza parecida. Gosto dessas bobagens por justamente gostar de bonitezas: cores, modas, estampas, potenciais finalmente explorados. Os ex-desastres fashion germinam, melhoram a autoestima, arrumam crush, ganham promoção no emprego, param de matar os filhos de vexame na porta do colégio, uma coisa maravilhosa. Então, se estão todos bem, que mal tem, right?

Isso penso eu mui candidamente, enquanto me divirto com as figuraças de um Mude meu look, e ainda assim não consigo ignorar um pontinho de interrogação arranhando o forro da consciência. Ver gente se gatificando é show de bola, mas o raio problematizador teima em saber: por que mesmo que gente tem de ser gatificada?... Está provadíssimo que a criatura fica alegre, e é melhor ser alegre que ser triste, e é mais fácil descolar um job quando se põe camisa social e não orelhinhas de Minnie, e é mais provável atrair um partner exibindo acessórios hype e não dentes de vampiro. OK, é mais fácil e mais provável. E é precisamente isso que me atormenta. Ao resistirem de início à intervenção fashionista, as vítimas quicam, gemem: não quero ser modificada pelo sistema, não quero ser profissionalmente avaliada pela aparência, não quero ter alguém que não goste de mim pelo meu caráter e acabou-se. Pouco a pouco os apresentadores persuadem, instigam, aconselham, fazem exercícios de interação que esfregam na cara o quanto as pessoas são julgadas sim à primeira vista, pisam e repisam que para aquele fracasso não tem jeito, o mundo é assim, o melhor para você – para seu salário, sua causa, seus filhos, casamento, projeto, coração – é se encaixar. Aí vai a moça (99,8% das vezes é uma moça) e, fazer o quê, se encaixa. Se encaixa e diz que se encontrou, que aquela foi a melhor experiência de sua vida.

Tá bom que sou chata e nunca neguei, mas me dói. Dói que quase sempre sejam mulheres as examinadas, dissecadas, categorizadas e reformadas, ou seja: que quase sempre sejam mulheres as inadequadas, as rebeldes ao formato de beleza que chamaria os homens, as indiferentes ao modelo corporativo que não assustaria os investidores, as fujonas do molde que confortaria os clientes. Claro, a mulher não tem maior diversão na vida do que pensar em cobrir a raiz aparecendo administrar secador fazer babyliss escolher esmalte suave batom vermelhão não! o colar tem de ser discreto esse faz barulho o brinco não pode balançar passei o corretivo direito? sumiu a espinha? vou colocar broche para diminuir o decote a saia tem de ser no joelho jaqueta acinturada vai me valorizar preciso de band-aid pra encarar o salto alto, antes de fechar negócio – enquanto o homem fecha negócio basicamente tomando um banho, cortando a unha e enfiando um terno.

Homem não se submete a transformações porque amigos o acusam de parecer piranho, homem não tem o grisalho tratado como desleixo, homem não ouve dos parças que fica abatido quando sai sem maquiagem, homem não tem de estar nem aí se está mostrando peito ou coxa, não chamam homem de espandongado se acabou de virar pai e só veste calça jeans e T-shirtão. Não posso portanto, mesmo que me exponha à Palma de Ouro da apoquentação (who the hell cares?), ignorar o desânimo que bate na aorta toda vez que nos vejo como penduricalho do mundo. Não me lembro de ter firmado contrato que me obrigasse à sedução e ao agrado compulsório. Não me lembro de ter assinado compromisso de bibelô ou almofada. Não combinei com ninguém que iria adotar saltos e tintas destinados ao meu corpo, à minha revelia. Não tenho culpa, amados todos, se quiseram decidir nossa estética como quem nos trama um casamento de conveniência, nem lamento quem estrebuchar no chão com crise de abstinência se não vir a rua enfeitada de pingentes femininos. Se não gostarem, gentes, não olhem. Se dependerem de batom e salto para aceitar um acordo de milhões, clientes, se tratem.

Cresçam, fofinhos que ainda precisam de móbiles coloridos no berço. Lá pelos dez anos de idade, já deixa de ter desculpa escolher um livro só pela ilustração. 

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Cabelo fantasma

Uma prima chama assim aquele fiozito solto e fino, muito fino, tão fino a ponto de o sabermos presente em algum lugar sobre o olho, mas não o conseguirmos agarrar: cabelinho fantasma. O danado catuca, irrita e ninguém o vê, ninguém o captura, vamos mil e sete vezes ao espelho e o coiso não se mostra, a amofinação não se materializa, a gente em dois minutos começa a se espancar com grave risco de ser encaminhado ao Pinel. Pois se azucrina desse jeito uma indefinição palpável, feita de moléculas arredias mas sólidas, quanto não enerva aquele catucador fantasma que duplamente não se deixa encontrar – que é fujão e metafórico? Quanto não nos assombra aquele sentir solto e fino, muito fino, tão fino a ponto de nos pinicar n’alma sem deixar paradeiro, sem dar o endereço do que falta, sem marcar com migalhinha o itinerário da dor?

