terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Pirlimpimpices

Ele (ainda) é o rei da festinha infantil. Por quê? Porque mudam os tempos, mudam-se as vontades e uma fica – insuperável por tecnologias de mesa ou de bolso: a vontade de crer. A vontade de saber-se iludido ali, ao vivo, de saber que existe um segredo mas ser incapaz de descobri-lo, e portanto crer. Impossível crer em TV ou cinema; o fato de não vermos a coisa sendo feita leva nossas cabecinhas a, racionalmente, atribuir qualquer capacidade fria aos computadores. E pronto. Pura técnica, nenhum romantismo. Mas ali, na nossa frente!... Ali, na nossa frente, o mais bobinho dos truques parece sobrenatural. A proximidade é persuasiva. O coração quer se divertir com o engano, tende a querer recobrar a inocência.

Ele, o mágico (hoje é Dia Internacional do Mágico!), trabalha como um nosso instrumento de crença. É o sujeito que nos convence de realidades básicas: água e fogo podem não destruir jornal, flores nascem potencialmente de lenços, lenços dão à luz pombas, elos maciços se mesclam, corpos ocupam dois-três-cinco lugares no espaço, facas não furam, espadas não atravessam, serras não serram, moças bonitas não somem, dez gramas de candura e tolice colorida não matam. O mágico nos faz o sagrado favor de tornar-nos obsoletos; mesmo que por minutos, uma horinha no máximo, não temos controle das consequências, desconhecemos o rumo das expectativas, falta-nos sabedoria para acompanhar o que se esconde sob a mão, a manga, a caixa, a cartola. E por mais que a sabedoria seja bastante, falta-nos a rapidez deliciosa de reproduzir o número. Por um momento não precisamos saber, não é nossa responsabilidade explicar, não temos a obrigação da eficiência. Que saboroso ganharmos a licença de ser incapazes. Limitados. Insuficientes.

O mágico é embaixador oficial daquilo de que temos saudades sem chance de haver possuído: pó de pirlimpimpim, pó de fada, capa de invisibilidade, tapete voador, varinha de condão, vassoura a jato, máquina de dinheiro, saco sem fundo, portal encantado, teletransporte. É dono da loja de brinquedos virtual, tem procuração de realizar as fantasias louquinhas que sufocamos com o travesseiro. O mágico é a criatura com missão de ser herói, bruxo – equilibrista, Jetson, botânico, desenhista, algo de dragão, um quê de fada – em nosso nome. O mágico é a gente em versão technicolor. O mágico é nossa criança de empréstimo.

Parabéns aos Mandrakes, Copperfields, Houdinis e ventríloquos que nos representam no além do arco-íris. Daqui desta dimensão, tiro para eles a cartola – e brinco de encontrar dois coelhos num abracadabra só.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Chovedores de parada

Ontem mesmo aprendi essa expressão fantástica, dos falantes de inglês. Parade-raining. Significa exatamente o que o termo sugere: o ato de chover na parada dos outros. Tem coisa mais frustrante que você ali – sentado na calçada, encarapitado na arquibancada –, à espera do desfile natalino de Gramado ou do show de luzes com Mickey & cia. no Magic Kingdom, quando desaba o temporal acachapante, implacável? o aguaceiro pesando nas roupas, destruindo carros alegóricos, dando curto nas lâmpadas, colocando choro nos guris? Pois é. Eis como age o parade-rainer. O que chamamos em português (sem a metade do charme e do significado) de estraga-prazeres. O vacilão cujo maior gosto na vida é encaroçar o angu alheio.

Sejamos justos, nem sempre é de propósito. Pode ser mera e orgânica incapacidade de abraçar as boas coisas sem desconfiança. São os parade-rainers escaldados, sofridos, que só sabem proteger às avessas – quase torcendo contra: o banco pode falir, a roda-gigante pode pifar, o Luís pode te deixar, a construtora pode sumir com as chaves, a empregada pode sumir com as joias, sua prima deve estar com inveja, seu caçula deve estar com pneumonia, no sábado deve ter frente fria. Vez por outra têm razão. Mas de modo desagradavelmente autoritário, como profetas da má-nova que se deliciam em adivinhar pequenos e grandes horrores.

