sábado, 31 de outubro de 2020

Ameaça fantasma


31 de outubro é o dia da nhenhenhice dos malas: "Ââââin, Halloween não é festa nacional", pereréu, pereréu. Como se o Papai Noel (comentou brilhantemente um meme que vi esta semana) fosse originário de alguma tribo tupi-guarani. Como se ALGUMA COISA do que usamos, vestimos, falamos, celebramos fosse 100% filha deste solo, inclusive a bandeira, que ostenta as cores da nobreza gringa e não a do pau-brasil que nos batiza – mas isso é outra e mais longa história. Para além da ridícula e autodemolível questão do "patriotismo", há a hipocrisia feroz dos implicantes, que, como sói acontecer, não se enxergam. Aposto uma abóbora recortada que filhos, netos, sobrinhos dessa trupe se fantasiam de absolutamente tudo no carnaval (festa que não se originou, tampouco, entre aimorés e tapuias) – e vão bruxinhas, fadas, múmias, vampiros, caveirinhas no balaio desse tudo, com direito a surra de fotos no Instagram e outra surra de "titia ama, titia cuida" nos comentários. Os implicantes mesmos saem felicíssimos e purpurinados em blocos e mais blocos, não poucas vezes com chifrinhos na cabeça, mas quem liga, né non? só não pode em 31 de outubro. Aaaah, aí não. As criancinhas dos implicantes também se esbaldam pegando saquitos de doce um mês antes, sem fantasia; agora: juntar a fantasia do carnaval com a pegação de doce por algum motivo não pode, é feio, é soturno, não é tradicional. Come on. Me poupem.

Teimam uns malas: "Poxa, mas uma coisa é doce de Cosme e Damião, outra coisa é..." Parou, parou, parou. Pelo que já pude observar, não raros xingadores de Halloween acham um absurdo que algumas famílias, atualmente, não permitam aos pequenos pegar os costumeiros saquinhos de guloseima, e os classifiquem (os saquinhos, não os pequenos) como objetos do demônio – "Coitadas das crianças, não tem nada a ver isso, elas só querem doce!". Exatamente: coitadas das crianças; não tem nada a ver isso; elas só querem doce. Crianças gostam de fantasia e de doce, simples assim. Pra que o tratado linguístico-histórico-socioantropológico em cima do Dia das Bruxas brasileiro, ora pitombas? Tem roupa pra lavar, parede pra pintar nem currículo de candidato à prefeitura pra examinar não?? É verdade que há interseções: gente que implica TANTO com as sacolinhas açucaradas de Cosme e Damião QUANTO com o Dia das Bruxas, alegando que é tudo coisa do demônio (deve ser BEM exaustivo enxergar o capiroto em tudo, não sei de onde esse pessoal tira tanta energia). Me pergunto se a mesma galera bi-implicante já surtou em sala de aula ao estudar mitologia greco-romana, se já boicotou os Vingadores ou enfartou porque o sobrinho-neto estava vestido de Thor, se nunca na vida assistiu a nenhum Gasparzinho, nenhuma Pequena sereia, nenhum Crepúsculo, nenhum Aladdin – nada, nada? Por que pode fantasminha camarada e vampiro apaixonado, desde que não seja no Halloween? Por que pode entidade da mitologia nórdica – Thor, Loki, Odin – e não pode nenhuma referência a santos católicos relacionáveis a religiões afro-brasileiras? Por que pode bruxa do mar, bruxa-madrasta, bruxo-vizir nos desenhos, mas não pode na roupinha de 31 de outubro? Tá confuso, tem que organizar isso aí.

Vamos combinar: se, entre a galera que se ocupa em linchar a brincadeira do Dia das Bruxas, a gente for conceder licença-pedrinha apenas aos que forem incorruptos de toda e qualquer espécie de misticismo, superstição ou relação com o que poderia ser considerado bruxaria há alguns séculos, não vão voar nem dois cascalhos. Tem de excluir todos que já bateram na madeira, todos que já fizeram simpatia, todos que já consultaram o horóscopo, que já se disseram alvo de mau-olhado, que já botaram calcinha amarela no ano-novo pra chamar dinheiro, que já pularam sete ondas, que já meteram nota de um dólar na carteira (e nunca mais tiraram), que já fizeram ou comeram nhoque da sorte, que já carregaram amuleto, que já cruzaram os dedos, que já evitaram manga com leite porque sim, que já jogaram dente de criança no telhado, que já quiseram saber a fase da lua pra cortar o cabelo, que já usaram sal grosso para nada remotamente parecido com churrasco, que já pensaram duas vezes antes de passar embaixo de escada, que já desviraram chinelo ou tiraram a bolsa do chão, que já recusaram o último biscoito do pacote "senão não casa", que já deram três beijinhos "pra casar", que já espiaram canteiro de trevos em busca dum exemplar de quatro folhas. Até posso continuar, mas ainda sobrou alguém no recinto? Imaginei.

Fica a dica amorosa, lindões antirrelouínicos: tem um MONTE de perrengue real pra limpar no mundo. Vão pegar numa vassoura.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Eu sempre quis fazer isso


Tem sido veiculado um comercial divertidíssimo (não me perguntem de quê; sou a prova do fracasso da propaganda em fixar produtos e do sucesso em fixar exatamente a propaganda) cujos personagens seguem e repetem o mote do "eu sempre quis fazer isso": uma barwoman manda uma bebida para o cliente fazendo-a deslizar por todo o balcão, um sujeito entra num caminhão parado no posto só para puxar a cordinha buzinante, uma guria atira o celular na água ao receber chamada do chefe, duas gurias sentam-se no restaurante e pedem um de cada, o cliente atendido pela barwoman diz à galera em volta que a rodada seguinte é por sua conta. Aqueles pequenos clichês que ganham dignidade e ficam deliciosos quando alguém se dispõe a rir deles e assumi-los como deliciosos. Afinal, quem nunca? sonhou meter um "siga aquele carro" ao entrar no táxi? se imaginou apressadíssimo nas ruas de Nova York, com um copo do Starbucks na mão? quis ser a phyna que está sem apetite e vai comer só uma saladinha? projetou um discurso daqueles em que a câmera vai se aprochegando, a música vai subindo e o arremate é uma frase de efeito com 10 graus na Escala Meme? 

Por causa do comercial, eu (provavelmente acompanhada da torcida do Corinthians) fiquei pensandinha nos meus "sempre quis fazer isso" – sem a obrigatoriedade, porém, de seguir o padrão Hollywood ou folhetim das nove. E vou te contar: trabalho pra mais de metro. A gente às vezes registra umas tantas ambições grandonas nalguma espécie de bucket list, e no entanto negligencia outras, por menores ou esdrúxulas ou secundárias. Não devíamos; temos modest(íssim)as chances em vida de curtir um bufê de evento pós-Oscar, mas nem por isso vamos falecer de coração desnutrido, à míngua de felicidade em forma de banquete e espalhafato. O espírito também vive de cafezinho.

Algumas bem-vindas alegrias cafezinhas, programadas para um futuro hipotético: ser um aeroporto de borboletas; descobrir uma passagem secreta (sim, tenho obsessão por passagens secretas, me julguem); surpreender alguém com um truque de mágica (não, nunca fiz); falar francês na França (não, não sei falar – em lugar nenhum); entrar num bistrô da França e pedir "o de sempre"; andar feito uma local num bairro da França, voltando para casa com as compras no colo e cumprimentando os vizinhos; ameigar um cãozito e ouvir "nossa, ele gostou de você, é difícil ele gostar de alguém"; atirar com arco e flecha como a princesa Merida, na cara da sociedade; brincar numa piscina de bolinhas; dormir sob as estrelas; virar doadora de medula; participar de uma coreografia coletiva numa festa – ao estilo De repente 30, se não for pedir muito; esbarrar com a relíquia de alguma família e entrar em contato para apurar a história (oba, história!); mandar um "fora, Bolsonaro!!!" ao vivaço no SBT ou na Record; assistir aOs miseráveis no teatro; montar uma sala de aula todinha temática. Não, não sei temática de quê, vê se isto é hora de pergunta difícil.

Mais? sempre mais: vestir traje de jedi e uniforme da Grifinória; aprender o tsuru e outras bonitezas de origami; fazer aquele exame de DNA que rastreia nossas origens genéticas; fazer dança de salão; fazer o teste de Rorschach; sair numa escola de samba, misturada num enredo de resistência; criar (ou, de preferência, encontrar) uma cápsula do tempo; decorar a casa ou apê de outra pessoa; jogar no mar uma cartinha devidamente engarrafada, mesmo que não numa garrafa; ser voluntária num estudo de vacina; arriscar equilíbrio nos patins (de gelo e de asfalto); pintar paredes; entrar na sala de aula (temática?) ostentando a plaquinha "NÃO corrigi as provas"; entrar para aplicar prova com a "Marcha imperial" tocando no celular; enviar mensagens felizes em papel para endereços aleatórios; recuperar a farra das bolhinhas de sabão; promover celebração ploc, com fantasias no dress code; adotar uma buganvília pra se enroscar na varanda; me atracar com as bochechas de um bebezinho japonês; escrever um livro em dupla; tomar vergonha e me alfabetizar em bicicleta e brigadeiro; passar um dia indo de sebo em sebo, sem qualquer limite de horário pro garimpo. 

Mais? eternamente. Não cumprirei talvez a maioria – para bem-estar dos bebezinhos japoneses –, mas catar possibilidades no mundo, colecioná-las, recolhê-las, há de ser atestado de saúde e sanidade permanente nesta atual atmosfera envenenada de trancamentos, nesta cruzada ideológica poluída de gaiolas. 

Sempre vou querer fazer isso.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

(In)conciliáveis


Hoje faz 79 anos o angolaníssimo Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido como Pepetela, em cujo livro Mayombe faísca a frase "Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor". Não configura plaquinha de pendurar na humanidade? Trazemos em nós o inconciliável, e é tão imenso, tão saárico, que do primeiro ao último instante tentamos a conciliação entre o pedaço de nós que nos move e o que nos engole – lutamos para filtrar o desejo que nos empurra dentre a massa de incoerência que nos trava. Parabéns para nós, que passamos a vida nos sobrevivendo.

