sábado, 30 de junho de 2012

Feliz em gotas

Volta e meia uma amiga de Facebook inicia uma outra série de fotos. Assim: repete muitão uma determinada frase, um determinado trecho, mas a cada vez com uma diferente imagem para ilustrar o tema. Há poucos dias o mote era: “Vamos sentir falta de tudo aquilo de que não precisamos”. Desnecessário dizer que curti a máxima.

Curti a máxima porque é disso que somos feitos, humanamente feitos; de sentir falta. De, em acréscimo, ir engordando (até com exagero) a ideia do essencial. Porque, a rigor, carecemos de quê? casa, comida, saúde, educação, segurança – o quinteto fantástico, em termos de propaganda política. Para reduzir ainda ao mais basiquete dos básicos, botando o estilo “naufraguei na ilha deserta e sobrevivi”, precisamos de quê? um ar que se respire e uma qualquer coisa que se coma e beba. Ao corpo físico é provisoriamente o bastante, e isso mesmo se conclui da boa subsistência de outros bichos em igual situação. Mas nós acontecemos de não ser parte demais da bicharada, com a mania nossa de colocar o querer para além da fronteira, por cima do muro, para mais que a dobra do Cabo da Boa Esperança. Acontecemos de pretender um diferente essencial, que não é só o invisível aos olhos, como no dizer da Raposa; é também o visível, o cheirável, o audível suficiente para resvalar da mera vida, acontecimento biológico, para o que combinamos chamar felicidade.

Sentimos falta do pão, da carne que nos mantenha em pé, sim, mas logo após a falta orgânica há a saudade emocional do café, do sorvete, do bolo de fubá que a gente só comia na casa de campo da tia Veruska, do sanduíche de mortadela que era todo o almoço dos primeiros, melhores anos de empresa. Sentimos falta de um oxigênio nosso de cada dia pilhado no meio da fumaceira; porém, uma vez suprida a urgência respiratória, damos de sonhar acordados com o perfume da melhor namorada, o xampu preferido da mãe, o mato chovido do hotel-fazenda, a essência do bolo quente que a gente só comia na casa de campo da tia Veruska. Sentimos falta sanguínea de água adentrando a garganta; já azeitado o motor renal, desembestamos a precisar de suco de melancia, chá, iogurte, piña colada, danamos de querer beber livros e os próprios autores, citações e os próprios citantes, conhecimentos e os próprios conhecidos. Entramos numa de desejar filosofia, de ter vontade de cobertor e almofada, de planejar luminárias, de projetar viagens, de cobiçar sapatos, de ter fissura em geleias de blueberry, de comprar DVDs e camisolas, aquários e jornais de domingo: tudo desnecessário. Não precisamos de parque, de cinema, de muffin, de mármore, de Mickey, de anel, de cartaz, de trilha sonora, de namoradeira na varanda, de vaso na janela, de piscina de bolinha, de echarpe e bolero, de jeans e jardim. Não precisamos. Faz uma falta assassina.

A gente não quer só comida; a gente quer criar e esmigalhar saudades em qualquer parte.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Anos de alma

“Mamãe, minha alma não tem dez anos”, declara o filhinho de Clarice na mesma crônica que citei no post anterior. “Quanto tem?”, ela quer saber. “Acho que só uns oito.” “Não faz mal, é assim mesmo.” “Mas eu acho que se deviam contar os anos pela alma. A gente dizia: aquele cara morreu com 20 anos de alma. E o cara tinha morrido mas era com 70 anos de corpo.”

Dou braço ao herdeiro de Clarice (que definitivamente teve a quem puxar): é disparate calcular por rotações e translações, por involuntária cronologia alheia, o que só se conta por calendário intransferível. Às vezes botamos adolescência por mise-en-scène – externamente colecionando ficadas e gritinhos idolatrantes ao galãzote de cinema –, quando a alma não acabou de brincar de boneca, de ter curiosidades mirins sobre beijo e sexo, de se espantar com a existência de obrigações e impostos, de precisar do sorriso da mãe pra cada blusa ou acessório comprado. Às vezes recebemos a carga inesperada de oitenta anos e, comportadamente, escondemos o fogo superior ao dos trinta que nos atiça o(a) novo(a) vizinho(a); nos conformamos em sepultar a eterna gana de viajar solitários, de fazer arborismo, de programar computadores. Às vezes completamos sete anos e guardamos uma gravidade e uma preocupação ambiental dos –enta. Às vezes casamos apavorados aos vinte e três, e é só casar pra sermos apresentados em nós a alguém com serenidade de bodas de ouro. Ou casamos aos cinquenta, romantiquinhos de tudo, e de repente nos descobrimos criaturas com ciumecos de treze. Corroborou-o Caetano Veloso, em sua coluna global de domingo retrasado, quando o Segundo Caderno celebrava os setenta-anos-este-ano de Gil, Milton, Paulinho da Viola e Caê: “Mas, para mim, adolescentes são mais alegres do que crianças. Acho que sempre achei isso. Desde que era criança. [...] Percebi que a idade adulta traz ainda maior firmeza a esse gozo da autonomia, mas o florescer dessa ventura ficou para sempre ligado, em meu imaginário, à puberdade. Então posso dizer que sempre fui adolescente. Quinze anos é a minha idade. Talvez 14. O resto são marcos exteriores que não me dizem respeito, como esse número 70 que a gravadora e meu escritório de produção colaram em meu nome no site que rola na internet”.

A idade externa cola em nosso nome. Colam-na em nosso nome. Estabelecem-na em nosso nome. É terceirizada. A idade real é da boca para dentro: se espanta de constatar que já faz vinte anos da música que tocou no rádio, que já faz dez da cerimônia de formatura, porque só andou uma esquina desde a meninice e a mocice – e olha pra trás com vividez e frescor de ontem. A idade real é o tempo “nárnia” que nos amadurece violentamente no meio de uma peça de teatro, just because, só porque se completou o período de preparação mental indefinida por número de séries escolares ou quantidade de réveillons. A idade real é vai-volta, nem sequer fixo; é gangorra de ser muito jovem profissionalmente e muito idoso no campo da apreciação artística; muito nhenhenhizado na administração de uma casa e já matusalém na composição musical. A gente engravida de uma pancada de gestações, a gente incuba uma tonelada de nós-mesmos – cada embrião é uma lógica individual do todo imbuída de sua própria lógica, seu próprio enxoval, seus próprios nove meses, seus próprios requisitos. Cada pedaço de nós nasceu (quiçá morreu) num dia, num papo, num almoço. Cada eu que nos forma pesa na gravidade e respira nos ares de seu próprio planeta, iluminado ao sol de um novo (seu) mundo.

Feliz aniversário a cada porçãozinha interna que hoje, primeira vez, vos respira e abre os olhos. A todas, muitas felicidades. Às melhores, muitos anos de vida.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Contente o suficiente

Na adorável crônica “Dez anos”, Clarice narra um dialoguinho entre mãe e filho – entre provavelmente ela mesma e um seu filho. O pequeno está amofinado com a responsabilidade de aniversariar no dia seguinte, arredondando a idade do título: “Mas, mamãe, eu não aproveitei bem os meus dez anos de vida”. “Aproveitou muito bem”, rebate a (supostamente) autora. “Não, não quero dizer aproveitar fazendo coisas, fazendo isso e fazendo aquilo” – o guri esclarece de pronto. “Quero dizer que não fui contente o suficiente”.

Contentes o suficiente: essa é a regra. Essa é a régua. A que precisamos sacar do bolso, da bolsa, quando nos matarem de inveja contando as aventuras de sua infância na fazenda, de sua vizinhança que parecia novela do Maneco, de sua viagem no Expresso do Oriente, de sua moradia às margens do Sena. A que carecemos ter a postos, rente e segurona, quando revelarem estar cursando doutorado em Bioinformática diante de nossa mediocridade acadêmica. A que necessitamos manter pendurada no pescoço quando exibirem formas e closets na Caras, despudorados, perfeitos. Essa é a régua; esse é o horizonte; essa é a vibe em que a gente (se esperto) mergulha, pra continuar convencido de que vale a pena “se ser” – enquanto o povo todinho parece empenhado em ser coisa tão demasiadamente melhor.

Certo, certo, concordo em não ter sido neta de Dona Benta nem brincado na rua com uma multidão de amizades ainda existentes, crescidas de portas abertas. Mas quer saber? criei-me netíssima de Dona Benta, não menos legítima porque imaginária, e brinquei tanto em mim mesma que não seria razoável supor uma meninice tão feliz se cercada de mais zoeira e menos individualidade. Fui contente o suficiente. Não tive play nem coleguinha de dormir em casa, mas tive quintal, praça com balanço e cavalito no domingo, cinema e casa de chá no sábado. Não tive o colégio mítico da professora Helena, não estudei com o pequeno Nicolau, mas vivi a escola e seus benefícios com o necessário afeto e plenitude. Não tive bicho de estimação; mas recolhia formigas, fiz-me visceralmente ligada ao jasmineiro e à azaleia, pegava cisma amorosa em objetos como palito de fósforo, dado, correntinha. Não precisei de efemérides externas, de episódios literários, para ter garotice povoada de inesquecibilidade e lirismo. Não precisei de roteiro alheio, de felicidade estabelecida pelo senso comum, de selo com aprovação coletiva. Fui contente o suficiente. Fui contente para mais de metro.