Esses são os inofensivos. Nuvenzinha funesta. Pior topar com os chovedores de parada hardcore, aqueles vampirões que se hospedam em nossa confiança pra chupar energia. Os que transformam intimidade em chance de captar os pontinhos fracos e caprichar na chantagem – chantagem sutil, a mais perversa. A que planta culpas, semeia grilos, deixa crescendo uma cismazinha aqui, um ressentimento ali, uma agonia lenta acolá. Os verdadeiros parade-rainers são Iagos profissionais: envenenam na base da amizade, estragam gentilmente uma vida. No ciúme de não ter a própria.

(Comigo, tirem o cavalinho da chuva. Levanto o toldo contra parasitas emocionais. Quanto mais se aproximam esses torós ambulantes, mais ponho capa de sol.)

domingo, 29 de janeiro de 2012

Adormecidos

Duplo aniversário hoje: os 53 anos do desenho A Bela Adormecida e os dez – dez! – da estreia do Big Brother Brasil. Não pude deixar de achar engraçado. Duas histórias de adormecimento coletivo.

Aurora e sua corte ficaram apagadas por longos cem anos. Estavam no seu direito. A mocinha foi vítima de bruxa ciumenta, picou o dedo no fuso, coisa e tal; e o povo todo (por intervenção de fadinhas boas) generosamente acompanhou a princesa em seu sono, para que ela despertasse cercada de amigos iguais, intocados pelo tempo. Tinham todos os seus motivos (justíssimos) para o festival de roncos e alienações.

Nós – nós não. Nossas tevês vêm estando acesas por longos dez anos, de própria vontade, de livre escolha, prontíssimas sempre para o ritual sonífero. As pálpebras não caem; bebem alertas e (ar)regaladas as bobagens do programa. Seguem a rotina dos confinados. Pesquisam notícias. Pesquisam fofocas. Discutem no fórum. O quê? se Fulana olhou 21 ou 22 graus em direção a Sicrano na festa egípcia, se deu mole, não deu mole, estava ou não de calcinha naquele dia, fez bom ou mau voto no confessionário, fez bom ou mau veto na prova do líder, chorou 38 ou 39 lágrimas na eliminação. Dormimos tarde da noite e cedo na vida. O mundo segue muito atarefado em seus desabamentos, denúncias e assaltos, mas vai tudo bom e bonito enquanto adormecemos na Casa, com a Casa, ah, nosso castelo. Boa noite, Cinderela.

Outro dia nos preocupávamos se a personagem tinha ou não sido estuprada durante seu estado de inconsciência. Justo. Mas que não esqueçamos a possibilidade de estar sendo violados no mais útil de nosso pedaço consciente. Entre uma e outra espiadinha. De olhos excessivamente abertos.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Onde cortar

Os prédios do Rio caíram porque teve empreiteiro fazendo caquinha: cortou onde não devia. Eliminou parede e pilastra que, oops, não podia sair. Pois a gente é igual. Na ânsia de realizar algumas simplificações de vida, de arejar a rotina, de mergulhar na moda, corta muito peso morto, sim – mas não raro se empolga e derruba, na onda, certas estruturas de apoio. Fica-se um tempo livre, solto, contentinho da vida. Até que soam as doze badaladas e ploft, um primeiro vento detona com o castelo de areia.

Não estou nem mencionando religião e família: pilastras hors-concours. Falo dos andaimes outros, particulares, intransferíveis, folheados de exclusividade. Há os que ponham suas fichas no trabalho; nele se reconhecem, se pessoalizam, e ao se aposentar é como se perdessem o RG. Fazer o quê? não se aposentem. Não se imponham a obrigação de vagar em casa, estrela apagada, enfiada em pijamas. Brilhem onde costumam, sem limite desta ou daquela idade, que número de calendário é um dado impertinente que não pede licença à verdade interna.

Há os que se escorem no amor. Perigosíssimo. Ou não tão perigoso, se amor de fato. Mesmo assim, é absolutamente essencial distinguir onde começam as paredes de cada um dos edifícios geminados. Que não cortem o amor, nunca; mas que cortem a excessiva dependência. Esta não faz falta: sua ausência supre a falta. A falta que a gente tem de si mesmo quando cisma de se hospedar na vida alheia.

Há os que se apoiem em elementos químicos, e aí é a suprema furada. Não é pilastra, é muleta. Corte certo. Sem dó. Cigarro, drogas e semelhantes cositas nasceram unicamente para botar ferrugem e mofo nas vigas estabelecidas. Espertos não trabalham com esses materiais de quinta: constroem-se de bom concreto por fora, tubos e conexões Tigre por dentro.