Somos seres sociais com maior ou menor necessidade de definir também o próprio território; somos habitantes do coletivo e da clausura, precisados na mesma medida do diálogo e do silêncio, construídos pela tradição que nos amamenta e pela libertação que obtemos ao questioná-la. Somos seres verbais que vivemos carecidos de pôr o mundo em palavras para entendê-lo, porém nós mesmíssimos somos os afirmadores de que uma imagem vale por mil palavras, ou um gesto, um abraço; e no entanto uma temporada apenas de gestos, olhares, abraços nos cansa – queremos ideia, queremos complexidade filosófica, discussão, discurso. Amamos a paz, pregamos a paz, rezamos pela paz, e apesar disso há um serzinho em nós que arde bélico, às vezes para o bem (se é que na rota do bem estão previstas algumas brigas); há um serzinho em nós que não sossega de fúria, não raramente assustando e amargurando a si próprio: tanta raiva, tanta raiva não condiz com quem eu sou. E quem eu sou? com quanto do que desejo e com quanto do que decido eu me faço?

Somos arquitetos, mas sonhamos viver de música, e ao viver de música desconfiamos de que o amor pela música saiu muito abalado pela lida cotidiana. Somos príncipes com a fantasia da simplicidade mendiga e mendigos quimerizando o poder principesco; aspiramos à renúncia absoluta e ao controle total, com o intervalo de alguns dias ou poucas horas ou dois segundos. Queremos Harry e Sally e Atração fatal, o amor tranquilo e o que joga na parede, aquele da longuíssima amizade e aquele que brota com o desconhecido no trem, a coisa equilibrada/ eterna e a coisa adolescente/ furibunda de um Romeu e Julieta. Estamos absolutamente fartos de nossa cidade e não sairíamos dela nem por nada; um terço de nós não vê a hora de morar no interior da França, um terço de nós grita que estamos loucos e nossa vida é todinha daqui, um terço de nós acompanha a treta dando razão a ambos e acalma os ânimos fazendo-os viajar. E voltar.

O tempo todo, a existência inteira permanecemos em certa medida inconciliáveis, e a existência inteira nos (re)conciliamos, o que aliás é (é?) inconciliável com a nossa natural inconciliabilidade. Resulta que o simples ato de levantar da cama e respirar ao longo do dia é efeito da energia, dos vapores dessas caldeiras; nos empurramos para a frente sob ação da ininterrupta fogueira que somos. Há, entretanto, limites para o embate, já que charretes puxadas por cavalos inconcordantes não vão a lugar algum, e forças iguais e opostas se anulam até a paralisia. Um lado precisa ser mais forte, o outro lado precisa ceder. A versão escolhida de quem somos ganha, pelo bem da viabilidade e da coerência; as demais, por autopreservação, engolem em seco; em prol do conjunto, somam forças à força alfa – mas em aflição e negociação permanentes. Cada um de nós é uma alcateia ambulante em disputa de posto perpétua. 

Qual de nossos lobos leva a batalha e vira líder do que somos? (Quem assistiu a Tomorrowland há muito está craque na resposta:) aquele que a gente alimenta.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Filhos da culpa


Não faltam, hoje, criaturas de vida aparentemente confortável e estabilizada – na parte financeira, ao menos – que ficam circulando por aí como pastéis de ódio, esbravejando ataques a torto e a direito numa fúria de Inquisição espanhola. É um fenômeno bizarro que (para usar uma expressão que acho fabulosa) causa-me espécie: por que carambolas voadoras gastar preciosos quaquilhowatts de energia agindo na rua, no condomínio, na internet feito um bicho hidrófobo, ainda mais neste calorão que só aumenta? Sim, eu assisti a O dilema das redes e sei que há um fortíssimo componente de algoritmo nessa loucura coletiva, mas mesmo assim não me parece que um bacilo virtual provoque sozinho um tal efeito, e sim que acorde bombasticamente alguma semente de fúria já existente no odiador. Não consigo compreender o ódio senão como fruto de uma questão individual mal resolvida.

Em seu romance Arquipélago, o escritor português Joel Neto meteu uma verdade que pode dar uma boa pista sobre esses mecanismos envenenados: "Não há ódio como aquele em que a culpa se transforma quando já não se pode transformar em mais nada". Bingo; um dos números essenciais para pontuar na cartela do ódio é a culpa. Culpa de quê? não necessariamente de ter cometido um crime (mas não raro até de ter sido vítima de um). Culpa por não ter percebido indícios de perigo; culpa por ter confiado na pessoa errada; culpa por não conseguir amar quem supostamente se deveria; culpa por nunca ter tido forças ou argumentos para reagir; culpa por se sentir um peso na rotina de alguém; culpa por fazer mal a seu próprio corpo inaceito, e com isso "reforçar" a opinião de quem não o aceita; culpa por ter renunciado aos sonhos profissionais lá no início; culpa por não ter gerado ou acolhido conselhos suficientes; culpa por estar afundando na identificação com quem é nitidamente excludente e raivoso; culpa por se permitir afastar do que se sabe mais importante; culpa por seguir num relacionamento de mentira; culpa por não ter peito de sustentar uma demanda pessoal diante de olhos que talvez a questionem. Culpa: essa Hidra de infinitas cabeças, de infinitos aspectos, insidiosa, traiçoeira, esmagante feito sucuri e – quando não enfrentada com os instrumentos corretos – paralisante feito Medusa.

Porque, notem, não é que todas as vertentes da culpa sejam ruins; muitas são necessárias, inclusive, e mostram que não temos um Hannibal Lecter tomando água de coco dentro d'alma. Porém, adianta patavina a culpa que "já não se pode transformar em mais nada", que não é trabalhada a ponto de virar (auto)perdão e mudança, que não recebe um acompanhamento especializado capaz de moldá-la em arrependimento produtivo, iniciativa, atitude, metamorfose do bem. Culpa é germezinho que não pode ficar parado e negligenciado, embolorando; se embolora, vai tornando todos os dutos mofados e irrespiráveis, o coração fica inabitável, vira residência ótima para fantasmas de dias passados e péssima para tudo quanto é vivo. Todo mundo sabe que lugar mal-assombrado é um pudim de quê? ódio. Se há gritos que ecoam e correntes que se arrastam por dentro, se nossos corredores estão povoados de sombras que repetem e repetem e repetem a ladainha sem nunca sossegar ou buscar um cantinho de luz, se o ar está empesteado e denso de memórias que se condenaram à prisão perpétua, nada anda, nada evolui; em nada evoluindo, vem a tendência de os fantasmas revoltados se voltarem contra qualquer visitante ou transeunte, sôfregos de compartilhar seu inferno particular. O ódio nasce classicamente de uma série de traumas, ressentimentos, remorsos que fermentam no baú e saem empedernindo gente até que o divã de algum Perseu, munido com o devido escudo e a devida espada, começa a atingi-los na garganta.

Ódios não brotam no bailão sozinhos, não aparecem tcharam! de uma geração espontânea; vêm de uma longa escalada de ervas daninhas encorajadas pelo discurso ou pelo descuido. Não se principia a achar a cura antes de, fundamentalmente, localizar e tratar a culpa que os pariu.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Divertida mente


Como vivo comentando e ontem mesmo dei a entender – ao mencionar nossa tendência fofa de procurar o ser amado com os olhos enquanto rimos num grupo –, sou fascinada por coisinhas psicológicas. A gula de informações vai desde o basiquete (feito a constatação das ilusões de ótica) até a deepest web da mente humana (tipo: funcionamento de um serial killer), e creio só não ter cursado Psicologia por absoluta preguiça de qualquer matéria biológica; mas chafurdei na literatura, o que é aparentado em primeiríssimo grau. Nada neste mundo, acredito, consegue ser mais interessante do que o próprio rei do mundo (não, não estou falando de Jack Dawson); nenhum estudo botânico, zoológico, geológico, astronômico supera a sedução de entender os meandros e motivos do planeta de nós mesmos, a criação mais exuberante, mais irresistível. Quais são nossas pulsões, nossas lógicas, nossas logísticas, nossas constantes, nossas variáveis: essa a prospecção de matéria-prima de maior potencial enriquecedor para qualquer um que venda qualquer coisa – ideias, principalmente.

OK, não deixa de ser um pouquinho assustador ficar ciente de alguns mecanismos que nos marionetam todos os dias, de alguns truques persuasivos usados pelos sacadores de gente debaixo de nossos narizes. Mas o susto, a informação jogando aguinha na cara é fundamental para o despertar, para o atingir de uma consciência – consequentemente, de uma independência – razoável, ainda que não consigamos quebrar o feitiço. Já é alguma coisa saber que existe feitiço. Saber que a ordem dos pratos em menus, por exemplo, muitas vezes tem nada de aleatória: é frequentemente pensadinha para que escolhamos algo bem do topo ou bem da base, locais mais atrativos para os olhos. Saber que, se algo foi posicionado no canto superior direito da tela ou da página, alguém está querendo muito de nosso amor e atenção para aquilo, em detrimento da ideia ou imagem chutada para o canto inferior esquerdo. Saber que a nacionalidade do vinho que pegamos no mercado pode ser influenciada pela nacionalidade da música que estiver tocando. Saber que o piso lisiiiiinho e a ausência de relógios no shopping são estratégias para que deslizeeeemos por horas lá dentro sem nos darmos conta. 

Se alguém tenta nos ordenhar um dinheirinho enquanto nos toca no ombro ou nos oferece um chazito, um hot chocolate, é cilada na certa: o toque nos põe mais suscetíveis, o servir de uma bebida quente faz o servidor parecer mais amável. Se alguém nos pergunta algo como "Por que você acha que essa seria uma boa escolha?", já está plantando direitinho a convicção de que essa seria uma boa escolha, por mais que juremos ter decidido sozinhos. Se alguém mais ou menos espelha nossos gestos – cruzar a perna, inclinar-se para a frente etc. –, ou é por estar na nossa, ou por querer que fiquemos na dele. Nosso querido cérebro também se vê muito mais compelido a fazer coisas por quem nos fez coisas (daí ser muito mais provável que um "good cop" levador de lanche para o detido obtenha uma linda confissão); entende como mais insegura uma pessoa que mantém os pés muito próximos, e como mais confiante aquela que os alinha à largura do quadril; tende a segurar o antebraço com a palma da (claro) outra mão quando procura se acalmar ou conter sentimentos ruins; mantém as mãos baixas e as palmas juntas ao se ver estressadito; joga-as para trás ao se avaliar seguro e dominantão. Isso e mais uma caçambada de açõezinhas, particularidades, microexpressões e toda sorte de atalhos físicos – para o que sentimos e para o que nos querem fazer sentir – que honestamente não sei como os especialistas "decoram", mas que eu amaria saber de fio a(té nosso último) pavio. Não acompanhei todinho o Criminal minds à toa; se com nenhuma esperança de ir trampar em Quantico, ao menos com a de descobrir minimamente onde raios estou me metendo ao frequentar o planeta.

