sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Catarses


Catarses: precisamos de catarses. Não barracos, pelo amor de Santo Onofre, e sim catarses. Precisamos de um ano com que possamos contar para isso, que não nos decepcione, porque do sonho das vacas magras (retratado na Bíblia, lembram?) já cumprimos como país uma parte bem grossa, com direito a participação especialíssima das pragas do Egito, que na história original só viriam muuuuuito depois das vaquinhas esquálidas. Chega, chega, o Brasil já pagou com mais de 600 mil vidas sua temporada desértica, já teve e está tendo os Quatro Cavaleiros do Apocalipse – mais a Besta do próprio – galopando ensandecidos por nossas planícies e especialmente planaltos, anos a fio. Hora de engordar as vacas, pular fora da escravidão, derrubar da sela os Cavaleiros. Hora do Êxodo.

2022 há de ser, com o amém de todos os anjos e santos, esse ano sacratíssimo do bota-fora: que não reste uma poeira de sandália, um grampo de cabelo, uma marca de copo, um meme, uma memória física sequer dos três ou cinco anos anteriores sobre os domínios deste que iniciamos; que nos limpemos, que nos limpemos tanto a ponto de essa travessia do Mar Vermelho nos traspassar de luz e simplesmente afogar tudo que ainda nos persegue. Que não fique nada, nada, nada – e não pelo fato de esquecermos esse exílio horroroso, afastado de toda sanidade, mas sim pela recusa terminante e definitiva de voltar a transigir mesmo que minimamente com ele. Feliz ou infelizmente não podemos esquecer; nada se aprende de olvido. Podemos, entretanto, lembrar com tanta nitidez da dor, com tanta consistência da tragédia, que ainda a menor faiscazinha de lamento pelo tempo decorrido seja abafada com um oceano. O período político que ora atravessamos, still fugindo às crueldades do faraó, há de se extinguir na última onda, há de submergir para os séculos dos séculos na tsunami de outubro. Que suma, que pereça, que sobre os restos desta época maldita nós sapateemos em alívio e liberdade, que seja referida na história apenas como Época Maldita – execrada como uma suástica, desprezada como os chicotes e correntes, símbolo eterno do que não deve sequer ser nomeado. Um vácuo de horror, meramente, ao qual se sobreviveu.

A partir de outubro (no máximo novembro), catarses: não sei se em casa ou em micareta, não sei se já sem máscara ou sob necessidade de, não sei em que situação material – só sei que CATARSES de libertação, vivas, espontâneas, como quando se extingue uma guerra, como quando retornam dela os filhos e maridos e prisioneiros. Catarses de performances, textos, teatros de rua, música soando nos becos, violinos cantando das janelas, sambas nos terraços, chuvas de pétalas nos centros, rodadas gratuitas nos bares, vizinhos gritando Aquaaaariuuuuus!, repórteres valsando nas entrevistas, festivais de adoções nos canis e gatis, grafites gigantes fazendo a festa dos muros, bolos quilométricos sendo partilhados nos bairros: catarses loucas de felicidade, loucas duma leveza legítima a que há tempo de mais ninguém se atreve.

2022: você nos deve.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Eu lhes desejo a esperança de esquina


Não há alternativa. Não há opção. Não há substituto. A esperança é doce e duramente compulsória, feito a democracia – que (como se diz) é o pior regime, fora todos os outros. Para que não ter esperança? se a ausência completa dessa vitamina mental só faz jogar-nos todos no sofá, desarmados e imperigosos? Esperança é o café com leite, o feijão com arroz, o pão nosso de cada dia: dai-nos, Senhor, esperança hoje. E depois de hoje.

Não há propriamente vantagem na esperança, sendo ela um default, como o oxigênio; há, sim, profunda desvantagem em não tê-la. Esperança é o sangue que corre porque deve correr, o coração que bate porque não lhe ocorre nada melhor que bater, a Terra que gira porque explodiríamos todos se não girasse; ela existe, ela é necessária e comum como a glicose, ponto pacífico. Não ter esperança é falsear o pé no vazio ou ser engolido em areia movediça de filme B; mantê-la é pisar o chão constante, possível, que desde o início deveria estar lá.

E, pois, eu lhes desejo esperança como lhes desejo ar e comida, chuva e estio, piso e teto, água e pulsação. Eu lhes desejo a esperança de esquina, a que esbarra com a gente entre prateleiras de sabão em pó no mercado, a que nos cumprimenta na farmácia; desejo a esperança óbvia, sólida, ululante. A que não teria como não ser. A que não sobe em torres de castelo nem sofre por antecedência. A que vai vendo, vai fazendo, vai arranjando, resiliente feito formiga operária, concentrada sobretudo em continuar vendo/fazendo e sem tempo ou (des)ânimo para dúvidas. A esperança despossuída de romantismos de nascença, embora com entrada USB para vir a adotá-los. A esperança prête-à-porter, fresca, de malha – certinha para enfiar pelo pescoço e sair usando, em vez de pegar mofo e amarelo na gaveta de querências basicamente impossíveis.

Não sei se é essa a "esperança de óculos" de que falou Elis, mas é a que lhes desejo: uma esperança renhida à força de ser serena, leitora, filósofa, observadora, sabedora de que os sinais se encaminham para a melhora e, portanto, não é hora de deserções. Uma esperança que é continuação para além de ser espera, uma que permanece no posto, uma que tem por grande mérito e heroísmo ser mui somente aquela que não abandona.

Não desejo a ninguém uma esperança cafona.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A vida é muito curta para


comer panetone só em dezembro.

armar a árvore só em dezembro.

(e desarmá-la no início de janeiro.)

pintar todas as paredes de branco.

assistir a filmes dublados.

pedir sempre o mesmo prato.

passar roupa.

vestir apenas o tédio, o fastio, o saara das cores neutras.

ensandecer com perfeccionismos domésticos.

não usar acessórios.

não usar blusas temáticas.

não gozar todas as férias – e as férias todas.

seguir numa relação violadora.

empregar somente inho nos diminutivos.

trocar de roupa exclusivamente para o sono.

pedir ao famosito perfeitamente aleatório pra tirar selfie.

não pedir ao famosito muitomente de estimação pra tirar selfie.

não ler Agatha Christie.

não ler exatinho o que se quer, sem cobrança nem hype.

não fazer pipoca.

não tratar alergias.

viajar e não sugar até o último próton da cidade-destino.

manter estéril o grosso do que se acumula.

não votar no Lula.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Sinopses de Ano-Novo que não sei se há, mas poderia haver

Numa cidadezinha dessas em que algo dará ruim cedo ou tarde, começam a brotar toneladas de flores maravilhosas e esquisitas, muito coladinhamente à virada do ano. Quanto mais se achega a mudança de folhinha, mais a floração branca se espalha, domina, embalofa; o problema (que não se mostra um problema para boa parte dos locais, encantados com o formato e perfume da espécie misteriosa) é haver um desespaço completo para os habitantes em meio a tanta fulô. Nada que uma boa contagem regressiva para o ano seguinte não resolva: é o cronômetro da praça zerar e todos, absolutamente TODOS os moradores desaparecem, como se a cidade nunca houvesse existido habitadamente. Um dia depois do aparente arrebatamento, testemunhas de fora observam, saindo da cidadezita, um tipo de peregrinação lenta feita de seres esbranquiçados – parece que robustalhudos e nutridos como se para 365 dias de paciente digestão.