Sou contente para mais de légua, agora livre das matemáticas e físicas que azedavam a escola (nunca fui das que acreditam que não se pode ser tão feliz quanto na infância; não me enganei). Contente o suficiente, mesmo sem ter ainda assistido ao Fantasma ou conhecido a Europa – porque fui de uma disponibilidade completa em cada viagem. Contente o suficiente, mesmo sem ter grande número de diplomas que profissionalmente me atestem – porque fui dócil a perceber o tédio e a angústia provocados pela teoria interminável. Contente o suficiente sem o salário dos sonhos, sem o investimento na Bolsa, sem a ousadia da moda, sem a iCoisinha do momento, sem a totalidade de experiências e perfeições. Contente porque sou, no dizer de Ricardo Reis, “toda em cada coisa”. Porque tive a sorte de habitar minhas próprias venturas. Porque tive o dom de morar bem razoavelmente na linha do tempo que se atou a mim.

Contentes o suficiente: sermos, por nós, tão estranhamente amados. E correspondidos.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Amigos do rei

Sabe a história do “rei na barriga”? Precisa ir longe não. É entrar numa sala de aula do município e a coisa está lá, exatinha. Teoricamente dá gosto de ver: no início do ano os pimpolhos ganham uniforme novito, estalando de fresco; ganham kit cheio do tudo-e-mais-um-pouco usado em sala – cadernos de capa dura pautados, caderno de desenho, lápis normal e de cor, caneta, borracha, apontador, o escambau a quatro; ganham também mochila direitinha, azul, sem nada que possa ferir esteticamente os mais suscetíveis. Já houve, além disso, determinadas séries presenteadas com calculadoras. Já levaram pra casa gordos dicionários oficiais da ABL. Todo ano lhes são entregues livros didáticos, todo bimestre vêm apostilas de cada matéria. Não bastassem os bônus, recebem (como de direito) merenda boa e quente, cujo feitio invade de perfumes temperados o horário de aula. Vai daí o leitor romântico suspira uma esperançazinha, acometido de polianice em estado terminal: “Estão no melhor dos mundos”.

... E eu vos direi, no entanto, que não termina em happy-end o casamento entre alunos e benesses. Lembra os cadernos? são odientos aos jovens donos, por terem capa institucional (“feia, professora”), e não raro acabam depenados em guerrinhas de papel e desperdício. Apostilas são negligentemente esquecidas nas carteiras. Blusas de uniforme, já as houve encontradas em forma de bola, destruídas, espezinhadas, abandonadas num vaso sanitário. Mochilas são oferecidas com desdém ao primeiro que passe, assim que recebidas (“Quer para você, professora?”). A comida tão desgordurosa, saudável e viçosamente feita vira caso de nariz torcido (“Aaaaai, você almoça mesmo na escola, professora?!”). Tudo que lhes venha em tom de oferta coletiva, com jeito de benefício generalizado e não selado pelo glamour do individual, ganha tremendo muxoxo. Preferem não ter a partilhar com o mundo sequer a ideia de uma carência. Recusam por soberba aquilo que, em faltando, exigiriam com indignação.

Note-se que não falamos de alunos tão miseráveis que pudessem estar desabafando revolta, nem tão de classe média que estivessem em condições de esnobar o auxílio oferecido. Corre simplesmente um vento de desprezo orgulhoso, uma vaziez de valores que posa bonitinha como revolução consciente. Não há critério, reflexão nem política na recusa: há o deboche de quem se sabe respaldado pelos Errejotatevês e a cegueira de não considerar oportunidade como recurso que se esgota. Há a pressão social de “não precisar de esmola” (é o que muitas vezes alegam, numa careta de marrentice); há a percepção invertida de brio – em vez de se mostrar dignidade sendo grato ao recebido e multiplicando-o, boicota-se a si mesmo, proibindo-se qualquer ajuda. Há o constrangimento supremo de gostar do que se tem, como se esse hábito vexatório expulsasse necessariamente a vaga do que se quer.

Abaixo o efeito estufa, o quentume da arrogância abafada. Viva cada degrauzinho que me leve mais ligeiro até uma boa Pasárgada.

À cama que eu (finalmente) escolherei.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Perna curta

Agora a Nina da novela das 21h deu de se chegar ao comparsa de sua arqui-inimiga – comparsa este que a depositou carinhosamente no lixão, quando era pixotinha de uns oito anos. Em seus planos de vingança mais alucinados, a guria desce à hipocrisia fanática de bajular e idolatrar os adversários como se nada mais existisse que não eles sobre a terra, e aí justamente está a maçada. Com cada ser enganado, precisa criar um universo próprio. Para cada freguês ela é uma criatura que sabe ou diz verdades bem específicas: aos olhos de Carminha, vem a ser a joana-ninguém de fidelidade canina, fidelidade quase psicótica, história sofrida e talentos angelicais; para consumo de Nilo, é a filhinha grata ao papaizinho do lixão, embora fera ferida e raposa cruel; sob apreciação de Max, é a parceira safadjenha sem muito escrúpulo de seduzir o filho da patroa ou o marido da amiga. Mesmo entre os seus a gata desliza oscilantemente: é a namorada triste e complicada de Jorginho, a irmãzona doce e admirável de Ágata, a amiga desarmada e estrategista de Betânia, a musa suave e misteriosa de Tufão. Sobretudo a filha intensa, ressentida de Mãe Lucinda; a que ainda em imensa cumplicidade se entrega aos cacos, em fragmentos de emoção doentia, em restos mortais de sentimento.

OK, somos todos múltiplos, e necessariamente diferentes no lidar com uma pessoa ou outra. Faz parte. Mas há em Nina o ultimate cruzamento de mentiras, a teia esquizofrênica de discursos que não pode dar em boa saúde. Quem lhe sabe uma parte não deve saber a seguinte. Quem, na casa, sabe que ela é amante de Jorginho (Max) não consegue saber que sua fidelidade real é a Tufão. Quem sabe sua fidelidade real (Tufão) está impedido de saber que ela é amante de Jorginho. Quem sabe sua identidade e motivos de vingança (Jorginho) piraria se soubesse todas as peripécias em companhia de Carminha. Quem sabe todas as peripécias (Carminha) enlouqueceria três mil vezes se a desconfiasse amante de Jorginho, fiel a Tufão, sedutora de Max, filha de Mãe Lucinda, arquiteta de vingança e, pior sobre os piores, verdadeira Rita. Afora os outros zilhões de saberes-não-saberes que compõem esse mafuá do malungo. Que chance há de vida minimamente habitável nos intervalos entre os diálogos da tragédia?

Reconheçamos: somos Gollums – ou Gollums forçosamente viramos quando a violência extrema ao eu nos altera as entranhas. Sabe Gollum, que nO senhor dos anéis começou a existência como um normal e inocente Sméagol e, após entrar na posse do anel mais poderoso da Terra Média, foi consumido pela ambição até se transformar, fisicamente, numa criatura de horrorosa decadência? Pois é. Mentiras são nosso Anel; mentiras nos fazem internamente comer-nos e roer-nos, nos devastam pela energia exigida para equilibrar mundos, nos exaurem pela atenção sempre alarmada de receios. Mentiras nos põem na corda bamba da bi(ou tri, ou tetra)gamia psicológica, nos chupam a liberdade de escolher a companhia por gosto e não fuga, nos entrecortam a respiração mental com estresses que se somam aos inevitáveis. Mentiras nos demandam existir no mínimo em dobro; encaixar pelo menos 100% a mais de mundo onde mal e atropeladamente nos cabe um, aquele de um tão assoberbado todo-dia. Mentiras nos violentam a inaugurar novos pensamentos quando mal finalizaram os originais.

Convém preferir a verdade. Nem que seja por preguiça.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Ainda que tardia

Não sei se é só comigo. Se, como os cachorros, eles tendem a ficar iguais aos seus donos. Mas irrita: por mais que os adiante, todos os meus relógios dão de atrasar. Todos. Cretinos. O de pulso, o de cabeceira, o da cozinha, de corda ou bateria, ponteirudos ou digitais. Por que os adianto? Claro que para minimizar a chance de eu me achar demasiado confortável horariamente, o que pioraria o atraso sempre inevitável. Problema é que eles sacaram direitinho, os danados, e não se deixam mais enganar: metem uma de joão-sem-ponteiro e vão mansamente corrigindo o superávit de minutos a que os obrigo.

Problema, mesmo, é que também não me engano não.