Agora, por gentileza: faça o que fizer, NÃO pense num coelho amarelo. Iiiih, escapuliu? tem problema não: eu só queria mesmo testar uma coisa.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Quanto riso, quanta alegria


Numa dessas matérias sobre curiosidades psicológicas, descobri bonitinhamente que, quando se está em grupo e alguém conta uma piada ou lança uma tirada ótima, nossa tendência é olhar para a pessoa de que mais gostamos enquanto rimos. A matéria não explicava o exatinho porquê, mas me arrisquei a ficar considerando algumas possibilidades. Uma que me ocorreu, talvez de maior chance: queremos mergulhar no fato de que estamos vivendo um momento legalzão na companhia de um querido, e usamos o olhar cúmplice e trocante como espécie de lacre do documento; veja, eis um daqueles flashes carimbados em nosso álbum afetivo, eis uma memória registrada, solidificada, a que eventualmente poderemos retornar pela abertura desse portal mútuo. Um tipo de horcrux do bem, feita só daquela pseudomorte que uma gargalhada roubadora de ar nos provoca – e causa de nossa alma permanecer um bocadinho naquele instante, atada à vida não por profundo ódio como nos livros, mas sim por amor profundo. 

Outra hipótese para essa busca visual bem específica: oportunidade douradinha de saber coisas grandes sobre a pessoa amada. Ora, o riso, o fingimento do riso e a ausência do riso xisnoveiam a gente que é uma riqueza; não é excessivamente difícil fazer o teatro de uma compunção, de um susto, porém é hardíssimo deixar de ter a reação figadal do riso quando explode – ou, ao contrário, forçar a barra com tanta arte a ponto de vestir um riso frouxo e amarelo de luz legítima. O que nos parece hilário assalta nossas reações e nos escapa antes que o detenhamos; é normalmente imediato, visceral e puro. Por aí conseguimos investigar, com margem de erro razoavelmente pequena, quais são nossas referências em comum com alguém, o que (não) move ou (não) comove esse coraçãozinho observado, qual o tamanho de seu empenho para se encaixar no grupo, quantas de nossas opiniões se abraçam do modo mais espontâneo. Naturalmente, o serviço prestado pode ser o exato oposto: mostrar ao queriducho que estamos juntos, vê?, temos os mesmos parâmetros, somos conterrâneos num planeta que acha graça das mesmas situações, entendemos as mesmas diretas e indiretas; meu senso de humor é pra casar.

Mais um chute especulativo é supor que haja um simples componente de estudo físico (sempre pensando em termos de crush mode): precisamos saber completita a outra pessoa, sabê-la em detalhes, conhecer-lhe o aperto dos olhos e o vermelho do rosto e o suspiro abafado de rir e rir e rir e rir – ou então encantar-nos outra vez e sempre com o que já conhecemos de sobra. A gargalhada é, enfim, um desarmar-se quase inteiro, uma entrega, uma incontenção; há poucos minutos tão propícios para observar sem defesas quem mais desejamos sem elas, poucos instantes melhores para flagrar uma intimidade, uma integridade d'alma tão assim a nu. Vai ver que é bem tudo isso junto-misturado, e outros bons milhares de motivos desvendáveis por cientistas de diferentes áreas. Ou vai ver que não é absolutamente nadíssima do que eu falei, quem é que manda esses escrevinhadores leigos de tudo enfiarem o nariz de tamanduá no formigueiro alheio? HUMPF.

(Só sei que, se desfiei um monte acachapante de abobrinhas, a gente ainda vai rir muito disso.)

domingo, 25 de outubro de 2020

Ternarium


Temos níver dançante: 195 anos de Johann Strauss II, o Rei da Valsa, pai do Danúbio azul. Vamos combinar que Danúbio azul é a valsa mais valsa de todas as valsas, e se inclui naquela categoria de obras "quem fez isso não precisava ter feito mais nada na vida" – level: nem Kubrick resistiu. Segundo dizem, uma vez a esposa de Strauss foi pedir autógrafo a Brahms (ser tiete nessa época era outro nível), e o compositor, que costumava nesses casos escrever um trechinho de sua própria música e depois assinar, registrou no papel um pedacito do Danúbio azul e cravou embaixo: "Infelizmente, NÃO [composto] por Johannes Brahms". Uma melodia dessas, bicho.

Amante do século XIX que sempre fui (amante, não candidata a residente), tenho a valsa na conta em que os românticos a tinham: dança quente e sensual daqueles tempos, de gerar maior intimidade no estreitamento dos corpos, de girar pelo salão com os cabelos mais desfeitos e as bochechas mais rosadas – um esparrame de dopamina. Já não fosse bastante essa fama para minha admiração sincera, o ritmo ainda fez nascer versos fabulosos das mãos de meu poeta mais amado, meu Casimiro de Abreu; um poema inteiro memoravelmente compassado pelo um-dois-três, um-dois-três dos bailes vienenses: "Tu, ontem,/ Na dança/ Que cansa,/ Voavas/ Co'as faces/ Em rosas/ Formosas/ De vivo,/ Lascivo/ Carmim;/ Na valsa/ Tão falsa,/ Corrias,/ Fugias,/ Ardente,/ Contente,/ Tranquila,/ Serena,/ Sem pena/ De mim!" E por aí vai, sincopada e irresistivelmente, como se o eu lírico nos passasse a mão pela cintura e nos rodasse, rodasse, rodasse numa inflamada odisseia por aquele espaço.

É dia, portanto, de lembrança apaixonada e de homenagem a tudo quanto há de romântico – mas romântico raiz, sem babaquice de cartão de papelaria, sem mensagens torturantes de telegramas animados, sem gemido de cantor sofrente: romântico-Viena, romântico-Fantine, com altos pontos em escala Werther ou Peri ou Byron. Troço hardcore mesmo. Tipo: florada de cerejeira (ou nossa versão nacional, o ipê). Lareira em casa de montanha. Azulejo português. Vinho tinto. Vestido de noiva rendado. Qualquer coisa rendada. Qualquer paisagem do Monet. Leque. Lua. Luar. Miosótis. Edelweiss. Relicário. Diário. Bolhinha de sabão. Borboleta. Buganvília. Janelinhas azuis (ou verdes) – floridas. Madeleine. Biscoito amanteigado. Árvores vestidas de outono. Árvores vestidas de Natal. Rouxinol. Uirapuru.

Lendas indígenas sobre a origem de tudo. Cabeças reclinadas em outros ombros. Estampas de florzita miudita. Boinas, pulôveres, xales, boleros, echarpes, mantilhas. Sáris indianos. Quimonos japoneses. Lanternas japonesas. Saias rodadas. Tule, filó, véu, voal. Violino. Coisinhas de artesanato. Livros de sebo. Velhas dedicatórias. Fotos em sépia. Cordões de lampadinha. Campos de lavanda. Casas de pedra com hera entranhada e subidora. Cafés com decoração de madeira. Brinquedos de madeira. Castelos medievais. Miniaturas. Carruagens. Faróis. Hortênsias. Origami. Beija-flores. Gôndolas. Bússolas. Amélie Poulain. Capelinhas de beira de estrada. Caixas forradas de tecido. Guarda-chuva dividido. Colchas americanas. Enfeites de feltro. Chocolate quente. Orvalho. Madrepérola. Margarida. Gente que diz que sim e é sim, gente que promete fazer e faz. Gente que nem diz, nem promete, mas é sim: coração íntegro, sem ranhura. Gente que paira com o zelo e não pesa com a presença. 

Tudo tão bom e tão lindo que se quer doloridamente guardar em conserva, de tanto que ameaça se evolar num sopro: um, dois, três.

sábado, 24 de outubro de 2020

Desligar mesmo assim


Você finalmente coloca o notebook para encerrar o expediente e ele informa: um aplicativo está impedindo o desligamento. Não é possível; CERTEZA de que você salvou tudo, fechou tudo, completou tudo. Onde o arquivinho workaholic que anda fazendo hora extra quando todos os demais já vestiram o pijama e as luzes do Windows 10 estão sendo apagadas? Ainda bem que o computador, com serenidade de zelador noturno acostumado a expulsar os fanáticos do escritório, guarda lá suas manhas e apresenta ele próprio a solução: é só clicar aqui, ó, no botãozinho "Desligar mesmo assim", que em dois tempos eu defenestro esse infeliz na marra. Que maravilha, pensa a gente culpada mas satisfeita, agita isso daí pra mim, o sujeitinho atrasildo que procure outro hardware para trabalhar até as tantas. Desligar mesmo assim. Boa noite.

Não seria fabuloso contar com esse recurso em ocasião de ficar rolando insone na cama, alma arregalada e cabeça febril numa rave de sinapses que parecem cartomante de filme – daquelas que leem passado, presente e futuro? Preciso pedir congelados amanhã para entregarem na segunda. Preciso transferir o dinheiro na semana que vem. E a árvore de Natal, vamos armar quando? E o próximo texto, já tem ideia? Droga, devia ter salvado o meme, vou achar nunca mais. Ah, é isso, o ator daquele filme trabalhou em Cold case!! Ih, hoje é dia de Greg news. Não sei por que não dei essa resposta perfeita. Não tenho a menor ideia de onde deixei o título de eleitor. Aquilo aconteceu à vera ou era parte do sonho? Putz, que vacilo, ESQUECI o atum na encomenda do Hortifruti. Não interessa, não é agora que eu vou resolver a parada: desligar mesmo assim. 

