quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Algoritland


Perfeitamente compreensível que as pessoas se viciem nas redes sociais, que entrem no mais alongado transe enquanto repetem o baixa-baixa-baixa polegariano do feed de notícias. Não tenho smartphone ou WhatsApp, não frequento suficientemente o Twitter e sou desprovida de Instagram, mas estou imune? estou nada: curiosíssima por natureza individual e humana, é só me pilhar no Facebook que me vejo atrelada ao feitiço, enrolada no desce-desce-desce da timeline sempre em busca da próxima fofurice, do próximo causo, do próximo meme de humor ou luta (ou ambos) a ser compartilhado quase automaticamente pelos dedos compulsórios.

E olha: não sou, de modo geral, arrastável para vícios, nenhum me tenta – drogas, jogo (inclusive em versão videogame), bebidas, cigarro, tenho antes horror de tudo, tuuuuudo; tomar um gole de vinho em feriados de anos bissextos é o máximo de tangência a que chego desse universo de substâncias. Gosto muitomente de doces, porém sou mais inclinada aos salgados; mesmo um bom chocolate, que aprecio, nunca me levou a mandar para dentro a caixa inteira. Não é nenhuma superioridade moral nem orgânica, creio ser apenas preguiça de me aprofundar num só elemento, de me dedicar toda a passar horrivelmente mal por causa duma cisma demasiada. Em batata frita eu possivelmente me viciaria; seria talvez capaz de comer comer comer comer com eterno gosto e sem cansaço; entanto a racionalidade vence, não está disposta. Me parece que minha conformação geral é a de beija-florar na superfície e fazer só os inevitáveis mergulhos mais fundos.

(Quase) assim é nas redes, ou NA rede: o fato de só facebookar no computador possivelmente me preserva de chafurdar na Algoritland em regime de 40 horas; mas ainda assim, dado o meu histórico de pouca entorpecibilidade, acho já alarmante a facilidade de escoar 60, 120 minutos como que numa sedação de Bela Adormecida, sem responder ao tempo lá fora enquanto o feed vai sendo descido com indolência. Não é que me preocupe – afinal, passo dias inteiríssimos sem olhar o Face em face, ocupada com as devidas ocupâncias e isenta de sofrimento –, melhor dizer é que me espanta; assombra-me a vulnerabilidade que os inoxidáveis, traiçoeiros, mandrákicos algoritmos encontram em nossas frestas de carência mais insuspeitas. Assusta-me o jeito como nos enredam, nos seduzem, nos engajam, nos leem, don-juanescos, dick-vigaríssimos, lançadores de visgo até no cúmulo dos voos, no mais indiferente dos transeuntes. A maior (única?) defesa, penso eu, é estar 100% ciente do ataque, e ativar o modo cinismo diante das sugestões tão excessivamente apropriadas desse violador mental que nos conhece mais íntimo que amigos, parentes, analistas, e tratá-lo com o mesmo desconfiado humor com que se alimenta o flerte dos galãs de quermesse. A gente vai, sorri por desfastio, ri um pouco por esporte, aceita um ou outro elogio, dá uma cortada nas canastrices absurdas e volta, em seguida, aos afazeres que aguardam fora das cores hiperbólicas do arraiá.

De preferência sem ter clicado em nada.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

É tão estranho pensar que


eu nasci menos de cem anos após a abolição da escravatura.

Roberto Marinho nasceu menos de um mês depois da Revolta da Vacina.

Lula nasceu apenas três dias após a fundação da ONU.

Walt Disney nasceu no mesmo ano da publicação de A cidade e as serras, romance de Eça de Queiroz.

John Travolta nasceu no mesmo ano em que Getúlio Vargas se matou e Ernest Hemingway levou o Nobel.

Chiquinha Gonzaga faleceu no mesmo ano em que nasceram Elvis Presley e Luciano Pavarotti.

Noel Rosa faleceu no mesmo ano em que nasceram Saddam Hussein e Beto Carrero.

Madonna e Michael Jackson vieram ao planeta com 13 míseros diazinhos de diferença.

no tempito entre o Titanic deixar o porto de Southampton e naufragar de todo, deu-se a fundação do Santos Futebol Clube.

em 1937, houve aqui no ErreJota uma cerimônia CÍVICA em que se queimaram as bandeiras estaduais, para marcar a proibição de os estados terem quaisquer símbolos próprios.

Tóquio não é, oficialmente, uma cidade, e sim uma metrópole feita de 23 bairros, 26 cidades primárias, cinco secundárias, oito vilas e algumas ilhazinhas do Pacífico, localizadas a uns mil quilômetros. Pois é, mores: Tóquio resume geograficamente o tudo-junto-num-montão-no-fim-do-ano da matemática financeira do Seu Madruga.

a rainha Sílvia da Suécia tem, como ascendente longííiínquo, o líder tupiniquim Tibiriçá – que assumiu o nome Martim Afonso depois de convertido e batizado por José de Anchieta e Leonardo Nunes.

Winston Churchill ganhou o Nobel de Literatura.

Yuri Gagarin, primeiro homem a ir ao ES-PA-ÇO, morreu num acidente de ultraleve.

o famigerado e maldito-entre-malditos AI-5 foi sancionado no Ano Internacional dos Direitos Humanos. Sério.

a Inquisição também julgava os mortos, chegando a desenterrar seus restos somente para queimá-los na fogueira.

(aliás, a Inquisição portuguesa se alongou até o ano anterior à independência do Brasil – ou seja: meros dois séculos corridos nos separam dessa desgraça.)

nossa percepção de espaço e tempo se bagunça pelas muitas ampulhetagens paralelas onde o tempo passa.

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Incombináveis


Mas há também o que não combine com absolutamente nada; enxaqueca, por exemplo. É lá possível fazer alguma coisa que preste com enxaqueca? Inviável, ainda que não seja a cuja propriamente diagnosticada e dita, mas qualquer dor de cabeça comprida, renitente, que invade o raciocínio, bagunça as vontades, zoa planejamentos – e nem pra pelo menos ser amor, apesar da lista de sintomas de pagode. Ora, a regra é clara: para proceder a atividades costumamos necessitar da cabeça (sei, não tem sido uma prática unânime, mas still); dificilmente uma parte operacional da cabeça fica disponível quando o ragatanga de uma dor se instala e se inquilina, sempre tocando bumbo. Não há possível, honrosa, balanceada competição com esse bate-estaca de sótão.

Outra disputa que já nasce estéril e inglória é com as horas insones; não têm a alegria ravissante da criatividade que não dorme porque está possuída de si, têm sim a tristeza da energia nervosa, cansada, oca, estressada de horários e obrigações que chegarão a despeito do repouso falho. Incombináveis são, igualmente, as baratas, becos ambulantes da natureza; mui diferentemente (por exemplo) das aranhas, que guardam lá seu estilo e elegância, que combinam com o romantismo das casas mal-assombradas; mui diversamente das moscas, que às vezes chegam mesmo a ser azuis e já habitaram até poema do Machado; mui opostamente aos ratos, que nem preciso dizer o quanto podem (com uma boa consultoria de imagem) ser adoráveis e fofinhos, aptos para narrativas e adoções; – as baratas se restringem a aaaaaaarghs visuais, olfativos, inutilitários. Que a natureza me perdoe se a desequilibro mentalmente, desejando com empenho a sumária extinção desses bichos obsoletos.

Que mais não combina com nada? Aff, alarme de despertador, coisa gasguita que atravessa o sono como um sabre. Cica de fruta inacabada de amadurecer, que amarra por completo a boca e não deixa espaço para gosto nem fala. Peça de roupa rosa-chiclete, que consegue a proeza de azedar até com jeans. Calça saruel, aquela infâmia. Refrescos e refrigerantes norte-americanos de sabores vermelhos, azuis e sei lá mais quais, indistinguíveis. Chocolates tão ao leite, mas tão ao leite que não lhes resta de chocolate mais nadinha: só jazem na língua açúcar e gordura. Blusas de turismo horrendamente floridas. Galos portugueses sui generis que previam o clima. Camisas de enredo de escola de samba, produzidas em confusão e colorido medonhos. Embora – convenho – itens como refrescos inexpugnáveis ainda possam matar sedes, chocolates fake enganar fomes, calças e blusas horrendas serem recicladas como panos de chão.

Tem existências que não.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Combinações


Máquinas de escrever combinam com tapetes e samambaias. Cortinas combinam com odaliscas. Sandálias Melissa combinam com gibis da Turma da Mônica. Luzes de Natal combinam com discos voadores. Grilos combinam com lareiras. Vampiros combinam com talheres de prata. Palhaços combinam com bolos de aniversário dos anos 80. Remédios para dor de cabeça combinam com extintores.

O lilás combina com mimeógrafos. O neon combina com cachorros-quentes. A Rússia combina com aventais floridos. Saias rodadas combinam com cartas já amarelas. Mangas compridas combinam com brincos de esmeralda. Vitrolas combinam com cobertores de retalhos. Lírios combinam com gente sardenta. Brechós combinam com novelas das seis.