Agendo os relógios para quinze minutos à frente, porém falta o essencial para completar a mentirinha: falta que eu a esqueça. Pois nem de longe esqueço e já consulto a hora fazendo os devidos descontos. Adianto o relógio; o truque não me adianta, em qualquer possível sentido. Tenho o que se pode chamar de alma protelante – aquela que não se conforma em dedicar aos preparativos mais que o estritamente necessário, a não ser que se esteja falando de providências superiores, em delícia, ao próprio ato. Comprar e embalar presente, por exemplo. Preciso estar em tempos muito atribulados para não me enamorar carinhosamente da busca, da escolha, da decoração estudada, e fazê-lo com antecedência de ficar prosa. Em quase tudo o mais, adio. Enrolo. Empurro. E, ainda quando inicio as preparações com algo que pareça antecipação, subestimo sempre a capacidade infinita de exceder em quarenta minutos o tempo de sessenta reservado para a – permitam-me o termo tão old-fashioned e tão gracioso – toilette. Como é impossível a uma mulher razoável concluir todas as preliminares em menos de quatro horas, e como não me animo a ceder senão uns exíguos noventa minutos, é sensato apostar que a conta não fecha. Eis-me eterna inadimplente de um SPC cronológico.

Se me perguntam o porquê dessa mania bizarra de protelar, garanto com sinceridade que não sei. No máximo desconfio. Desconfio das mesmas razões que me movem à desorganização, as tais surpresinhas; desconfio que, se escolho a roupa de sair com exagerada precocidade, tiro-me o gosto do inusitado, a diversão ou a coragem de vestir algo que só a pressa justifica – não algo ousado, diga-se; algo separado para a ocasião especial que nunca chega, e só vai pra rua sob a alforria da velha desculpa: “estava tão atrasada, botei a primeira coisa que me veio à cabeça”. Desconfio, também, por continuidade de raciocínio, que atrasos me salvam dum sofrer maior que o desgaste da correria: os terrores do questionamento. Se me aprontei como devia, se estudei o que podia, se enfiei na bolsa o que carecia – tudo a urgência lava e abona; todo remoer se esvai na consciência de que era a única decisão a ser tomada, o único traje a ser posto, a única coisa a ser feita no calor atabalhoado do momento. A ação em circunstância terminal nos permite o autoperdão que o excessivo tempo de pensamento não daria. No fundo é o que queremos, e os perfeccionistas (mais do que todos) desejamos; no fundo esperamos que a iminência do caos nos sequestre de nós mesmos.

Aos que a ansiedade orgulhosa atormenta, só o desespero os cura.

domingo, 24 de junho de 2012

Fora da caixa

Tenho uma teoria a respeito da minha incapacidade de permanecer organizada: sou avessa à impossibilidade de surpresinhas. Tudo bem, concordo irrestritamente com o fato de que o estilo cada-coisa-em-seu-lugar agiliza a rotina, mantém a limpeza, poupa um milhão de aborrecimentos com a fuga de objetos de última hora, bota saúde geral no dia a dia. Ninguém contesta. Mas eu meramente não suporto a ideia de 24 horas tomadas de ordem e método, 100% de assepsia e eficiência no arquivamento. Na plena assepsia – disse e repito – não há chance de surpresinhas; a totalidade das coisas existentes é transparente, é visível, exibe-se sem charme e pudor de minitesouros ocultos, entrega-se inteira, séria, prática. Enxerga-se tanto, dentro da arrumação integral, que não resta espaço à alegria das descobertas, ao contentamento dos reencontros. Urge perdermos uma bobagenzinha ou outra – com moderação – para que haja a delícia de, um dia, chamar novamente aos olhos essas riquezas inusitadas, como testemunhas de um muito particular estado de espírito.

As bolsas. Detesto ficar trocando de bolsa, pela quantidade pornográfica de itens a serem remanejados, e assim acabo fatalmente deixando uns resíduos de base em quase todas as já usadas. Donde se entende que, por exemplo, eu tenha topado outro dia com uma ótima nota de vinte metida numa bolsinha de festa e há muito esquecida. Quem duvida de que se trata de uma das sete maravilhas emocionais da humanidade, o achar dinheiro esquecido? Dez reais ou mais: ganha-se o dia – e o direito moral de almoçar fora ou ir de táxi desta vez. Por decisão de convenção internacional, tudo o que se pilha perdido nas próprias coisas, sem que tenhamos dado por falta, entra de imediato na categoria dos supérfluos destinados à felicidade; à simples e líquida felicidade nua de impostos.

Quase tão bom, ou melhor, é deparar-se com um si-mesmo fugido de qualquer passado e dando sopa por aí. Não têm esse gosto supremo, as criaturas adeptas de caixas e gavetas onde tudo se sabe, tudo se vê: encontrar um bilhete esturricado pelos anos, uma carta infantil que recebemos por causa do clubinho de correspondência publicado no gibi da Mônica, um lacito de cabelo que usávamos aos dez, uma foto do namorado quando havia mais esperança que namoro, uma declaração de próprio punho sobre a paixonite de pré-adolescência, uma escala de estudos feita pela letrinha cuidante de Mãe, um fósforo de estimação com roupa e tudo (don’t ask) guardado num pote de filme fotográfico. Não têm esse gozo de achar velhos e súbitos amigos, totalmente desensaiadas (não raro completamente enterradas) lembranças, as pessoas que nasceram com a louvável propensão de fugir ao caos. Vivem vida mais limpa de desassossegos, são mais ligeiras no acesso às utilidades, desesperam-se pouco ou nada de não achar o necessário; mas não se alumbram de achar o desnecessário. Não se assustam às 2h37 da madrugada com um eu que não sabiam já existido. Não fazem criação particular do imprevisível, não flertam com as idas e vindas da memória. Não trabalham com a oportunidade de serem atropelados pela fartura do tempo decorrido.

Juro: organização eu bem que tento, em nome da praticidade física; mas só sei prosseguir deixando-me migalhinhas de pão na estrada, para deleites futuros. Felicidade é manter a postos os bauzitos fechados – sempre em véspera de nos escancarar as portas. 

sábado, 23 de junho de 2012

Pedintes

Abaixo a mendicância, postou minha amiga outro dia no Facebook – esclarecendo que não, nada tinha a ver com pedir dinheiro na rua (embora tampouco seja coisa de elogiar, moral ou socialmente). Referia-se a prisão pior, se pior há do que estar de estômago escravizado à bondade alheia: atar o futuro ao querer do outro. Ficar de dignidade pendurada num não, num sim que não chega, num celular que não traz alegria e convite, num endeusamento que tudo autoriza a quem não nos está acima ou abaixo, a quem calhou de nos receber adoração sem às vezes provocá-la ou pedi-la. É cruel depositar-se assim – vida, força, fôlego –, jogar-se inadvertidamente em mãos que não tiveram curso técnico de divindade. Mais cruel é achar-se, de repente, com esse pesadume de Atlas no ombro: o poder não pretendido de ceder felicidade ou tirá-la. A responsabilidade sombria de andar com um universo no bolso, ser palavra de vida ou de morte; e a imensa, imensa culpa de recusar com convicção um tão-pouco que forma para alguém um tudo. O sofrimento de fazer sofrer quando parece bastar uma só parcelinha de condescendência.  

Que árduo é existir e respirar por dois.

Porque é isso a mendicância emocional: alguém pressionado a existir com parasita de alma. Muitas vezes não é parasitose explícita nem calculada, é apenas uma gigante tristeza, uma incontrolável dependência que se enfia nas brechas do ser explorado. Passa-se a atender às pequenas súplicas de olhos aqui, a uma meia dezena de beicinhos ali, a uma exceçãozinha tanto já combatida acolá, pronto; o cidadão enroscou-se no que, uma semana atrás, ele próprio criticava. Enroscou-se nas novas obrigações, criadas por vergonhosa via de pena, irresistível pena. Mas há também a mendicância que, sem ser menos covarde, não enreda numa construção sutil; entrega-se logo, pedinchona e implorante, constante e patética. Essa é trágica por matar desde cedo o afeto pelo qual se acaba. Começa o jogo necessariamente perdendo, e sabe; agarra-se a isso, porém, preferindo a aborrecida piedade à indiferença digna, preferindo um caco de atenção desprezante ao silêncio honroso. A moral do coração pedinte é elástica em seu benefício: perdoa-se por boiar anos a fio abraçada ao mesmo amor que assassinou.

Que assassinou, sim, visto que amor é criatura asmática, escaldada do menor abafamento e ciumenta de generosidades. Basta a ameaça do sacrifício terceirizado e ele desiste de haver.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Suflês de chuchu

Não precisa vê-lo para sabê-lo. Quem tem anteninhas de vinil razoavelmente atentas e calibradas já ouviu falar no Larica total, programa do Canal Brasil em que Paulo Tiefenthaler vive um chef da (so-called) “cozinha de guerrilha” – pratos inventados sem frescura, na solidão atabalhoada, no atropelo criativo da fome macha. Pois descobri em Segundo Caderno recente que o ator pretende homenagear o chuchu (para ele, “um eterno injustiçado”) no episódio do dia 17 próximo. Pipocam e sobram ideias de aproveitamento fácil do legume: com creme de leite, com carne moída e arroz integral, com ovinho frito por cima. “Chuchu é bom porque não incomoda, não desequilibra”, defende Paulão na simpatia pura. Verdade. Quem não gosta do cujo pode alegar falta de personalidade, tédio, insossice, mas não houve nem haverá criatura capaz de execrar o pobre porque o sabor lhe é excessivo e enervante. Chuchu, quando muito, desagrada por timidez a quem busca ousadia; não se sabe que tenha jamais sido pego em flagrante desacato.