Um rapaz pede para ser escalado no plantão de Natal, a fim de ficar a sós com a crush de anos e finalmente se declarar para ela. Contece que a moça, por causa duma conversa entre e mal-ouvida, passa a acreditar que o sujeito detesta animaizinhos – e atravessa o plantão todito fugindo como doida de qualquer aproximação de seu apaixonado, apesar de também se sentir atraída por ele há tempos. No dia seguinte, uma colega em comum desfaz o engano em que caiu a Julieta atrapalhada, e esta dedica a semana a tramar um plantão romântico de réveillon com o pobre Romeu, sem saber que ele (arrasadíssimo com o fiasco de sua Grande Tentativa) decidiu pedir transferência de filial por não suportar mais a visão diária da amada no trabalho.

Cinco pessoas avulsas se conhecem na queima de fogos em Copacabana. Com meia hora de papo, entretanto, parecem notar que não há real coincidência ou avulsidão: todas receberam mensagem no WhatsApp de alguém conhecido – cada qual de um amigo diferente – marcando encontro naquele mesmo local. Não seria uma evidência nada extraordinária se as mensagens não fossem idênticas, letra a letra, o que faz o grupo conversar sobre a possibilidade de o remetente ser um só e se utilizar de vários nomes; o fato de o marcador de encontro não aparecer para nenhum dos convocados reforça bastantemente a ideia. Na verdade o provocador, que é realmente o mesmo nos cinco casos, avisou cada recrutado sobre a reunião, dando-lhes porém a certezinha de saber o segredo exclusivamente. E o porquê da farsa? Eis que o Convocador é um roteirista espertchenho que, em busca de material fresquito, encarregou cada um de seus "espiões" de lhe narrar a experiência da virada em Copa; nada mais da hora em termos de script, afinal, que uma boa, velha e suculenta confusão polifônica.

Toda dança de meias-verdades é uma orquestra sinfônica.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Desfanfarra


Li uma matéria interessantíssima sobre como os fogos de artifício – esses terrores barulhentos que atormentam bichos, bebês, idosos, pessoas autistas – poderiam ser substituídos sem perda alguma de magia e belezume. Algumas alternativas citadas na matéria: enxame de drones (coisa realmente extraordinária, conforme pudemos constatar, inebriados, na abertura das Olimpíadas); lança-chamas (siiiim, a empresa Arcadia tem feito isso na Inglaterra – botado uma aranha gigante para soltar lasers e bolas de fogo pra cima, em grandes eventos); projeções no céu (diz que um artista britânico chamado Dave Lynch – e esse nome parece falar por si mesmo – já estampou cenas dum cavalo galopando nas nuvens de Nottingham, o que deve ter sido uma boniteza, mas é vero que funciona só em dias nublados); aurora boreal artificial (o HAARP, projeto baseado no Alasca, consegue sim reproduzir a maravilha com antenas de transmissão que emitem ondas de rádio); e uma caçambada de balões de hélio (coloridos, espetaculares e de menor custo, porém capazes também de provocar acidentes ao assustar animais, por exemplo). Um tanto de ideias meio doidas, meio lindas que me empurraram para as mesmas considerações: como, enfim, trocar por peripécias inocentes as formas de celebração atuais, que tanto berram? O que tascar no lugar da pirotecnia sem que a farra perca a graça e a grandeza?

O que me vem primeirinhamente à cabeça é que a projeção de luzes faria eventos soberbíssimos, se em vez das nuvens duvidosas (na Inglaterra é fácil contar com elas, né, bebê?) se usasse como tela uma chuva de papeizitos brancos biodegradáveis, quiçá alimentadores de peixes, caso a empreitada se realizasse sobre o mar. Os próprios papeizinhos, aliás – agora já em cores mildiferentes –, ocupariam como reis o posto de atração da festa: se é possível programar drones para desenhos milimetricamente sequenciados no ar, por que não dar um jeito de atirar os papeizinhos de maneira que, por alguns segundos, formassem fotos, paisagens, mensagens? Ou por que não providenciar que os papeizitos fossem (certo, não digo dinheiro, é querer levemente muito) uma mistura de pequenos recados fofos com vales e brindes que choveriam alegrias em milhares de mesas?

Outro delírio fim-de-anista que eu amaria particularmente: bilhões, trilhões, quintilhões de bolhas de sabão perfumadas que tornariam quase místico o réveillon das gentes portadoras de infância. E por falar em perfume, cadiquê não trocar o império de um sentido (quer dizer, dois – visão e audição) pelo de outro, e fazer o ano virar sob um espalhamento mágico de essências que poderiam ser exclusivas daqueles 365 dias, transformando-se em outra fragrância no ano seguinte? Alô, Boticário! bora agitar isso daí. Ah, com igual encanto n'alma eu vibraria de as entradas serem comemoradas com tempestade de tsurus e demais origamis lindinhos. E pétalas! Muitas, muitas pétalas. Aliás, flores inteiras e frescas que fossem direto para lapelas, cabelos, decotes, vestidos; ou que viessem em forma de sementes, caso o cenário se fechasse em terra e não em areia. Vida em sugestão e promessa, cores, maciezas – tudo que coerentemente se desejaria para um calendário que se abre, na sã e limpa consciência dos justos.

Paz na terra a todos os corações que não merecem nem carecem escândalo para avançar no tempo de verdade. Paz a todos que se empenham no silêncio de boa vontade.

domingo, 26 de dezembro de 2021

Que


Ainda não é hora dos fogos, mas já desejo (desejando, aliás, que não haja fogos, e no lugar entrem quaisquer formas de celebração desbarulhada): que todo dia se acesse o Climatempo para ver se há previsão de arco-íris. Que se normalize em definitivo a não-passagem de roupas. Que cada qual conte com seu próprio grupo irmanado pela fina capacidade de compreender todas as piadas internas, sem que, no entanto, as referências interníssimas a um grupo soem arrogantes à rotina e à vivência de outros. Que as pessoas se associem sem se monoliticar e escutem sem pré-repelir (a não ser fascismo: fascismo você escorraça na voadora, antes que diga boa-tarde). Que não se pergunte mais a ninguém quando vai ter filhos – no máximo se.

Que todos tenham domicílio inalagável, insoterrável, indespejável. Que as contas não devorem a parte do orçamento destinada à paz. Que nenhum coração de criatura considere aceitável a destruição como possibilidade de deixar sua marca no mundo. Que vacinas parem de ser aventadas como problemas, elas que há séculos portam soluções. Que árvores de Natal continuem sendo armadas o quanto antes, não porque Leader, mas porque lindas. Que livros sejam pegos, dados, amados e tidos como alimentos ou brinquedos. Que não haja censura, porém impere a bom-sensura. Que se soprem bolhas de sabão com as crianças. Que as temporadas do Papo de segunda sejam renovadas pelos séculos dos séculos. Que o padre Júlio Lancellotti seja renovado pelos séculos dos séculos. Que Emicida suba ao Ministério da Cultura assim que voltarmos à programação normal.

Que a audiência, silenciosa e renhidamente, grite um boicote monstro a toda empresa que nos queira meter um monopólio pela goela (sim, é com você, Disney, por mais que eu lhe ame as obras; meu cérebro não é binariozinho). Que todos tenham sobrinho, sobrinha, enteado, enteada, afilhado, afilhada a quem estragar de presentes fofos. Que se façam festas temáticas. Que não se pire na faxina. Que se afugente o mofo dos neurônios e das paredes. Que se aceite como não-da-conta-de-ninguém a orientação romântica de outrem, e só se busquem detalhes sobre o/a companheire alheie para não se errar no presente de níver ou Natal. Sim, que se pense no Natal ainda, muito, forte e (e)ternamente, mesmo que em março, mesmo que em julho; não se desgarre de nós como asterisco e símbolo de reinício sempre verossímil, no matter what. Não importa quem.

E que o nosso barbudinho volte logo, para o nosso bem.

sábado, 25 de dezembro de 2021

Natal parece


Laço aurirrubro. Canela. Vaso na janela. A letra de "Aquarela". Loja de brinquedo, vinhedo, livro de capa dura. Fim de formatura, lançamento de capelo. Capela. Pintura em panela. Rosa no cabelo.