Seria mó legal uma parede de tijolinhos, quem sabe um dia? Não, ia dar uma trabalheira morar em outra cidade, tenho preguiça. O ano letivo tá cagadaço, só quero ver como vão resolver. Que fooooooooooooooooofo aquele vídeo!!! Que ÓDIO dessa política de morte maldita! Hum, é mascarpone o nome do queijo. "Olha, eu vou lhe mostrar/ como é belo este muuundoooo..." Consigo nem a pau lembrar o nome da terceira irmã, amanhã espio no IMDb. Com a Omcilon a afta deve melhorar. Talvez as peras possam ficar fora da geladeira uns dias, tão duras demais da conta. Acho que vou precisar de mais Buscofem este mês. Se o vizinho do videogame não estivesse em outro país, a quarentena seria um inferno. Cara, em algum momento a gente vai ter de repintar as paredes. Opa, que dia é hoje mesmo?? Será que eu perdi a reunião??? Não, ufa; é só na terça que vem, sua doida. "O muuundo ideaaaaal.../ É um privilégio ver daquiiiii..." Desligar mesmo assim. Eu, hein, ninguém merece.

Ontem a gente comeu o quê? ah, foi frango. O arroz já tá quase no fim. Botei suco de uva na encomenda do Hortifruti? Fui tomar a bomba de cafeína do Tylenol DC, agora não durmo. Deixei OUTRA VEZ de colocar os lençóis de molho. Que saudade de Totalmente demais. Que será que tem atraído tanta abelha pra varanda? Qual será a estreia do Telecine? Gente, aquele ator sumiu, né? Exercícios para a escola, exercícios para a escola. FO-ME. "TripleDent gum/ will make you smile..." Isso são tiros?? Jesus amado! Nossa, e pensar que eu vi aquela menina nascer; já tá na faculdade. E o próximo texto, hein? hein? Não, não é o mesmo cara de Criminal minds, só é muito parecido. Liga pra sua tia, sua desnaturada. Por favor, outro sonho com escola NÃO! Tinha que ter mais sinal de pontuação, esses não são suficientes. Aff, pronto, a musiquinha do Iluminado na cabeça era tudo que eu queria. A113. Quarto 237. "Sete anos de pastor Jacó servia..." Rosebud. Se eu não dormir agora, vou ficar um caco. Um aplicativo está impedindo o desl... DESLIGAR. MESMO. ASSIM.

Amanhã a gente reinicia.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Bem-aventurados os rebeldes


Entre as mil frases geniais de Ibsen, impressiona-me muito a que diz que "o verdadeiro espírito de revolta consiste justamente em exigir a felicidade aqui na vida". A declaração resume tudíssimo que se possa discorrer a respeito de direitos e revoluções, apesar de sempre dançar à beira do risco de ser desvirtuada. Por que desvirtuada? porque haverá os que montarão no pretexto de embrulhar "felicidade" com "prazer", inevitavelmente, e vão partir para a interpretação egoísta e vida loka da coisa, o que se trata de uma falha hipopótama no GPS moral. Felicidade envolve prazer sim, porém não o hedonismo cru e cego dos que se tornam, precisamente, usinas de infelicidade para os outros. A felicidade de fato revoltosa, revolucionária, é indispensavelmente coletiva, mesmo em sua forma individual – ou seja: ainda quando envolve uma libertação do eu, implica libertação do nós, cria bons precedentes, dança entre as jaulas abrindo portas. A exigência rebelde de felicidade não se contenta em esconder a coreografia na sala, no quarto; baila desencarcerada no palco, com modos de Isadora Duncan.

É urgente também gritar que não existe oposição entre a fé religiosa em melhores lugares, melhores tempos, e o espírito revolucionário de buscar o melhor já agora. Muitíssimo ao contrário: a fé religiosa legítima em melhores tempos SÓ SE REALIZA, se concretiza, se justifica para os que estão incendiados pela premência de buscar o melhor já agora. O que NÃO EXISTE é simultaneamente se dizer religioso e aceitar pianinho as barbaridades do mundo, porque "é assim mesmo", "o que se há de fazer". O que se há de fazer é (no caso de o excesso de ignorância não desculpar em parte a aceitação passiva) deixar de ser hipócrita, deixar de ser covarde, deixar de empurrar para o infinito e além, deixar de sacudir os ombros, de suspirar culpando o destino, a História, Nostradamus, as moiras, os algoritmos, o calendário maia. O que se há de fazer é virar uma criatura que se informa, pesquisa, corta o fluxo das fake news, denuncia diariamente as atrocidades, se envolve em mutirões e campanhas, participa de abaixo-assinados, participa de manifestações, eeeeeenche o saco e a caixa de e-mails dos parlamentares, pressiona a justiça por providências, mobiliza a comunidade para a resistência, faz twittaço até que a opinião pública se ouça loud and clear, revindica, demanda, insiste, pleiteia, chateia, chateia, chateia. Sim, os integrantes de revoluções são chateadores convictos, profissionais, diuturnos; não têm necessidade alguma de pegar em armas, mas sem dúvida não podem fugir de pegar em almas e movê-las adiante com o máximo de amor e o máximo de teimosia.

Não tem jeito? Não. O preço da rebeldia autêntica é ser incômodo de alguma forma para os que promovem caos no planeta e para os que – desolados, desmotivados, desamparados, desinformados, desestruturados – compactuam com o caos. Viver a revolta no melhor sentido é tudo fazer para trocar o caos pela felicidade comum (comum em amplo entendimento: normal, cotidiana, desejavelmente corriqueira e acessível a todos). "Revoltosos" genuínos não procuram instalar desordem, procuram ACABAR com ela; que, afinal, a verdadeira e única ordem possivelmente aceitável envolve equidade de distribuição, entre nativos, dos recursos de uma Terra em que TODOS são nativos. A verdadeira ordem jamais esteve estabelecida, mas há milênios ainda por estabelecer: aquela de todas as curas, de nenhumas exclusões, de nenhuns preconceitos, de nenhumas arbitrariedades. Se não tivéssemos de ser rebeldes, inconformados, insurgentes, subversivos, não nasceríamos – permaneceríamos no paraíso direto; nada haveria, aqui, a construir ou aperfeiçoar; zero emprego para nossas habilidades e inteligências. Se viemos, foi exclusivamente para sermos rebeldes. Incapazes de ficar calados e parados enquanto Amazônias e Pantanais queimam, indígenas morrem e órgãos de proteção ambiental são desmantelados. Totalmente inaptos para assistir sem berrar ao despautério do feminicídio, da homofobia, do racismo, do nepotismo, do abuso infantil, da corrupção, da fome. Perfeitamente desqualificados para NÃO combater mentiras e demais violências. Rebeldes, é só isso que podemos ser com dignidade; inteiramente inadaptados à – e eternos reformadores da – logística insana do mundo. 

(Para no final descobrirmos, aliás, que a felicidade nunca esteve nos esperando na linha de chegada; saiu com a gente na partida e foi autografando cada pedrinha depositada no trajeto rumo a ela mesma.)

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Qual é a senha?


Admiro a coragem de mamães e papais que se dedicam, amorosos, à tarefa de botar gente legal no mundo, embora saibam que precisarão viver sempre corda-bambos no dilema: é fundamental estimular as crianças a serem empáticas, sociáveis, generosas, de coração macio e imune a preconceito; mas é igualmente fundamental criá-las de olhos tão abertos quanto o coração, desconfiadas na justa medida, prudentes, sabedoras de que muitas pessoas aparentemente boas e amigas podem não ser lá muito amigas e boas – e eu peno com um embate imaginário entre essas necessidades poderosíssimas. Como administrar doçura sem colher porções indevidas de vulnerabilidade, como proteger plenamente sem gerar cinismo? Por esses e outros dramas é que aplaudo os esforços aqui de fora, porém não aguentaria o tranco; viveria atormentada na incerteza das técnicas de irrigar e adubar um filharal.

Felizmente tem gente que manda benzaço no cultivo, como os pais de uma garotinha de Phoenix (Arizona, EUA) cujo nome nunca foi divulgado e cuja maturidade de decisão, no entanto, tem de holofotar feito um farol na cara de muito marmanjo metido a esperto. Em 2018, a menina em questão – 11 anos na época – andava pelo parque com uma amiga quando um desconhecido se aproximou numa van branca, disse que o irmão da pequena tinha sofrido um acidente, precisava que ela fosse ajudá-lo. Só que a guria, nada boba, não apenas havia sido instruída com cuidado para esse tipo de situação como teve a tranquilidade de lembrar-se das instruções e moderar o impulso: sem entrar no veículo, perguntou sabiamente ao estranho qual era a senha combinada com a mãe para emergências. Pronto, o sujeito embatucou e foi-se embora, a fim de não atrair maiores atenções no local. Em casa a menina contou pra mãe, que contou pra polícia, que lamentavelmente não conseguiu achar o potencial sequestrador; porém é provável que a lucidez da quase-vítima tenha salvado também a outros possíveis alvos na região, visto que alguma informação do homem e da van ela pôde fornecer, criando um ambiente não muito acolhedor para o patife. Brenda James, mamãe da jovem heroína, se disse orgulhosa: jamais achara que a tal senha viesse de fato a ser necessária um dia (mas vejam só: foi), e a reação crucial da filha provou lindamente os efeitos de uma educação bem dada. Leis de nossa selva particular; não sabemos quem está ouvindo, não sabemos o que será lembrado, mas falar é eternamente preciso. 

Mesmo eu, desaparentada da menina de Phoenix e de sua mãe Brenda, fiquei orgulhosíssima de ambas pelo uso feliz de algo tão simples e funcional como uma senha de confiança (considerando, claro, que a expressão seja realmente ihackeável e indescobrível pelos mal-intencionados). Se bancos, redes, sites, aplicativos nos entulham de 4 mil e duzentas chaves diferentes para cada açãozinha – certos eles, tão errados não –, se até página de loja de biscoito nos exige password de 97 dígitos incluindo letra maiúscula, minúscula, número, ideograma chinês, amostra de sangue e pelo menos um jogador da Croácia, se para postar um meríssimo comentário de portal a gente tem de decifrar letra torta, marcar todos os quadradinhos que contêm a imagem de um estegossauro, pagar 32 flexões e cantar o hino do Suriname, cadê a devida burocracia para coisinhas básicas como arriscar a vida, fazer amizade, dividir apê, cair em love, aceitar pedido de casamento? Que perigo, meu povo. Por infelicidade não há escaneamento nem biometria d'alma, mas, enquanto a tecnologia não chega lá, vale monitorar uns easter eggs comportamentais antes de estabelecer qualquer link. 