Vou meter uma estatística no achômetro: pelo menos 87% do que aterroriza a humanidade são sentimentos fantasma – o tipo que não tem nome literário nem científico, que escorrega de uma entrelinha para outra, que a gente reconhece exatinhamente nos contos da Clarice mas é que nem estrela: quando se olha muito fixo, se deixa de enxergar. É uma vaga e culpada infelicidade, um desconforto que normalmente se acomoda dentro das chateações conhecidas.

Você, por exemplo, é aquele mulherão estonteante que tem gatinhas adolescentes como filhas, e tudo são amizades e risos e paraísos. Vai ver, porém, a embrulhada que o cérebro empurrou para a masmorra: apesar do orgulho luminoso das meninas, você tem invejinha do corpo delas, você queria de novo suas primeiras vezes, você morre de vaidade de achar fácil algo que elas ainda veem com horror, você se deliciou por um segundo com o olhar guloso que um dos jovens genros lhe atirou, você espera que elas sejam perfeitas mas continua preferindo ser a deusa suprema, você adora os privilégios da adultice mas não se conforma em abrir mão das idades que já lhe pertenceram. E continua sendo uma mãe apaixonada, e uma megera ciumenta, e uma fada ressentida, e uma leoa exclusivista, e uma empresária de miss, e uma madrasta jogadora. Não adianta trancar o calabouço mental, vai ter mais, vai ter sempre mais, vai ter gente ali em você que você não suspeitou nunca, e o único jeito é faxinar com a mais sincera frequência. Limpar, esvaziar, etiquetar com insistência humilde é paliativo; no entanto, evita que andemos sempre em nós às cotoveladas com aranhas invisíveis, às apalpadas no meio de nossas baratas voadoras.

Você ama seu trabalho porque decidiu sobreviver melhor a ele, mas na verdade odeia ter de trabalhar, não por causa dos colegas e sim do fato de acordar tão cedo, embora você renda melhor de manhã e seja louco pelo perfume fresquinho da pós-aurora, por mais que demore um pouco para pegar no tranco e acorde com os olhos desagradavelmente embaçados; só que o tempero do restaurante ao lado do trabalho lhe dá um excelente motivo para viver, e às vezes você tem um sopro de impressão de que só está trampando ali porque, um dia, pretende largar a bodega toda e convidar o dono do restaurante para sócio. Você sente essa loucura inteira enquanto se encolhe de frio no metrô, e não está bem certo se a náusea vem desse ar-condicionado desgraçado ou da lembrança de que não aguenta mais ter de colocar programa para gravar e não ver nada. Não és doido, coração: és mais um Homo sapiens que não sapiens tanto assim como dormir com esse novelo de angústias, essa coleção de alegrias e aflições simultâneas, impegáveis e indistintas. Fingimos ter foco para não sermos despedidos, mas o que somos é isso aí, é essa coisa: pensamos no velho cheiro de maçã verde da infância, em flashes de uma convivência de faculdade, depois sacudimos a cabeça para espantar uma música odienta e, no fundo, o que realmente estamos é apavorados de ver todo um grande conjunto de felicidades ruir de repente, inclusive o insubstituível tempero do restaurante.

Bad news: só na morte vamos perder esse fiapo impreciso que nos aporrinha cada momento. Mas a boa do dia é que esse fiapo é via de mão dupla – podemos do nada ser felizes à toa, e não conseguir evitar.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

E já foi à Lua

Fábio aqui resmungando que o homem já foi à Lua há quase meio século e ainda não conseguiu pôr uma linguetinha decente no pacote de biscoito – uma que realmente abra o biscoito, em vez de soltar na mão dos compradores bocós. E ah! se tudo fosse a execrável lingueta, que causa a máxima tragédia de amofinar gente e espalhar farelo! Fico besta que a humanidade capaz de descobrir penicilina, inventar ar-condicionado (graças!), enfiar 20 mil quaquilhobytes de dados num troço de meio milímetro, escrever Grande sertão: veredas seja o mesmo bando de incompetentes que ainda não debelou o trabalho escravo, que no lugar do estuprador culpa a vítima, que xinga pessoas de pele ou camisa de outra cor. Sinceramente, indivíduos da espécie: todo dia cês me matam de vergonha.