Biblioteca, casa de boneca, vaso de suculenta, gente sardenta. Chocolate com pimenta. Suco e panqueca. Caixinha de música, relógio cuco, decoração francesa. Festa surpresa. Framboesa e menta.

Dança do folclore; West side story; musical da MGM; meme redondinho. O canto roupa-novo do Serginho. Pinha, pinhão, pinheiro; refogado brasileiro; balé sapateado. Bordado. O amor ao lado – o dia inteiro.

Pipoca, paçoca, pão de mel, toucinho do céu, lanterna de papel, renda no véu, bolo de mandioca. Doce de maçã; avelã; croissant; gotinhas na vidraça; nozes na massa. Magentas da manhã.

Igreja que bate o sino, grupo peregrino. Ícone bizantino. Chuva de fim de tarde; remédio que não arde; broa de milho, biscoito de polvilho. Crepúsculo sem alarde, manso, felino – e o luar seu filho.

Colares, purpurinas, trilhas nas colinas, bailarinas (dançando o Quebra-nozes), veludosas vozes cantando em coro; inícios de namoro; indícios de melhora; morango, mirtilo, amora, ave canora, xadrez escarlate. Mais chocolate, menos demora.

Buganvília rosa-choque, qualquer berloque, qualquer guirlanda; flores na varanda. Ruas da Holanda. Enfeites de feltro. Papel de parede – não neutro. Salada de quinoa, passeio de canoa, garoa nas raízes.

Todas as coisas felizes.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Todo dia algo nasce


Disse há pouco que amava o Roupa Nova, o que inclui suas doces bregalhices natalinas – aquela que fala "eu tenho certeza que a gente podia/ fazer com que fosse Natal todo dia", por exemplo. Cafoninha, claro, como 96% das mensagens da época; mas olha que errada a música não tá: todo dia algo nasce no mundo afinal, fresco e natalício, azul e inaugurante, novo, imprevisto. Todo dia se catapulta uma história virgem do nada para a existência, e alguma coisa importante começa, e batem os sinos para um nosso bem.

Surgem crianças inéditas: quem há de dizer o que não entrará de essencial no planeta pelas mãozitas de cada uma, em futuro perto ou lonjo? Livros terminam de ser lindamente preparados e editados: quem há de saber o quanto não hão de se enraizar, como formação-mor, nos corações que terão cargo revolucionário na linha do tempo? Uma árvore principia a lançar raízes: sabe-se lá se não serão essas raízes mesmas a dar a última, a fundamental segurada no barranco que não virá a desmoronar sobre vidas que não se tornarão só fotografia, de um para outro dia?

Podem estar aterrissando no mundo cachorrinhos que reacenderão o riso de pequenos doentes. Pode estar acabando de ser produzido o filme que aproximará o casal mais fofo e se-pertencente do universo. Pode estar sendo concebida a cientista que descobrirá como curar o filhito desse casal. Pode ter saído do forno NESTE SEGUNDO a única música que acalmará bercinhamente esse filhito. Pode ter sido tirada exatamente HOJE a foto mais intensa e denunciante do século. Alguém pode ter visto pela primeira vez uma borboleta, e guardar essa memória para um poema do livro que justificará o Nobel. Alguéns podem – devem! – ter recém-trocado o beijo primordial, ou recém-casado, ou recém-visitado a casa que há de ser alugada como sua, ou recém-escolhido o nome do restaurante que abrirão em sociedade. Pessoas ainda agorinhamente falaram ou ouviram um primeiro "mamãe!", leram sua primeira partitura, assaram seu primeiro bolo, tiveram um primeiro cinema, Big Mac, mar, futebol, trabalho, pôr do sol ou qualquer outro enredo inaugural.

Começa sempre, mas não acaba nunca de ser Natal.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Coisas que adoro apesar de terrivelmente cafonas


Músicas do ABBA – devidamente ilustradas por seus clipes bregões.

Cerejeiras decorativas crivadas de luzinhas.

Emojis rolantes de gargalhada.

Harry-potterices em todas as instâncias.

"Sandra Rosa Madalena". "O meu sangue ferve por você". "Fogo e paixão".

Camisetas temáticas: heróis, filmes, séries, fofurices.

(Tudo bem, sinceridade: o universo INTEIRO dos objetos temáticos.)

Temas romantiquildos de Ed Sheeran.

Cores fortes juntas, misturadas e amantes. Bagunça organizadinha de estampas too.

Colares combinantes com a roupa.

Cruzeiros – que aliás nunca fiz, mas quero um dia, se.

Tudo do Roupa Nova – que aliás NÃO é cafona, é ROUPA NOVA e fim de papo.

Aberturas/encerramentos de Olimpíadas.

Medalhas de ouro entregues sob hino soluçante e bandeira levantada.

Novelas.

Broadway.

Dirty dancing. Mamma mia!. O rei do show. Encantada. Disney, por sinal – em geral.

Roupitchas da ginástica rítmica e da patinação no gelo.

Cerimônia do Oscar. Certo: de outras premiações do cinema também.

Como uma deeeeeusaaaaaa... você me mantéééééém....

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

O que foi possível


Certo, eu odeio mesmo e odeio muito aquela canção do "Então é Natal,/ e o que você fez?", pela chatice xarope da música em si e pela AUDÁCIA da cobrança – à qual respondo infalivelmente que fiz o que foi possível.

Mas andamos fazendo realmente o que é possível?

Manifestamos de fato a ternura que nos habita, em lugar de estocá-la cerimoniosamente para ocasiões de gala que talvez fujam daqui a minutos, para nunca mais, num ônibus passante na esquina? Distribuímos o real excesso de nossos excessos, em vez de os ajuntarmos num eterno cofre esplêndido destinado a meras hipóteses? Ouvimos de-verdademente o que nos cabia ouvir, o que era mesmo destinado a nós, leigos e próximos – e não ainda ao psicólogo, que só depois entraria com sua audição profissional? Sorrimos quando a nossa única justificativa para não fazê-lo era uma pressa, um incômodo no braço ou na garganta, uma TPM que claramente não teria piorado se nos dignássemos a saudar alguém com olhos risonhos por trás da máscara?

Cumprimos tarefas basiquetes que só tinham a preguiça como potencial fator de não-cumprimento? Obedecemos às nossas arraigadas intuições que não levariam vantagem alguma em ser mentirosas? Fomos pela direita (na escada rolante e na calçada! SÓ na escada rolante e na calçada!!) e destrancamos o fluxo com um micropassinho corrigidor de rota? Pagamos para outrem todos os pratos de comida obviamente urgentes, demos todas as forcinhas sem dúvida emergenciais? Compartilhamos os desmentidos de fake news confeccionadas para atirar no peito da democracia? Fizemos listas para evitar gastos fujões? Fizemos força para evitar escapes de palavra crua? Olhamos (ao menos uma vez) a lua?

Plantamos o que quer que fosse plantável – flores, conselhos, temperos, poemas, árvores, ideias? Cantamos e contamos para crianças dormirem? Relatamos fatos para adultos acordarem? Aceitamos apoios oferecidos com amoroso orgulho? Topamos aventuras viáveis? Caçamos alternativas lúcidas? Arrastamos teimosos para a vacina? Regamos sonhos alheios testemunhados em semente? Demos uma particulazinha de chance aos desacreditados? Choramos uma cota razoável de emoção humana, ainda que fosse em novelas? Escrevemos bilhetes com um pingo de consideração embutida?

Fomos membros associados da vida?