Há os sustentados por um hobby – coluna forte, que pode se ampliar em parede inteira. Fica. Há os firmados na vaidade – cimento péssimo, que estilhaça num quebrar de unha. Corta. Há os que se fiem em sobrenome – muito fraca estrutura, incapaz de conter rachas de caráter. Corta. Há os que se encostem no serviço voluntário – pilar resistentíssimo, capaz de equilibrar quarteirões. Fica. Superfica.

Importante é nos erguermos sobre o que é sólido pela própria natureza. Aquelas paredes, aqueles chãos tão fincados em si mesmos que desabamentos próximos não abalam, o clima não pega, a geografia não afeta, a economia não toca, a crítica não fere, a medicina não critica, a moda não descarta. Tão confiáveis para abrigo (nosso e alheio) que passam em qualquer teste do Lobo Mau.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Meu mundo caiu

O Brasil não fala de outra coisa. Jornais nacionais, locais, regionais dão plantão permanente nos escombros, babando um pouquinho ao repetir: tra-gé-dia. Matérias repetidas over and over acerca do sobrevivente no elevador, do vazio formado, da poeira erguida, dos transeuntes arregalados, do trânsito caotizado, das buscas ininterrompidas, chamados irrespondidos. De tudo é o que mais dói: chamados irrespondidos. No meio de um desastre no centro do Rio, piores – três mil vezes piores que fogos, prejuízos, estrutura abalada, fumaça tóxica – são os buracos de silêncio que se abateram na região. Gente que falava no momento, que não fala agora, gente que deixou órfão de voz quem ficou do lado de cá das ruínas.

Nada me aturdiu mais que o caso do jovem marido, Victor, que papeava com sua Alessandra pelo MSN quando o desabamento os cortou. O pobre chorava na TV, suava o nervoso de não ter notícias da esposa, exasperava-se com a ausência de despedidas. Não, ela não saíra do prédio: não houve despedidas. E essa quase certeza de uma conversa morta, definitivamente morta sem o alívio das segundas chances, assassinava o coração do espectador ali, no tempo real da noite de quarta-feira.

Além de Alessandra tinha um Flávio – de casamento marcado após nove anos de namoro – que chegou a ligar para a noiva de dentro do ex-edifício. Um “oi, amor” e silêncio, silêncio, silêncio. Tinha um Daniel, que mesmo casado há um mês telefonava todos os dias para a mãe. Tinha pelo menos duas dezenas de bocas, duas centenas de dedos, cuja comunicação faz mais falta porque calou na maldade do susto. Porque não houve a agonia preparatória da doença, porque não houve a expectativa natural da idade; não houve nem o temor eterno pelo filho que é policial, o estado de prontidão pelo marido que trabalha em área de risco. Nem fumaça anterior, nem cheiro de gás. Nem mesmo (já é alguma coisa) a apreensão ante quedas de avião e afogamentos. Houve o súbito. O absurdo. O impensável. O nonsense. O horror de constatar que podemos morrer em perfeita segurança, confortavelmente teclando no MSN, sentadinhos no escritório. Podemos morrer sem a consideração de avisar os que permanecem. Morrer à traição.

Mais um motivo para vivermos de propósito – mas sem negligenciar despedidas. Não sabemos quando o celular vai ficar fora de área dentro de nossos escombros.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Te recebo como surpresa

Adorei quando soube. No casamento de Felipe Dylon e Aparecida Petrowky, em dezembro último, o noivinho se atropelou nos votos e, em vez de dizer “Te recebo como esposa”, lançou: “Te recebo como surpresa”. Naturalmente todos riram, o moço ficou sem jeito, deve ter posto a culpa no nervosismo e logo emendado com a frase corrigida. Mas adorei. Não o erro, está claro (que só chama de “gafe” quem tem muito jiló no coração); adorei a verdade flagrada por trás do ato falho.

Quando recebemos, recebemos como surpresa. Filhos: espera-se um advogado que curta Beatles, vem um metaleiro que pesquisa conchas marinhas. Espera-se uma modelo, vem uma talentosíssima agente funerária. Ou física quântica. Ou trigêmeas. Amigos: antipatiza-se de cara com a perua tagarela, ela vira sua confidente mais versada em Jung. O colega-alma-gêmea discorda violentamente de suas posições políticas. O estagiário “adotado” se mostra parceiraço de balada e excelente babá dos filhos. Trigêmeos.