Foi grosso/grossa com o garçom, porteiro, entregador, vendedora, manicure: é cilada, Bino. Enalteceu pátria/patriotismo e os "valores tradicionais da família": vade retro. Interrompeu (se homem) uma mulher falando e reexplicou tudo de seu próprio jeito, por mais que a especialista fosse ela: t'esconjuro, tinhoso. Surtou, deu soquinho na mesa ou parede, agiu horrível, porém voltou 10 minutos mais tarde com um buquê de 73 rosas, pedindo perdão: furada MAGNA – tanta rosa assim só é comprada por quem visualiza para breve uma coroa de flores. Segurou mais forte no braço uma primeira vez: que nunca tenha tempo para tentar uma segunda. Fez piadinha de preconceito ou não se revoltou contra quem fez: game over. Ironizou feminista: au revoir. Culpou a vítima: ERROR. Passou pano para tortura: never more. Compartilhou fake news comprovada e esbravejou indignadinho com a "censura": vai pela sombra. Declarou que não usar máscara ou não tomar vacina é questão de liberdade individual: vai pastar (aproveita, inclusive, que sem máscara é mais fácil). Falou mal pelas costas de gente que, pela frente, é amicíssima: HUM. É recorrentemente ingrato, controlador, manipulador, desrespeitoso, possessivo, agressivo – tenha lá recebido o troféu ou a medalha que tiver: so long, farewell, auf Wiedersehen, goodbye. Menor chance de dar um clique. 

Não me refiro, logicamente, à pretensão de encaixotar criaturas em padrões a que nem sempre correspondem, e sim à prudência de identificar aqueles onde já se encaixam: caso de autoproteção primordial, uma vez que, deploravelmente, bichos-papões teimam em existir sem nossa autorização e estragar nossos projetos de harmonia planetária. Se não nascemos para linchadores de presumíveis monstros, não nascemos para virar suas presas tampouquíssimo – e caminhar dia a dia no tênue dessa fronteira, lidar entre dúvidas com esse conflito delicado, pode mostrar fartos sinais de saúde no fim das contas. 

Prova que você não é um robô.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Fora do lugar


A gente não quer escrever textão fazendo os piores juízos, mas o povo não ajuda. Há alguns dias, a Igreja Episcopal de St. Barnabas (perto de Cleveland, nos EUA) colocou em seu jardim uma lindíssima e triste escultura chamada de Jesus sem-teto, a fim de "promover a conscientização a respeito da situação dos desabrigados em Cleveland" e "lembrar-nos de que todas as pessoas são criadas à imagem de Deus". Como se vê pela foto acima, a estátua consiste num homem, em tamanho natural, dormindo enrolado em cobertores num banco de praça; apenas as chagas da cruz nos pés descalços entregam a identidade do personagem (além das referências artísticas escritas na respectiva plaquinha). Pois eis que, cerca de VINTE MINUTOS após a instalação da obra, alguém passou no local, achou que se tratasse realmente de uma pessoa em situação de rua e LIGOU PARA A POLÍCIA. 

Ligou. Para. A. Polícia.

Vinte minutos.

Segundo a matéria do UOL, "A igreja diz que a resposta à estátua 'fala diretamente com seu propósito' e quem chamou a polícia teve uma 'preocupação genuína'". Certo. Acho até louvável e compreensível que a paróquia procure atrair pela doçura, busque palavras amenas e não queria dar declarações apontando o dedo na cara de ninguém, mas aqui entre nós podemos comentar mais abertamente: dá para imaginar o tipo de preocupação tida pelo "denunciante" – preocupação voltada, com 98,7% de probabilidade, para o conforto de quem NÃO estava dormindo no banco. Porque, convenhamos, se a questão fosse o bem-estar do suposto homeless nada seria mais fácil do que solicitar acolhida na igreja em frente, ou oferecer um prato de comida talvez; não é praxe que se invoque a polícia senão nas situações em que alguma ameaça se apresente ao invocador (briga, roubo, tiroteio, perseguição, invasão, excesso de barulho). Não é praxe que se invoque a polícia a não ser que algo esteja ou pareça fora do lugar. Evidentemente, uma pessoa que precise dormir na parte externa de uma casa está fora de seu lugar devido e natural – a saber, uma cama fofa e quentinha –; mas vocês me entenderam. 

Por que chamar a polícia? Porque a pobreza é criminalizada, senhores. A pobreza, assim como outras atrocidades (o estupro, por exemplo), fere a tal ponto a consciência coletiva que culpar a vítima se torna a distração clássica, a maneira psicologicamente mais fácil e pronta de lidar com o problema: o gatilho, o prenúncio de algo dar errado cabe sempre ao outro, não a nós, seja como agressores diretos ou como peças de uma estrutura agressora. O simples fato imaginário de um espoliado poder vir a querer ter o que temos configura, sob olhos treinados para o medo pelos verdadeiros espoliadores, uma intimidação ou um ato criminoso em potencial – aquela velha tática de condicionar pobres a atacar paupérrimos, dividir para conquistar, fazer jagunça a classe média, adestrá-la para cães de aluguel. Criando-se uma hostilidade contra o desconhecido sem posses (ele vai te assaltar, ele vai sujar a rua, ele vai "desvalorizar" a rua, ele vai usar drogas, ele vai trazer mais gente), estabelece-se um inimigo perfeito e previne-se, automaticamente, o desenvolvimento de qualquer empatia que leve a um mergulho na – e ao desmantelamento da – conjuntura doentia que tira tanto de tantos. Não, não veja ali um humano, um seu igual, segreda o mefistófeles do capitalismo neoliberal no ouvido do transeunte; veja um vagabundo, um viciado, um ser que vive manso enquanto você trabalha. Ignore o óbvio – o fato de ele não exatamente ser assediado por uma chuva de ofertas de emprego, o fato de morrer de fome durante suas "férias" forçadas – e odeie, odeie, odeie; o sistema vigente vai agradecer penhorado e observar a briga comendo pipoca.

Precisamos nem ir à lonjura de Cleveland pra ver a cadela do medo no cio; aqui do ladinho, em São Paulo, duas das figuras mais extraordinárias na defesa da dignidade dos sem-casa – Guilherme Boulos e padre Júlio Lancellotti – sofrem recorrentes críticas, ataques, acusações de que "defendem bandido". Boulos, membro da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, já precisou esclarecer pelo menos 9.076.459.345 vezes que NÃÃÃO procede o discurso de que ele e o movimento "invadem a casa dos outros": o MTST só ocupa imóveis abandonados há anos, improdutivos, entregues por empresas à ação destrutiva e especulativa do tempo; imóveis cuja posse, portanto, se encontra em situação de irregularidade, e que podem e devem ser desapropriados pela justiça. Padre Júlio, por sua vez, até ameaças de morte tem encarado por causa de seu trabalho fabuloso junto aos desabrigados, aos quais trata com imensíssimo amor e tenta proporcionar toda a possível assistência. São essas pessoas profundamente comprometidas com a humanidade, em todos os sentidos, que muitos autodeclarados "cristãos" e "cidadãos de bem" difamam, intimidam, caluniam, perturbam – o que deixaria Jesus perplexo se já não estivesse bastante acostumado, por experiência própria inclusive. Não é de hoje que gente preocupada com a caridade e não com adulações (com o efetivo e não com o aparente, com a verdade e não com a reputação, com a presença e não com a postagem, com o serviço e não com a selfie, com a entrega e não com a conveniência) acaba crucificada em praça pública. 

Caso você tenha andado focadíssimo em garantir lei, ordem, segurança, bem-estar para as vidraças do Itaú, as instituições de lucro recorde, os megaempresários, olhe mais de pertinho: esse Deus que você tanto recita (e acredita?) estar acima de todos costuma se refugiar em outra espécie de banco.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

De caso com o acaso


Não há desculpa para tédio na internet. Outro dia mesmo descobri, na base do total acaso e ao sopro de uma consulta trivial à Wikipédia, esta ferramentazinha potencialmente viciante: o pequenino link (quinto entre os linkzitos azuis que moram à esquerda) chamado "Página aleatória". Vi, não acreditei que de fato fosse o que se prometia, cliquei – e de fato era. Ah, pronto, uma roleta-russa do conhecimento humano, uma Las Vegas virtual da história do planeta, uma embarcação louca e randômica que leva olhinhos desocupados tanto para a Região Geográfica Imediata de Lagoa Vermelha quanto para um livro de Zeca Baleiro, tanto para uma espécie de mariposa do gênero Blastobasis quanto para a segunda temporada de The crown. Ao toque menos-de-um-segundesco dum botão, inaugura-se o vício do imprevisto absoluto, e quando se vê já correram horas (hipérbole minha; nem paciência tenho) nesse caça-níqueis de informações alucinadas: one more, one more. Credo, que delícia.

A brincadeira, ademais, me captou pela memória além de estufar minha curiosidade naturalmente balofa; em tempos remotos, anteriores à própria internet – pelo menos em sua versão popular, caseira – e à Wikipédia mais ainda, eu já me distraía com o fortuito, abrindo e folheando aleatoriamente as vovós de capa dura da tia Wiki. Ansiava por lendas, pedaços de biografia, acontecimentos escabrosos, nomes bonitos de flores, singularidades poéticas de estrelas, o que fosse, o que viesse; era um jeito de escarafunchar o mundo e coser retalhos de repertório interessante, ao menos na duração do momento. Ora: para uma catucadora serial de enciclopédias, dar de cara com o tal linkzinho configura o clássico fenômeno pintum no lixum, de modo que me pus, faceira, a chafurdar nesse roletrando de bisbilhotice e sabedoria, sem data para retorno.