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Proparoxítonas


Sabem o que parecem as proparoxítonas? Lâmpadas orientais semitransparentes com luzinhas pequenas, macias, que queimam românticas veladas pela seda. Parecem tardes em que o sol vai caindo precoce, alcança cedo seu pico e cedo entardece, enchendo tudo de rosa liláceo; parecem vidros de tão voltadas para o translúcido, para o outonal, o primaveril, a véspera – já não é lírica por demais a própria menção da véspera? Lírica, poética, esplêndida, simpática, magnífica: quase toda adjetivação proparoxítona ganha ares de púrpura, por dramática e solene que se torna logo que escorrega da escrita ou da fala. Proparoxítonas são de essência roxa, crepúscula; são, na língua, trajes operísticos ou vestidos de festa, roupas bordadas de pirilampo para frases categóricas. Não se usa proparoxítona sem se estar engajado em fazer o mínimo de cerimônia.

Quase sempre um termo de força antepenúltima tem um quê de fluido e diáfano, mas nada impede que o enigmático que vive nas proparoxítonas ganhe ares de lúgubre, tétrico, hipocondríaco – vide a fácil coleção de palavras esdrúxulas que um Augusto dos Anjos usa em suas linhas: amoníaco, inorgânica, túmulo, fatídico, víscera, acérrimo, pólipo, sarcófaga. Proparoxítonas dublam o mistério em si, sendo portanto natural que sua alma arroxeada e mística se materialize tanto em luz difusa de abajur lilás quanto em veludo fúnebre, em cenário de luxo fantasmagórico; são um vocabulário de qualquer modo excêntrico, mirabolante feito malabarismo, irregular, gótico, barroco e acamurçado. Até para rimar essas joias da extravagância se fazem difíceis, com sua mania meio steampunk de serem peças únicas, fadadas à incombinação – monstrinhos esquisitos fabricados por mãos artesãs.

Em compensação, rimar proparoxítonas com exatice sonora é a glória dos rimadores, e exige artes interessantíssimas de ignorar o que é visível para aclamar o que é pronunciado. Daí que formas verbais entram no baile e nascem duplas aparentemente estrambólicas: "apêndice" e "vende-se", "apólice" e "colhe-se", "hélice" e "desvele-se", "cálamo" e "fala-mo"; não são propriamente achados, são entalhes na madeira ou na pedra, reproduções de gemas que a natureza já deu por lapidadas. Há um gozo límpido em fabricar semelhanças raras, convergências não óbvias, e sim de eleição – fabricar, basicamente, contextos em que termos tímidos se toquem numa dança comum. Porque é isso que são também as solenes proparoxítonas: pérolas tortas com sede de colar, mas com vocação de solitário que coroa o anel, afastado, inatingível, eremítico.

Proparoxítonas são o idioma em estado crítico.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Mais sinopses que talvez não existam para títulos natalinos que já


Um herói de brinquedo – Duas garotinhas se perdem na mata durante um acampamento de fim de ano com toda a família. Para acalmar a caçula, a maiorzita afirma que seu boneco do Superman as tirará da encrenca, e começa a inventar várias histórias confortadoras sobre o brinquedo que levam a tiracolo. Fato é que o bonequinho, parte despareada dum antigo walkie-talkie com que a mãe se divertia na infância, continua transmitindo sem que as crianças saibam, e seu sinal é captado por comunicadores da equipe de resgate; mui infelizmente, porém, voz que venta lá não venta cá: embora acompanhem emocionados alguns trechos dos diálogos entre as meninas, seus buscadores e familiares não conseguem se fazer ouvidos por elas – só podem se dividir entre torcer para que a frequência seja rastreável e/ou para que as dicas involuntariamente dadas nas conversas iluminem a localização das gurias.

Milagre na rua 34 – As 42 ruas duma determinada cidade devem ser progressivamente evacuadas entre novembro e dezembro, a fim de que haja um desvio considerável no curso de um rio – alteração tão imensa que inviabilizaria a sobrevivência na região. Na trigésima quarta rua da escala, entretanto, vive um rapaz autista que se desespera com a perspectiva de abandonar o jardim que adora desde a infância; seus pais também se angustiam profundamente ao vê-lo adoecer e espalham a história pelas redes, na esperança de que algo ou alguém aconteça para salvar o dia. O caso ganha tanta repercussão que uma vaquinha se organiza nacionalmente e contrata uma transportadora especial (daquele tipo que carrega uma casa inteirinha no caminhão) para remover o jardim numa só peçalhona e depositá-lo, glorioso, no novo endereço da família.

O expresso polar – Três senhorinhas apaixonadas por seus sobrinhos-netos criam para eles, no quintal, um miniparquito com direito a trenzinho feito para passear de verdade com as crianças. Mas as tivós amorosas ignoram que sua muita amorosidade injetou no trenzinho a capacidade mágica de ouvir e agradar aos pequenos, a despeito mesmo de o desejo ser razoável; e ignoram que os pequenos, enquanto brincavam em histérica felicidade no quintal, conversaram sobre a vontade de voar no trenzito para visitarem o Papai Noel no recesso de seu lar polar. Quando o miniexpresso se agita para a parte do "seu pedido é uma ordem", as tias fofas só têm tempo de se agarrar aos vagões e ir a reboque na viagem, que lhes sairá mais a contento do que podiam crer: a energia limpa e abraçante das velhinhas rende para as três uma proposta de emprego fixo no Polo Norte – e, para uma, um amor inda mais definitivo.

Que o tempo melhor é estar vivo.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Sinopses que talvez não existam para títulos natalinos que já

O amor não tira férias – Numa versão ópera-rockeada do Olimpo, o bonitão Eros anda exausto e desacreditado de suas funções, já que não se sente capaz de experimentar o que ele mesmo representa. Tão distraído, rebelde e má-vontadoso anda que decide bater asas rumo a um sabático, assim que realizar um último serviço barbarizando e flechando todo mundo aleatoriamente na festa da firma. Acontece que a DJ Prissy Q., contratada para assumir o som do evento, percebe o que o machinho revoltado quer fazer e tenta impedi-lo, donde resulta que os dois acabam se ferindo com a mesma flecha.

O estranho mundo de Jack – Mais uma aventura pirática do capitão Jack Sparrow, que dessa vez, por se ter lembrado em sonho de uma única cena inocentemente festiva da infância, fica obcecado em celebrar com seus tripulantes de maneira tão natalina quanto possível, sem ter, porém, nenhuma ideia decente de como agitar a coisa. Para animar a ceia esdrúxula providenciada pelos piratas com o que há a bordo (incluindo uma "árvore" de cordas enfeitada com joias recém-pilhadas), um toque de Casos de família: Jack recebe a visita duma sereiazinha adolescente que jura que ele é seu pai.

Esqueceram de mim – Determinado ano se desenrola tão, tão crazymente (sim: peguem 2020 e 2021 e multipliquem) que 90% das pessoas simplesmente não se dão conta de que loguíssimo será Natal. Os 10% restantes notam o absurdo, mas pelo mesmo absurdo se veem asfixiados – e logo crentes de serem eles próprios os insanos. Negócio caminha nessa dupla negação histérica até que um grupo de crianças dez-por-centas começa a convocar outras e outras e mais outras, pela internet, para que comecem a encher suas casas e ruas de músicas natalinas: apenas um violento ataque sonoro (do qual os olhos não podem fugir voluntários, indiferentes) parece dar esperanças de descongelar a amnésia universal.

A felicidade não se compra – Um guri estilo Riquinho, órfão, cisma que quer alugar uma família para si mesmo no Natal, e manda a proposta indecente a um casal que faz entregas em sua mansãozona. Ambos estão carecidos e pensam em topar, porém o Riquinho em questão não foge à sua loucura elitista ao fazer uma exigência: durante a ceia e a manhã natalinas, seu "pai" e sua "mãe" alugados precisam ser exclusivamente dele, sem abertura para a presença-brinde do "irmãozinho" que já é filho legítimo do casal. Ele e ela ficam mexidíssimos com o impasse: ou dispensam a grana que cairia como uma solução sobre sua quase falência, ou quebram o coraçãozito de seu menino na época que é, para ele, a mais luminosa do ano.