O homem já lidou com a desgravidade da Lua e ainda não aprendeu leveza; arrasta um bonde diário e desnecessário nas costas, entre dúvidas facilmente perguntáveis, raivas facilmente resolvíveis, medos facilmente esclarecíveis. O homem já usou roupa de Lua e ainda não sabe que não se pode furar a proteção do outro, não entende que ele talvez dependa dessa embalagem emocional para respirar. O homem já esteve na Lua e ainda não chegou para fechar crateras ali na esquina, botar hospital para formas biológicas conhecidas, levantar escola para nossos 7 bilhões de vidas inteligentes. O homem já se exilou na Lua e ainda finge não saber como funciona o ser refugiado, rejeitado, bullyingado, marginalizado. O homem já viu a Terra da Lua e ainda não olhou direito aqui mesmo do quintal: não se convenceu suficientemente de que por cá o negócio esquenta, treme, alaga, derrete, morre a cada passo em falso. O homem já teve impulso para se lançar à Lua e ainda não tornou natural o movimento de estender mão, ceder o braço, apertar no peito, emprestar o ombro, hospedar no colo. O homem já saltitou na Lua e ainda não largou essa mania de acordar e dormir travado, trabalhar em gaiola, viver oito nove dez horas laranja-mecanicamente preso no celular, no carro, no ônibus, no computador. O homem fez foguete pra Lua e não se abala para consertar um aparelho de mamografia; estudou para ir à Lua e não encara uma droga de interpretação de texto; seguiu instruções para atingir a Lua e não se coça para pagar salário de professor; analisou material da Lua e não examina um processo antes da morte ou loucura do solicitante; plantou bandeira na Lua e não joga uma sementinha para arborizar bairro escaldante de periferia; tascou nome em regiões da Lua e não estranha que alguns terráqueos não consigam receber carta (luz, água, zelo) em seu próprio endereço. O homem alunissou bonito, mas para aterrissar não está lá essas coisas: flutua mal, cai em todo lugar feito chumbo, anda que nem besta brava, faz do objeto não identificado o judas de sua predileção.

(São Jorge, por favor: me empresta o dragão.)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Barulho compulsório

(Ao menos) duas pessoas no mesmo cômodo, não íntimas, não necessariamente relacionadas – mas ou semiconhecidas, ou companheiras fortuitas na situação. Colegas na sala dos professores, pais na porta da escola, pacientes (bota pacientes nisso) enfrentando atraso de duas horas na consulta, taxista e passageiro, aguardante e recepcionista. Que fazer para encarar o tempo e o convívio obrigatório? Neste nosso Brasil, falar. Falar sobre o clima. Falar (clichês de elevador) sobre a política. Falar da (falta de) saúde. Falar o que o porteiro do namorado da prima do ascensorista da Globo revelou sobre aquela atriz que todo mundo acha simpática. Falar vazios, falar desgraças, falar receitas – tagarelar e tagarelar num esforço constrangido de reconhecer a existência alheia e, por que não, garantir uma minicelebridade própria. Falar é imposto nacional de sociabilidade: em país onde tudo é pessoal, garrou-se a ideia de que a maior prova de rejeição é o silêncio.

E pode ser de fato, se vier embrulhado em desistência e frieza. Mas para mim, particularmente – e eu tendo a pensar que para alguns –, silêncio é alívio, presente, carícia. Me possibilita escutar o que estou me dizendo no ônibus ou no recreio, me liberta os neurônios para captar o ritmo do livro, me permite arrumar informações que entram jogadas no cérebro em meio à zoeira, me autoriza voar sem a interação social pesando de âncora, me deixa livre em mim. Tenho boa relação comigo, então silêncio não me é casa assombrada, e sim spa cerebral. Para dormir, escrever, ler, matutar, lembrar, roteirizar, decidir, pesquisar referências, tecer aulas, destrinchar legendas de tevê (sim, até para compreender o que tem som, já que só consigo receber plenamente alguma coisa se todo o resto emudece): silêncio. Silêncio é a paz, silêncio é o veludo, é o início da cura. Especialmente quando silenciam os ruídos da ansiedade humana – zaps, telefones, blablablás sem objetivo ou riqueza, televisões de consultório, desesperos de vendedores. Mundo, sossega um pouco as turbinas; cala-te, sésamo.

Sou chata? Você me pegou, sou chata. Mas não posso evitar o desgosto de ter o vagão do metrô invadido por um papo eterno e estridente, um nhoinhoinhoinhóim enjoativo, gargalhado (se houvesse enfarte por inveja, eu caía mortinha de saudade dos silenciosos metrôs japoneses, que nunca conheci). Não posso evitar o olho cuspindo fogo quando o fone do vizinho revela toooooda a setlist, e zumbe um tzztzzztzzztzztzzz de enlouquecer monge. Não posso evitar o ar amargo e infeliz quando quero recolher cada palavra do programa, da canção, do aviso, e um ser desprovido de semancômetro acrescenta muito, MUITO som à minha pequena tragédia. Sou chata, vá lá, mas talvez o agravamento da chatice sonora tenha ficado proporcional à engorda de decibéis nesta nave louca, que mais escândalo faz à medida que mais entra em pane. O planeta –o Brasil ao menos – anda em surto de urgência, anda em posição de ataque, e cada momento da vida coletiva pede o grito de guerra de quem se vê assaltado em sua sanidade.

Eu, no entanto, vos peço: calai-vos e escutai. É em silêncio que as verdadeiras revoluções se tramam.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Analfabetos pessoais

Leio com tristeza que a pesquisa “Juventudes na escola, sentidos e buscas: por que frequentam?”, realizada em vários estados brasileiros, levantou que quase 20% dos alunos de escola pública (entre 15 e 29 anos) “não gostariam de ter um colega de classe travesti, homossexual, transexual ou transgênero. O grupo só fica atrás de bagunceiros (41,4%) e ‘puxa-saco’ dos professores (27,8%)”.