Tenho cá meus afetos ao chuchu, até por gratidão histórica: na gravidez de mim, Mãe enjoava tanto que às vezes só ele descia na goela – o que já depõe a favor das boas vontades e bons préstimos do legume de paladar mansinho. Minha ternura pelo chuchu é, pois, também conceitual; tanto quanto o apresentador do Larica, considero-o subestimado pela cultura do aparecismo, da machice-alfa, na qual seres destituídos de agressividade e picância passam por insípidos. “Aquela lá é uma sem-graçona”, afirma o público sobre a bebebê tranquila que ainda não armou barraco com ninguém da Casa. “Não fico com ele de jeito nenhum, duvido que tenha pegada, é um suflê de chuchu”, protestam as moçoilas a respeito de rapazes discretos que ainda creem em “por favor”, são fãs do “com licença” e jamais tentariam algo que envolvesse hematoma e puxão de cabelo. Vão à posteridade então assim, como suflês de chuchu, os que cometem a imprudência de investir na autenticidade macia em lugar da autoinvenção histérica.

Pois viva o suflê de chuchu. Viva o colega de trabalho que dá suporte objetivo, eficiente, sem deitar em burocracia amplificadora de necessidades. Viva o jogador que não ganhará estátua porque prefere a comovedora simplicidade de ceder o passe a outros talentos. Viva o parente que não presenteia as maiores, as mais coloridas caixas, e no entanto oferece precisamente o que cobre as pequenas (negligenciadas) demandas. Viva o dia sem pesares nem exageradas alegrias – que essas também estressam, de cobrar sorriso interminavelmente pronto. Viva o parceiro que em tudo sabe acompanhar com o mesmo sabor moderadamente próprio. Viva a comida de hospital, que sacia a fome sem suscitar apegos. Viva a blusinha branca que em tudo encaixa, viva a meia-temperatura que tudo permite, viva a melodia que não se embola na atenção à tarefa, viva o sofá cinza que não se atraca com decoração nenhuma, viva o ombro que o escuta sem dirigi-lo, viva o chefe que o valoriza sem sobrecarregá-lo, viva o livro que o entretém sem sequestrá-lo. Viva tudo aquilo, viva todo aquele que existe pela vocação de chover harmonia neutra e fresca.

Viva toda suavidade que não se considera mais existível que os outros.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Cinco letras que vivem

“E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval – uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito – depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado – sem glória nem humilhação.”

Desta vez é Rubem Braga falando, no lirismo generoso e melancólico de sua crônica “Despedida” – tão generoso e tão melancólico como o de todas as demais. Fez-me pensar, naquele pensar-mais-sentindo que se desvia das racionalizações. Porque o que dizem as racionalizações? que devemos ter um marco, um fechamento de ciclo, um ponto-divisa entre fases da vida, como a plaquetinha que nos abraça no limite entre cidades (“Sorria! Você está em Itapindaquamonhagabatuba do Norte!”), e que nos fornece uma bem-aventurada segurança de onde nosso futuro está pisando. Até concordo com as racionalizações: o coração não dorme legal sob o peso de histórias mal resolvidas. Vá. Ele precisa muitas vezes de um episódio, de um encontro, um diálogo, uma flor, um beijo de fronteira, um enterro com discurso e epitáfio, assinalando oficialmente a passagem de capítulo. Sem dúvida. O caso é que “muitas vezes” não é “sempre”, nem o adeus funciona para a totalidade da população como as “cinco letras que choram” de Francisco Alves. Existe chance (não pouca) de o sentimento de obrigação quanto ao encerramento histórico nos inundar de dependência e culpa: no fundo nos bastava a fluidez natural dos dias, mas há medo, há puro medo de não conseguirmos superar a perda sem A Grande Conversa, sem o lenço branco visto ainda do trem que parte, sem o evento com bandinha na porta.

E aí viramos despedicidas: guardamos horror à banalidade, precisamos de bem dirigidos adeuses. Absorvemos a necessidade de cobrir tudo de luzes, enquadramentos e significações de cinema. Casablanca, imagina? toda despedida começa a pedir roteiro de Casablanca. Que injusta pressão pelo final grandioso, quando há corações que só descansam na lentidão do afastamento! quando há nostalgias que só se acalmam no silêncio das coisas paulatinas! quando há términos que só chegam como naquelas músicas cuja última parte vai-se repetindo cada vez menos viva, menos audível, em vez de anunciar-nos numa nota definitiva a ruptura! Quando há, sim – e é preciso respeitar seu haver –, o amor que não é mais frio ou menos cabal por sobreviver das pequenas ocasiões, nem por conviver sorrindo com as grandes saudades!

Abaixo a tirania das efemérides. Pelo direito de existir em voz baixa.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Sustentável leveza do ser

Só este ano, em Sampa, já foram quase duas dezenas registradas em bairros nobres. Dezenove arrastões acontecidos em bares e restaurantes da área bacana. É muito, é demais, é doentio – mas, por esses deliciosos paradoxos que salgam de interesse a vida, a reação do povo não veio com pesadume, veio com leveza. Em vez de deixarem de curtir a noite, em vez de se enfurnarem no claustro preventivo, os paulistanos suavemente se adaptaram. O que largaram para trás foi sua tonelada extra; o que abandonaram em casa foi seu supérfluo parasita. Como a nave que, nos filmes, a qualquer sinal de perrengue ejeta a parte problemática e segue viagem felizinha, eis que os manos expulsaram conteúdos levados por excesso ou vaidade, e assumiram como bagagem o ‘kit arrastão’. Enfiam no bolso dinheiro, identidade, cartão do banco e vão à luta, pelados de carteira, de bolsa e (pasmo) do onipresente celular, que enfim começa a ser entendido como não-membro ou não-alma do querido amo.

Se é mau motivo, é boa consequência. Longe de mim defender o sofrimento por razão fria de evolução; mas também não se aproveita nada em desperdiçar fatalidades sem um caldo extraído, e se trata, no caso, de dom que abertamente invejo. Estou ainda para saber como é que se faz o desapego; não de celulares – que me seguem como utilitários atados à função primordial, de comunicação urgente –, e sim das mais várias necessidadezinhas trazidas pelo acaso e supridas pelos recônditos da bolsa. Ignoro como seja entregar-se ao fetiche de passear sem-lenço-com-documento, a começar pela orfandade do lenço mesmo, coisa essencial em mão de alérgico. Não uso nem porto maquiagem; o que dizer, porém, de sair à rua sem perfumitos e toalhitas úmidas, que nos restauram a dignidade após longo período desacopladas da nave-mãe? Que dizer dos mil e noventa comprimidos para dores cruelmente súbitas? Que dizer da água em garrafinha e do borrifador em frasquinho que tornam possível a garganta? Que dizer do espelho que checa os dentes, da escova e pasta que os corrigem? Dizer, só, que continuo amofinada escrava das pequenas crucialidades, embora persista também na fantasia íntima, rejeitada e inconfessa de ser curada por força maior. (Suavíssima força maior, ajustada para damas que carregam espelho.)

Eu quisera, sim, ser tomada por uns desses arrastões metafóricos e benignos que nos impõem leveza sem afanar um centavo. Umas dessas nuvens de iluminação que crescem tão necessárias, tão extremas pra cima da gente a ponto de nos forçar com urgência e alívio, de nos libertar com delicada violência. Estamos prontos, estamos ali na beirinha de prescindir de tudo, de largar tudo, de renunciar a tudo – tudo que nos mete dor na vida e na coluna; aguardamos só o pretexto, só o aval do mundo, a cortina de fumaça para o abandono radical do que nos pesa. Não queremos a doença, mas queremos que ela nos imponha o repouso e a reforma de costumes. Não queremos o desemprego, mas queremos que ele nos obrigue ao stop na correria, no metrô com rush, na falta de tempo com a família. Não queremos a maçada: queremos o álibi. A desculpa perfeita para sairmos flutuando, pimpões e inocentes da escolha.

Que, nos braços de outros nós, descansemos em paz. A terra nos faça leves.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Coitadismos

Megaconcordo com Flávia Antunes, cuja carta foi publicada na Revista da TV do último Globo dominical. Diz a leitora que não consegue “compreender a implicância do júri artístico com Júlio Rocha, na ‘Dança dos famosos’. O ator vem mostrando ritmo, musicalidade, leveza e desenvoltura. [...] Pegar Júlio para bode expiatório e não votar em quem realmente é uma pedra dançando é ter receio da opinião pública, de ir contra o politicamente correto [...]. Assumir que A ou B não têm desenvoltura é ajudar a fazer do Brasil um país onde esforço e talento são reconhecidos e não a demagogia que a tantos desconforta”. Onde é que eu assino, Flavinha?