Cai (um mar de soluços n)o pano.

sábado, 18 de dezembro de 2021

Também nunca me ouvirão dizendo

Bandido bom é bandido morto.

Livro físico pra quê? Cabe tudo no kindle!

Também ela estava procurando...

Sério que você vai fazer MAIS UMA tatuagem?

[Insira qualquer verbo] minha lente de contato.

Liga aí a TV que já vai começar o jogo.

Deixa eu só passar um batom.

Sei lá, tô achando esse salto meio baixinho.

Que mané direitos humanos!...

Não carece hotel: a gente aluga uma casa de praia pra família.

Comprei ingresso pro Rock in Rio.

Comprei ingresso pro dia do metal no Rock in Rio.

Quanto antes a criança descobrir sobre o Papai Noel, melhor.

Deprimido(a) o quê! Que bobagem!

Joga essa papelada fora e pronto.

Não vejo a hora de cair na piscina.

Até que esse [nome de qualquer criatura bolsodoida] diz umas coisas certas.

A culpa é sua.

Não tenho tido sono há dias.

Acho que não vou armar árvore de Natal este ano.

Oba, é de palmito!

Liguei só pra ouvir sua voz.

Ah, não encho mala não, se precisar compro lá mesmo.

Como é que eu vou explicar pra criança esse negócio de [insira qualquer preconceito de gênero/orientação]?

Queria um pé-direito de cinco metros.

Pinta logo a parede de branco e acabou-se.

Sou chocólatra.

Sou uma formiga.

Claro, deixa seus filhos lá em casa.

Não sou de direita nem de esquerda [isso eu já disse; jamais se repetirá].

Mas nesse caso o coiso tem razão.

Tinha que privatizar!

[Blablablablablá] essa vacina experimental.

Não aguento mais as decorações de Natal!

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

I'm dreaming

(Sobre os versos docinhamente originais de "White Christmas":)


Luz de âmbares, cristais, prismas
nos atravessa como um gol,
qual se enfim se abrissem
os céus, caíssem
mil bênçãos sobre quem lutou

Sem guerras, divisões, cismas,
venha esse tempo de ouro e paz
Que o terror não volte jamais
e haja vida em todos os Natais

🎄🎄🎄

Sem guerras, divisões, cismas,
venha esse tempo de ouro e paz
Que o terror não volte jamais
e haja vida em todos os Natais

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Nunca me ouvirão dizendo

Pote? Precisa não, já temos potes de mais.

Essa casa está muito silenciosa pro meu gosto; bora chamar a galera.

Liga pro meu celular.

Te ligo mais tarde.

A escola fica tão triste sem a bagunça dos monstrinhos...

Obrigada, estou sem fome.

Obrigada, não estou com sede.

Me vê um [insira aqui qualquer gororobomba] de camarão, por gentileza.

Sim, com borda recheada de catupiry.

Tá na hora de uma boa faxina.

De que adianta ter férias pra ficar em casa?

Vem comigo ao banheiro?

Estou com saudade de [insira aqui qualquer nostalgice].

Aquelas músicas antigas é que eram boas.

Aquelas novelas antigas é que eram boas.

Aqueles filmes antigos é que eram bons.

Pode fumar, não me incomodo.

Às vezes me arrependo de não ter tido filhos.

Nessas horas é que eu queria saber dirigir.

Adorei essa estampa dos anos 70!

Esse é o mesmo tema instrumental que toca em [insira aqui qualquer filme, sobretudomente de ação].

Não acredito que você tira as azeitonas!

Queria tanto uma banheira.

Vou chamar um uber.

Vou lavar a cozinha.

Vou preparar um prato especial.

Pode deixar, eu cuido da parte burocrática.

Alguém viu meus óculos?

Aff, por que eu chego sempre tão cedo?

Claro que te empresto. Livro é pra circular!

Precisa do despertador não, eu acordo antes.

Partiu ver os fogos na praia!

Taca aí um pagode!

A cerveja já tá gelada?

Nem sei o que eu faria depois de aposentada.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Abstrato pelo concreto


"Para entender o coração e a mente de uma pessoa, não olhe para o que ela já conseguiu, mas para o que ela aspira." Disse-o Khalil Gibran, e corroboro: o que alguém já conseguiu, sobretudo em termos materiais, esbarra sempre no ponderável das economias humanas (cruéis, tão cruéis) e no imponderável da roleta de sorte; onde se nasceu, onde se cresceu, com quem e como se viveu determinam muitíssimo mais o que se realmente atinge do que qualquer esforço meramente individual  e sempre davi-golíaco – pode determinar. O que é materializável em tijolo e documento, em cimento e diploma, em trabalho publicado ou imóvel quitado, em prêmio obtido ou tese defendida, em resposta científica encontrada ou loja espalhada em império – isso é inelutavelmente atado às normas do mundo, às mil amarguices circunstanciais que algemam ou libertam braços e pernas, que franqueiam aqueluns crachás e confianças, que ao contrário barram aqueloutros, que posicionam uns na raia com 2.837 obstáculos por metro e acomodam outros num trem-bala direcionado à área VIP. Ter conseguido usualmente diz mais sobre o mundo para nós do que sobre nós para o danado.

Aspirar, embora fluido, é maneira muito mais sólida de alguém se ver representado.

Querer é íntimo, é livre, é próprio, é gratuito; dá pra cometer querência no ônibus, indo pro trabalho que se pôde obter e que se detesta. Dá pra querer grande e profundamente mesmo longe demais da meta, e querer durante o banho de 5 minutos espremido entre dois expedientes, e querer sem precedente e sem padrinho e sem grana. Claro: não se pode ignorar que toneladas de realidade inglória, fome, violência e azedumes afins asfixiam também as condições do desejar, tanto quanto as do obter; não se pode fingir que gente desnutrida de todo alimento físico, mental, emocional há de se criar em pé de igualdade no sonho com gente que nunca soube o que fosse a prostração do vazio, o cercadinho da mera sobrevivência. Não, mesmo na aspiração não existe conformidade entre as vidas – nosso abstrato está algemado ao concreto e é por intermédio dele que recebe (ou não recebe) a mínima glicose na veia. Ainda assim, se resta um domínio em que é mais acessível ser rei e rainha no que há de humanamente essencial, esse é o reino dos idealizares, ou ao menos dos sentires com legitimidade, embora sem plano: o que se DESEJARIA fazer se se pudesse nos estilinga para o voo real; o que a realidade nos permitiu fazer antes de destruir-nos somente nos engaiola num epitáfio.

"Ah" (por exemplo), "Fulano Albuquerque Peixoto Maia montou uma rede industrial poderosíssima que emprega milhares, enquanto o fracassado do primo Beltrano fez o quê? construiu nada, emenda um projeto falido no outro, de vez em quando se afunda no vício e ainda depende, pro tratamento, do dinheiro da família que ele só gasta e não ganha." Pode ser; isso é ao menos o que vemos de fora. Mas e a parte em que o Patrão Albuquerque Peixoto Maia se bilionarizou porque herdou um esquemaço do pai, ou foi cortando benefícios e mais benefícios dos colaboradores que terceirizou ao máximo, além de não só não soltar incentivo para a qualificação dos funcionários como demitir vários superqualificados com 30 anos de casa (afinal, gente mais "moderna e aberta a desafios" aceita muito mais e ganha muito menos)? E a parte em que o primo Beltrano Maia, aparente desgosto dos seus, entrou em depressão profunda durante seu voluntariado nos Médicos sem Fronteiras, voltou da experiência dependente de calmantes e remédios para dormir e imergiu ainda mais quando, ao tentar implementar uma política humanística nas empresas familiares, foi sistematicamente rechaçado como o "louco sonhador viciado e inútil"? O que DE FATO sabemos sobre os que triunfam justamente por estarem perigosa e comprometedoramente alinhados com todos os arrasa-quarteirões do planeta – e o que sabemos, por outro lado, sobre os que falham exatamente porque seus quereres são coletivos em excesso, desagradáveis aos poderes, incômodos ao Jabba The Hut pesado e nojento do status quo? E isso considerando que nosso Beltrano, aqui inventadinho, tenha tido alicerces para estruturar suas asas imaginárias. O quão menos sabemos ainda sobre os que jamais, nem de perto os tiveram?