Entendo perfeitissimamente que não se queiram colegas furdunceiros – aqueles que caotizam a sala, engolem a voz exasperada do professor, fazem o pobre teacher se perder no planejamento e na explicação, cobrem tudo com seu manto espírito de porco. Entendo igualmente que os lambedores de bota sejam desprezados, porque donos de caráter flutuante, impreciso, com tendências a xisnovear geral, plantar intriga e diferenciação. Nos dois casos (mais no primeiro), há inconveniência e prejuízo reais trazidos pelo outro. Mas de onde viria, Senhor, o dano de conviver em aula com gente de orientação sexual distinta – ou em miúdos: de onde viria o problema coletivo a partir de uma questão todinhamente individual?... A bizarrice é tanta quanto rejeitar camaradas de olho azul, ou palmeirenses, ou que preferem amarelo. Freud não explica, mas desconfia fortemente de que é um caso medieval de medo, apenas o medo velho e mau.

Qualquer preconceito o que é? medo, ora bolas. Receio, talvez, de não estar convicto da própria sexualidade e ser suscetível a um “contágio” que lhe perturbaria mais a vida. Terror de que a simples empatia se torne transferência de personalidade. Pânico de ampliar horizontes, desacomodar preguiças, desassossegar o universo mental para acolher individualidades que não tinham entrado na (sua) história. Aversão ao aprendizado (mal de aluno que quer gastar caloria só com prova), nervoso de mexer em dúvidas resvaladiças, vergonha de admitir que não somos capazes de encaixotar e arquivar gente, horror ao julgamento burro de outras antas preconceituosas (só um medíocre está à altura de escorar um medíocre), fobia ao suor de pensar, compreender e – ai, minha cabeça! – mudar. É triste, é desesperador que justamente um estudante, esse gerúndio vivo, se recuse ao único verdadeiro ato de conhecer: conceber o ser ao lado como humano umbilicalmente livre de nossa própria tabela, de nosso próprio sistema. Atingir o fato de que pessoa não cabe em decoreba, não tem macete, não tem fórmula – tem esforço de leitura, observação sincera, empenho e honestidade de interpretação. Ser humano não é de exatas. Ser humano é de várias, é de muitas, é de múltiplas, é de complexas.

Alunos amadíssimos: menos memória resignada, mais melhora autêntica. Quem tem bitola não sai da escola. 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Não é que eu não goste

Não é que eu não goste de criança, gente. Acho o conceito ótimo; acho que resultam em trouxinhas fofas e aveludadas, têm dedinhos deslumbrantes de minúsculos, pezinhos mastigáveis e o filé dos mignons: bochechas. Mas para mim a coisa fica nesses termos – um ímpeto de fofúria homicida e, depois, a devolução do pequeno ser humano (estraçalhado de ternura) aos responsáveis. Daí não passo, daí ninguém me tira. Todo o encanto do universo por um bebê gorducho não me levaria a produzir um para consumo próprio – até porque, se o bichinho conseguisse sobreviver a meus furores de amor, em pouquíssimo tempo já teria deixado de ser um bebê gorducho, cometendo a desagradável mania de crescer.

A verdade mais plana e mais prática é que criança fere pelo menos duas de minhas necessidades: a de privacidade e a de silêncio. Criança (com toda justiça, aliás, já que não tem culpa de ter sido jogada no mundo cheia de urgências) é naturalmente carente e barulhenta em suas descobertas, dá gritinhos felizes e desesperados, precisa ter por perto a quem perguntar, a quem pedir água, a quem entregar uma flor. Precisa elaborar suas angústias numa nuvem de decibéis, precisa chamar “mamãe!” 48 mil vezes por segundo – e ter como resposta a mesma paciência sorridente –, precisa às vezes acompanhar o genitor na última fronteira da intimidade que é o banheiro. Criança precisa de um tempo que se desvela, que se debruça, que se conforma em não terminar o livro nem ver a série quando há um vácuo de trabalho, que se entrega todo em brincadeiras que não escolheu, que finge se espantar de novo com as menores banalidades, que não faz cara de tédio porque está todo completo de êxtase. Não sou esse sorriso, esse tempo, essa paciência; sou o eu-passarinho que a muito custo se resigna às obrigações inevitáveis, que necessita tanto quanto a criança de ar e céu e luz (mesmo que no quintal da literatura), que tem também um amadurecimento mental em progresso destrambelhado. Sou incapaz de me ver roubando a um inocente o que desejo para mim mesma.