Não dá pra entender, de fato, a cisma com as peripécias musicais do ator, a não ser pelo ponto de vista que a leitora esfregou nos devidos narizes. A “Dança dos famosos” recebeu um tão nada metafórico título justamente porque, olha que coincidência, trata-se de uma competição de dança. Dan-ça. E aí vem a covardiazinha de alguns jurados e transforma em quê? “Penita dos famosos”. Olha que maravilha, o Maguilílson baila com a ginga de um estegossauro mas topou o desafio, e está lá ensaiando todo dia, coitado. Bora dar um pirulito pra ele. Reconhecer o esforço. Merece voltar semana que vem, e depois, num nível cada vez mais alto, até ficar constrangedoramente óbvio que já deu o que tinha de dar, enquanto os que proporcionariam melhor espetáculo (com justas chances de vitória) estão assistindo à competição do banco. É a generosidade às avessas: o puro egoísmo de quem não se expõe na reta, não quer ser o que demite, o que dá bronca, o que fica malzinho na fita, com fama de bruxa ou tiranão. É a pura incompetência de quem – agora já entornando o exemplo da “Dança” nos demais setores, notadamente brasileiros – acredita que tratar igualitariamente é coisa não de princípios, mas de fins. Quem acredita, ou finge acreditar, que todos podem tudo; que todos podem ser bons em tudo; que o resultado é irrelevante; que o não traumatiza; que o fracasso é, a priori, destruidor de autoestima; que é mais sensível permitir que alguém se enrede em mentira por não haver ninguém com habilidade e coragem suficientes para dizer-lhe a verdade – ninguém que coloque o tempo e a saúde mental do outro acima de sua própria imagem de fofinho.

E assim herdamos alunos (a quem julga que exagero, franqueio as portas da sala de aula: see yourself!) crentes que sua presença física é bastante e sobrante para uma aprovação em fim de ano: “Mas eu copiei o exercício, professor! Eu copiei!” – o guri mendiga um meio pontinho, indignado com a nossa recusa, após anos sendo persuadido de que já está concedendo excepcional favor ao mestre. E assim cultivamos uma sociedade plasmada no elogio ao medíocre; um agrupamento de criaturas que, com dó ou medo de exigir excelência, confundem negligência com democracia e papaizismo com doçura. E assim vemos a dita igualdade se calcando não na elevação do estágio “mais ou menos”, mas no rebaixamento do conceito “bom”; não no nivelamento pelo patamar do especialista, mas pelo do indiferente. E assim alimentamos crianças humilhadas em suas capacidades porque os pais as deixam ganhar o jogo sem legitimidade nem merecimento – e, portanto, desenha-se uma geração inapta para distinguir o bom do mau desempenho, o excelente do melhorável, o político que só não rouba do político que faz, o médico que só não mata do médico que cura, o prédio que só não desaba do prédio que fica, o amor que “serve” do amor que é. O país-gerúndio do país-particípio. Participado. Resolvido. Assumido.

De (só) boas intenções o Brasil devia estar cheio.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Perto do coração selvagem

Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que agora, já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as obras importantes da humanidade.[...]

O que sou então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.”

São palavras de Clarice, pescadas na meiuca de textos que publicou no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973. São palavras de Clarice – e eu não diria outras. A vida escolar e acadêmica inteira fui considerada nerd ou CDF, ou intelectual, como vem a ser o correspondente adultizado. Só quem me conhecia residencialmente (Pais, Mana, Vó) tinha certeza do descabimento do título; logo eu, que postergava estudos o quanto podia, empurrava chatices pra quase véspera do prazo inevitável (senão para a véspera mesma), passava por físicas e matemáticas lacrimejando sangue de ódio, ódio, ó-dio! Logo eu. Logo eu que enfiava romancecos de puro lazer dentro de livros didáticos, quando não rabiscava uma dúzia ruim de versos próprios, quando não cismava simplesmente em nada e coisa alguma: futuros, vontades, amores. Logo EU! Eu – só pelo fato vulgar e numérico de tirar boas notas, o que indicava meríssima responsabilidade incutida pela família e não menor sensatez de dar a César o que era de César. Lá ia então me arriscar a demorar-me em provas finais e recuperações, em vez de mergulhar com delícia logo no primeiro dos primeiros segundos de férias??

Fui boa aluna, ou cumpri o objetivo; é tudo. Mania que o pessoal tem de confundir ação e vontade, dever e querer, prazer e escolha! “Que bonitinha, gosta tanto de estudar...”. Eu odiava. O-di-a-va. Abominava parar para aprender de encomenda, sob agenda e compromisso vindo de fora. Assim tinha de ser, é certo (sob pena de eu continuar até hoje uma analfabeta em mundo, se só estudasse por boniteza), mas que ninguém pretendesse me forçar o espírito a gostar do ingostável. Era aplicada sob consciente sacrifício. E portanto lhe asseguro, leitor crente de rótulos e descrente de negativas, que nunca pude nem poderei ser qualquer coisa que se pareça com o intelectual-modelo. O que aprendo por gosto, aprendo sem critério nem rotina, nem paciência com cerradas teorias nem quase disciplina nenhuma. Não me envaideço do caos, ao contrário: constato-o com bochechas envergonhadas. Bem queria ser constante, ordenada no conhecimento, leitora de ideias por amor às próprias; coube-me, porém, só conseguir destrinchar as ideias se vêm também embaladas com beleza e doçura, sem traço de academês esturricado. Ou me parece que estou diante de texto em russo. 

Mesmo em literatura, única leitura a agradar-me no geral, leio exclusivamente o que agrada no particular. Busco o soante, o vivo, o adjetivador, o úmido, o que tem anquinhas e anáguas e trata por “tu”, e tem tílburi aguardando na porta. Leio sem prisões nem mais obrigações de intelecto, que está presente no livro que tomo mas não me força a tomá-lo. Leio com selvageria, com paixão que não segue lista dos dez-mais ou dos mil-antes-de-morrer; leio já com interesse de quem fica sabendo sem querer, não planeja concursos, não se prepara para entrevistas, não decora Pequenos príncipes para campeonatos, não amealha respostas para as que soam irrelevantes perguntas. Finou-se a culpa estudantil (oh, a alegria do tempo que passa!) de desviar-me excessivamente do eixo de necessidades.

Leio por satisfazer-me. Não para dar satisfações.

domingo, 17 de junho de 2012

Janelas

Curti principalmente a última parte da entrevista com João Mansur Filho – médico dos inoxidáveis Havelange e Niemeyer –, na Revista dO Globo de hoje. Perguntaram-lhe se a pressão do consumismo afeta o coração, e o doutor indiretamente confirmou, apontando que a mortalidade por infarto aumentara 36% no período recente de maior queda da bolsa. Mesmo quem não tinha uma açãozinha para chamar de sua sentiu o baque, já que tomou pavor de desemprego. Para desviar os pacientes desses exagerados nervosismos é que Mansur sempre lhes recorda “que nosso cérebro tem várias janelas. Quando estamos com um problema tendemos a só abrir aquela janela. Temos que abrir outras: minha filha vai fazer aniversário, amanhã tem futebol, vou passear. Se daqui a quatro anos eu perguntar quais eram seus problemas hoje, você não vai saber dizer 95% deles”.

Teria bom e longo trabalho de convencimento comigo, o doutor Mansur. Não que, racionalmente, eu não concorde 820% com o sistema de ir escancarando janelas múltiplas, para escapar aos desesperos abafados. É sábio. O causo é aderir coraçãomente. Penso todo o tempo, decerto, em alegrias várias, para me ir confortando dos aborreceres. O feriado que vem, a semana que explode em festinha de sábado, o (ao menos) bife de fígado que me aguarda pressuroso no almoço, nham! – sobremesa ante as agruras. Mas não me tornei ainda, ó pena, aquela que areja a concentração de modo tal que não sobra germe roendo as entranhas, no intervalo de duas preocupações; não encontrei o desvio inteiro e definitivo que peterpamente nos invade, que nos voa para Pasárgada e lá nos conserva nuzinhos de lembranças, mansamente puros, limpos, adões e evas ao contrário, tornados à inocência e desembocados direto do choro e ranger de dentes para o éden automático.

Isso não sei. Por mais que me agarre às expectativas felizes, conservo eterna uma melancoliazinha de fundo, focada na amofinação da hora ou na permanente – a tristeza de desestimação. Trabalho, por exemplo. Trabalho é coisa que só sigo tolerando com todas as 5.437 janelas descerradas de par em par, arreganhadas quase psicoticamente, e ainda assim permanece inexpulsável o cheiro de mofo. Sobrevivo; sobrevivo bem até; porém vou lidando com a ferida que completamente não sara, que sangra contínua em suas erupções tão fortes como bissextas. Cismas de saúde (saúde financeira e amorosa inclusive), quando as há: infernos de teimosia. Não existe filme visto nem dia amanhecido nem noite anoitecida nem sonho sonhado que me distraia de maneira absoluta. Mora sempre, no canto do riso, a pulga que também se recreia atrás da orelha.