Graças ao girar extravagante do novo hobby, descobri que a cidade turca de Divrigi já esteve sob o domínio dos mengujêquidas; que o município amazonense de Autazes sedia a Festa do Leite; que o Piz Bernina é a montanha mais alta dos Alpes Orientais; que a Tinhosa Pequena (me identifiquei SUPER) é uma ilha de São Tomé e Príncipe; que a púrpura tíria é uma tinta vermelhona extraída de caramujos marinhos – muitão valiosa na Antiguidade, porque em vez de desbotar ela garra mais força com a exposição ao tempo e ao sol; que o Quirguistão levou uma medalha de prata e uma de bronze nas Olimpíadas de 2008; que o navio Olympic (ao contrário dos "irmãos" Titanic e Britannic, naufragados antes de completar uma viagenzinha comercial sequer) trabalhou pleníssimo entre 1911 e 1935 e ganhou o apelido de "Velho Confiável". Conheci o fisiologista britânico Joseph Barcroft, que se fez de cobaia várias vezes em seus experimentos, chegando a se expor a hardcorices como uma semana numa redoma de vidro, gases tóxicos, temperaturas baixíssimas (nesse último caso, inclusive, o sujeito ultrapassou a fronteira entre a ciência e a inconsciência, desmaiando num piripaque). Fui apresentada à existência da banda de rock japonesa Radwimps. Achei de uma beleza brusca a orquídea Dracula sijmii, com três agudezas que lembram muito, muito o bico dum beija-flor. Aprendi que namsewal significa "olá" e "adeus" na língua sunwar, falada no Nepal e na Índia. Fiquei sabendo que a cunhada de Carlos Magno se chamava Gerberga, mãe de Pepino e Cunegunda – o que não põe em ótimo conceito as escolhas batismais da galera do primeiro milênio. Virei fã da astrônoma americana Dorrit Hoffleit, pessoa nota cem: viveu cem anos, deu aula para classes maravilhadas de mais de cem alunos, dirigiu programas de verão para mais de cem estudantes (muitos dos quais seguiram carreira na astronomia). Isso tudão sem contar o tanto de páginas em que deslizei a vista mas não cheguei a condensar aqui, acachapada pela quantidade de números, dados, letras, nomes que existem impensáveis, só para nos esfregar no nariz a universidão solene de nossa ignorância. 

Agora muito com licencinha, que o oráculo da madame Wiki acaba de sugerir uma rapper sul-coreana e uma banda indie-roqueira de Birmingham; vou dar um vapt-vupt esperto ali no YouTube e não sei em que década eu volto.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Observar baleias


Me senti representadíssima por um post lido no Face, mas colhido no Twitter – do perfil @yuribt: 

"Sempre que tô lendo textos acadêmicos, lembro do meu professor que falou que ler é como observar baleias.

Vai lendo, passando as páginas, sem se preocupar em entender tudo.

De repente aparece uma baleia. Vc entende, anota, aproveita.

E fica mais algumas horas olhando o mar."

Sim: toda uma vida de incompreensões universitárias desvendadinha sob meus olhos, desatada – não podia deixar de ser – pela metáfora (pela comparação, para ser precisa; mas metáfora soa mais bonito e mais amplo, não soa?). No texto anterior eu comentei rápida mas exatinhamente isto, que nunca me dei bem com a linguagem acadêmica, estruturices teóricas e semelhantes; nunca me bateu certo o palavrório com que normalmente se embrulham os conceitos. Ficava olhando as obrigações de leitura da faculdade feito um burro olhando para um palácio, para usar a expressão de minha mãe: por que gabirobas era necessário que elucubrações filosóficas, sociológicas, artísticas fossem estendidas num caos de orações sem sujeito (sujeito havia, mas só Deus sabe em que ponta da frase estava), num mar de concordâncias insondáveis, numa sintaxe ida e vinda que parecia um rali de Mad Max na Estrada da Fúria? Por coincidência ou não – certamente não –, os teóricos mais tranquilildos de ler eram justamente os que também praticavam literatura, e cuja escrita, portanto, estava contaminada de conotação, estética e leveza. Os demais aparentemente tinham gozo de dominatrix vibrando o idioma que nem chicote; e eu lá, sem a menor vocação para qualquer modalidade de masoquismo, empacada em trechos de suposto português que soavam direitinho como língua meroítica arcaica, da qual aliás nunca ouvi nenhuma sílaba.

O que fazia o Mar Vermelho se abrir eram as explicações dos professores; uma vez traduzidas as ideias para o brasileiro falado, luzinha e calor ardiam no peito e eu conseguia encapsular o conteúdo em bolinhas de metáfora, absorvendo-o agora plenamente. Mas e quando não há tempo ou contexto para explicações dos professores? Aplique-se o que (doravante e por todos os séculos) chamarei de lei da baleia, que além de perfeita no teor é adequadíssima na forma, com essa leitura duas vezes ressaltada. Pela lei da baleia, mesmo sem um facilitador disponível o desvendamento pode acontecer, talvez insuficientemente para o gosto do freguês, mas bastantemente para uma compreensão global e um crescimento significativo. Desde que se esteja lendo a língua nativa ou outra em que já se tenha certa proficiência, não é POSSÍVEL que em algum momento o raio de uma baleia não suba à superfície do texto para ter respiradouro, ou que a pitomba de um termo, de uma expressão autoiluminável, não dê um salto no meio daquela estagnação azul. Vai ocorrer necessariamente, e então o navegador que teve sangue-frio para acompanhar as ondas – sem se desgrenhar de desespero nem ceder ao transe do marasmo – vai flagrar sua Moby Dick conceitual e se dar por satisfeitíssimo com o troféu do dia. 

É suficiente? Se o clarão principal relampeou aos olhos do leitor e foi por eles guardado: suficiente. Para o momento, suficiente. Que o leitor é isso; assim como o pescador (ou qualquer outro ofício), não fica pronto de prima, não tem em toda pesca a mesma sorte; desenvolve a técnica a cada lançar de remo, de rede. Com tempo e manejo, fica safo para a percepção do que antes – quando só tinha olhos de identificar baleia – passava por ondulaçãozinha ilegível, e na madureza do olhar vira pista, vira indício, vira finalmente palavra. O pescador experiente torna-se experiente depois de muito ressignificar o que era dito pelo mar, mas não era ouvido, apenas guardado no que a amiga e historiadora Camila Rodrigues lindamente chamou de "repertório silencioso": nosso depósito de referências que permanecem maturando até estarem prontas para consumo. Não há encontro ou embate com o texto que na verdade não produza efeito, ainda que a posteriori; ainda que nossa lembrança acredite só ter registrado o que era mais óbvio e gigante. Mesmo que pensássemos não estar vendo, sentíamos o embalo marinho do texto, seu cheiro, seu sal, seu ritmo, a impressão física e emocional de seu contato – e isso também é repertório e memória, também é conhecimento se formando, também é inteligência nova que se impregna quase à revelia.

Há, sim, uma dose de resiliência dolorosa em se sentir à deriva no verbaval, jogado lá e cá dentro dum barquinho principiante, sem motor, sem potência, até sem o impulso voraz que pulsa no náufrago. Vale a pena? opa; mesmo na peleja não pequena: "Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ Mas nele é que espelhou o céu". Quisera ter-me esmerado muito mais na arte de sentar à beira-texto ou de ser navegada – que hoje sei melhor, bem melhor, que quem se dedica a ter ouvido capaz de ouvir e entender baleias não fica nunquinha a ver navios.

domingo, 18 de outubro de 2020

Com palavras não sei dizer

Admito: eu odeio parabenizar. Não que eu odeie reconhecer todo o mérito de uma criatura, ou o talento, ou a capacidade de completar anos de casamento, de profissão, de vida; não. Reconhecer o mérito de alguém é coisa linda. Detesto mesmo é ter de elaborar discurso para, em dia de. Detesto ter de emitir dezenas, centenas de textos similares por ano, pouquíssimas variações possíveis, caminhos limitados (certo, não é inviável driblar os clichês, mas no tormento de driblá-los um segundo tormento se inaugura, que é o de investir mais imaginação e esforço e pesquisa no ato parabenizatório – tortura, enfim). Dado que TODOS os dias o Face joga na cara dois ou três aniversários distintos, fora os de filhos-namoros-formaturas-lançamentos-mestrados divulgados pelas pessoas mesmas, é muita canseira de afeto para seres arredios a expansões, principalmente verbais. Minhas expansões são mais ao estilo abraçante, esmagante até, ou são aquelas que curtem buscar com alegria o presente perfeito; mimar eu acho divertidíssimo (adultos, evidentemente; com crianças eu seria carinhosa sem dúvida, mas não as mimaria nunca). Sou verbal por ofício, digamos, e no entanto gosto à beça de relações em que não precise sê-lo.

É uma falha humana e política; todos têm o sagrado direito de receber 8.987.489 parabéns em seu dia especial, e de magoar-se quando não os recebem; mas mesmo ciente dessa verdade irrefutável eu deixo escorregarem algumas datas, no vai-não-vai de "depois eu encontro a imagem perfeita", "depois eu penso num texto bacana". Acaba que não encontro, não penso e fico plenamente culpada de não ter pensado ou encontrado, quando não é (juro) ausência de ternura – tantos amigos eu amo com paixão! –, e sim essa resistência desnaturada e incontrolável às manifestações de folhinha. Nenhum problema com festejos e rituais, inclusive adoro, mas uma coisa é carinho, gesto, memória, dança, e outra coisa é a emissão de palavras previamente formuladas, em geral vazias e enfadonhas à força da repetição eterna. Repito, porém: a culpa não é das palavras, a culpa é minha, que não me ajeito com boa parte das convenções de relacionamentos civilizados. Ou não me ajeito com obrigações linguísticas – daí também minha aversão aos termos acadêmicos, às formalidades, aos protocolos (até para chamar alguém de "senhor", "senhora" sou bem ruim, misturo com o "você" que sempre usei com a família inteira, tropeço ridiculamente; é de imaginar que eu caísse solenemente na gargalhada se, num Congresso da vida, precisasse lançar "Vossa Excelência" aos quatro cantos, como praxe). Em suma: bicho do mato.

Sim, sou bicho do mato apesar de urbana, avessí(ssíssí)ssima a verbalizações compulsórias apesar de amante da língua, ou muito provavelmente por isso mesmo. É quase um milagre que eu diga "te amo" assim na fuça do destinatário – e, na eventualidade de o Vaticano registrar o milagre, com certeza a declaração há de ter sido por escrito. O normal é que esses meus textos de amores falem de uma terceira pessoa, que a exaltem em efígie, que sejam uma espécie de malhação do Judas ao contrário, como a que (desconfio) estou fazendo agora: dizendo de meus amigos que os amo; que lhes desejo as mais vitaminadas felicidades daqui até Saturno, contornando os anéis, fazendo um desviozinho até Plutão e voltando; que eles são fabulosamente sensíveis, empáticos, bem-humorados, inteligentes, e com sua presença virtual deixam os dias quentinhos – ou fresquinhos, conforme as demandas deste clima do Hell de Janeiro; que eu adoraria ser mais competente em sociais e recadices (talvez haja ainda condição, estamos trabalhando para melhor atendê-los). Digo que sou assim diagonal e extraviada de nascença, torta, de afetividade gauche e escapona nos pequenos compromissos, mas espero que pronta para os maiores, tanto quanto eu possa desdobrar-me. Digo que, sem ser às vezes a presença aparente, procuro continuar pairante, espiando aqui do cantinho qualquer tarefa que me sobre ou me caiba. 