E, pois – não é que eu não goste –, mas prefiro ter todo o cuidado de não chamar nunca esse inocente, de nunca me arriscar a fazer uma vidinha para a qual eu não seria inteira. Me horroriza pensar que, por mea maxima culpa, uma qualquer criatura se suspeitasse indesejada, ainda que num deslize de voz ou de olhar, de sangue, de toque, de pensamento, de minuto. E existe, poderosa, a eloquência das vidas já feitas – dos amigos a quem damos menos que a fundamental atenção, dos alunos que transpiram a carência de um afeto adulto, da família (original) a quem furtamos o que foge ao tempo de convívio regulamentar. Existe um mundo já produzido de amores que escapam aos dedos, amores para os quais desde há muito me falta suficiência e mais decidida coragem. Docemente incompetente e exausta no jogo de relações já sendo jogado, não me vejo, em sã consciência, levando a coisa para os acréscimos.

Bochechas, entretanto, continuam bem-vindas. Para massacrá-las, não preciso mais que um intervalinho de almoço.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Claro enigma

“E a boca é apenas instrumento de segredos”, cantou um dos versos lindos e tristes de Cecília. Sim, é nosso instrumento de segredos. Por isso os tímidos são às vezes falastrões, anedotistas, quase espalhafatosos: cobrem de papel brilhante o cofre, colocam pompom e neon, strass e purpurina, para que o verdadeiro conteúdo a ninguém ocorra descobrir, ali encolhidinho no fundo do escuro. Atenção aos que falam, falam, falam, falam muito, falam ininterruptamente, falam até apaixonadamente de si e dos outros; é bem mania de quem se esconde. Manifestar-se demais é, não raro, um salvo-conduto para pensar e expor-se de menos – mas expor de menos não o vazio superficial (lamentavelmente, poucos têm vergonha de exibi-lo), e sim a fragilidade que dói muito doída e muito dentro, onde o que é fraco não tem vez.

A dor legitimamente enorme não canta, não brinca, não fala. A dor enorme não fala, inclusive, com o dono da dor, que a sabe ali mas não consegue estabelecer negociação. Que faz então o dono da dor? Sem possibilidade de diálogo interno, manda ver no externo, para testar a velharia de que quem-canta-seus-males-espanta (quem canta e quem conta: causo, fofoca, piada, vantagem). Mas não adianta dar muito acessório ao HD travado; o arquivo enterrado não abre, o programa oculto não roda, o vírus silencioso mastiga as entranhas e, eventualmente, põe sem andar o que andava. Enquanto não se mexe no núcleo que sangra, não há avanços, não há intentos – há só barulhos.

A excessiva necessidade do vizinho de espalhar suas compras aos ventos: medo, provavelmente. Medo de não ser mais nada que aquilo; medo do que lhe resta ser se a inveja alheia não o acompanhar; medo de admitir que preferia estar 17h na sweet home a voltar às 22h para o home theater. Sua amiga que exalta malucamente o atual namorado: medo, podes crer. Medo de ser tão idiota de paixão pelo infeliz anterior, medo de não merecer nunca a perfeição deste ser humano, medo de assumir para consigo que na verdade acha um saaaaco catar vaso no porão para aconchegar tanta flor, acha uóóó notar que a família dele sabe até o ciclo menstrual dela, acha o fiiiiiim aturar telefonema fofinho quando só se quer fazer maratona de Netflix no sofá. O aluno que tem 8.974.992 seguidores em cada rede e posta hashtag de 6,2 em 6,2 segundos – duas sílabas: me-do. Medo do que o silêncio da matutação pessoal lhe provoca, medo de se ver sozinhamente entregue aos próprios demônios, medo de repetir a rejeição que ainda não digeriu, medo de as memórias o abordarem por baixo da porta, medo de não ter assunto consigo mesmo. Quase sempre é um tipo de medo que nos rala, que não se encara, que se sufoca sob decibéis e decibéis de construção individual – sob camadas e camadas das automentiras sinceras que nos interessam. Medo de quem queremos ser. Medo de quem morreríamos ao ser de novo.

Falar, amigos, é nossa fantasia. Só não há carnaval que mate toda a cinza que vestimos da boca para dentro. 

domingo, 12 de fevereiro de 2017

O que fazer quando se pisa numa concha

Morri de bem-querença ao ler a história publicada há três dias no site The Dodo. Uma clínica veterinária de Tel-Aviv, Israel, recebeu o pacientezinho mais insólito: o infortunado caracol que teve sua concha quebrada quando uma mulher acidentalmente o pisou. O mais maravilhoso é que a ré, em vez de largar à morte a pobre lesminha sem-teto (quantos se comoveriam com uma vida tão gosmenta?), foi bater com ela na tal clínica, em busca de conserto. E os doutores providenciaram fofamente o conserto com afeto e cola, pedacinho a pedacinho, mãos firmes e espertas para não deixar o grude escorrer concha adentro. Sucesso total na cirurgia. O paciente aprovou o resultado da plástica e não parece temer as semanas ou meses de recuperação: instalou-se pimpão em seu spa forrado de alfaces e legumes fresquinhos – com sorriso de antena a antena.