Porque não deixam de ser isto, os melancólicos: perfeccionistas de vida. Criaturas que não sabem, tanto quanto queriam, delegar-se ao tempo e respectivas providências. Criaturas pouco capazes para o ruim e menos ainda para o irremediável, orgulhosas demais para não suspeitarem da alegria.

Quem souber a cura, que não tarde e se chegue. Há de achar cortina e coração abertos.

sábado, 16 de junho de 2012

O número um

Sabe a crônica de Paulo Mendes Campos da qual falei ontem? De tal forma riquíssima, a tal ponto milionária de sentidos é, que aí permaneço. Há outro pedacinho adorável, espetacularmente: “Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos [...]. Para o bolso: se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde queres, ganhaste”.

Céus! que ando precisada demais que a humanidade ande precisada de Paulo. Que o mundo se chegue a ele e espontaneamente beba, e epifanicamente absorva essa verdade simples, solucionante, extraordinária: bem nada nos importa onde cada um cruza sua linha de chegada. Onde cada qual situa seu pódio. Onde cada um armazena seu troféu. Não nos importa bem coisíssima nenhuma quais medalhas o vizinho já poliu no escritório, quais campeonatos o primo conquistou de xadrez ou matemática, quais certidões internacionais de excelência pianística a melhor amiga emoldurou sobre a cama. Uns sinceros parabéns, umas felizes admirações e basta. Não nos compete competir em seara alheia. Não nos faz jus o ato de medir o universo – tão infinito de hipóteses, tão largo de caminhos, tão derramado de possibilidades – pelo específico número de vitórias de pessoa específica, em campo único. Não nos honra a ganância de pretender todos os dotes, de sonhar todos os talentos, não pelo desejo apaixonado da coisa, mas pela mesquinhez de ficar o máximo de tempo espiando o mais de cima possível. Celebrando sozinho.

Vez por todas durmamos com um silêncio desses: há mundo bastante para que o sucesso do outro não nos roube. Para que o aprendizado do outro não nos espolie. A primeirice de seu colega de trabalho em visitar os mais remotos cantinhos de Paris não põe no bolso nem leva para casa os mais remotos cantinhos de Paris, que lá prosseguirão linda e frescamente, abrindo os braços excitados à sua própria visita – e provavelmente acrescidos em novidades quando você os for visitar. Uma sua conhecida conseguiu eliminar os mesmos 20 quilos que lhe sobram? ótimo; adiantaria mais a você que ela permanecesse gorda e, portanto, a reta final do regime soasse mais impossível? Ah, o seu amigo de infância passou na peneira para bailarino do Municipal, ou foi aprovadíssimo para o mestrado de Economia em Harvard. Fenomenal. E no que você – você que sempre teve três pés esquerdos até pra dancinha de boate, você que sempre foi das letras e de cabeça não fazia nem 2 + 2, você que sempre sonhou de verdade em um dia ser Nobel de Literatura – no que você é exatamente afetado por isso, só para registro nos autos?...   

Palhaçada, essa disputa infinda. Como se não fôssemos vocacionados distintos que correm em raias diferentes, particulares, nossazinhas, sem obstáculos outros que não os individualmente circunstanciais ou internos, e sem chance de a bola do boliche alheio impedir nossos strikes intransferíveis.

Felizes de nós (, só), se um dia vencermos a corrida com a gente mesmo.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

As grandes ocasiões

Volto às ternurinhas de Paulo Mendes Campos, meu muito querido. Eu lia há pouco uma crônica de fofo aconselhamento, “Para Maria da Graça”, na qual o autor deposita sobre a amiga do título – recém-chegada “à idade avançada de 15 anos” – a dedicatória lírica e mansa que acompanha um volume de Alice no País das Maravilhas. Entre os trechos favoritos, uma seguinte pérola: “Toda a pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.”

Não sei Maria da Graça, mas estou com Paulo e não guardo lá muita amizade às grandes ocasiões – sem que com isso me refira aos rituais maiores, casamentos, formaturas, funerais e seus pares: coisa muito boa e necessária. Refiro-me às solenidades de dentro, aos píncaros e abismos em que você se exalta ou se acaba, principalmente se o faz em constrangedora parceria. Pedir alguém em namoro; terminar com data e hora a relação; discutir a relação; procurar a criatura com quem você pisou na bola (ou ser buscada por ela) para a Conversa Oficial de Desculpas; oh! terrores. Desde criança tenho alergia às situações de fôlego suspenso, de pausa com música subindo, tambores rufando. Tenho alergia às decisões demasiado espetaculares, às quebras muito diretas, às rupturas muito mergulhadas, às declarações novelescas, aos lutos extremados, a tudo que nos lance numa experiência de além-nós e traia excessivamente o eu que conhecemos, que nos conhece. Abomino as súbitas adrenalinas. Detesto qualquer agora-vamos-resolver-isso ou briga que bata portas. Detesto diálogo que feche portas (em cada um dos sentidos). Conservo sincero, profundo horror às emoções atípicas, aos confrontos de desabafo, às discussões de imensas verdades, à nudez inclusive de nossos amores e belezas íntimas, talhadas para o canto no banho ou o cismar no travesseiro. Rejeito toda estreia trabalhada no holofote.

E gosto de quê? das continuidades. Das continuidades que deslizam sereninhas nos dias, que puxam contatos e sorrisos e sem-querer-querendo entremeiam perdões, que vêm cheias de convivências atadoras de mãos, desatadoras de nãos; os prosseguimentos que nos permitem compreensões mudas, pazes subentendidas, entendimentos tranquilos. Não tem emoção? não as haja – ou pelo menos não haja as por demais estridentes; que corações como o meu, carne-vivos, tudo já sentem com amplificação bastante. E não exista, por isso, varredura para baixo do tapete. Exista o contrário: tempo para os necessários amadurecimentos sem o peso artificial da página marcada na agenda, sem a quase mentira de uma verdade pressionada. Tempo para a respiração. Tempo para a meditação. Tempo para a digitação. Tempo para o roçar dos medos mútuos e a suavidade indefinida, a fronteira sem vigia das preliminares.

Com uma faísca e um chute no traseiro de vez em quando – que ninguém é de hélio.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Por enquanto

Foi pitoresca a cena. Eu chegava da rua; entrei no prédio junto com uma moça a quem nunca vira, e, consequentemente, acompanhei-a no elevador. Nada fiz de extraordinário. Não comentei sobre as viradas do tempo, a situação do Brasil na Libertadores ou o show das Empreguetes na novela. Limitei-me a dar alguns sorrisos de mera sociabilidade entre o portão da rua e o elevador, além de agradecer ao porteiro que me abriu a porta do cujo (eu, como sempre, assoberbada feito mascate). A moça perguntou em qual andar eu ficaria, falei, ela apertou o botãozinho devido, novamente agradeci. O feijão-com-arroz da vida em comunidade. Enquanto subíamos, virou-se a vizinha e lançou: “A senhora mora aqui? desculpe perguntar”. Moro, confirmei sorridente. “Mas a senhora é nova no prédio.” Esclareci que, de fato, só estava ali há pouco mais de seis meses; por quê? “Ah!”, fez a moça como quem entende, “é porque a senhora é simpática!” Montei uma interrogação de rosto e voz e ela, percebendo-me confusa, completou: “É que, sabe? isso não é comum...”.  

O fato já está antigo há um dia, mas me confesso ainda docemente perplexa. Lisonjeada, claro, por ter sido considerada simpática com tão pouquíssimo. E atônita por isso mesmo: com que então andamos de tal modo feras, feridos, andamos a tal ponto sujeitos a grosserias e azedumes, espezinhados por indiferenças e resmungos, escaldados de friezas e nervosismos, que tão pouquíssimo como a polidez mais elementar basta para nos dar relevo entre pares? Tão terra-de-cegos estamos que um “obrigada” é rei? O que mais aturde: pode portanto o tempo de permanência ser determinante na alegria dos afetos, lendo “afetos” como os basiquíssimos gatilhos das relações até de pura superfície? Quando, assim, somos educados – somos educados por enquanto?

Assombra-me o fatalismo que nos há de tornar a todos bebebês: contentinhos e amiguitos durante as primeiras luas de mel, encaramujados e ranhetas depois que o frescor das seduções iniciais tropeça no desinteresse preguiçoso. Assombra-me esse prazo de validade para a simpatia, para no mínimo a simpatia – aquela que haveria de subsistir civilmente quando mesmo já houvesse morrido a esperança da conquista amorosa, do parasitismo funcional, da aliança financeira, do favorecimento político, da xícara de açúcar domiciliar. Enquanto persiste a simpatia just because, é viável a humanidade. Se falta esta inclusive, oficializou-se a barbárie: ficamos um bando de visigodos incapazes até da gentileza que não dói, até do agradecimento quase passivo, até do “por favor” que queima zero caloria, caso soe a desperdício o investimento. Caso se sobreponha, à energia gasta, a insuportável ausência do lucro direto, palpável, líquido.