Fios transparentes combinam com a palavra "nácar". Latinhas de refri combinam com satélites. Gatinhos brancos combinam com almofadas vermelhas. Canetas Bic combinam com bijuterias infantis. Portas de madeira combinam com lobisomens. Cílios postiços combinam com lantejoulas. Irmãos postiços combinam com beliches.

Toalhas combinam com bolsas de franjas e com borrachas escolares. Proparoxítonas combinam com semáforos e com a aurora boreal. Lâmpadas combinam com fios de velhos telefones. Arcos-íris combinam (coexistem) com bolhas de sabão. Casas na árvore combinam com revistas da Luluzinha. Pães de queijo combinam com aeroportos. Waffles combinam com colmeias. Sacolas de mercado combinam com varais.

Epopeias combinam com tempestades. Contos combinam com escolas. Romances combinam com hotéis fazenda. Acrósticos combinam com aniversários de sobrinhas. Notícias de jornal combinam com radares. Sonetos combinam com terra molhada. Diários de bordo combinam com maresia. Diários íntimos combinam com a letra de "O caderno". Crônicas combinam com o café da manhã.

Blogs – e a Torre Eiffel – combinam com tudo (e com qualquer coisa de maçã).

domingo, 26 de setembro de 2021

Pequenas angústias


Suspeitar que não existem cores, flores, frutas, nomes, quadros, livros, animais suficientes no mundo.

Precisar escrever coisas dum universo emocional e estar, por motivos de vida, imersa em outro.

Ter a sede táctil de amimar bichinhos alheios, mas também o horror de soar descabida a seus tutores.

Conferir desesperante os números lotéricos.

Estar sujeita à contingência de um semestre sem caquis.

Estar sempre atrasada. Sempre, sempre, fatidicamente atrasada.

Vez por outra intuir que o mundo (nem falo do coletivo) descarrilou para um túnel de irrealidades, para uma versão farsesca da rotina, e necessitar seguir sob muitos olhos a rotina farsante enquanto a alma ainda não imergiu da vertigem para a tona.

Não poder sonhar felicidades pagas em dinheiro gordo.

Não poder tomar nos braços os personagens queridos, e apertá-los no peito até quase unificar os pulsos, e deitá-los no colo e correr-lhes os dedos nos cabelos adormecendo-os na entranhada certeza de serem amados.

Não poder ter a memória de tudo que já foi ontem. Sentir pedaços da vida tão desgarrados como se nunca.

Andar com a sincera desnoção de todos os ditos e reditos.

Encontrar pela casa os insetinhos roliços, de lentidão agoniante, que atacam mesmo em plena validade os saquitos de chá.

(Achar, aliás, qualquer insetinho não visitador eventual, e sim – porque residente – testemunho de alguma decadência.)

Ver ficções queridas serem forçadas à continuação, por consequência sermos também forçados a um reinvestimento emocional infinito – quando nós e elas só queríamos, plácidos, nos amar em tranquila aposentadoria.

Ver o dia clarear. Demorem-se mais, madrugadas livres!

Ter dor de cabeça de novo, de novo, de novo, por querer bem demais ao silêncio das madrugadas.

Não acabar de ver a lua antes que ela se suma, ligeira em excesso.

Morar num sono perene para tudo que é processo.

sábado, 25 de setembro de 2021

Quereres e poderes


"A única vantagem do poder: poder fazer o bem mais do que qualquer outro", segundo Baltasar Gracián. Toca aqui, Balt, concordo SUPER. Concordo também que, por sermos nós todos humanos em excesso, há inúmeras bestagens de criação 100% humana que nos roçam lá umas fibras de vaidade, como andar carregando títulos para cima e para baixo – doutora, meritíssimo, majestade, mestre, excelência –, meter credencial para entrar sem fila, ter plaquinha com o nome na porta da sala, ser perseguido para selfies e entrevistas, existir como autoridade no assunto. Há também soberbas materializadas em fetiches tão convencionados/convencionais quanto os tais títulos: dirigir o carro vermelho do cavalinho, usar a bolsa dos dois Cs entrelaçados, vestir as joias que serviam de paisagem ao café da Bonequinha de Luxo. Já outras criaturas se orgasmam mesmo de ter na mão a vida alheia, decidir milhões de futuros (ou de suas respectivas ausências) numa canetada; curtem apontar para um lado e emplacar uma guerra, aplicar ou aplacar uma sentença, e então virar o indicador para outro e liberar uma lei, uma estrada, um orçamento, um míssil. Há ainda aqueles de narcisismo tão, mas TÃO mendicante que o que desejam é basicamente incenso – o que os apaixona é a adoração pública, a devoção dos seguimores, a tietagem burra e histérica que lambe, adula, rasteja. Aí cada um com seu cada qual, e tio Freud quebrando a cabeça com todos. De minha parte, espero facilitar para o tio ao acatar Gracián por inteiro: o que desejo supertem nome – justiça que chama.

"Ah, mas tendo poder de verdade você ia querer comprar coisas caras, ia adorar ser reconhecida, distribuir autógrafos, discursar na ONU." Olha: não. Não é que eu seja nenhuma santa (quem dera), sou é intratável demais para me conformar em ser observada de alguma forma, fotografada, perseguida; tenho HORROR a que me amolem. Simplesmente HORROR. Se isso em pequeníssima escala – que alguém me telefone ou me apresse para sair, por exemplo –, imagina numa proporção balofa? Quanto a comprar coisas caras, céus, sou mulher de sebos e feiras de rua e brechós; acho aqueles shoppings e ruas feitos só de marcas chiques basicamente EN-FA-DO-NHOS. Com relação a discursar na ONU, talvez me tentasse, ainda que possivelmente eu vomitasse antes de puro nervoso – mas vá lá: esfregar alguns negócios bem desaforados nas fuças do planeta ia ser divertido, não digo que não. Divertido, porém, o poder de modo geral não deve ser, por vir acompanhado de grande privação do sossego e de grandes responsabilidades, já diria um outro tio (notadamente o Ben); eu só toparia encarar se, por mágica, pudesse manter-se completo o anonimato. Então sim, megassim; adoraria ir desatando umas tretas bem na moita, na maciota, sem canal ou empresa ou político nenhum ficar me enchendo os pacová e a caixa de e-mails (já bastam Renner, Extra e afins me floodarem de últimas-horas-de-não-sei-que-promoção todo fucking dia, dai-me paciência, se me der força eu esgano).

Nessas silenciosas condições eu queria ser poderosa, yeah, poderosíssima. Escandalosamente poderosa. Coisa muito pra riba de dono da Amazon. Queria plantar casas fabulosas para os que ainda não (ou não mais) as têm, solucionar as que estão precárias, preencher as que são insuficientes; queria ajeitar uma infância linda – sem trabalho, com um tantão de brinquedo e livro e sonho – para tudo que é criança atualmente não praticante; queria garantir tudo que é adulto num emprego pleno, estável, próximo à sua casa estável e plena, para dar tempo de fazer mais linda a infância dos filhos; queria alimentar todos com largas farturas, feijões inteiros, arrozes inteiros, carnes inteiras, vegetais excelentes, nada nada nada de fragmentos aviltantes; queria enriquecer professores e escolas; queria libertar os reféns de traficantes e milícias, e AS reféns de relacionamentos abusivos; queria disseminar terras entre agricultores familiares; queria reformar o sistema carcerário e o de saúde. Queria – quero –, enfim, o que se convencionou chamar impossível; mas a não ser o impossível, fazer o quê? Com que mais ia gastar dinheiro e tempo, tivesse a estranha honra de ser bastante e secretissimamente poderosa?

Não havia de ser para ficar (de) prosa.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Versos públicos


(Com sua licença, Augusto)

Vês?! Ninguém evitou o abominável
Avanço, no poder, da besta-fera;
Talvez o deus mercado é que pudera,
Querendo, escorraçar esse execrável.

Mas não: adaptou-se ao ser monera
Que infecta a nossa terra miserável,
Contanto que mantenha firme e estável
A lei que a eles paga e a nós, onera.

Toma tento! Só nós, neste bizarro
País, somos por nós; mas só esparro
Seremos, se nos dermos de bandeja.

Se a alguém causa inda pena a própria chaga,
Que lute contra o reino dessa praga,
Mercado incluso – Judas que nos beija!

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Um ser poltrão


(Com humildes desculpas aos catares de feijão cabralinos)


Um ser poltrão se limita com outro ser
também poltrão: só pode fazer par
com iguais que se prestarem ao papel
de, sem dó, jogarem fora quem sobrar.
Claro, todo canalha brilhará no papel,
alma congelada, de chumbo funesto:
pois, para apoiar esse poltrão, viver dele,
urge ser sempre rude e oco, mau, infecto.

Ora, nesse mimar poltrão entra um risco:
o de que entre os muitos tratos entre
um ai qualquer árido e indigesto
ao tolo ingovernável, que odeia gente.
Este o destino d'almas escravas:
seu dono lhes lança em face o ser cativo;
por essência e natura sibilante, desleal,
renega a proteção, lega todo o risco.

