sexta-feira, 30 de abril de 2021

Pequena loja de horrores


Há alguns anos, num fórum do site Reddit, propôs-se que os usuários escrevessem a melhor história de terror que pudessem criar com no máximo duas frases. Povo foi criativo, como se espera sejam os sapiens em matéria de aterrorizâncias; espiem só estas pouquinhas traduções de microcontos produzidos:

"Sempre estranhei como minha gata olha fixamente para mim – parecia sempre olhar fixamente para o meu rosto. Até que, um dia, notei que ela estava sempre olhando para trás de mim."

"Acordei com um barulho de batidas em algum vidro. Primeiro, pensei que o som viesse da janela, até que ouvi o som vindo do espelho outra vez."

"Ela me perguntou por que minha respiração estava tão pesada. Não estava."

"Não há nada como o riso de um bebê. A menos que seja 1 da manhã e você esteja sozinho em casa."

"Eu nunca durmo. Mas não paro de acordar."

Ouch.

Certo, cheguei mil milhões de dias atrasada para o desafio, porém me dou ao desfrute de brincar um bocadito também, como não? Nada mais terror way of life do que herdar sombras de coisas passadas e muy muertas, e cirandar animadamente com alminhas penadas. Assim sendo, partiu:

Todas as portas e gavetas estavam abertas; nenhuma peça faltava. Sobravam, ao contrário, ovos e mais ovos pequeninos, que estremeciam de vez em quando.

Sim, me sinto perfeitamente bem, jurei para o chefe. Ele não desviava os olhos dos dois ratos que, a cada mordida, me ensopavam de sangue as roupas.

Atravessando a rua comercial, viu a si mesmo exposto em todas as vitrines.

O telegrama alertava que, em 24 horas, meu quarto seria ocupado pelos novos inquilinos. Eu soube por ter lido o papel aberto sobre a mesa; por mais que eu fizesse, não conseguia sustentá-lo com as mãos.

Só quando já havia caminhado por cinco minutos sob a chuva percebeu que o braço direito fora o primeiro a dissolver-se.

"Mas não tem nada escrito neste livro, meu filho!" "É; hoje não."

A diretora ligou: Lia entregara todos os trabalhos e fizera todas as provas do dia. Não tinha sido vista na escola em momento algum.

Já estava quase em sua calçada; começou a vir gente da direção oposta, correndo em desespero. Uma das pessoas só pôde lhe dizer, antes de morrer a seus pés, que "não olhasse nos olhos daquilo".

Ninguém podia ouvi-la gritando dentro daquela página, que acabara de ser colocada no fragmentador de papel.

Quando acordou, todos os espelhos da casa haviam sido retirados. Cada um a quem questionava respondia-lhe com uma calma piedade: "É melhor assim".

(Continuem sem mim.)

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Papo reto


Ludwig Wittgenstein, cujos 70 anos de morte relembramos hoje redondinhos, declarou para minha alegria que "o que se pode dizer pode ser dito claramente; e aquilo de que não se pode falar tem de ficar no silêncio". Para minha alegria porque amo enormemente o conceito do papo reto, da confortável simplicidade de dizer as coisas como são em vez de embalá-las em burocracias e disfarces hipócritas. Note-se: NÃO significa atirar uma verdade feito pedrada – e, consequentemente, feito vingança –, sob a desculpinha também hipócrita de "ser verdade", ou pior, ser a "minha opinião", esse novo bezerro de ouro de nossos tempos. Papo-retice não implica rudeza, agressividade nem falta de educação, que continuam tão desliberadas como dantes entre as pessoas de convívio civilizado; implica, sim, uma saudável alforria com relação a terminologias deslizentas, eufemismos escorregadios, frufrus e entretantos, todavias e litotes (sabe litotes? aquela figurinha de linguagem ensaboada que nega para afirmar: "Euriclênia não era feia"). Implica um respiro na varanda do protocolo, uma linguagem em estado de coffee break, limpa, destabelada, destabulizada, eficiente, direta – nada mais que a verdade, so help me God.