O que sabemos? – que fazer para si é quase nada, que aspirar para o não-si é praticamente tudo; é o que deveríamos tatuar dentro da consciência, no mínimo. O mínimo para um planeta em que boa parte dos bem-sucedidos carrega orgulhosa uma cruz no (exterior do) peito, sem pretensão alguma de ser ou compreender quem nela morreria.

Enfim, a hipocrisia.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

A nova nudez


Achei fofo quando um colega, que também achou fofo, narrou o episodinho testemunhado entre duas crianças do sexto ano: a menina tirou a máscara para finalmente mostrar o rosto ao menino, que nunca o tinha visto inteiro, porém ele mesmo (talvez intimidado pela lindura da amiguinha) ficou com vergonha de mostrar-se por sua vez. É fofo e triste, verdade, já que nossa temporada obrigatória na mascaralândia provavelmente ajudou a sufocar ainda mais umas autoestimas infantis que se penduraram no conforto do incógnito, mas cedo ou tarde precisarão se reacostumar a despir-se socialmente – e mal puderam construir repertório para lidar com essa "nova" prontidão. Como poderiam? Para bacuris de 11, 12 anos, pouco menos de um quinto da vida transcorreu em regime de pandemia, e a necessidade de cobrir seus traços mais individuais calhou direitinho com o momento biológico em que esses traços lhes ficam menos familiares e controláveis. Claro que não faço, Jesus amado! nenhum libelo em desfavor das máscaras (aliás sou a primeira a encher o saco dos alunos para ajeitarem as cujas), faço apenas uma constatação: circunstâncias desenharam o minifenômeno doutro tipo de nudez, ponto. Cabe aos adultos agudizar o olhar a fim de que, no universo delicadíssimo da infançolescência, a treta se desenrole o menos traumaticamente possível.

Nem são só os mais novinhos; alunos um tanto mais velhos também tratam com o mais absoluto encantamento qualquer través de nossa imagem que conseguem pilhar, chegam às vezes a pedir que os professores mostremos o rosto – e, se nos flagram num instante desmascarado, um alumbramento bandeiriano, um susto. Quaaaase equivale àquela curiosidade moleque de espiar debaixo da saia, investigar pelo buraco da fechadura, ver fotos de revista; olhem que não me espantava nada se os guris de hoje dessem de folhear álbuns do mesmo jeito que a meninada pré-pandemia averiguava Playboys. Por andarmos justamente distraídos com outros lados mais pedregosos da situação, escapou de nossos cuidados essa espécie de neoerotismo inocente em torno de nariz, boca, queixo, bochechas; fugiu de nossas vistas – nós que nascemos e crescemos vendo caras completas, plenas e nuas – essa fetichização que se tornaria representativa duma geração de formas humanas interditas, recalcadas. É entretanto natural, criam-se interesses fáceis em tudo que se oculta, e se hoje temos umA pata da gazela entre os clássicos de Alencar, por exemplo, ou se temos "Uns braços" entre os de Machado, claramente é porque membros femininos não andavam nus e disponíveis nos corredores do século XIX; um dia haveremos de ter (se já não temos) obra equivalente com o vislumbre duma covinha, dum furinho no queixo – eu quase juro.

Que continuemos devidamente medidas-de-seguranços, todos nós, com nossos disfarces heroicos de engabelar vírus; mas que não negligenciemos o inédito das dificuldades de quem está entrando na luta agora. Há identidades jovens, engatinhantes, pendentes que ainda precisarão reaprender a lógica de deixar de ser secretas.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Se pudesse


Se pudesse, eu faria enfeites de feltro alegre – estrelinhas de riso escancarado, bonequinhos Star Wars, Harry Potter, Vingadores, todos de sorriso coringamente estendido e fitinha acetinada para pendurar na árvore, absolutos. Se pudesse, aliás, eu faria a própria árvore, das maneiras mais aproveitantes e loucas: de tampinhas de caneta, de galhos derrubados no vento, de pregadores, de livros, de lápis, de guarda-chuvas. Faria guirlandas de buganvília para disseminar nas portas e nos cabelos, faria bijus com pedrazitas de jardim, colares de retalho sobrante, anéis de garrafa pet sem rumo na vida, móbiles de embalagem recortada mi-nu-ci-o-sa-men-te em renda. Faria miniesculturas inteiras de clipe e caneta que desenha 3Dmente, e acessórios steampunk com pequeninas sucatas, e artes miúdas de pendurar com cola colorida, e sacolas coloridas com fitas entrelaçadas em paciência, e mosaicos com fragmentos revisteiros, e broches de flor artificial reinventada à moda millennial-barroca.

Se pudesse eu montaria telas com cacos de azulejo; tornaria em guipir algumas folhas vestidas de outono, a pormenores de estilete; arquitetaria marcadores de livro vindas das vísceras de outros livros, recompostas e envernizadas; teceria gargantilhas de botões tresmalhados, floreados, românticos; reencarnaria uns brinqueditos típicos de prenda junina em apetrechos para o lar – não há bobagem que um tanto de cola e de spray prateado não faça virar fruteiras estaile, ou semelhantes bugigangas. Se pudesse eu pensaria designs para noivas, e lhes cobriria os vestidos das miniflores mais levíssimas. Se eu pudesse, converteria cada mínimo canteiro em profusões de rosa, narciso, gerânio e quantas mais espécies se dispusessem a cobrir a cidade de nacos de beleza definitiva e cor perpétua.

E por que não posso me afundar em artesanatos, recriações sólidas, empreitadas artísticas, explorações de materiais que transpiram esperança de retomada e sobrevida? Basicamente porque só sei querer esses largos campos de criatividade de modo vago, com afastamento platônico; sei pensar com energia e interesse, mas sem suficiente potência querencial para trazer a coisa do Mundo das Ideias e comprometer-me com ela em projeto. Sim, é preguiça que chama – de buscar material e instrumento, de mergulhar em técnicas, de reservar lugar, tempo, grana, pachorra; preguiça de ir ao fundo do fundo de tudo que cruza a cabeça e pulula no sangue, ou um medo ora ajuizado, ora ridículo de desejar mais necessidades quando o urgente já permanentemente nos desafia.