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Querer não é poder


Derramar o salário na Estante Virtual; amassar bebês alheios; viver de amanteigado e batata frita. Escoar a madrugada em programas de serial killer (para assistir, não para fazer, naturalmente). Descer escorregadamente à la bombeiro americano. Voar de primeira classe. Emplacar piscina de bolinhas na sala. Ter – eu disse TER – uma biblioteca. Manejar um sabre de luz.

Usar varinha mágica real/oficial. Montar um nichozito sofalmofadado de leitura – com passagem secreta. Enrolar uma buganvília na varanda. Dar na cara de negacionista. Dar casa para geral. Dispor de roupas e ambientes autolimpáveis, rejuntes antiemboloráveis e duas ou três máquinas personal desentulheiras. Não ser fisicamente obrigada ao sono. Tomar café sem azia e leite sem indigestão.

Realizar teletransporte, persuadir pelo toque, habitar casa na árvore (anda-me seriamente faltando a árvore), semear tirolesas no quintal (falta-me gritantemente o quintal). Tropeçar para uma Nárnia. Possuir com plenitudes um jardim secreto. Experienciar avatares na'vi. Surgir e ficar, via botton expresso, em Tomorrowland.

Fazer decolagens em dragões, pégasos, vassouras, hipogrifos; passar o dia em sebos brasileiros, portugueses, franceses; livrar criaturas exploradas dos respectivos exploradores; decorar apês de gente amiga; expulsar músicas-encosto; morar temporária e detalhadamente em Paris. Recantear minúcias de cidades, castelos, florestas, arquivos, aeroportos. Desenhar vestidos de noiva. Criar paciências milagrosas para a cozinha. Borrifar o mundo com essência de Starbucks.

Ganhar o Quem quer ser um milionário?. Nunca mais ter de tomar antidepressivos e omeprazóis. Meter correspondências e amizades interseculares com pessoas do XVIII e do XIX. Sacar de carpintaria. Sacar de costura. Sacar de artesanato. Desenvolver (para quem, lógico, não for psicopata) uma alternativa eficiente às prisões. Botar o mundo funcionando com energia solar e eólica. Distribuir curas. Escrever best-sellers babados também pelos críticos. Tomar posse fluente de pelo menos seis idiomas. Controlar a Força. Queimar o cosmo.

Operar num nível mui parente do impossível.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

O tempo e o vento


Hoje venta, venta, venta, venta que é um absurdo; há de ser o último dia antes da primavera, parece, e a natureza como que pontualmente vem expulsando o inverno com sua vassoura peculiar, feito os garçons e gerentes de estabelecimento que tocam os bêbados para fora com o advento da faxina. Senhor, que vento eterno! Horas e horas de galhos tombando, portas assustando crianças e distraídos, ruas virando um grande e único arbusto, vasos desabando em varandas, frutas amassando carros (sim, porque no inverno brasileiro as árvores poedeiras não se fazem rogadas), toldos se sonhando paraquedas, mensageiros dos ventos histéricos, ensandecidos em sua redundância. É isso uma mudança de estação carioca – caos e ventania, caos e ventania; no Rio de Janeiro até a primavera adentra o recinto falando alto.

Evidentemente, a maior preocupação são sempre as pessoas, e o prefeito inclusive já soltou nota pedindo aos circulantes facultativos que não circulem, sob risco de levarem algum oiti ou amendoeira ou poste ou marquise na cabeça (não, ele não usou essas palavras, mas qualquer criatura razoável pode deduzir o teor). Uma vez guardadas as pessoas, minha imensa dor de coração passam a ser as árvores caídas; não é que bem exatinhamente hoje, dia delas, calha de se arranjar uma tal chacina eólica! Me permitam lastimar que o Dia da Árvore tenha sido tão mal colocado – ou plantado –, assim no vão entre uma estação e outra, o que TODOS sabem ser sinônimo de clima insalubre para as homenageadas: venta como se Moisés estivesse abrindo o Mar Vermelho, cedo ou tarde hão de chover as tormentas acumuladas desde o Big Bang, e as pobrezinhas (impedidas por e pela natureza de se embolinharem em posição fetal, para defesa de todas as suas partes não subterrâneas) estão sujeitas a passar o pseudoaniversário sempre numa ressaca de pânico, feito mulheres cuja data especial acerta fatalmente uma TPM.

Toda vez que desaba um pé de qualquer coisa, ou é cortado, ou é podado com violência, sinto uma tristeza de morrer gente, uns revolveres de luto; esse que despencou em Botafogo, por exemplo, levantando inteiramente sua porção de calçada e esmigalhando (felizmente sem vítimas) um táxi e um carro civil: oh dor de ver, horizontalizado, o tronco velho o bastante para estar poeticamente verdinho dos musgos e cipós que vão tão bem com a madeira. Dói-me a queda da sombra – como é urgente a sombra, para cariocas! –, do guarda-chuva natural, da feitura artística da casca, das possíveis flores, às vezes não só possíveis como absolutistas, demolidoras de toda a folhagem para reinar exclusivonas. Dói-me a queda do hábito de quem contava observar sempre a mesma árvore, conhecer-lhe o ciclo, esperar-lhe a florada, ouvir-lhe as cigarras que a fazem de hotel-veraneio; dói-me tudo, a morte de tudo que a morte duma dessas rainhas vegetais implica, o vácuo irreparável que deixam naquele quadrado de rua, afeito a determinado ecossistema. Sim, é sempre viável o replantio – mas até maturar vai uma geração inteira, umas bodas de prata reaguardando o velho viço. Nisso é que me pegam: as árvores somos nozes em termos de demoras, idiossincrasias, microcosmos, perfumes únicos, belezas intransferíveis; planta-se outra e talvez mais bonita até, entanto a anterior nos sabia e nos era sabida, pronto, lascou-se. Nem a clonagem nos devolveria todo o tempo. Nada nos devolveria tudo a tempo.

A tempo de quê? – de não principiar a morrer, dalguma espécie de secura, um pedacinho específico do nosso minibioma particular.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Trabalho e ofício


Arremata-se um poema de Laís Araruna de Aquino dizendo que "meu trabalho consiste em redigir petições/ como todos os demais/ entanto meu ofício é deixar o coração aberto/ permanentemente/ o espanto não escolhe a hora de entrar".

Pois.

Meu trabalho consiste em semear leituras; entanto meu ofício é digitar pores do sol na tela, me arrebentando de cantar como as cigarras.

Meu trabalho envolve tecer formulários; entanto meu ofício é esquentar sopa de ervilha às três da matina para tomar com George Sand.

Meu trabalho engloba o derramamento de Vanish em roupas laváveis; meu ofício, porém, é um entornar definitivo de sílabas nos côncavos disponíveis.

Meu trabalho inclui engordar diligentemente o Google Classroom; meu ofício – este já se inclina para a busca e apreensão de nomes de flores.

Meu trabalho é o de dissecar advérbios e pronomes; meu ofício mora nas imediações das prateleiras de sebos.

Meu trabalho pede o destrinchamento de entrelinhas; meu ofício, entretanto, solicita fazer tranças de rimas variadas.

Meu trabalho me exige o arranjo de alimento para os dias; meu ofício me obriga (cá está a prova) a ler um contínuo de poemas.

Meu trabalho implica atirar cápsulas de norma culta; meu ofício me atira flechas de madrugada, da parte da lua cheia.

Meu trabalho me faz riscar quadros brancos de ponta a ponta; meu ofício, mui diversamente, me conduz a passeios longos por pitorescagens de alma humana.

Meu trabalho abarca a distribuição de notas; meu ofício, ufa! me larga livre, livre para unicamente por arte exercer julgamento.

Do primeiro ainda me aposento.

domingo, 19 de setembro de 2021

Retrato de uma menina

Mil pinturas me impressionam em cheio, não raramente retratos; um destes é o Portrait of a little girl criado por Diego Velázquez, o incrível barroco espanhol que tendia a acercar-se com respeito de seus modelos e averiguá-los não sem uma certa ternura. É tocante e interessantíssimo, na representação da garotinha anônima, que ele a tenha feito despojada de tudo – de enfeites, de minúcias do ambiente, de detalhes da roupa –, e consequentemente liberta do tempo: nada na imagem da pequena Porcia Bazán (se o pintor não quis nomeá-la, batizo-a eu) a prende a esta ou àquela época, sendo mesmo possível que ela fosse uma criatura de muitos séculos antes do seu XVII ou que vivesse perfeitamente agora. Nada, também, denuncia com precisão sua classe social; deduzo que não seja nobre, pela falta dos artefatos & aparatos típicos das fidalguinhas, mas como afirmá-lo? Não o afirmo, e no entanto considero Porcia filhita dum assistente/discípulo de Velázquez – crescida, portanto, entre tintas e movimentações de ateliê, apesar de sua indiferença pelo ofício ser quase completa. Porcia ama histórias, basicamente, histórias grandes e soberanas: guerras, conquistas, epopeias, cavalarias, graais; por trás do olhar timidamente intenso que o artista preferiu deixar-lhe como único ornato, pulsa uma Joana d'Arc todinha, fabricada de encomenda para se atirar no mundo revivendo os enredos lidos.