Aos vários queridos, solicito paciência com minhas vacilações e afastamentos de passarinho sem bando. Continuo, embora inapercebida, por perto – voando em torno dos que fazem níver de primeiro de janeiro a 31 de dezembro, na tentativa sincera de soprar easter eggs dum carinho (volta e meia) difícil de desengasgar.

sábado, 17 de outubro de 2020

Questão de tempo


Adoro (e não conheço quem não adore) aquele cálculo bem machadiano de tempo feito por Brás Cubas em suas Memórias póstumas: "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos". É um dos desparalelismos mais geniais de nossa literatura e, em realidade, ilustra benzão como funcionamos por dentro – não necessariamente em termos de Marcela, mas de Brás; horas, semanas, minutos nos são perfeitamente cabíveis no relógio e no calendário, porém insuficientíssimos para o registro interno, que se apega a marcações mui particulares. Somos relatividades ambulantes só passíveis de algum entendimento sob a baliza de Greenwich.

Eu, por exemplo, cresci noveleira (já hoje não muito praticante; reservo a audiência para as obras de Lícia Manzo – e também acabei acolhendo, na segunda metade, a reprise de Totalmente demais), o que me faz infalivelmente escorada na lembrança dos folhetins para assinalar cada ano: lembro-me criança, cantarolando no ônibus as músicas de Tieta; me vejo comendo esfirra de carne aos 13, diante das Mulheres de areia; ouvindo, pós-estudo de oitava série, o tema de abertura dA viagem; lanchando com os olhos postos em História de amor, antes de uma missa noturna (Sábado de Aleluia ou Natal? não sei bem); assistindo a capítulos fundamentais de Por amor na sala de TV dum hotel fazenda queridíssimo, no qual descansei a loucura do vestibular; já na faculdade, imitando personagens de Laços de família e, mais tarde, adotando o adereço usado por Jade em O clone – tudo vem pronto e fácil, rápido e mais ou menos preciso, mas emocionalmente exato. Tão exato que ser atropelada por trechos das velhas novelices (no Viva, no Vale a Pena, nos anúncios do Globoplay) configura para mim um nível de tormento altíssimo, quase como encarar a moedinha-portal de Em algum lugar do passado. Não bagunce minha linhazinha emocional do tempo, mundo, eu imploro: deixe em paz as antigas impressões, que especificamente por serem felizes se querem lá, imutáveis, sossegadas, hibernando em sua redomemória incorrupta. 

Depois do casamento – vejam só que curioso – perdi quase toda a capacidade de linkar com exatidão os anos e as novelas, mesmo as que ainda acompanhei. Trago teorias: talvez na infância e adolescência o tempo corra de maneira mais retumbante, sempre desenhando aos gritos as fronteiras, inclusive com a mudança crucial e numérica das séries escolares; talvez na infância e adolescência um ano represente uma porcentagem muito imensa de transformação, o que não ocorre na mais estabilizada idade adulta. Ou talvez a oscilação brutal tenha morado mesmo entre a solteirice e a vida casada: em solteira, mantive referentes de tempo muito individuais, e agora é como se mergulhasse na temporalidade comunista do nós, na maior serenidade narrativa da história conjunta. Já inapta para me orientar por novelas, mais facilmente adoto as viagens que fizemos como bússola; sabendo onde estive, ligeiramente sei quem eu era. Quem eu época. 

Dependendo de nossas unidades intransferíveis, amamos por quinze meses e onze contos, ficamos arrasados por dois dias e um filme, nos desesperamos ao longo de três lojas, choramos no decorrer de uma dívida e meia, sorrimos por cinco episódios consecutivos, gargalhamos pelo espaço de vinte e oito memes, somos confiantes por dez selfies, eternos por dez ondas, infelizes por todo um governo. Lembramos quem fomos durante aquele comercial, aquela música, aquela peça, aquela praia, aquele seminário de escola, aquele trabalho de grupo naquela casa, aqueles instantes naquele museu, aquelas mãos dadas naquele passeio. Enquanto dava um minuto de Greenwich ou Brasília, quarenta séculos nos contemplavam. Em pleno meio-dia dos trópicos, uma aurora boreal nos nascia. 

Não há Doc Brown, plutônio ou capacitor de fluxo que nos transportem, nos programem, nos acertem com cronologia tão eficaz quanto o reloginho secreto que a alma carrega no bolso. A cada disparar de nosso cronômetro personalizado, um nosso pedacinho de vida é infinito enquanto dura.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Nem só de pão


O 16 de outubro é, simultaneamente, Dia Mundial da Alimentação e Dia do Pão, o que captura um professor de português no pleonasmo e na metonímia; pão, afinal, não apenas se insere no alimento como SIMBOLIZA o alimento com a coroa-mor: é "o pão nosso de cada dia" que pedimos orantemente, não a carne, não o grão, não o ovo, não a fruta, não o leite, apesar mesmo de nossa biologia mamífera. Coisa linda e imensamente significativa, já que pão exclui a morte ou a exploração de qualquer animal (reitero: não sou vegetariana, mas não é por falta de consciência e sim de vergonha na cara), algo por si só inclusivo, e além do mais é comida que não brota pronta – ou seja, conjuga a colheita da natureza ao trabalho do homem. "Nhâin, mas é farinha e tem gente que não pode farinha", vai grunhir um aporrinhante; OK, migo, só que nem toda farinha é grávida de glúten, como sabemos, e assim sendo a sua intervenção imaginária é mera impertinência. Há pães para todos os gostos e saúdes, democrática, icônica e maravilhosamente. Pão contempla carnívoros e veganos, típicos e (potencialmente) celíacos; reina pela manhã, acompanha à tarde e à noite, brilha em todas as recriações e culturas, não foge sequer à famosa alimentação dos prisioneiros, séculos a fio. Pão é massa de humanidade todinha (e aliás não deve ser coincidência referirmo-nos à coletividade como "a massa"). 

Mas nem só de pão.

Jesus mesmo o disse, dando um VRÁ no demônio em pleno deserto: nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus. "Nhâââin, só que nem todo mundo é religioso, né?" Tô sabendo, mano; vamos combinar, porém, que o fato de a pessoa não ser religiosa de maneira específica não exclui sua sede natural de contato com o sublime, com o sagrado, com toda experiência que nos eleva anos-luz em relação ao animalesco, ao bestial, ao chão – toda experiência que nos torna humaníssimos, no melhor sentido. Sapiens nenhum foi programado para se ater à sobrevivência mais biológica possível, a vida inteira, twenty-four-seven, sem chance alguma de cultivo do espírito, sabedoria, sublimação; não temos escolha senão a inquietude, a incompletude, o irrepouso, a busca, a beleza, o conhecimento, a poesia, a filosofia, a teologia, a amplidão, a abertura crônica das asas internas, que não se manifestam fora mas atormentam de comichões o dentro, carecidas e insatisfeitas. Somos isto, esta faísca, esta fagulha; precisamos assar o que fermente muito além do almoço, precisamos levar muito mais que farinhas e águas ao forno, antes que a própria potência desse fogo e dessa fome nos consuma. 

Precisamos de arte – uma das nutrições mais suculentas de nossa alma voraz; precisamos tocar, amenizar, discutir, eventualmente principiar a curar nossas questões intransferíveis por meio dessa transferência; precisamos que a todos os olhos chegue literatura, pintura, escultura, teatro, cinema, nas mais várias formas, abrigando a maior diversidade de aspectos, de modo que nos enxerguemos uns aos uns e uns aos outros, que estudemos empatia, que provemos o valor reorganizante da linguagem, que acessemos vias aráveis da alegria e da angústia. Precisamos de ciência – de respostas diretamente dadas pelo mundo, desanuviadoras de enganos, combatentes de superstições malucas, possibilitadoras das curas que têm o amor e a arte como auxiliares e enfermeiros, destruidoras de preconceitos, agentes de alguma chance de permanecermos com um planeta viável. Precisamos extrema e urgentemente de afeto – a alimentação mais imediata depois que o corpo está saciado do sustento, ou, de preferência, concomitante ao próprio sustento; precisamos que mãos nos levem, braços nos apertem, corações nos escutem, olhos e sorrisos nos empurrem, amparem, acreditem. Não é nem que a gente não queira só comida, como diz Arnaldo; PRE-CI-SA-MOS não ter só comida, pela natureza de nossos algoritmos inevitáveis. Como diz outro Arnaldo: a regra é clara. Vá que sobrevivamos só de pão, mas viver – não vivemos; nada somos senão primatas ainda respirantes, a não ser que toda palavra que sai da boca de Deus nos bafeje de nossa exclusividade. Em versão ecumênica: a não ser que tudo quanto é feito para ser bom, belo, certo, grande, justo, fantástico nos transforme exatinho no que deveríamos ser, no que potencialmente somos. 

A alimentação física nos salva da ausência em nosso posto; mas é a nossa parte merendante do extraordinário quem responde à chamada.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Das partidas


"'fulana venceu o câncer!', 'beltrano venceu o covid!' e tome de tratá-los como 'vencedores'. ok.
e quem morreu então perdeu, é um perdedor? é isso?
boh."

São palavras da querida Nina Paduani no Facebook (mantidas aqui em sua formatação original), e dão que pensar por meses. De antemão, posso dizer que concordo. Entendo perfeitamente o gestual linguístico de equiparar "venceu" a "curou-se de", atribuindo à resistência do organismo o caráter de poder, de conquista: vejam, ele/ela foi mais forte que a doença. No entanto, não posso deixar de assinar embaixo da declaração da autora; por mais que o falante ou escrevente não tenha qualquer intenção de depreciar os que faleceram em virtude de algum mal, acaba por fazê-lo, uma vez que a dedução é compulsória – quem não venceu uma doença automaticamente foi vencido por ela, ideia completamente péssima tanto para a memória do falecido quanto, em especial, para aqueles que o amam. Amados e amores não precisam dessa imagem de desincribilização da pessoa que "cedeu" ao que era de todo incontrolável; não precisam dessa nuvenzinha de "derrota" pairando sutil na despedida, como se houvesse um sopro sequerzinho de culpa ou fraqueza embutido em não ter aguentado. Culpa e fraqueza nem remotamente se aplicam à situação. Aquele ou aquela cujo corpo e cuja mente precisaram lidar com uma doença se inscreve de imediato no grupo dos que tiveram a doença – ponto. Não é competição, não é gincana, não é futebol; é uma contingência da qual pode ou não resultar morte, feito nuvem da qual pode ou não resultar chuva. Há nuvens vencedoras ou perdedoras? há nuvens: formam-se e cumprem-se. 