Espanta-me sobretudo a renúncia ao direito mudo e constitucional de sorrir. The horror. Enterrem-me antes que o cansaço do planeta chegue aos finalmentes.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Lagartixas

Não estou sozinha no horror às cujas, e para tanto nunca precisei do pele a pele. Olhá-las dá quase arrepio de tato. Para começar são cadavéricas, as bichinhas, daquela palidez molenga e nojosa de pós-morte. Não bastante, vê-las brincando de Spiderman dá imediata certeza de coisa grudenta – e a cor de defunto só faz sugerir que a temperatura não destoa da cara. A cauda de impulsos frenéticos, então? A impressão piora diante da mania de andarem trepadas: gera uma sensação terrível de que mais hora, menos hora, vão desabar dali súbitas, em cima de nossas cabeças distraídas. Sempre achei que morria (ou ficava emocionalmente imprestável por décadas) se recebesse o mínimo contato daquele visco ambulante no meio de qualquer acontecimento. Não pelo contato em si, mas pelo... vá: pelo contato em si. Pelo contato e pela eterna nudez de despreparo. A gente não cria defesa contra o susto dos maiores temores.

A gente não cria defesa contra o susto; mas o susto, mesmo, não deixa de ser defesa em relação ao conhecimento mais longo, àquele liberto de cômodo preconceito. A lição vem num trechinho da dulcíssima “Pequenas ternuras”, crônica de Paulo Mendes Campos, em que o autor enumera todos os que são “presidiários da ternura, e, mesmo aparentemente livres como os outros, andarão por toda parte acorrentados, atados aos pequenos amores da grande armadilha terrestre”. Entre esses felizardos está “quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia”. A repulsa da cena é imediata. A seguir, porém – contaminados pela excessiva doçura do cronista –, tendemos a admitir que, por que não?, são tenros e potencialmente macios esses bichinhos de Deus; não de todo deselegantes e (coitados) absurdamente inofensivos. Mais: silenciosos e inodoros. Melhor do que se possa dizer a favor de quase toda a fauna planetária.

Não é que eu vá nunca atingir uma evolução de tamanho grau que chegue a acarinhar uma lagartixa. Lamento e reconheço. Já é coisa à beça, entretanto, olhar para a pobre com simpática tolerância, sem nem a pulsão de suicídio nem de assassinato. Olhá-la como se olham as (in)diferentes possibilidades, as variadas e específicas existências, as belezas acomodadas em formatos múltiplos, as jovens delicadezas encerradas em outros corpos. Olhá-la com aquilo que se guarda nos olhos quando não se soterra uma via, quando não se mata uma chance: a deferência ao alheio.

O respeito suavemente profundo a quem teima em continuar existindo sem a nossa autorização.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Feliz por obrigação

Tem coisa que estrague mais um dia que o peso de torná-lo especial? Tem nada. Foi hoje uma das datas mais lascadas para essa overdose de alegria coletiva, que dá rebote deprê nos desavisados. Especialmente nas desavisadas. O 12 de junho é a metonímia, é a maquete da vida amorosa: tamanha pressão se cria em torno de um encaixe paradisíaco, de uma perfeição novelesca, de um contentamento obrigatório, que as senhoritas queridas minhas por pouco não enfartam de estresse romântico. Tão estupradas de felicidade se veem que lindamente se esquecem (quem se lembraria?) de ser felizes.

Ser feliz é o menos. Dia dos Namorados, como anda aí à roda, né coisa pra amador não. Dia dos Namorados é pedreira. É luta renhida. Dia dos Namorados é Chuck Norris. Não basta encontrar, almoçar, cinemar, jantar com tranquilidade e delícia, paixão e gargalhada. Até parece. Há! rio-me. Presta atenção, meu filhinho: Dia dos Namorados tem de englobar O encontro, O almoço, O cinema (aliás, cinema? Bora upgradear isso aí!) e, notadamente, Ooo jantar. Precisa rolar Outback, haja ou não haja fila de espera de 237 mesas e expectativa de 40 a 65 minutos para conseguir... o nome na lista de aguardantes – achou que era assim molezinha? Precisa rolar Antiquarius, quebre ou não quebre as contas do cartão de crédito pelos 84 meses seguintes. Precisa rolar lua cheia estapafúrdia de grande na praia deserta, esteja ou não esteja no quarto minguante e na noite que é puro toró cinzento. Pre-ci-sa – e ficam ele e ela, particularmente ela, naquela tensão de plenitude que mal respira, mal ousa fazer gesto brusco ou contar piada abrupta, ou soltar comentário menos absolutamente talhado para a situação. Ssshhh, olha a luzinha vermelha: qualquer ato em falso, qualquer olhadita de lado, qualquer muxoxo e a felicidade amorosa se dissipa, corça assustadinha. Que (todos sabem) uma gafe é uma gafe em todo dia do ano, fonte de risadas e folclores; no Dia dos Namorados, uma gafe é hecatombe nuclear digna de frequentar pauta de Rio+20, e a memória à flor da pele ameaça guardar o romance gorado por todos os séculos.

Posso soar contrária à celebração da data. Não sou. Detesto discursos de que se trata “de um dia comercial inventado pra gente gastar dinheiro”, embora tenha a ciência de que é assim exatamente. É assim exatamente; mas o que custa, meninos, fingir com doçura que não é, e deixar que as respectivas recebam seu espacinho na agenda – o espacinho de chamego e bobagem aberto às vezes a fórceps? Aquilo a que sou contrária é a espetacularização excessiva, a ansiedade involuntária, a expectativa fantasiante que acaba tolhendo a preferência pelo simples, sufocando a realização mais pronta e espontânea. Sou contrária ao monopólio do dia-ideal-ou-nada, do terror doentio aos pequenos acidentes, da mainstreamização das alegrias. Estou (estarei sempre) pelo direito ao Dia dos Namorados comido na barraquinha de cachorro-quente, se for de absoluto gosto; pelo direito ao torto, ao atrapalhado, ao presente enviesado, ao passeio sem lua, à dança pisada no pé, ao pulo na Ilha Fiscal com barco quebrado e resgate da Marinha. Estou pelo direito ao buquê que dá alergia, ao chocolate que é odientamente recheado de ameixa, à Sessão da tarde que foi cruelmente pensada para teens. Pelo direito à felicidade ainda assim retratável, ainda assim intransferível, ainda assim inesquecível, digna do álbum de queridices sem culpa.

Seja qual for a cara com que tenha saído na foto.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Desabrochar quando

Na mesma Revista dominical que trouxe aquele texto da Martha, havia o perfil de Orlando Alves Granjeiro, conhecido como o Garçom do Sinal, que, há 21 anos, faz ponto na Glória (bairro aqui do Rio), entre a Rua do Russel e a Avenida Augusto Severo. “Garçom” vem do fato de Orlando vender água e demais refresquices, no sinal fechado, servindo-as de bandeja – chiquérrimo. Não só vende seus produtinhos como chama as mulheres de “minha madame” e os homens de “minha excelência”, além de fazer “o seu tradicional movimento de quadris, numa demonstração de equilíbrio”. Enterneceu-me a reportagem de Pedro Sprejer, sobretudo, por descrever Orlando como “um homem mirrado e tímido que só desabrocha quando está com a bandeja no sinal”.  

Aliás: enterneceu-me o “só desabrocha quando”.

Porque é isso. Dificilimamente temos o fascínio pessoal como full-time job e arrasamos da manhã à noite, machos e fêmeas-alfa em todos os âmbitos. Existem, sim, os que nos parecem múltiplos bonzões, fantásticos em beleza, carreira, vida amorosa, social, esportiva. Existem; mas não vão além do “parecem”. São criaturas encantadoras que, embora possam mesmo brilhar em várias áreas, ficam eternos aquéns do que projeta nosso ressentimento guloso. Florescem em criação musical e boniteza, e no entanto são trágicos em manutenção de amizades e finanças. Arrepiam no amor e no sexo, e a despeito disso não conseguem emplacar uma tentativa empresarial que preste. Estraçalham no trabalho e nos esportes, e ainda assim são rematados incapazes em arribar a própria autoestima. Superacontece. Por sinal, estou para ver acontecer diferente, em alguma criatura galáctica. Entre o timinho dos terráqueos, rola bem por aí: a gente pode (deve) ser equilibradamente bacana em circunstâncias gerais, mas só desabrocha quando se pilha naquele nosso contexto alma-gêmeo, aquele que nos tira da mediocridade para nos emprestar a faísca dos especiais. Dos especialistas.