Sim, Porcia foi ensinada a ler – por seu padrinho Velázquez, inclusive, que se viu desde os primeiros convívios captado pela inteligência entranhada e teimosa da menina. São jovens nove anos duma vontade selvagem, muito quieta por excesso de observação, muito explosiva em momentos poucos; ainda que raramente fale sem ser obrigada, a mascote de ateliê mantém uma atenção eterna e quase violenta, uma dedicação obsessiva a compreender tudo quanto vê e escuta, e às vezes espiar o que acredita que lhe escondem. Diego não se aborrece, acha graça, até conversa frequentemente com a afilhada como que de adulto para adulto, narrando-lhe as viagens feitas e descrevendo lugares visitados. Verdade que os pais da menina, embora se sintam honrados com a paciência afetuosa do pintor, não exatamente se encantam com o fato de as narrativas tornarem a pequena ainda mais abstrata e arredia: a cabeça sanguínea de Porcia rumina, fermenta, rumina, fermenta por semanas as informações ali desabadas, e é com repugnância gritante que se arrasta em executar qualquer outra tarefa.

Além de Don Diego, apenas Nuño, menino da mesma idade da Bazánzita que vive recadeando no ateliê, faz alguma companhia a Porcia; é preguiçoso demais para leituras, o moleque, mas se presta a ouvir os planos combatentes da amiga e as histórias que os fizeram tomar forma – com o pobre Nuño ela fala sim, fala mesmo muito, por intuir no companheiro uma audiência pouco sofisticada, passiva, sempre admirada das cabriolas todas que saem daqueles neurônios galopantes. Só a presença do jovem docilizou a garota suficientemente para se deixar pintar por Velázquez de coração aberto; não que ela fosse recusar ser modelo do padrinho, mas sua timidez nervosa e de orgulho um pouco ranzinza resistia a se aquietar com a ideia até que Nuño lhe dissesse que "era preciso Don Diego fazer seu retrato, para que todos soubessem como ela era antes de suas conquistas". Porcia posou séria e questionadora como lhe era praxe; por dentro, um turbilhão de quixotismos fermentando, fermentando, desafiando com os olhos o mundo a não pertencer-lhe, se tivesse peito.

Essa a menina que vejo; cada um veja em si o retrato feito.

sábado, 18 de setembro de 2021

Criar

Paulo Freire, o que fica centenário neste 19 de setembro, disse em sua amorosa sabedoria que "a tarefa mais importante de uma pessoa que vem ao mundo é criar algo". Algo bom, naturalmente; não direi "algo útil" porque utilidade é conceito excessivamente vergado aos pés da lógica neoliberal tão criticada por Paulo Freire, e de fato tão abominável; mas o que é bom se faz útil de maneira automática, nem que seja pelo belezume de sua existência meríssima.

Pessoas nasceram para criadoras, doutro modo não teriam nascido – a natureza não é de desperdiçar-se. "Ora, e hei de ser criador do quê? se não sou ninguém, se não sei fazer nada?" Absurdo e heresia: humanos não seriam humanos se não estivessem cronicamente propensos a romper o vácuo com seus oxigênios particulares; herdando alma e DNA humanos, adentra-se o mundo como uma caixa de lápis de cor compulsória, ou milmilhões de legos fervendo na cabeça. Inteligência há; talento há; o que tende a faltar são as CNTP orgânicas para que a força potencial exploda em química realizada – como esperar que alguém transborde em flor sem o mínimo de calorias diárias, sem a refeição previsível, sem uns amanhãs já colhidos de véspera com a garantia de água, paz, teto, proteção, sossego? É de se esperar, sim, que os abençoados e garantidos nas CNTP se engalfinhem com a realidade até que todos os pré-requisitos de floração cheguem a todas as energias palpitantes, produtoras. Enquanto houver gente sem seiva para dar botão, o erro não é dessa gente desseivada, o erro é de quem come e bebe da terra sem assegurar que a terra possa vir a renovar-se e beneficiar-se de cada uma das fontes possíveis.

Obviamente não será desenvolvida uma teoria da relatividade, ou escrito um Dom Quixote, ou fundada a psicanálise, ou pintada uma Guernica diariamente, esquina por esquina. Não é sensato nem saudável cobrar-se de todo vivente que se efetive num baobá, num jequitibá, num carvalho, numa dessas criatividades turbinadas que a humanidade elegeu como icônicas. Apois: muitíssimo enfadonha seria a flora terrestre se inteiramente jequitibada ou carvalhada; onde os miosótis? as gérberas? as dormideiras fofurildas? as pitangueiras? os jasmins? os cactos? as suculentas? É ESSENCIAL gente que não seja nem Einstein, nem Cervantes, nem Freud, nem Picasso; gente que construa móveis, grafite muros, eduque filhos, invente gambiarras, alimente o Face de memes, crie bordões, apresente programas, monte coreografias, bole instrumentos, escreva novelas, atue em novelas, filme e ilumine e figurinize e cenografize novelas. É preciso gente que dance de maneira única com a vassoura, que faça bonecas de pano, que planeje vitrines, que desenvolva produtos veganos, que tenha paciência para digitar textões, que solte desmentidos de notícias, que imagine atrações de parques, que modernize a iluminação pública, que instale chafarizes, que simplifique fórmulas matemáticas, que vire médico da família, que estude insetos, que componha jingles, que use os pais de cobaia para novos sabores de muffins. É preciso gente para criar tudo, tudo que segue em frente, tudo que nos atualiza, nos refresca, nos alimenta, nos diverte; na criação não existe o pouco – pode, sim, existir o anti, que é a criatura empenhada do cabelo ao dedinho em desencorajar, destruir, desanimar, matar, enfraquecer, adoecer, devastar, aniquilar. A criatura que excepcionalmente gorou, não se fez criadora, a despeito de não lhe haver faltado ambiente: faltou um sabe-se-lá-o-quê que a humanizasse e lhe desinfeccionasse o ressentimento, a fim de não ser só capaz de transbordar em pus.

Nunca saberemos; a não ser que um portador de potência humana crie um consertador de humanice extraviada – e a reinicie donde foi quebrada.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Canseira

Segunda-feira, ladeira, esteira, turma faladeira. Chá de cadeira. Sonhos na coleira. Minions dizendo asneira. Loja careira, lixo que cheira, labuta caseira. Estampa de caveira (não gosto, não vejo maneira).

Vizinho + furadeira; apito de chaleira; "foque na carreira"; aspirador, enceradeira. Treta na geladeira. Novela com: núcleo-bobeira, trama rasteira, casal que se adora excessivamente de primeira – para a vida inteira.

Poeira. Feira. (Eca!,) banheira. Barulho de goteira. Trilha de cachoeira. Nunca ver florada de cerejeira. Gente vendo piroca na mamadeira. Gente conspurcando a bandeira. Corja grileira, fazendeira, garimpeira, empreiteira. Milícia sem fronteira.

Homens de chuteira, vácuo na carteira, arranhão na madeira. Meritocracia da galera herdeira. Filha de militar "solteira". Pinga-pinguing de torneira. Mosca varejeira. Aquele tal de Sikêra.

Rock pauleira, tonteira, coceira, lapiseira, fecho frouxo de pulseira, fruta fake na fruteira; desgrudar microgrãos da peneira; disfarçar olheira; limpar qualquer sujeira. Escutar o Menino Sérgio Reis da porteira. Escutar sociocegueira.

Cartão que vem sem que se requeira; pessoa nefasta que diz não ser coveira; piadinha de pavê e Mangueira; delírios de goiabeira. Cambada vacino-gazeteira. Queimadinho grudado na assadeira. Companhia errada na trincheira (que é onde rola a guerra verdadeira). Tranqueira. Mais tranqueira.

Segunda-feira.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Pés de lua


Sixteenth of September é o nome (não me perguntem por quê) dessa obra de René Magritte lindamente reproduzida acima. Acho deslumbrante em sua quase simplicidade: uma árvore, tema recorrente do pintor, destacada no meio do campo dentre as demais árvores, e portadora duma pequena lua crescente como um seu fruto único. Pedras circundam esse pé de lua – as formas pousadas mais ao longe no chão sugerem, aliás, que as pedras contornam a árvore inteiramente, estabelecendo-a como um espaço sagrado de ritual. Não é apenas uma protagonista vegetal, é uma sacerdotisa com tiara de lua pendendo sobre a testa, uma rainha mística dos espaços remotos; uma (perdoem-me a flexão bel-prazerosa do idioma, mas é UMA) símbola.

O pé de lua de Magritte é claramente fêmea; em primeiro lugar vem da terra o mais direto que se pode vir, o que põe o telúrico no quadro de maneira gritada, explícita; em segundo, banha-se no telúrico conotativo da noite, veste-se do luar azulado – e não se sabe do luar senão que seja vestimenta de mulheres. Ela mesma, árvore, é a noite, mais até do que a própria, já que no horizonte ainda resta bastante luz para que a escuridão seja sobretudo dela e para que os pequenos intervalos de suas folhas, por contraste, assumam o papel de céu estrelado. Não há lua nem estrelas no "verdadeiro" céu, que é liso e sem contrastes; toda a celestice, toda a majestade noturna estão na rainha de Magritte, firme e poderosa, nada econômica na intensidade das curvas e nem por isso menos ereta, menos focada em abrir caminho imensidão vertical acima.