O existir do tempo nos autoriza a escolher alguma covardia.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Elas por ela


Odeio muitomente admitir, já que adoro o texto de Lícia Manzo e tenho suas novelas anteriores como duas de minhas favoritas ever – mas Um lugar ao sol é uma novela machista. Bem machista, inclusive. Até entendo, como o Fábio observou em papo nosso, que a autora use as personagens femininas como as maiores andadoras de história, e que histórias basicamente andem na corcova de problemas; o A = C, nesse caso, fica sendo o fato de as mulheres, por mais interessantes como motrizes, serem também mais "problemáticas". Elas foram pensadas para ser mesmo o eixo, concordo que são um eixo melhor, vá lá. Acontece, entretanto, que junto aos EXCESSIVOS problemas da banda feminina há a gritante perfeição masculina encarnada em quatro personagens: Santiago, o empresário culto, justo, fofo, generoso, tudíssimo de bom – o que ainda esboça perigosamente a elite brasileira como tudo aquilo que ela NÃO é; Ravi, a doçura, lealdade e honestidade em forma de gente; Mateus, idem, ibidem; e Felipe, o intelectual novinho "de alma antiga", amante de MPB clássica e incondicionalmente apaixonado por uma mulher bem mais velha. A par dessa belezura toda, que dá para um pódio inteiro e sobra, quantos espécimes de meu gênero existem na trama que merecem o pedestal de Sangue Bom do Rolê? Lara chega perto, verdade: é linda, lúcida, inteligente, batalhadora, esperta, doce, corajosa; mas o detalhe de ser representada como uma pessoa (com toda a razão, diga-se) obcecada pela morte do ex-noivo, e consequentemente um pouco negligente com o marido TDB Mateus e a enteada fofa, acaba enfraquecendo o retrato – algo que seria perfeitamente aceitável se fosse caso de apenas humanizá-la, porém a deixa em injustíssima desvantagem quando comparada a tantos bonzões quase sobre-humanos. Ou seja: paira a familiar ideia de que uma mulher, por mais incrível que seja, nunca será o suficiente.

Com exceção de Lara e da avó de Felipe, Ana Virgínia – carinhosa, arejada e moderna, mas ainda assim um tanto hesitante ao lidar com a filha Júlia, ex-adicta em recuperação que acusa a mãe de demolir sua autoestima –, todas as gajas do enredo são pintadas como um poço até aqui de destrambelhamento, drama e chatice. Bárbara é insegura, mimada, arrogante, emocionalmente dependente, além de nunca ter se encontrado na profissão e de haver se apropriado dos textos duma colega de curso; sua irmã Nicole se sabota permanentemente em termos de autocuidado, topa se envolver com boys lixo, é inconveniente, sarcástica, amarga e boquirrota; Cecília, a sobrinha de ambas, o que tem de belíssima tem de enjoadíssima, especialmente no que diz respeito à mãe – com quem costuma ser mil vezes mais dura e ressentida do que soaria razoável; a engenheira Ruth é a amante corrupta do vilão Túlio; Ilana é retratada como um trator nos negócios, exageradamente prática e pouco talhada para compreender os anseios mais artísticos do marido Breno; a irmã de Breno, Lucília, é uma passivo-agressiva com síndrome de mártir; Maria Fernanda, personagem-pontinha que teve um caso com Renato, saiu como oportunista que tentou dar (a posteriori) o golpe da barriga; Noca é um amor de vovó até a página 12, já que se mostra também turrona e inconsequente num zás; Joy é uma descabeçada capaz de pagar uma creche porcaria para seu bebê a fim de, com o troco, injetar substâncias duvidosas para queimar a barriga pós-gravidez (sem falar que seu relacionamento com Ravi sempre foi, como dizer? remunerado); Elenice, mãe adotiva de Renato, é a maior trambiqueira de todas as trambiqueiras, além de fria o bastante para acolher um bebê gêmeo e abandonar o outro. Tá pouco? pois a primeira esposa de Santiago se encontra com demência, e da segunda sabemos que era bipolar (e suicida?); mesmo seu atual interesse romântico, Érica, é constantemente julgada e pressionada pelo fato de ser mãe solo – a um só tempo sua irmã e cunhado a consideram "nariz empinado" demais para sua própria realidade e Bárbara, filha do possível crush, a vê como arrivista vulgar. Sim, apenas o ricãozão parece ser o bendito fruto imaculado no ultracomplexo universo mulheril que o cerca. Pobrezinho.

Acredito que a maior imperdoabilidade da trama até agora, porém, tenha sido o modo trivial e migalhinho como foi tratado o ESTUPRO da personagem Cecília. Injusta mas compreensivelmente chateada com a mãe, ao descobrir o interesse de Felipe pela modelo, a adolescente transformou-se por um dia – na realidade, por uma noite – de menina em femme fatale, produzindo-se com toda a sensualidade e atravessando todos os limites físicos na bebida. Isso não configuraria em si um problema, se no contexto da festa a moça não tivesse sido estuprada por um desconhecido, em cena agoniante. Triplamente agoniante: pela cena itself, por ter resvalado facilimamente para o também-ela-estava-procurando e pela falta TOTAL de consequências do crime hediondo, que não foi identificado no hospital para o qual levaram a menina – Cecília somente tomou soro na veia, por causa do excesso de álcool – e aparentemente não a abalou em NADA. Nenhum pesadelo, nenhum flash, nenhuma lembrança, NADA: a adolescente segue pleníssima, bela, sorridente, às turras com Rebeca mas com ZÍROU sofrimento real por algo que, segundo qualquer lógica, teria demolido uma mulher por dentro. A não ser que a coisa retorne manifestada em trauma (des)bloqueado, não há justificativa no UNIVERSO para tamanho disparate de insensibilidade.

Mas não tem méritos a trama de Lícia Manzo? Tem muitos; os enredares e desenredares são (em geral) muito críveis e sólidos, e os diálogos continuam, como é praxe em suas novelas, no posto de joias da coroa. Destaco sobretudíssimo as falas e a atuação de Andréa Beltrão, que com sua Rebeca pululante de humanidade – e verossimilhança deliciosa – tem sido a razão maior de pôr ou permanecer na Globo após o último boa-noite do Jotaene. Num elenco estelar e afinadaço, nenhuma aposta foi tão radicalmente chique.

sábado, 11 de dezembro de 2021

Sinopses pré-natalinas que não sei se há, mas poderia haver


Uma mulher que perdeu o contato com a família por 23 anos é finalmente localizada e chamada para um Natal entre os seus – porém, apavorada com a perspectiva após uma solidão retiradíssima e compridona, contrata uma atriz mais ou menos de sua idade e com as mesmas características físicas para que assuma seu lugar na ceia. O primo que era apaixonado por ela logo percebe, entretanto, que não se trata da crush com a qual cresceu, o que o perturba ainda mais porque se descobre afetivamente dividido entre suas memórias de adolescência e a "nova" prima natalina (a quem não denuncia por achar, racionalmente, que a família ganha mais se mantiver consigo a versão aperfeiçoada da parente arredia). Mas o comentário escapante doutro primo faz o primeiro se dar conta de que, na realidade, TODOS os familiares notaram a impostura desde logo, e tomaram tacitamente a mesma decisão do apaixonado.

Numa cidade pequenamente pobre e aleatória, presentes começam a surgir nas casas semanas antes do Natal, atendendo quase sempre (mas às vezes de modo confuso) a necessidades ou desejos reais dos moradores. Cria-se o boato compreensível de que o Papai Noel anda em adiantamentos, até que uma tocaia desenrola o enigma: eis que um bisneto um tanto desparafusado do bom velhinho selecionou a cidadezinha para estágio, já que o processo de entregas natalinas, de tempos em tempos, abre licitação – e o moço carece dum bom treinamento a fim de manter os negócios na família.

Uma escola promove a atividade "Nossa versão do Papai Noel", em que as crianças pensam e desenham em conjunto uma proposta diferentchenha para o ícone. Acaba saindo da brincadeira a imagem de um monstrinho multiolhudo e (semi)fofo, que escapole do mural toda vez que a escola está fechada e tem opiniões MUITO próprias a respeito da distribuição de presentes – especialmente para pessoas do entorno que de alguma forma vêm prejudicando a comunidade escolar, como o empresário que não paga à galera da limpeza, o marido que maltrata a tiazinha da merenda e o patrãozote que explora os pais e mães de alguns alunos.