Sobretudo amores, namorados e namoradas, maridos e esposas: sonha-se o príncipe meloso ou o guerreiro espartano, a rainha do baile ou o misto de Supernanny com Palmirinha, e quem nos chega é o operário lacônico, a executiva exausta, a viciada em grife com fobia de barata, o cabeça-nas-nuvens que ronca, o perfeccionista que embala cuecas a vácuo, a popular que paga 800 reais de telefone. Mas vem também o chef que não suspeitávamos, o craque em aspirador de pó que não conhecíamos, a escrevedora de bilhetinhos fofos, a elogiadora sincera, a massagista quase profissa, o comprador inesperado de rosas, o lembrador de datas importantes que não ousávamos imaginar nem sobre cavalo branco. Chega gente pra gente: carne, osso, manias, vícios; cismas, traumas, vocações. Convicções. Chega gente distinta, palpável, real, às vezes terrivelmente oposta à própria capa, às vezes só diversa por um ou outro easter egg tropeçado no caminho. Chegam-nos surpresas – porque vivas.

Surpresas que (garante a experiência popular) tendem ao desagradável após o casamento. Pois caio no 1% que discorda. Hoje completo dois meses redonditos de união; e não paro de ter espantos felizes com o tanto de serenidade e facilidade com que nossas rotinas se abraçaram, com que nossos receios se apaziguaram, com que nossas necessidades se confundiram. Se assombros houve, foi porque assombrosamente nos aprendemos. Um ao outro e cada qual em si. Aprendemos a ser o que precisávamos de modo uno, duplo, particular e recíproco.

Parabéns por nossos dois meses, meu Fábio. Te recebo ainda, feliz e sempre como festa-surpresa.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Back

Pois é: voltei. Depois de exatinhos dois meses, taí, voltei. Voltei de um ponto distinto, de uma vida completamente nova, como pessoa alegremente diferente. Voltei quilômetros adiante do lugar de onde parti.

E olha que muito me custa isso – voltar. Nos últimos capítulos, fiquei tendo certeza de não ser uma criatura que volta. De viagem, por exemplo. Todo mundo não diz que o melhor de viajar é estar outra vez em casa? Balela. Por mais enraizada que esteja no local onde moro, me apego tão furiosamente às cidades visitadas que, se na hora certa não me metessem no carro (ônibus, avião), eu adotava com delícia o novo endereço, fugida. Sumia no oásis. O mais recente foi em Gramado. Como retornar de um paraíso natalino, chocolático, nojentamente civilizado feito Gramado? Após o primeiro passeio noturno (luz! luz! luz! luz!), virei nativa. Mas o choque maior foi a volta de Orlando: nem bem a roda do avião tocou o Rio, rebentei num choro desesperadíssimo. Inconsolável. Até hoje não sei como segui sobrevivendo ao desgosto da comparação.

Muito menos sei voltar de férias. Desde pequetita. Mais como professora do que como aluna, topar a perspectiva de um ano letivo me embrulha de horrores o estômago. Não é bonito, é a verdade. Fazer o quê? Muito lindo, muito proveitoso existir gente que se amofina nas férias, que se chateia no descanso, que não vê a hora de um expedientezinho arrancá-la da TV. Quem me dera ser dessas. Com o casamento, agora, a volta é um inconveniente duplo: promete me arrancar da juntice do marido, quase ininterrupta há dois meses. (Danem-se as teorias certíssimas a respeito de independência dos cônjuges, espaço próprio e interesses distintos. Me sinto assaltada.)

Não me mal-entendam. Não rejeito visceralmente o trabalho por querer não me dar a ele; rejeito-o por me dar além da conta, sem prazer nem retribuição. Rejeito-o não por preguiça: por absurdo cansaço. Assim como a este Rio de Janeiro de tantas decepções. De tão frustradas tentativas. De tantas vergonhas. No correr do tempo e da idade, cada vez menos me acostumo a transitar do bom para o ruim, do ideal para o estorvante, do humanizado para o caótico. Voltar do Natal para o carnaval, do cinema para o BBB, da literatura para as manchetes de jornal, do aeroporto para o metrô: amostrinhas de inferno.

Meu problema é me habituar à felicidade (perigosamente) rápido demais.