Bem que somos todas, como a árvore de Magritte, pés de lua: distribuídas e objetivas, multirrâmicas e céu-direcionadas, concebedoras espaço-sagradas do fruto que tivermos na cabeça. Sabemos tanto abrir lacuna para que a luz nos vaze (e vaze de nós) quanto nos apossar da luz na fonte, ainda que indireta; somos tanto lunares quanto estelares; nos alimentamos do concreto mas crescemos capazes das abstrações mais ricas, dos absurdos mais lindos. Podemos brotar milagres de floração no meio da aparente normalidade e viver com (determinadas) pedras sem que elas nos limitem as perspectivas. Eu só mudaria na pintura, com perdões do autor, o isolamento dessa árvore simbólica: fêmea que é, há de estar abraçada e aprumada pelos ramos das mais, e não há de ser menos rainha; as outras, sim, é que serão majestadas no mesmo nível, e as copas de todas hão de desenhar o mesmo céu, e a lua vai se pendurar em todas como um mesmo fruto. Muito mais verde que ter um pé de lua crescente é ter um pomar, uma fartura, uma plantação de lua.

Cheia.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Isso não se faz


Não se visita ninguém sem combinação impressa, registrada, em três vias – muito menos se visita alguém desavisado com outro alguém a tiracolo. Mesmo com visita agendadinha com número de protocolo e senha, não se chega mais cedo: o anfitrião ainda está entrando no banho, PELAMOR. Não se dá pitaco na decoração alheia se não for implorado. Não se diz para a pessoa (ou conhecidos próximos que depositarão a opinião sobre a pessoa) que a pessoa está muito gorda, muito magra ou com qualquer aspecto que pareça doença, a não ser que REALMENTE pareça doença e ela apenas esteja em negação mórbida. Não se comenta – entre criaturas civilizadas – "viu QUEM a Fulana está namorando?": a Fulana está namorando quem quer e não é da nossa conta. Não se vira estátua do lado esquerdo da escada rolante. Não se insiste que alguém deveria, sim, ter filhos. Não se mente para uma criança.

Não se desmotiva uma criança. Não se diz a uma criança que saquinho de Cosme e Damião é coisa do demo. Não se desilude uma criança do Papai Noel (não é mentira, é fantasia saudável, e sempre dá para deixar que a certeza prosaica só chegue natural e saudavelmente). Não se conversa alto no trem, no ônibus, no metrô, na firma, no restaurante. Aliás, não se conversa alto em casa: qual a necessidade de ensurdecer familiares e livro-abrir a vida para vizinhos? Não se deixa descoraçãomente um casal sentar separado no transporte público, sendo possível evitar. Não se bota o ar-condicionado em modo frigorífico. Não se pergunta a uma mulher se ela está grávida. Não se perguntam números da certidão de nascimento, da balança e do contracheque.

Não se envia uma mensagem sem checar 8.437 vezes o destinatário. Não se esquece o celular ligado em aulas, cultos, missas, filmes, peças, papos (papos presenciais, naturalmente). Não se explica demais uma gafe, que piora 142%: desculpas e mea-culpa dão conta. Não se dá brinquedo de pecinhas minúsculas para presenteados minúsculos. Não se apoia genocida. Não se trata vacina senão como algo sagrado, praticamente um compromisso religioso. Não se come pesado pouco antes de dormir. Não se compete – sendo mulher – com mulheres, a não ser que se configurem fascistas. Não se quebra um silêncio sem a intenção de melhorá-lo. Não se fecha sob nenhuma hipótese um bom caminho que vem de ser aberto.

Não se mantém chance de erro inutilmente perto.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Espaço de ser gente

Não resisto a, com todo o respeito, usar Emicida de novo, já que a cada Papo de segunda vem outro frasco de sabedoria; desta vez sublinho e ressublinho um seu comentário a respeito da loucura de perfeição das redes sociais: é preciso arrumar um jeito de, nelas, proteger o espaço de ser gente. Vocês sabem, apenas gente – não criaturas que montaram uma horta suspensa de temperos frescos no feriadão, não seres que viram e resenharam num só ano 734 séries da Netflix e adjacências, não espécimes que acordam todos os dias com uma boa vontade fulgurante voltada para o trabalho, não cabeçudos insaciáveis que estão terminando o quinto doutorado enquanto pleiteiam uma bolsa em Harvard para o sexto; gente, só. Aquele grupo de viventes que não andam arrumados para festa, não fazem ioga, não meditam, garram a primeira coisa do primeiro cabide como look do dia e vamo nós, que as crianças estão lá se esbofeteando na sala e daqui a pouco chega o tiozinho da farmácia para entregar o remédio do caçula. That people.

Não se trata de enfear a vida, trata-se de desglamourizá-la – ou antes humanizá-la, descapitalizá-la, torná-la possível, viável, menos competição, menos produto. Por que maniçobas voadoras temos de viver tão em voz alta e altíssimos tons, batendo um cartãozinho de ponto imagético dia após dia (olha o que vesti, o que comi, o que cozinhei, para onde viajei, o show a que assisti), se verdadeiramente ninguém se alegra ou se importa tão de coração com deslumbres da existência alheia e, ao contrário, tende a desenvolver fortes negatividades de autodesgosto e de comparação? De que nos serve EFETIVAMENTE publicar nossas cenas montadas-para-felizes, se tanto nós – que publicamos – sabemos o que ali há de véu e filtro quanto os demais – para quem publicamos – se concentram não no que estamos fazendo, mas no que eles estão deixando de fazer? A quem serve esse exagerado embonitamento da rotina, se quem posta ainda tem de lidar com seus demônios não postados (e a cobrança muda ou ruidosa dos seguidores), e quem não posta tem de se haver com frequentes depressões e baixas de autoestima que não são úteis a absolutamente ninguém?

Claro que "exibições" eventuais de alegrias fora da curva fazem parte do jogo, como aliás fazem na vida mesma (a vida original, sem tela); elas acontecem, a gente quer gritar pra todo mundo ouvir tipo música do Roupa Nova. Normal. Mas todo dia, toda semana um esparrame de felicidade, uma cena de conto de fadas, um evento estrambólico, um passo edificante? Meça suas perfeições, parça; pessoas reais não suportam tamanha carochice ou bovarice, não há como isso ser terapêutico para nenhum dos lados envolvidos. O que se engorda mais e mais é o bolotão de neve da ansiedade, que soterra uns sob a demanda do sempre e outros sob a desolação do nunca, do ainda não, do nada dá certo comigo mesmo. Uma esquizofrenia generalizada, enfim; uma plastificação das realidade palpáveis que perdem a chance de mostrar-se lindas a seu modo e são, coletivo-inconscientemente, carimbadas de insatisfatórias, embora sejam o único chão pisável e, portanto, o único disponível para semeadura de satisfação.

É preciso proteger, resgatar o sagrado direito à gentice. Ser tocável; ser aquele que não quer (mesmo que tenha de) acordar às 5h para trabalhar, garantir produtividade e bater metas; ser o que não viu a série nem vai ver, não está a fim; ser quem não consegue tirar foto de filho em viagem porque os monstrinhos ainda não têm estômago para viajar, choram o tempo todo, vomitam, tornam todas as existências à sua volta um inferno; ser quem faz um miojo para si quando está sozinho e olhe lá, ou desce para almoçar no boteco – TÁ BOM que vou cozinhar uma receita da Rita Lobo e abrir um vinho só pra mim. Gente que não sonha voltar para a faculdade porque FRANCAMENTE, trabalho com regras da ABNT a esta altura?? Gente que vive com azia, não sabe descascar fruta, não está apta a opinar sobre tudo e é capaz de dizer "não faço ideia, preciso ler algo a esse respeito", se recusa a precisar emagrecer se a saúde está boa, compra lençol vagabundo, acha o máximo escolher roupa em supermercado. Sabe gente? Gente. "Homem humano", diria Guimarães Rosa.

A única espécie com que podemos seguir colegamente nas quebradas da travessia.

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Gaste-se


Ontem foi aquele Evangelho do "quem quiser salvar sua vida vai perdê-la, quem a perder por causa de mim vai salvá-la" etc. Não sei se reproduzo certinhamente as palavras; o teor é esse. Acho sempre uma fala impressionante de Jesus (como todas), porque eternamente atualíssima – sobretudo num Brasil acostumado às adesões venais, à esbórnia da política voltada para o eu e alijada do nós de maneira contundente, obcecada; é mui pouquíssimo de nossa tradição como país contar com a integridade absoluta, lidar com ela e reproduzi-la, dando-nos todinho-inteiros à estranheza de ser exatamente o que devemos ser. Em geral nem nós brasileiros esperamos uns dos outros que não haja algumas maleabilidades, algumas pequenas espertezas de fuga, algo de arredio e malandro em cada ato; às vezes por vício, às vezes por defesa nos fazemos inóspitos para a entrega profunda, ainda que grosso modo sejamos intrínseca e impulsivamente bons.