Discursos com pegada jurídica, por (anti)exemplo; aqueles votos do STF, looooooooongos e obesos de rapapés e excelências, apenas para justificar um "sim" ou um "não". Que sins e nãos sejam justificados, claro, mas precisa um texto inacompanhável pela gorda maioria da população (eu, inclusive), como se para descobrirmos se vamos ou não poder votar no Lula tivéssemos de passar a noite inteira de smoking no Dolby Theatre, esperando a abertura do envelope? Falar em Lula, ah! que delícia ouvi-lo discorrer sobre qualquer assunto, ele sim praticante do papo sem papas, sem triquetriques: de um coração brasileiro para outros corações brasileiros, livre de escalas. O querido Guilherme Boulos é da mesma safra, dotado do mesmo discurso estrada-liso e isento de enrolações – sou absolutamente apaixonada por suas respostas mais translúcidas que o mar de Noronha –, assim como tem mostrado ser, fora da classe política, o mui articulado Felipe Neto, que não costuma refugar diante de nenhuminha pergunta e manda todas as reais com tranquilidade. Tranquilidade típica dos intelectualmente honestos (sempre eles, amores de my life): gente que baseia suas convicções em provas, que absorveu conteúdo suficiente para não precisar gastar com formas & performances um minuto da argumentação, e que basicamente não arrasta consigo o encosto das coisas a esconder. Coisas a esconder consomem excessivos terabytes comunicativos – taí o presidente eleito (embora não praticante) que não consegue encadear duas frases com coerência nem escutar uma perguntinha básica de repórter sem reagir com grosseria e dar tela azul.

Por sinal, tenho sentido uma falta feroz de repórteres e apresentadores serem muitíssimo mais faca só lâmina, faca nos dentes, vozes que entrevistem abrindo a ferida e que informem sem nenhuma cerimônia ou manto diáfano eciano: não é que cloroquina e ivermectina meramente "não tenham eficácia comprovada contra a covid", bora nomear os bovinos, elas REALMENTE NÃO FUNCIONAM e, se tomadas que nem balinha, MATAM (o "não ter eficácia comprovada" abre portas perigosas à interpretação de que "podem funcionar, o povo só não tem certeza", e mascara o risco ululante de hepatite medicamentosa; mais energia aí nessa notícia, pelamor!). Não é que o presidente haja declarado algo que "não é verdade": ele MENTIU. Não é "ligamos para o ministro Teodorílton, mas não obtivemos resposta": é "ligamos para o ministro Teodorílton, ele não quis falar conosco, porém independentemente de ele se pronunciar ou não nós já temos os dados, comprovados e apurados assim e assim". Pra que a palhaçada de "postou numa rede social" ou "esteve num shopping da Zona Sul" em vez de "postou no Facebook" e "esteve no Botafogo Praia Shopping"? Pra que a informação constantemente torta, enviesada, interminada, como se nas mais irrisórias coisas estivéssemos sob a vigilância dum Grande Irmão que só as permitisse suavizadas ou imprecisas?

"Talvez algo aí faça parte daquilo de que não se pode falar, segundo Wittgenstein." Não, não faz; absolutamente NADA que seja de interesse público, por mais lancinante o assunto, deve ficar no silêncio; pode-se, deve-se e necessita-se falar às claras sobre morte, doença, depressão, fome, fake news, milícia, fascismo, preconceito, necropolítica, empresas/empresários e seus posicionamentos cronicamente opostos aos interesses dos trabalhadores, cultura do estupro, golpe militar, custo das Forças Armadas para o país, taxação dos mais ricos, relacionamentos abusivos – pautas infinitas, convenhamos. Nenhuma necessidade de avançar sobre o que de fato pertence ao silêncio, ao menos o nosso: memórias, dores, alegrias 100% pessoais, íntimas e intransferíveis, no caso de seus legítimos donos não desejarem de modo algum transferi-las. Afeta a coletividade? falar é uma obrigação, e falar da maneira mais objetiva e democrática. Não afeta senão um ou poucos mais envolvidos, sem poder resultar em benefícios gerais de nenhuma ordem? falar é uma invasão, e não se fala mais nisso.