Quero crer que só psicopatas de grau 22 também não sorririam diante da notícia. E no entanto quantas conchas, tantas!, não estraçalhamos inconsideradamente pelo caminho, sem voltarmos com alívio e reparo? Quantas proteções – frágeis mas essenciais – não detonamos em nossa brutalidade sem tempo, sem papo, sem atenção? Quantas defesas não quebramos no mau sentido, baixando escudos sem devolvermos, em troca, alguma ternura de lã? Quantas autoestimas lentas, lentas não rachamos num chute, numa pisada, no peteleco de um comentário que a vítima não digere nem com boldo, mas que para a gente já virou brisa duas esquinas depois?

Não há clínica para reconstrução imediata de conchas emotivas, mas há delicadezas, há perdões, há retornos. Existe o abraço chorado do filho que nunca quis realmente dizer “te odeio”, existe o “me desculpa” público para a alfinetada também pública, o elogio enfático que corrige a crítica desastrada, a alegria espontânea do encontro que substitui um qualquer muxoxo, o remorso legítimo que apaga o sarcasmo momentâneo, a guerra de travesseiros que mata o clima de distância. Não existe médico que desfibrile um pequeno enfarte d’alma, mas há tato, empatia, buquê, chocolate, cafezinho, cartão de papel, cartão virtual, mão na mão, olho no olho, companhia pro estudo, apoio na hora de contar aos pais, presente escrito pelo autor preferido, dedicatória no presente escrito pelo autor preferido, baby-sittice voluntária, quebra-galhice na troca de turno, diálogo com silêncio, luar e vinho. Existe tudo que é cola para a pequena paz, mais ou menos forte, onde mora o outro; e existe tudo que é cola para a segurança interrompida entre o outro e nós. Pode cicatrizar de todo, pode não sumir nunca a sombra da arranhadura interna – mas a cola garante nossa funcionalidade, nossa estrutura possível, nosso mínimo de esqueleto, a não perda do ponto de fuga localizado em nossa solidão portátil.

Da próxima vez que suspeitar ter atropelado uma concha, volte. Socorra. Abrigue. Talvez o coração de sua vítima não tenha para onde ir. 

sábado, 11 de fevereiro de 2017

O desejo pré-histórico

Segundo tio Freud, “a felicidade é a realização de um desejo pré-histórico da infância. É por isso que a riqueza contribui em tão pequena medida para ela. O dinheiro não é objeto de um desejo infantil”. Bem, tio Freud não disse isso exatamente ontem, mas li com a mesma admiração inédita de uma descoberta de cura, uma ultranovidade tecnológica. Como é que, embora sabendo essa verdade, nunca a tinha visto vestida desses termos? Como é que, com toda a superfície terrestre cantilenando que “dinheiro não traz felicidade”, não se repete também que é porque criança – nosso id eterno – está mais interessada em desenho, abraço e brigadeiro?

Esta é nossa pré-história emocional: querer a maciez de quem nos cuide, nos organize, nos providencie a certeza do fim da dor e da febre; querer morar onde se brinque e se corra, onde se estenda a mão e se acesse o verde e o vivo; querer a luz sem fantasmas, mas querer igualmente o bocadinho de fantasma e mistério que banhe as férias de amor aventureiro. Querer o tempo livre de inseguranças, limpo de obrigações que não sejam o trato de quem se adora – como o estonteante coelhinho de estimação. Querer o belo enfim, o especial, o só-nosso, e uma banana para o preço não existente: nosso clubinho made in sala com lençol e mesa, nosso trenó de tábua, nossa boneca de papel, nossa casa de embalagem de sabonete em que fica divando a boneca de papel. Tudo purissimamente simples, mais essência que objeto, menos matéria que sensação, mais símbolo que posse. A existência anterior ao monólito das etiquetas, à percepção das castas em forma de logotipo. A vida interior a.C. – antes do consumo.

Então crescemos; mesmo nosso resto de infância acaba poluído de marcas e grifes, de um grande implante de necessidades. Cada vez mais logo, mais cedo, parece que deixa de bastar o ar, o parque, o passeio sem rumo, o biscoito lanchado na varanda. Engolimos metas no café da manhã: é preciso manusear seu próprio drone, é fundamental dominar o novo game, é obrigatório bater selfie na loja bombada do shopping, é caso de vida ou morte mastigar 432 McLanches Felizes para completar a coleção. E a felicidade morre no nome dos McLanches. Não fomos planejados para tê-la; quem é feliz compra menos. Fomos educados ano a ano para seguir estafados e histéricos, exaustos e explorados, decepcionados e em desalento; afinal, nosso dever de casa não é (nos) realizar, é adquirir. Nenhum relatório alertava que vez ou outra, por acaso, seríamos gente.