Tendemos para bons, mas frequentemente nos falta ser inteiros. Radicais.

OK, temos tido exemplos abundantes de radicalismo na outra ponta – fascistas insanos que não se poupam nadica em termos de ódio, distribuem ódio de baciada e para todos os "diferentes" em gênero, cor, classe, religião. Só que ser radical no ódio, na fragmentação é facílimo, qualquer idiota (aliás, principalmente quem é idiota) consegue mole mole mole, já que não implica esforço algum se autoconvencer de que tudo se trata de uma guerra e a salvação da vida exige pisar na cabeça alheia para se manter à tona. Doutrina confortável que não pede de seus seguidores nem talento, nem conhecimento, nem força, nem inteligência, nem valentia: basta uma meia dúzia de palavras de ordem e uma coragem nascida atrás das armas para tudo ficar arranjado. Aí qualquer um; quero ver é ser radical NO AMOR, bonitão. Não a praga que chamam (heresia!) de amor e não passa de uma das manifestações desse mesmo lado covarde, possessivo, ciumento, infantil – espécie de versão do amor no Planeta Bizarro –, e sim o amor original de fábrica com selo do Inmetro, que não desbota, não encolhe, não solta as tiras; o amor que adota as dores alheias como suas, em vez de gerar dores de outros para evitar ou resolver as próprias. O amor que se lembra de si secundariamente, por estar apaixonado demais pela ideia de gestar felicidades coletivas.

Embora esse também esteja aí para qualquer um, raríssimos são os uns que estão aí para ele, e não admira: não cuida de salvar sua vida se for o preço para salvar outras, não liga se vai se tornar socialmente repetitivo e desagradável ao denunciar absurdos, não se importa de ser chamado de comunista pela família inteira (por sinal gosta, ele é comunista mesmo), não se cala quando ameaçado porque há pequeninos que dependem de seu grito, não mente a não ser para fascistas e torturadores, não se reserva nunca o maior naco nas divisões, não evita ser eventualmente inconveniente, incômodo e insuportável aos que não têm pressa de solucionar o que é urgente. Amores desse naipe são indigestos em reuniões políticas; não se acanham de encher o saco com pedidos de recursos – fora o que derramam discretamente DO, e não NO próprio bolso; empregam seus talentos com furor pela paixão do bem, gastam-se e esfalfam-se sem dó (estão aí o padre Júlio e os Médicos sem Fronteiras que não me deixam mentir). Gastam-se, eis tudo: o amor real se gasta de todo, queima-se por completo, não se guarda para suas conveniências. Não se economiza.

É uma trip louca, concordo, mas cada dia mais necessária; tal qual o dinheiro adorado por tantos, amor deve espalhar-se, não adianta de nada se apenas acumulado na gaveta ou exibido na prateleira. A diferença para os cifrões é que amor é aplicação de longuíssimo, eterníssimo prazo – e tem a peculiaridade de, quanto maiores as retiradas, mais prolífica e petrolificamente jorrar.

domingo, 12 de setembro de 2021

Pupila do senhor doutor


Dos autores portugueses, provavelmente nenhum me foi tão querido (ou escreveu coisas tão-me queridas) quanto Júlio Dinis, cujos redondinhos 150 anos de morte lembramos hoje. Enquanto o exagerado, descabelado, debochado, prolífico Camilo encheu Romantismo e Realismo lusos de amores de perdição e de corações, cabeças e estômagos – o que aliás não renego, ao contrário: duvido que pessoa viva tenha chafurdado mais do que eu em camilianices –, Julinho sempre foi dos enredos fofos; nadica de gente desmaienta, apoplética, emparedada, enconventada, casada ou separada à força, enlouquecida por descobrir que era filha do irmão ou irmã do marido ou bastarda da mãe com o tio da quitanda. Camilo era um tornado extravagante, Júlio era o ventinho reflexivo, voltado para as crônicas remansosas de aldeia e os amores doídos mas possíveis – e felizes. As pupilas do senhor reitor foram minha primeira incursão adolescente na literatura portuguesa, um marco que me ensinou outro mundo, outra cadência, outra sintaxe; ainda lembro e vou lembrar forevermente suas inéditas trigueirices com reverência e doçura.

De Júlio (Joaquim Guilherme de batismo) só conheço um defeito triste, que foi o ter vivido pouco – faleceu no meio-dia dos 32 anos incompletos – e, consequentemente, ter escrito pouquíssimo para meu tamanho de gula: de romances foram apenas as Pupilas, Uma família inglesa, A Morgadinha dos Canaviais e Os fidalgos da Casa Mourisca, e fora isso alguma poesia, algum teatro, alguns contos. Certo, não deixou de ser bastante para sua juventude, ainda mais que também cursou Medicina e com destaque; mas quanto mais não produziria genialmente, se não fosse a tuberculose (claro) arrastá-lo tão cedito – a mesma tuberculose que lhe varreu a mãe, a avó e os OITO irmãos? Quantos romances mais, para além desses quatro dos quais três (somente por Uma família inglesa não sinto especiais afetos) estão sem dúvida entre minhas ficções mais importantes ever? Entre as mais importantes, sim: afirmo e reafirmo. Quem acha que – porque leves e românticas – as júlio-dinices são tolinhas só mostra, berrantemente, seu desconhecimento a respeito do autor, que tecia psicologias quase existentes de se pegar; personagem nenhum lhe saía da mão sem verdade e consistência, sem sólidos quês e comos, traços de personalidade bem definidos e, não raramente, algumas páginas de explanação emocional. Júlio era exímio criador de gente, e tudo indica que as décadas o fariam ainda melhor, se uma ou três lhe viessem de acréscimo.

Inocente pode-se dizer que tenha sido a prosa do querido doutor; ingênua, no way. Júlio se mostrou recorrentemente atento às questões sociais e políticas, à necessidade dum aproveitamento mais inteligente da terra, à inviabilidade duma nobreza imóvel e inútil no correr dos tempos, ao perigo extremo do fanatismo religioso entre criaturas que, desassistidas e ignorantes, ficam vunerabilíssimas a demonizar tudo que não compreendem (a esse respeito, há cenas nA Morgadinha dos Canaviais que gelam a espinha, sobretudo ao se considerar como esse retrato do horror soa familiar e verossímil em nossas esquinas brasileiras do século XXI). Mesmo a construção dos pares românticos dinisinos, fofurildos que sejam, não se parece dirreimanera com lances rocambólicos de folhetins em que um cruzar de olhares faz a desgraça de um casal para o resto da vida. Não; o amor júlio-dinisino tem raiz na infância ou na reflexão, às vezes em ambas; é racional apesar de intenso, é viável, delicado, reconhecível, constantemente tonto demais para acertar de primeira, imperfeito e só mais tarde sincero, hesitante e só então efetivo. Importantemente, as mulheres (donzelas embora) parecem estar sempre com ANOS a mais de evolução e arcabouço nas costas para lidar com as tretas sentimentais, o que só ratifica o senso de observação exemplar do nosso Julinho – que, não tenho a menor dúvida, viria a ser um mestre do Realismo como foi do Romantismo, se a realidade não se tivesse imposto extraliterariamente da pior forma imaginável.

A lusofonia, ou o Brasil ao menos, creio que não lê bastante o doutorzinho escritor; é pena. Nunca precisamos tanto de estudos sobre o provincianismo para (gentil ou assombrosamente) nos elucidar.

sábado, 11 de setembro de 2021

Onde estávamos com a cabeça


Aquele 11 de setembro faz 20 anos, e todo mundo que já era conscientemente alguém lembra onde estava no dia (eu estava na faculdade, olhando perplexa as televisões que exibiam umas tais hollywoodices num horário tão comercial). Mas e por dentro – todo mundo sabe onde andava? Vocês, mores, podem direitinhamente afirmar quem eram e quem deixaram de ser quando dois aviões bateram no mundo?

Claro, a reconstituição é impossível, impraticável; memórias e psiquês não se deixam recompor como legos facinhos, vai haver fatalmente a síndrome de "Missa do Galo" – machadianos entenderão – se manifestando nesse remolde que faremos inevitavelmente a nosso próprio gosto. Tentando romantizar o mínimo, direi que eu era uma pós-adolescente de boa vontade política no atacado, porém sem suficiente (in)formação política no varejo (ou o contrário?): uma criatura que ainda não se entendia ou reconhecia como de esquerda, coraçãozito mais empapuçado de amor e literatura do que de qualquer teoria que lhe botasse consistência no andaime. Fiquei sim estarrecida como todos, surpresa, não abalada – não abalada no sentido de não ferida o bastante; parece-me que, embora eu com certeza não fosse nenhum monstro de indiferença, intuía que a morte de inocentes em território americano nos afetava de maneira desproporcional à morte de inocentes promovida por americanos em outros territórios. Ou isso é recriação de minha adultice sobre a pós-adolescência que eu habitava?