Não há nem deve haver esperança de fuga: palavra e silêncio são o inevitável compromisso.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

O som ao redor


Vizinha de prédio que ri o dia inteiro à moda bruxesca de desenho animado (não estou exagerando; brotem na área para constatar).

Vizinho de prédio que espirra constantemente com tal FÚRIA que lhe gritam "Saúde!!" de outro apê ou edifício, ao que ele devolve "Obrigado!!" na mesma vibe de comunitarismo extremo.

Vizinhos de outro prédio que tretam tamanhamente aos berros – pai com mãe, mãe com filha adolescente, pai com filha adolescente – a ponto de todo o quarteirão chegar à janela, assuntante, durante as sessões (naturalmente só sei disso por chegar, assuntante, à janela).

Vizinho de outro andar que brinca sempre RRRRRAAAAAWWRRRRR de virar monstro e perseguir os filhos pequenos. Por quê, Senhor.

Vizinho de corredor que, de maneira totalmente supérflua a quem não tem o tamanho de um estegossauro, escancara a porta do elevador até arrastá-la RRRRRRAAAAAANFT! num altinho do chão, para minha diária exasperação e iminente enfarte.

Vizinho canino salsichinha que entra em crise existencial ao mais tênue tlinc-tlinc de chaveiro.

Esse tum-tum-tum-tum-tum-tum-tum ritmado e intenso que eu nunca soube de que parede vem, e se é máquina de lavar, vida sexual bem loka ou partidas diuturnas de Jumanji.

Maritacas voando em-bandomente malucas. Miquinhos assobiando de dia. Morcegos assobiando de noite.

Alguma ave cujo canto estranhíssimo e perguntativo volta e meia reaparece: "Tem alguém aqui? Tem alguém aqui?".

Pelo menos uma criança capaz de choraaaaaaaaar! aaaaaaaa! aaaaaaaaa! aaaaaaaaa! aaaaaaaaa! numa exata e mesma nota, num exato e mesmo tom, por hooooooras a fio. Chorar sem lágrimas, me parece, mas com uma teimosia pulmonar de dar esperanças às novas gerações de puxadores de samba.

Geladeira soltando PACT!, na bandeja interna, súbitos granizos de autodegelo, em mais um capítulo de Complô para me enfartar no silêncio da madrugada.

Televisão da vizinha de baixo LIGANDO SEMPRE NO ÚLTIMO VOLUME E PARECENDO ESTAR AQUI DENTRO DO QUARTO ATé a vizinha assumir o controle.

Vendaval aloprando a "franjinha" do toldo que protege a varanda, e aloprando o toldo mesmo – cuja integridade física nos põe com razão apreensivos, visto que o anterior por pouco não fez a passagem para Oz.

Vizinho da treta-aos-berros-no-outro-prédio falando escandalosamente ao telefone em seu terracinho e assistindo escandalosamente ao jogo do Flamengo (sim, é tradição de família providenciar que tudo seja executado escandalosamente, e o êxito tem sido completo).

Mensageiros dos ventos tilintilintilando que a chuva, agora, está vindo para cá.

Chuva, chuva, chuva, chuva – veio agora.