E já que o somos com certa inevitabilidade, a essência volta, chora, fica. Chafurdamos nos paraísos artificiais o quanto nossa resistência aguenta, porém aquele ser que deixa as pantufas ao lado da cama, à meia-noite, entra em si com pés e alma descalços, e se encolhe na pré-história pessoal sobre o útero da madrugada. Ali somos nós, os de berço, os de fábrica: os que continuam querendo a maciez de quem nos cuide – o amigo eterno, o colo do amor certeiro, a gratidão do filho – ; os que continuam querendo agarrar a saúde definitiva; os que continuam querendo sítios, naturezas, viagens, bosques e quintais, querendo a paz onde não se estenda a mão e se acesse o cinza e o fastio; os que continuam querendo sol da manhã na sala e descobertas literárias na poeira do sótão; os que continuam querendo ócios e liberdades, mas também vidinhas adoradas para sufocar de amor. Ali sem pantufas, descalços em nós, ainda somos o mais primitivo que nos pulsa nas artérias – desde o primeiro útero. Já não somos a criança, mas somos nossa fiel linha melódica em outro (nem sempre melhor) arranjo.

Em geral evoluímos, sim, e sou constante em defendê-lo; que evoluamos, no entanto, sem soterrar nem destruir os fósseis que nos explicam. Nós o descobrimos e controlamos na pré-história – mas viramos brasa morta se não alimentamos nosso estonteante fogo de estimação. 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Sem quilômetros por ora

Corre que a promoção termina hoje! Corre que são os últimos dias! Corre que todo mundo já está na fila! Corre que quase tudo de ingresso já foi vendido! Corre, infeliz da cidade, morador exasperado desse formigueiro de pedra, elemento involuntário da maratona em que o nascimento nos inscreve; corre, o concorrente vai acordar mais cedo, o rival vai pensar antes, o competidor vai bater mais metas e tomar mais café e acertar mais questões e recolher mais diplomas e viajar mais lugares e ter mais filhos (gorduchos, vermelhos, bochechudos) – antes, sempre antes. Corre, vai ficar nesse segundo lugar absurdo? vai sentar enquanto os outros estão patinando? vai ler coisa mofada enquanto a galera já domina aparelhagem de astronauta? Corre, hamster sem reflexão, coelho da Alice, bichinho de Pavlov: condenado, constante, urgente, imediato. Corre que não te alcanço; não quero, não tento, nem peço zap (inclusive por eu não ter zap) quando você supostamente chegar.

Eu fico. Não sou mãe, não sou médica, ninguém tem emergência de mim. Fico na leitura do livro amarelamente editado em 1936, folhas que dão alergia e exalam naftalina – serenidade bem analógica. Fico com a parada pra ver a série querida em plena noite útil, com a desobrigação do fim de semana. Fico com a desnecessidade liberta de checar Face por mais de cinco minutos diários, se tantos, se todos; fico principalmente com a inexistência de internet no celular – precisão de acessar o quê? se tem o livro lento, amarelo, de fala oitocentista sorrindo na bolsa? Fico com o vagar de descobrir flor que ninguém olha, de tentar aproximação com borboleta, de rir sozinha da bobeira dos anúncios, de meter o nariz na varanda para sugar a manhã nascendo orvalhosa, de dar uns pontinhos tortos mas firmes na saia que descosturou, de lavar à mão as roupas de mais afeto, de tirar foto de grafite urbano para usar como tela de celular, de pausar no hortifrúti para farejar temperos, de cumprimentar o fruteiro que já é migo de infância, de caçar possibilidades novas de lanchinho, de descobrir revistas nunca dantes suspeitadas, de morrer de profundos amores com vídeo de coalas, gatildos, porquinhos e outras avalanches de fofura explícita. Fico com a mastigação demorada, sem eletrônicos à mesa; fico com o expediente cheio de preciosos vácuos; fico com o passeio de bonde, a abolição do relógio em livraria, o cinema sem contatos fora da sala, a trufa amiga no meio da tarde, o olhar vadio na paisagem, o desroteiro, a curiosidade, a flânerie.

Não sou e não me quero Ferrari, adversária, refém. Nem sou Roma de se fazer num dia, nem mundo de ser (metaforicamente) feito em sete. Viver demora, é longo, é largo, é pleno de detalhes, balofo de incompreensões a destrinchar, de conflitos a digerir, de belezas a absorver. “Mas você topa ficar para trás?” Querer, não quero – mas sem neuras se for o lugar do silêncio, do maior espaço, da companhia de doces retardatários que se distraíram seguindo uma libélula ou tricotando um casaquinho.

Levo fatalmente comigo minha adversária real. Se eu me passar a perna para ver se suplanto o inimigo fictício – já estarei vencida.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Quem éramos

A amiga posta no Face uma foto risonha, deliciosa de seu suculento bebê de quatro meses. Diz que não se lembra de sua vida sem aquela ternura, questiona como pode ter vivido sem aquele amor. Tudo que não é verbal no mundo vem plasmado em poucos termos seus: “parece que ele esteve comigo desde sempre”.

E não esteve? meu coração assopra.