Ora, eis que fui correr olhos no texto que escrevi há dez anos redondos, quando já saíra da faculdade havia muito, já trabalhava e preparava casamento. Pois, Jesus amadíssimo! não é que meti um trecho dizendo que "nós nem éramos americanos (infelizmente, continuamos não sendo)"?? Misericórdia de meus pecados, eu não sabia o que dizia. Foi decerto um momento aprisionado entre o oh, que maravilha conhecer a Disney e as primeiras noções mais sólidas, mais tijôlicas, mais irreversíveis da politização que só começou a concretizar-se mesmo a partir do famigerado 2013. Hoje nunca, never, jamé de jamé lastimaria não ser norte-americana, AINDA QUE isso implique o ser brasileira em nossa plena tragédia atual – JUSTAMENTE porque sei cada dia mais um pedacinho de como o Tio Sam, com seu dedo em riste, nos vem empurrando há décadas para o Caríbdis da tragédia, a nata do maremoto. Nem a mais vaga estocolmização me é agora possível, tantos anos após a pílula vermelha tomada, a Matrix para sempre abandonada, a avalanche de informações absorvida como um soco, como um fato, como força. Estive em Nova York; visitei o edifício reerguido no local do atentado; achei comovente e lindo que os administradores do memorial pusessem uma rosa branca no nome de cada vítima em seu respectivo aniversário; solidarizei-me de coração com os que morreram, com os que viveram, e vou estar solidária permanentemente por serem, em placenta de humanidade, irmãos nossos. Iguaizinhos aos irmãos nossos que sucumbiram e sucumbem em todas as demais ofensivas e guerras.

Mas aqui não nos faltam beós imediatíssimos para segurar, beós ali da esquina, que não vemos em hollywoodices de TV; infelizmente, desgraçadamente, não nos faltam corpos para velar aqui e agora – de fome e de covid, de desespero e de desemprego, de polícia e de milícia. Longe de nós desfazer da dor de quem, nos EUA, tem duas décadas de luto e saudade a lacrimudar em cura; é um abraço de amizade que enviamos. Só não se espere de nós uma atenção que certamente não poderemos oferecer exclusiva.

Passaremos o dia inteiro tentando resgates entre nossos próprios escombros.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Dia da Marmota


Hoje o coiso vai ganhar algum presente – violão, Bíblia, camiseta, panela, DVD dO rei leão, lixa de unha – e será fotografado com o objeto em questão fazendo pose de arma. Vai dizer que ano que vem não haverá eleição sem voto impresso. Vai dizer que o outro lado está esticando demais a corda e depois não se queixe de uma ruptura. Outras autoridades responderão que não vai ter voto impresso porcaria nenhuma, a urna é segura e mil vezes auditável. A *** soltará nota de repúdio contra a ameaça de golpe. Faltarão vacinas para a primeira dose. Especialistas convocados pelo jornal (qualquer um) sublinharão a necessidade de um ajuste fiscal. Matérias no mesmo jornal darão dicas de substituição da carne. Pesquisas apontarão a vitória do Lula em todos os cenários. Editoriais apavorados jurarão que a escolha continua sendo muito difícil e não é hora de extremos, precisamos avançar com as reformas. Uma reunião dos poderes será marcada para ver se Bolsonaro baixa o tom. Bolsonaro baixará o tom.

Bolsonaro subirá o tom, culpará o PT por [complete a lacuna] e reclamará que estão esticando demais a corda, não se queixem. Dirá que é imbrochável, incomível, inexpugnável, inenarrável, inderrotável. A ***, absolutamente chocada em Cristo, soltará nota de repúdio e completará que é preciso avançar com as reformas. Rodrigo Maia tuitará ironizando o criaturo e completará que é preciso avançar com as reformas. Rodrigo Pacheco discursará em tom conciliador e completará que é preciso avançar com as reformas. O sigilo fiscal de algum Bolsonarinho será quebrado e BolsoPai fará uma declaração escalafobética contra a vacina, o STF, o comunismo e o uso de máscaras. Chamarão Margareth Dalcolmo para comentar com firmeza e fofura a declaração e perguntarão à médica se não seria necessário fazer um ajuste fiscal. O STF questionará em público, indignada e retoricamente, onde é que nós estamos, e exclamará que quem será fechada é a senhora sua mãe (mas ninguém entenderá a mensagem subliminarizada entre mesóclises e proparoxítonas). Uma reunião será marcada para ver se Bolsonaro baixa o tom. Segue o jogo, não houve nada, Bolsonaro baixará o tom.

Caminhoneiros/motoqueiros/garimpeiros decepcionados subirão a hashtag #EuAcrediteiNoPresidente; em seguida receberão o briefing e baixarão o tom. O Pingos nos is passará não pano, mas fábricas inteiras da Hering para o presidente, quer ele tenha baixado ou subido o tom – já me perdi; de qualquer modo, a culpa é do Lula. Segundo a crescente média de mortes por covid no Rio de Janeiro, urge fazer um ajuste fiscal e avançar com as reformas. Moços e moças do tempo alertarão que o clima está seco, as reservas estão abaixo do mínimo e é urgente fazer um ajuste fiscal e avançar com as reformas. A *** soltará uma nota de repúdio sem destinatário específico, mas just in case. Faltarão vacinas para a segunda dose. Sem saber ao certo se está baixando ou subindo o tom, por não compreender o escrito, Bolsonaro divulgará uma cartinha desenvolvida no tocante à situação e o mercado reagirá feliz. Miriam Leitão aproveitará para dizer em tom apressado que é necessário fazer um ajuste fiscal.

Guanabara cantará mais uma vez que todo dia é diferente, todo dia é especiaaaaaal.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Preconceitos


Sim, também os tenho, ora se não; tenho preconceitos de monte. Mas não com pessoas, Deus me free duma desgraça dessas, e sim com livros – vá lá, pessoas acabam indo no bolo, se se levar em consideração que livros desagradavelmente não se escrevem sozinhos, e que malgrado minhas boas intenções eu tendo a tomar antipatia por autores que cometem nascimento (ou boa parte do vivimento) depois do século XIX. Acho coisa bem inconveniente mesmo, isso de o escritor não estar entre os 1700 e muitos e os 1800 e tantos. Que que a criatura vem fazer no século XX, gente?? no século XX nasci eu, não quero ficar andando literariamente com esse povo de lá. Confesso ir mais longe: se, em romances do finalziquinho dos 1800, começo a suspeitar que os "carros" do texto são carros mesmo e não carruagens, ou se começo a ver a história invadida por luz elétrica e telefone, fecho a cara e o livro, de entojo. Não estou exagerando; já interrompi leituras nas primeiras páginas – e doei as obras sem reabri-las – porque dei de cara com um mundo que ia ficando inadvertidamente similar ao meu, que não combinava com o próprio cheiro amarelo, que não casava com a própria capa dura. Falei, não falei? sou preconceituosa, lidem com isso; é uma cisma arraigada de gosto que não parece ter intenção de ceder num aproximado futuro.

Há exceções, claro, como os livros da Martha, que são sobretudo os que me salvam de meu oitocentosverso de tus e vós e donzelas e gentis-homens e toucadores e alcovas; há também o planeta poesia, que me soa tremendamente maravilhoso em meu próprio século e no anterior (agora frequento pouquíssimo os excessos dos versos românticos); porém o grosso da leitura se faz, sim, em tom de sépia, entre personagens que não se recadinham a não ser por cartas e bilhetes, leem poemas épicos em família e jogam twist ou gamão para escoar os serões. Não peço autor desconhecido na Estante Virtual sem escarafunchar a biografia do ser humaninho: preferência clara pelos nascidos AND morrildos no século retrasado (ou antes), a fim de não haver chance de o enredo transbordar para outro. No caso de a criatura em si ter transbordado de século, vou bem espiar o ano de publicação do romance – começar com 19 é fator de corte. "Mas você é louca, é uma celerada [convenhamos, não é delicioso retroceder uns cem ou duzentos aninhos só para dizer celerada?], está perdendo leituras de alguns dos maiores autores etc. etc." É verdade, vocês têm toda a razão; em compensação e em minha defesa, entretanto, digo que não ando nem um pouco mal acompanhada de qualquer forma: caminho diariamente com George Sand, Balzac, Machado, Jane Austen, as Brontë e outros tantos que não deixam ninguém mais burro. Tenho vácuos, sempre terei vácuos, mas tenho igualmente alguns preenchimentos.