Há tanta vida (também) lá fora.

terça-feira, 27 de abril de 2021

Cenas do último capítulo


O ano foi de muito menos idas ao cinema (no nosso caso, nenhuminha após a corongação do planeta – um salve para o streaming em situações de colapso mundial!); boa parte do público não viu nada de nada, ou pouco de pouco. Ainda assim o diretor Steven Soderbergh, responsável pela cerimônia oscarizante de domingo, achou uma ideia bacana nos ir mostrando um mooonte de pessoas desconhecidas, agradecer por seus trabalhos e falar de suas particularidades individuais EM VEZ DE exibir trechos das respectivas produções, ou mesmo desfiar sinopses. Um tiro em todos os pés, mãos, asas, garras e tentáculos de uma indústria que é eminentemente visual e sempre seduziu na base de clipes e trailers; não poderia dar num evento mais equivocado e enfadonho.

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(CLARO que é legal valorizar essas pessoas que são, do nosso ponto de vista, quase anônimas porque backstagees. Mas focalizá-las praticamente o tempo todo, além de deixá-las nitidamente desconfortáveis, roubou um pedaçaço da atenção que deveria ter ido para seus próprios feitos. A gente em casa quer VER um tiquinho que seja das atuações, da direção de arte, da maquiagem, dos figurinos, quer ter uma amostrinha dos curtas e longas que não estamos conseguindo acompanhar a contento; tem ALGUM cabimento transformar o maior portfólio anual do cinema – ao menos o mais popular e, consequentemente, o mais vitrínico – numa longa tagarelação sem imagens? Tem, meus amigos???... Só vou me aquietar quando disserem que fomos cobaias duma cerimônia experimental e que em breve receberemos convites oficiais para a alegre cafonalha de sempre.)

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Triste demais o fato de Os 7 de Chicago, com sua montagem excepcional, sua afinação de elenco e seu roteiro esperto, haver saído sem estatuetas, enquanto uma obra medíocre como Mank papou duas (de Melhor Fotografia e Melhor Design de Produção; mas SÃO duas). Caso abram a Netflix e espiem o catálogo em dúvida, hesitem não: assistam ao primeiro.

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Prêmio de Maior Fofura: Youn Yuh-jung, oscarizada como atriz coadjuvante por Minari, macarronando um inglês adorável e dando sua flertadinha com Brad Pitt, porque afinal, né? Melhores Figurinos de Gala: Amanda Seyfried e Carey Mulligan flutuando em nuvens principescas, respectivamente vermelha e dourada, para deslumbre de nossos olhos prosaicos que mereciam um bocadito de futilidade adoçando um evento quase desesperador. Melhor Pessoa (empatada com Glenn Close e sua reboladinha): a tão fofa quanto poderosíssima Chloé Zhao levando apenas o SEGUNDO – de centenas por vir, esperamos – Oscar de Direção dado a uma mulher, em 93 anos de premiação. Não consigo não dizer que Chloé, com suas indefectíveis trancitas, vestido dourado-opaco e tênis, estava um perfeito personagem de Star Wars; e digo isso encantadamente, como o mais carinhoso elogio à doçura e sabedoria jedi que ela parece emanar. Que a Força esteja com a carreira dessa guria.

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E as Framboesas da bizarrice: céus, o que foi aquele In Memoriam que só pode ter sido editado por Usain Bolt, impossivelzão de acompanhar sem olhos mutantes? Falta de tempo não havia de ser, visto que se despendeu um bom bloco com uma mui constrangedora tentativa de joguinho musical, ao qual só a sempre animada Glenn Close se dignou a ceder alguma espécie de entusiasmo. Outra decisão pasmosa – aliás, THE decisão pasmosa – do roteiro foi não guardar o prêmio de Melhor Filme para cerejar a noite, como se o aniversariante cismasse de soprar velinhas no meio da festa. Acabou naquela não entrega desanimadora do Oscar de Melhor Ator para um Anthony Hopkins que dormia em casa e nem sabia ter levado o troféu (embora eu não discuta, claro, o acerto de concedê-lo ao eterno Hannibal, cuja atuação realmente engoliu a dos demais, segundo todas as vozes; ainda não vi Meu pai, mas tenho zero dúvida a respeito). Só não foi um encerramento mais brochante, pelo menos para mim, porque pude coliriar-me um tantinho com a presença de Joaquin Phoenix fechando os trabalhos – se bem que é como o crítico Hélio Flores comentou sem muitas alvíssaras no Twitter: "Faz todo sentido o Joker terminar esse #Oscars sozinho no palco, né?". É. Lamentável e inegavelmente.