Não, não acredito em reencarnação. Falo dessa misteriosa e já tão esquecida pessoa que éramos antes de sabermos o amor de agora. Soa impossível lidar com a memória de uma vida em que não tínhamos nosso vínculo mais natural e definitivo – e, até porque não pretendo filhos, nem me limito aqui ao amor do sangue, ao amor de uma geração que cuida de outra; cito a grandeza em si do encontro especial, de qualquer ligação tão sem fim que parece não ter tido início. Pode ser (meu caso) o amor do cúmplice de vida, pode ser o da irmandade indissolúvel que se reconhece no amigo repentino, pode ser sim o filho que vem ou não vem das entranhas, pode ser a afinidade quase sobrenatural de quem é gêmeo no trabalho, pode ser o descobrimento de um escritor-guru-guia-filósofo que lhe causou uma tempestade, pode ser a tempestade mesma – ou seja: o esbarrão decisivo de nós para conosco. Tanto isso foi um Equador em nossa cronologia que já suspeitamos nunca ter havido outro hemisfério. Pois houve: houve aquele tempo em que a gente, sem saber, arrumava a casa para a adivinhada visita.

Quem éramos antes de amar quem amamos? Éramos o embrião de hoje, a fruta dentro da casca, como diria Machado. Éramos o salão de festa que amadurecia e se aprontava, éramos a decoração sendo feita, o quarto sendo formado para o inquilino que não sabíamos ainda quem era, mas que pressagiávamos como seria. Éramos a pessoa que primeiro se conhecia, para finalmente vir a reconhecer. Éramos não o que somos, porém o ensaio, as fundações, os andaimes, as possibilidades, os sonhos, as apostas, o foreshadowing das cenas futuras, o spoiler mais ou menos detalhado do agora, mas sempre um spoiler ambulante. Tínhamos vida? prestava? sim e sim: sem aqueles anos iniciais, seríamos capengas, não estaríamos preparados. Cada solidão inquieta nos fazia atinar com as características que preencheriam corretamente as lacunas. Cada situação vivida ou observada nos punha mais atentos ao que nos convinha. Cada pedaço de incompletude foi essencial para decifrarmos o que se aproxima do completo, e que não receberá o último bocado enquanto vivermos. Éramos um puzzle recém-iniciado; por causa das margens e dos primeiros traços montados, pudemos em certo momento receber nossas peças centrais. Aqui estamos, imagem principal já delineada, e ainda e sempre mais aptos para maior beleza, para o quadro total.

Quem éramos? Alguém que nos apresentou o amor de toda uma vida. Querido eu do passado, você fez certo; te devo muitas. Te instalo quente e confortável na lembrança e prometo casa, comida e pijaminha da gratidão.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Ajuda o Sol

Era o que dizia aquele hai-kai de Millôr: “Tem cautela;/ Ajuda o Sol/ Com uma vela”. Mandou bem, Millôr. Não falta no mundo quem desperdice sua abundância de sorte, quem brinque de dançar no abismo, quem abuse de seu potinho de ouro imaterial (ou material); é gente que talvez não se acostume nunca a merecer, e, para se livrar de merecer, gasta seu quinhão de coisa boa na primeira esquina. Gente que não tolera a felicidade que lhe queima as mãos, gente de alma tão culpada em ter que se apressa em garantir sua impossibilidade de manter. Ê coração estranho! esse que se nega à autogenerosidade de se dar uma vela, porque já há muito se negou à própria fartura do sol.

Olhe, coração esquisito mas não raro: deixe-se de pudor besta; descarte o orgulho que mora até na baixa autoestima, até na desesperança. Pela vaidade reversa de não conseguir lidar com luz, não vire breu. Porque há desses, os que fazem chantagem emocional com o mundo: não é minha praia ser astro-rei, então você vai ver, não vou ser nada, vou engolir tudo, buraco-negromente. É possivelmente mais fácil, menos trabalhoso, mais marcante, mas não é lógico. Se o muito nos pesa em excesso ou se não despenca do céu em nossa cocuruto, continua sendo melhor o mais ou menos – e mesmo o pouco – do que o coisa nenhuma.

Ajude o Sol, coração esdrúxulo. Se a profissão desejada se mostrou inviável, escancare outra janela, abra outra história potencialmente luminosa. Se sofreu um naufrágio amoroso, arregale a atenção para outros faróis. Se carreira e namoro brilham, mas ainda assim existe uma saudade tremenda do que nunca foi, geradores de energia nova não faltam: a viagem inusitada, o hobby lucrativo, o curso impensado, o trabalho voluntário. Se há muito não surge na testa a lampadazinha de um bom plano, se há anos se perdeu a clareza de todos os porquês, se faz séculos desde a última faísca do arrebatamento de viver – sempre se pode achar em outra página uma melhor e maior ilustração, um jovem insight, um pedacinho de lucidez não previsto, não suposto e nem por isso menos fundamental.

Sob a força do meio-dia, debaixo de luar ou de eclipse: ajude-se, coração cismado. Não precisa ser Sol, que é muita carga, mas se permita uma lanterninha no mínimo, para se conduzir ao assento. Tem muita maneira não frankstênica neste mundo para a gente se dar um impulso – se dar um clique – se dar à luz.