"Ah, mas ninguém está dizendo que os que morrem de enfermidade são fracos e derrotados." Sim, está dizendo; pode não declará-lo oficialmente, e entretanto o afirma por meio de seu contrário. Se fosse apenas isso, aliás, era ainda lucro: hoje um PRESIDENTE olhado e copiado pelo mundo inteiro (porque líder da still nação mais poderosa) se arvora em Superman e arrota que sarar de covid é fácil, afinal ele é um espécime físico perfeito e extremamente jovem. Pois é. Que esperar de uma criatura capaz de fazer pouco dos que morreram em guerra (ele fez, para choque e mágoa dos parentes de soldados), capaz de considerá-los losers pela inconveniência de não terem sobrevivido? A verbalização nojenta de Trump de certa forma reflete – psicopata edition – o sentimento nacional reservado aos "perdedores", os que não triunfam, os que não chegam em primeiro, os que combatem e são abatidos sem abater. Obviamente não quer dizer que todos os estadunidenses estejam prontos a "condenar" os doentes que perecem, porém quer dizer que esse subtexto do desprezo pela dita derrota perpassa sua cultura de um jeito forte o suficiente para chegar aos lábios do representante do país, e ser uma anteninha parabólica do pensamento ocidental. Infelizmente é fato: embora nem todos atribuamos o tamanho da carga negativa que um americano atribui ao universo do perdedor (talvez o maior xingamento que exista por lá), glamourizamos sim a ideia de vitória, invariavelmente atada ao que é externo – o vencedor que dá a volta por cima, que reaparece pleníssimo batendo cabelo, que recupera a saúde, que fica RYKOH, que se vinga, que dá uma surra no inimigo, que ganha no jogo de lavada, que tem a última palavra. Sequer roçamos a possibilidade de alguém que fez tudo isso se sentir o mais irrealizado dos seres no capítulo final, e de alguém que passou longe de cada item estar inteiramente reconciliado consigo e com os demais, dando a mínima pras picuinhas terrenas e transbordando de feliz em seus últimos dias.

Porque toda a nossa loucura, enfim, se resume a isto: vincular ao erro, ao insucesso, à fraqueza o que é também nossa certeza única, em vez de termos com essa certeza uma relação sem caos, sem desespero – de serenidade e sabedoria. Não é (óbvio) questão de celebrar a morte, e sim de não a encarar como algo paralisante em vida, de não a ver como punição mas como arremate, epílogo, fim de temporada. Espera-se que venha natural, sem ser fruto de injustiça, intervenção humana, negligência e maldade; mas que ela vem já está estabelecido, e portanto o mais cabível era fazer o exato oposto do que fazemos, o mais correto era falarmos sem pavor ou pesadume daquilo de que não falamos, o mais lógico era tratarmos com justa racionalidade o que é uma constatação e não um susto. Ainda conseguimos? Quem sabe em alguns milênios; por enquanto, administramos só muito porcamente nosso horror exacerbado. Mas já ajudava um monte se fôssemos parando de, com a linguagem, relegar à categoria de "derrota" a reação do organismo a um agente patológico – e me incluo totalmente nessa proposta de vigilância, comprometendo-me a não comemorar a "vitória", e sim a cura, a chance de o corpo sentir maior disposição enquanto continua escrevendo sua história aqui pela Terra. Pessoas que não obtiveram a cura não perderam, somente encerraram seu tempo de escrita, que viria em algum momento a encerrar-se como termina uma fruta, uma flor, uma chuva. 

A derrota legítima pertence aos que traem, por escolha, a destinação humana de elaborar um planeta mais viável para todíssimos. Quem cede com frequência preocupante ao lero-lero de seus próprios demoninhos egoístas: este, sim, é constantemente levado a nocaute.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Unboxing


Não sei quem foi e quando, nem mesmo se foi caso de gente conhecida ou lida, mas me recordo de alguém, certa vez, descrevendo uma entrevista de emprego na qual atiraram à queima-roupa uma questão inusitada: me dê cinco usos diferentes para uma caneta (nenhum relacionado à escrita, claro). Me parece que a pessoa da história mencionou o objeto como um potencial prendedor de cabelo – e mais não lembro; lembro, porém, que eu mesma fiquei matutando no assunto, e dali a pouco já escalava a caneta para os papéis de minimastro de bandeira (ou mastro de minibandeira?), tutor de planta, zarabatana, hashi, suporte para anéis, pendurador de chaves. É óbvio que uma coisa é remoer o desafio sem prazo de escuta, cabeça livre e fria, e outra é pensar ligeira e inventivamente diante de olhos avaliadores que podem vir a garantir seu salário; de qualquer forma, achei a proposta interessantíssima, por estimular no candidato a sagrada criatividade que é um dos motorezinhos empurradores do mundo (vamos combinar de não catucar muito a fundo, aqui, o fato de as empresas desejarem multifuncionários adaptáveis a tudo e "vestidores da camisa" crônicos, ou seja: gente que se vira pra fazer de algum jeito a sua função e a de dois ou três outros. Vamos, pelo instantezinho de um post, focar só no universo lindo e lúdico da criatividade como evolução, porque estou precisando dar um tempo na realidade crua, peloamor; coração fortemente exausto). Acredito, aliás, ser das características com maior grau exigido de estimulabilidade – juntamente com a generosidade e a empatia – desde que a criatura brota na Terra. Tenho visto, com tristeza, alunos de criatividade nitidamente tolhida e medrosa, alunos que não ousam um passo para além do lugar-comum em narrativas e títulos, como se a imaginação tivesse brincado insuficientemente para criar flexibilidades, alternativas, repertórios. 

Os meios básicos de turbinagem mental todo mundo sabe: leitura, leitura, leitura, joguinhos de estratégia, brinquedos de montar, leitura, bons filmes, bons programas de TV, teatro, música, leitura, contação de histórias, poemas em voz alta, massinha, pintura, leitura, revistas de colorir, passeios sem objetivos prévios, origami, recorte & colagem, leitura & leitura. Etcétera. Eu sei, nem todos têm acesso muito fácil a vários desses elementos, disponíveis para uma quantidade de pessoas longíssima do ideal. Alguns (como o livro) são insubstituíveis. Ainda assim, se os pais/cuidadores tiveram a oportunidade de ver sua própria inventividade encorajada, seu trabalho de encorajadores conta com recursos múltiplos: convocar os pequenos a imaginar nomes diferentes para as coisas e animais; pedir que respondam a perguntas cantando ou rimando; sugerir que "descubram" figuras humanas nos nós da madeira, nos traços do azulejo, na pedra da bancada – e criem para elas uma identidade e uma vida. Questionar as crianças, à moda lá do entrevistador, sobre outras funções para um pregador, um rolo de papel higiênico vazio, uma caixa de leite, uma garrafa plástica. Propor missões imaginárias para acordar o MacGyver que mora em cada humaninho (você está preso num castelo; para fugir, só tem três folhas de árvore, um prendedor de cabelo, um boné e uma escova de dentes; como você faz?). Pousar objetos sortidos sobre o papel e mandar que as criaturinhas desenhem em volta (olhem só, neste link, que inspirações maneiríssimas de um artista francês). Improvisar cabaninha na sala com mesa e lençol. Projetar sombras de mãos na parede. Organizar uma "caça ao tesouro" pela casa. Tudo isso, e mais outros tudos, a custo baixo ou zero – sem gastos significativos além de tempo e esforço dos pais. O problema é que o tempo e a possibilidade de investir esforço não raro acabam sendo outros luxos, quando carência e recessão nos esbofeteiam.

Pronto, não tem jeito, lá vou eu para a realidade crua, aquela em que o sistema vigente ODEIA estímulos de mais à criatividade de classes mais pobres que a média: circulando, circulando, vamos acabar com essa palhaçada de qualidade de vida e brincadeiras com os filhos, que precisamos deles conformados, obedientes, sem recursos nem perspectivas. Nada mais ameaçador, para a lógica da exclusão, do que jovens das camadas mais humildes recebendo esclarecimento, impulso, apetite por abrir as próprias portas e não as alheias; começando por plantar ideias e tomar gosto por seu alastramento; e se chegando, se chegando para dentro do cercadinho VIP cuidadosamente reservado para a galera do berço esplêndido. Além de cruel, entretanto, essa concentração das chances de crescimento no interior das oligarquias é de uma estupidez, de uma idiotice ímpar (como tendem a ser todas as coisas marcadas pela crueldade). Houvesse uma real celebração da capacidade e da inteligência, ganhariam todos; mais rápido as vacinas seriam criadas, mais virtuosi despontariam no violino, mais atores, diretores, fotógrafos e estilistas geniais flutuariam pelo tapete vermelho, mais chefs nos conquistariam pela boca, mais engenheiros e paisagistas desenvolveriam projetos mais sustentáveis, mais professores brilhantes alimentariam mais talentos – e o mundo feito para todos deixaria de ser um imenso desperdício de tantos. Pela sordidez do egoísmo imediatista que bem conhecemos, soa desinteressante esse gráfico com vagas para todos os ápices, todos os auges; MAIS um motivo para investir violentamente no capital criativo dos jovens cérebros: divertir-se irritando o sistema. Ninguém ignora que quanto mais uma teoria perversa guincha e estrebucha, mais o final da novela se torna prazeroso.

Combater políticas ricas em estímulos culturais para mentes moças da periferia é, em última instância, promover uma indústria da seca, tentando infertilizar terras para que se dobrem a qualquer esmola. Sigamos, ao contrário, abraçando gente que se desdobra e triplica no ato de aproveitar cada cantinho de leitura, cada roda de conversa, cada apresentação de teatro popular para plantar semente braba, semente firme, robusta. 

Essa gente que dá nó em pingo d'água.