Há mais preconceitos: apesar de ter estudado inglês desde pequena e provavelmente compreendê-lo quanto baste para a leitura, não compro livro em inglês, não paro para ler em inglês, não sinto prazer de ler em inglês. Nada contra a língua em si, não desgosto, mas com relação à leitura ne-ces-si-to da cadência latina, dos fonemas latinos; a fonética saxônica não dá barato, não bate. Falando nisso, tenho uma implicância robusta com literatura norte-americana, MESMO a do século XIX – não só não bate como não desce. Por quê? lá sei; culpa talvez de os meios e modos serem muito distintos dos europeus, de eu ser trop française nas queridices literárias, de os EUA parecerem estar sempre muito em clima de modernidade (e, portanto, muito aparentemente voltados para a tecnologia adiante), ao mesmo tempo muito imbuídos daquelas horrendas realidades da escravidão... "Mas não faz sentido, a Europa..." – CLARO, amigos, não precisam falar das canalhices da Europa, sei-as todas. Ôôô, como sei. Só que com a parte histórico-literária americana não consigo entabular uma remota simpatia ou interesse, odeio tudo; odeio aquele Sul horroroso e apartheidista, odeio as malditas fazendas de algodão, odeio aquela arquitetura à la E o vento levou... ou Django livre (quanto me arrepia a estrutura branca, amplo sentido, daquelas Casas Grandes!), odeio a estética do faroeste, odeio essa bagaçada toda com engulhos. "Mas nós também..." Sim, nós também temos nossas chagas, e abundantíssimas; fiquemos com as nossas, compreendamos as nossas. Que os brothers de lá segurem seus próprios beós e não me aborreçam – garanto que não se dão nem um tico ao trabalho de mergulharem em nossa história.

(Entantomente, sou mais aberta a amar do que imaginam, e dentro mesmo da teimosia me vejo capacitada para achar ternuras. Não sou um caso perdido. Se o cheiro das páginas acender muito a fundo algum fogo – tem jogo.)

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

A urna (eletrônica)

(Sobre os versos de "O caderno" e sob as vênias de Toquinho e Mutinho)

Sou eu que vou salvar você
De fazer um rabisco quando for votar
Em todos os governos
Escolhidos vou estar
Após a campanha,
Vem com fé e álcool gel:
Ninguém vai nem gastar com papel

Sou eu que faço pronta-entrega,
Sem problemas: logo todos vão saber
(Sofrer com) quem pros cargos nacionais
Foi se eleger
Serei sempre seu instrumento fiel
Se seu dedo tocar meu painel

Sou eu que luto e me afadigo
Pra não ter perigo
Dum ardil qualquer
Se acharem que sou caixa do Itaú ou Santander
Nem hacker, ninja, geek, vagabundo ou incel
Vão poder penetrar meu broquel

O que está inscrito em mim
Comigo ficará guardado,
Ninguém vai saber
Não há maquinaria ou gente
Pra me corromper
Por isso, apesar do que o zap disser,
Não me trate como urna qualquer

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Em aberto


É o que disse o querido Emicida no Papo de segunda de ontem: tudo no Brasil ainda está em aberto. A questão da escravidão, a do genocídio indígena, as torturas e sumiços da ditadura, a independência, a república – tudo absolutamente em aberto, em suspenso, pendurado, irresolvido, irresoluto, como se nós inteiros fôssemos uma de nossas metonímicas, intermináveis obras públicas, um desses elefantes brancos de concreto e desperdício que vão virando fóssil antes de virarem carne. O Brasil são reticências que não creem em suas urgências de ponto final, ou antes reticências a que essas urgências são negadas, não são permitidas; àqueles que por uns gordos cinco séculos vêm dirigindo o país, interessa muitíssimo que a terra viva em permanente estado de loading, de depois a gente vê, enquanto a realidade por-enquanta se demora (preguiçosa, congelada, paquidérmica) na lógica das Capitanias Hereditárias. Calma, gente, já vai, já vai, devagarinho vamos atualizando o sistema.

Acontece que o sistema do Brasil só se atualiza para outra versão do mesmo sistema, ou volta e meia para versões infinitamente piores, como nossa temporada de agora – que faria o estrupício do Windows 8 parecer o Magic Kingdom. O Brasil não precisa ser atualizado, migues; o Brasil precisa ser FORMATADO. Não mais trabalhado gambiarramente, remendadamente, com uma abolição feita de papel e sem reforma agrária, com uma emancipação que manteve liderança europeia e monarquia, com um fim de ditadura que anistiou torturadores e assassinos em vez de cavar fundo e nurembergar toda a corja; não mais tocado sob a ideia condescendente e mentirosa de que pronto, passou, o importante é seguir em frente – mas sim rebootado, reorganizado, relogicizado. O Brasil tem que EN-CA-RAR o fato monstro de que suas feridas originais não fecharão nunca sem assepsia profunda, continuarão infeccionadas, gangrenadas, necrosantes até que a limpeza seja direta. Definitiva.

Sim, tentamos fazer aqui e ali alguma distribuição de renda analgésica, alguma política de cotas antitérmica, alguma mudança no ensino antiespasmódica, e é bom, é mesmo fundamental; entretanto não é a cura – o ataque que leva à cura deve fazer-se no coração da doença, e esse tal coração bate no registro colonial em que operamos desde 1500, bate no sistema de privilégios então instalado e ainda não desinstalado. Por mais que, evidentemente, arrancar de nós esse encosto histórico seja mais ou menos tão fácil quanto tirar um Venom do corpo, melhoraremos assim ou de nenhum outro modo; principiaremos a sarar na ressemente da ressemente, no olhar completamente reinaugurado de quem sequer concebe que se possa perguntar "sabe com quem está falando?", no tratamento da terra como fonte de vida e não de ordenha insana e insalubre, na fundação de uma renda básica que não é luxo e sim direito, na equiparação dos salários sem discrepância baseada em cor ou gênero, no devido reposicionamento das forças armadas como recursos do país e não o contrário. Começaremos a reviver de ramos novos, de conceitos reflorestados, de revoluções, de devoluções: devoluções dos brasis afora aos que são seus legítimos donos por luta, trabalho, amor, escolha, origem, adoção.

Margens plácidas não nos libertam; Brasil é caso de furacão.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Mil folhas


Então pronto: ou muito me falham as aritméticas e sou mesmo um desastre numérico irrecuperável, ou tudo indica ser esta a milésima postagem. Não posso dizer a milésima crônica porque às vezes descarrilo e vou aos versos, e aliás nunca prometi me ater a qualquer gênero senão ao que me desse na veneta; se permaneço na área é que aqui tenho disso, moro no reino encantado do não prometer coisa nenhuma – em acordando e muito bem entendendo que me apetece hoje usar o inglês, uso, em cismando de fazer texto como análise combinatória, faço, em me ocorrendo montar um teste basbaque de revista adolescente, monto, não pago imposto por isso nem nada, ponto-final-saudações. Fosse diferente da liberdade mais absoluta e eu desfazia contrato comigo mesma. Só numa coisa intransigi sempre, prossigo na intransigência: brinca-se diariamente ou não se brinca at all. Não me perguntem a razão da esdruxulagem, que não sei, mas desconfio de que não tenho paixão bastante para fazer outramente, e que um qualquer esfriamento provisório me congelaria. Já lhes disse que acho que posto a cada 24 horas por mera e incontornável preguiça?

Sim, sou preguiçosa, creiam; quero que o blog, nascido como foi no outono, quase espontaneamente outone-se, espalhando-se dia a dia em folhas de forma e tom aleatórios a que calhe a vez de cair – desfolhando-se também como o calendário que, tendo assunto sim ou assunto não, não deixa de ficar pontualmente caduco duma partezinha. É mais fácil dizer o quê se já está decidido o quando: algum fato, algum suspiro, algum excerto, alguma obra, alguma parcela deste ou de outros mundos há de ter despencado por aí a dar sopa, a dar suco; força é achá-la, recolhê-la, espremê-la, vire-se. Não parece menos complicado buscar quando não se sabe o que se busca, concordo, mas com o tempo fica misteriosamente sendo – a engraçada caça dum fantasma temático vira coisa até poética, uma espécie de expedição parnasiana, a procura pela procura; a perseguição do encontro pelo encontro. Querer, buscar, procurar, escrever: verbos que pegam hábito intransitivo.

Se já estou, depois de tanta palavra e lauda, acostumada? quase; creio que suficientemente. Tudo bem que parece, não raro, uma gaiolinha apertante (não me venham dizer que não estou presa a compromisso nem remuneração, isso não faz despesar nadinha do peso, mores; o laço é interno. Teimosos não precisam senão de um laço interno). Tudo bem que há várias 24 horas em que a sensação mimetiza o filme Como se fosse a primeira vez: uma labutazinha é vencida, um sol se põe sorrindo a uma mission accomplished, mas dali a alguns minutos recomeça tudão, em roda-viva. Um microcarnaval diário, um minienredozito desfilando again, again, again em minha Sapucaí de estimação. Porém para todos os cotidianos que não nos aviltam há algum tipo de acomodação e costume; o receio de não dar conta se amacia, volta e meia até dorme no colo do dá-se um jeito. Antes do fim do dia ou do outro dia dá-se um jeito, cai dali ou daqui um verso, despenca acolá uma fala do Papo, irrompe um trecho de novela, explode uma notícia, ri-se de um meme, descobre-se uma palavra, esbarra-se com uma receita, sabe-se de um causo, desaba uma verdade histórica ou uma bobagem retórica e pronto, eis a cena alegremente armada.

Mas não prometo nada.