A menina desengonçada no ginásio desabrocha quando desfila Mara Mac. O rapaz que se consome em depressão desabrocha quando se percebe diante do piano de cauda. A senhorinha que transpira indiferença desabrocha loucamente quando a desafiam para a palavra-cruzada. O senhorzito que só resmunga nos-meus-tempos desabrocha de luzir o olho quando lhe fazem perguntas de História do Brasil. Aquele desabrocha escrevendo. Aquela, resolvendo todo e qualquer perrengue de informática. Aqueloutra, maquiando e maquiando-se como os mais gabaritados do ramo. Ali temos um olhar que desabrocha fotografando; acolá, um segundo que vem à tona pintando a óleo; um terceiro, adiante, que vira holofote de graças quando resolve problema de Física, e depois um quarto que se transfigura flertando na dança de salão. Há para cada qual seu nicho de – direi que além de maior conforto – maior iluminação, elegância, completude, plenitude, às vezes bem-aventurança mesma; não glória como consequência mundana (a de se ter os refletores em cima), mas glória interna, delícia emocional, inteireza pessoal. A glória de se achar habitando a si próprio em bem exato momento.

Com 100% de povoamento.

domingo, 10 de junho de 2012

Elogio do nada

Leram a coluna da Martha nO Globo de hoje? Um espetáculo falando do outro. No caso, “o outro” é a peça lindamente feita por Drica Moraes e Mariana Lima, A primeira vista, em cujo texto se destaca a saborosa ambiguidade da expressão “nada é suficiente”. Ambiguidade porque tanto se pode ler o trecho puxando o sentido para “nunca estamos satisfeitos” como para “o nada já nos basta” – e é este significado, segundamente dito, que a cronista prioriza.     

Confesso não tê-lo pescado logo de cara, tão focados estamos em reclamar de nossas reclamações mesmas. Virou cult, virou quase dogma dizer que sofremos de incompletude crônica, que mergulhamos em tresloucada fome capitalista, que o bem hoje adquirido já será obsoleto... ahn, hoje. Tudo verdade. Somos de fato esses monstros de consumo generalizado (antes a coisa se resumisse a inanimados: descartamos gente também), e o próprio motivo de eu ter estranhado o segundo sentido da frase me fez preferi-lo. “Nada é suficiente”: estar contente, estar plenamente saciado com o nada, olha a diliça! Não carecer de etiqueta para nos avisar se gostamos ou não da roupa, não dar a mínima para os últimos lançamentos de iCoisinhas, não ter a menor necessidade de esporte radical para botar tempero nos dias, não sentir qualquer buraquinho choroso que fique amofinando o outro para nos dar intermináveis provas de amor. Escalafobéticas provas de amor. Para quê? todo mundo vai muito bem com a maravilha que já possui, obrigada. Acréscimos são bem-vindos, recepcionados com flores, mas não mandatórios. Sem eles nos viramos fantasticamente. Paradise.    

Falei em provas rinocerônticas de amor não foi à toa. Nesta antevéspera do Dia dos Namorados, é no que penso com simpatia: nos milhares de coitados (principalmente eles, os homens) que receberam das namoradas um indiferente e terrível “não quero nada, amor!” – e sabem, ai deles, que se não voltarem da caça com o mais perfeito, o mais absoluto, o mais santo-graálico dos presentes, terão instabilidades sujeitas a trovoadas no decorrer do (laaaaargo) período. Assumamos, gatas: mulheres estão tão próximas ao significado número 2 da frase como o planeta está prestes a gozar de paz mundial. Mulheres ainda guardam resquícios da criatura que permanece nas cavernas à espera do maior pedaço de brontossauro (licença histórica, licença histórica), trazido pelo guerreiro de maior cotação na praça. A diferença é que saiu de cena o brontossauro denotativo para entrar o figurado; não se garante necessariamente o almoço com o mimo do parceiro, mas se afaga a certeza de ser idolatrada-salve-salve em meio à raça esfaimada de predadoras. Se não andamos tão carecidas de quem nos providencie sustento, em compensação trouxemos o fardo e o jogo para o nível do abstrato, do adivinhado, do emocional, onde eles patinham e nós nos havemos como craques. Nas relações atuais – quando relações de fato –, temos mando de campo. Jogamos em casa. Ainda assim, tripudiamos: mô, não quero escolher o presente não, quero deixar a cargo de sua criatividade e romantismo. E lá vai a pobre criatura, cabra-cega em terreno minado, tateando o imponderável e tentando alfabetizar-se no indefinível. Tom Cruise pendurado a um milímetro do chão, respirando baixo para não ativar nosso complexo sistema de alarmes. Decepção com o número errado do sutiã? Desgosto porque ele não teve sensibilidade para lembrar o nome da loja que você mencionou largamente – um segundo antes do pênalti decisivo da final de campeonato? Cortem-lhe a cabeça! e a seguir um pulinho na chocolateria, por motivos de rehab.

Não digo que tenhamos de nos contentar literalmente com nadas, que precisemos nos agarrar ao primeiro que não nos espanque e levantar as mãos pro céu se pelo menos o ogro acertar nosso nome todos os dias. Mas, igualmente, não convém nivelar por nosso glossário o nada e o tudo alheios. Às vezes o sujeito cravou um dez no presente justo porque foi no mais caro/seguro, sem coisa alguma de vontade e com alguma coisa no bolso. Se não mandou a secretária buscar. Às vezes errou com distância abissal por pertencer a uma linhagem de 37 daltônicos, porém gastou quatro horários de almoço na semana para pesquisar the lembrança sonhada. Merece o quê? no mínimo a consideração de ter seu esforço malogrado promovido a tudo. Aquele “obrigada” de quem reconhece, dentro dos atabalhoados entretantos, o som purificante dos fins.

O nada nos basta. Quando é fielmente repleto de nós.

sábado, 9 de junho de 2012

Fogo que arde sem se ver

Outro dia Arthur Dapieve relembrou, nO Globo, os versos de Gilberto Gil: “O povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”. Foi bom trazer à tona. Verdadíssima. A gente quer o que não sabe.

A gente passa a graduação achando – com o achar emprestado dos prôfis botadores de pilha – que quer fazer mestrado. Nosso caminho natural, naturalidade herdada de todos os séculos pregressos e vindouros, é fazer mestrado. Parece correto e razoável, e o tempo que ainda falta para a formatura nos ajuda a inventar satisfação com o projeto. Tudo flores. Não mais que de repente, o diploma já entregue nos esfrega na parede em clima de dá ou desce, cobra as decisões do longo workshop psicológico. E aí? a incrição? os documentos? o vigésimo sétimo xerox dos mesmos documentos? o tema previsto de dissertação? a linha teórica da pesquisa? é tarde, é tarde, acorda, patativa; cadê?...

“Cadê” que nos acorda tardia e furiosa, isso sim, a náusea visceral do mundo acadêmico e de cada “verifica-se”, “contempla-se”, “acepção”, “hermenêutico” e “epistemológico” que já tenha visto a luz do dia. Enfim e definitivamente, acuado pela urgência, sobe-nos o refluxo desse nojo desesperado, desse tédio letal. Que cargas d’água nos fizeram supor qualquer chance de nos enfiarmos mais tempo nesses corredores encigarrados, se a necessidade básica, premente, é abrir um salão de beleza com a irmã, virar dubladora, criar uma ONG para animais ou cursar culinária em Paris??

A gente passa a adolescência mastigando a certeza, bem-intencionada e sólida, de que abrirá futuramente uma escola de ensino revolucionário – anos depois, tem urticária só de passar em portão de colégio no horário do recreio. A gente tenta ser uma menina default que sonha com filhotes bochechudos – mais dia menos dia, emerge a ânsia de vômito ante a perspectiva de um choro em supermercado ou um DVD da Galinha Pintadinha. A gente procura se entregar à convicção de que planeja alçar o ultimate cargo na empresa – aparentemente do nada, cede ao impulso irreversível de sumir do meio executivo e virar dona de casa. Mudamos? piramos? cansamos? Cansamos indiscutivelmente; porém, porque enfim cansamos de alimentar a verdade importada, assumimos. Assumimos o que tínhamos escolhido não saber, já que saber cria o sério inconveniente de se ter de desviar a rota ou, no mínimo, parar para estudar os novos fatos. Assumimos o que nos era surpresa, o que não estávamos maduros para querer sem olhos contaminados: nosso jeito pessoalíssimo de obter sucesso.

Às vezes somos Donald Trumps porque plenos vendedores em lojinha de shopping, e à vezes mendigos na condição de proprietários amargurados. Às vezes somos palacianos dentro de 50 metros amados em Belford Roxo, e às vezes pedintes em 500 metros fragmentados da Vieira Souto. Às vezes temos família completa no marido, dois amigos íntimos e a tartaruga de estimação; às vezes não encontramos colegas e herdeiros entre as oito criaturas que nos saíram da barriga. Às vezes vivemos magnatas porque nos entornamos sobre o pouco que atingimos por vontade. Às vezes morremos no vácuo porque ficamos trilhardários de tudo que, à revelia, nos quiseram.

Sucesso é pousar no que somos para além do que parecemos. Não fazer vítimas no caminho. E continuar.