Um sujeito obcecrazy por enfeites natalinos compra bolas lindíssimas de cristal numa loja velhíssima de antiguidades, o que em qualquer sinopse sensata se mostra uma péssima ideia. Após armar sua árvore com destaque para as comprinhas de gala, o homem começa a notar que, de pouquito em pouquito, toda a casa à sua volta e ele mesmo parecem diminuir, mas naturalmente considera a sensação absurda e a atribui ao estresse de fim de ano. Um dia – já consideravelmente fraquildo e encurvado por uma virose que não o larga – o cidadão se dá conta de que vozes minúsculas partem das casinhas que ficam dentro dos penduricalhos de cristal, e aparentemente gritam socorro de maneira cada vez mais audível.

Pena que quebrar os enfeites famintos (ou ficar longe deles) já se tornou impossível.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

De amor e confiança

George MacDonald, escritor escocês nascido em 10 de dezembro de 1824 – um dos primeirões do gênero fantasia e inspirador de bambas como Lewis Carroll, J. R. R. Tolkien, Mark Twain e C. S. Lewis –, tem uma frase com que não posso deixar de concordar: "To be trusted is a greater compliment than to be loved" (algo como: "Ser [considerado] confiável é um elogio maior do que ser amado"). Veja, não se fala aqui em termos do que se prefere ou do que se tem como fonte principal de felicidade; compreendo que muitos corações ressentidos dos dias e lábios secos pensassem facilmente em trocar sua credibilidade por um intenso, ainda que breve amor. A questão, no entanto, gira em torno do que se pode conceder ao outro como prova maior de consideração e e-lo-gi-o – e nisso o depósito da confiança ganha disparado, gostem ou não gostem as íntimas esperanças que se guardam no porão. A entrega duma vida ou dum segredo é voluntária e, porque voluntária, tende a definitiva: não se retira uma confiança por distância, capricho, flutuações de desejo; o amor, por sua vez, não passa necessariamente pela vontade (não raro foge dela, aliás) nem está sempre sujeito ao carimbo da admiração, ao menos para início de conversa. Ainda que só a admiração possa manter o amor, os primeiros movimentos do cujo podem brotar de tudo que é fonte menos lisonjeira, inclusive pena – coisa bastante incompatível com o crédito sincero que só se partilha com base no senso de igualdade.

"Oxe, mas tem cabra que confia plenamente em seus paus-mandados, seus jagunços, e nem por isso os vê como iguais ou os admira." Não creio seja simples assim. Nuns casos tais, acho que das duas uma: ou o cabra só aparentemente confia em seus cúmplices usuais, mas na realidade tem uma eterna carta na manga para utilizar na eventualidade duma traição; ou o sujeito parece pensar e viver em voz alta na frente de seus supostos homens de confiança porque sequer os vê como homens – seu narcisismo descompensado coisifica o outro e acabou-se. Nesse último cenário não se trata de confiança propriamente dita, trata-se de gente vendo gente como um puxadinho seu, uma extensão sua, incapaz de cair com um centímetro de pensamento para longe de seu amo e senhor. A prova de que narcisista não é prova de nada, anyway, está no fato de essa raça ser tão oca para o amor quanto para a confiança: dar qualquer exemplo usando um povo que porta 34 graus de miopia humana simplesmente não vale – não difere muito de teorizar sobre a empatia a partir do comportamento de exceção dos psicopatas.

No rumo esperado das ações das gentes, deposita-se confiança por escolha e reflexão, em consequência de se ter acompanhado a (ou tido sólidas referências da) trajetória de perícia, aptidão, lealdade do ser "contratado" por nossa estima. Já o amor é descuidado com merecimentos e currículos, dá-se sem burocracias, incondicional como um saquinho de Cosme de Damião; cede-se, às vezes, sem que a própria confiança entre no pacote, e nessa situação (caso aquele que ama seja prático e inteligente) sem que a própria criatura amada venha mesmo a se saber amada. Ou seja: receber a confiança de outrem diz muito (bem) sobre quem a recebe; receber amor diz muito mais sobre quem o dá. Não é ser amado que é o elogio, mas amar mesmo, visto que a natureza da incondicionalidade faz tombar a luz não sobre o beneficiado e sim sobre o beneficiador.

Ser acolhido como crível é trabalho labutado duma vida; piscar e acolher uma vida é uma qualquer terça-feira pro amor.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Cântico dos cânticos


Não sei se têm a sensação de que a vida, ainda que em âmbitos completamente alheios a tentáculos de Zuckerberg, é a seu modo algoritmada – ou algo ritmada, cadenciada por um quintilhão de pequenas harmonias que andam atrás de nós tocando seu bumbo secreto. Há pouco foi numa livraria: eu estava espiando livros de Cecília, peguei um, o título era Cânticos, mas o nome vinha duplicado na capa dum jeito que parecia direitinhamente Cântico dos cânticos. Eis senão quando algum cliente nos arredores, que provavemente não me via e sem dúvida não via a capa que eu olhava, comentou algo com um funcionário a respeito do Cântico dos cânticos; assim, muito assim, em simultaneidade perfeita. Eu poderia dizer que fiquei boba, porém o honesto é declarar que já me sinto docemente acostumada a esses caprichos de edição.

Barrocos que me desculpem: existe também, inelutavelmente, o concerto do mundo – e músicas, como aliás não poderia deixar de ser, são prova. Quantas vezes não andamos com uma melodia sapateando na boca e ouvidos, viramos a esquina, entramos no shopping e a mesma canção (não necessariamente daquelas da moda) nos atropela no som ambiente ou nas cantarolâncias do primeiro transeunte? Dentro de meu próprio níver de casamento, quando comprava um lanchito mais esmerado, testemunhei a delicadeza de ouvir a música de nossa dança na rádio da lanchonete; e a falar em níver de casamento: no sorteio da Mega-Sena imediatamente anterior ao nosso, saíram lá direitinho os números do dia e do mês – só não digo que estaria RYKAH se tivesse jogado porque provavelmente contaria com essa exclusiva dupla de acertos. Mas foi o bastante para sacar uns sorrisos mui reconhecidos pelo prêmio simbólico.

Tenho certeza de que é vocação natural enraizada no tramar do mundo, de que é tudo organicamente assim, e apenas nos faltam olhos cotidianos de ver as pistas do enredo; uma vez que eles se escancaram, em geral não se refecham nunca – ainda que não confessem a sensibilidade e a crença. Só numa ida de minutos ao trabalho já enfio duas ou três contas no colar dos micromilagres (olho flores minúúúsculas numa portaria, comento comigo mesma que se parecem muito com aquelas dos buquês e, dez passos adiante, vejo um homem com um buquê de rosas envolvidas nas tais florinhas; penso numa loja específica que nem é das mais-mais, nem está nos arredores, e logo em seguida percebo alguém levando a sacola respectiva); imagine-se na sopa de quantas mini, midi e maxi-harmonias vistas e impercebidas nos achamos mergulhados, quantos encontros visíveis e invisíveis nos circundam nesse novelo terrestre, quantos chamados "acasos" são simplinhamente notas que pilhamos numa partitura toda autoabraçante e concertadíssima? Volta e meia se finge bobamente que não, com a ridícula vergonha de aconchegar o mistério; este porém nos acarinha desmagoado, sopra, contorna, sussurra, briseia, raramente grita, chateia-se dificilmente – antes insiste com a doçura das mães que não deixam de estar presentes em meio a raivas de crianças birrentas, teimosas de controlar o que lhes escapa. Somos isso, uns birrentos da lógica, como se a lógica se compusesse todinha da meia dúzia de areias que retemos na mão.

Ainda bem que no way, e que o próprio acorde entre títulos e teores do episódio da livraria me cantarolou uns temas para o texto que vos fala. Olhem que coincidência; eu estava justinho precisando.