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Já que estamos falando de fazer sentido, e o Steven Soderbergh que também dirigiu Contágio, hein? Sei lá, só uma coisa que o Fábio lembrou aqui.

(And the world goes to...?)

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Segundo compêndio irritado de coisas irritantes


Aquelas tripinhas intragáveis das blusas, saias e cia., feitas para penduração em cabide, mas facilmente confundíveis com alças – o que nos faz ter de dançar a Ragatanga para vestir a peça sem acabar parecendo uma obra de Picasso. Aqueles arozinhos de plástico dos sutiãs que escapam do tecido e começam a se enfiar na pele. Anúncios de programas invadindo furiosamente a tela do programa que está sendo visto. Ventilador engolindo, com o barulho, o programa que está sendo visto. Gente trancando o fluxo da escada rolante. Porta arrastando. Máscara alargando. Armário desnivelando. Pedacinho de plástico grudando alternadamente numa das mãos e na outra, por eletricidade estática. Restos mortais de festa grudando no sapato. Música que não se quer ouvir tocando em evento de que não se pode fugir. "Contudo". "Todavia". "Hodierno". "Outrossim".

Cabides enganchando mútua e violentamente no armário e capturando roupas alheias à sua jurisdição (quem nunca teve de apartar briga de cabide não viveu o suficiente para conhecer o ódio). Gente que disseca o meme nos comentários EM VEZ DE SIMPLESMENTE RIR, MUNDIÇA. Homem que se acha o último Aristóteles da Academia e começa qualquer explicação de altíssima irrelevância com "vamos lá". Homem que se acha o último Aristóteles da Academia e começa qualquer explicação de altíssima irrelevância. Homem que se acha o último Aristóteles da Academia e começa qualquer explicação. Homem que se acha o último Aristóteles da Academia. Homem que se acha. (Só não digo "homem" porque conheço alguns exemplares extraordinários e sou, inclusive, casada com um; mas vocês não costumam ajudar, meninos.)

Pés formigando. Mãos formigando. Sites em permanente estado de carregando. Papel cortando fi-ni-nha-men-te o dedo. Vento aloprando o cabelo recém-domado. Peça de roupa alecrim-dourada que só combina com UMA determinada peça de roupa. Zíperes que decidem pela aposentadoria e passam a só fechar, gloriosamente, os 2 milímetros do meio. Portas de banheiro público que ficam a 39 quilômetros de vedar o reservado com alguma dignidade. Familiares de crianças pequenitas que chamam cachorro de auau. Familiares de crianças pequenitas que interagem AOS GRITOS, no play, com as crianças pequenitas, usando de dialetos inacessíveis ao grosso dos usuários da língua. Legendas que entram 3 minutos antes ou 3 minutos depois das falas correspondentes. Tradução simultânea que não deixa a gente entender as premiações em nenhum dos idiomas disponíveis. Premiações que não deixam a gente ver trechos dos filmes laureáveis (sim, é com você, Oscar de ontem, seu ENTOJO). Depósito que passa dias em limbo bancário. Biometria de caixa eletrônico que solicita mover o dedo mais para a direita mais para a esquerda mais para cima mais para baixo e decide que não, lamentavelmente não consegue ler a digital, sessão encerrada. Post de congratulâncias que começa com "hoje é o dia dele(a)". "Divisor de águas". "Meu grudinho". "No tocante a" (o coiso adora, BLERGH). "Fitness". "Mimimi".

Quatro e muitos tantos da madruga – e eu aqui.

domingo, 25 de abril de 2021

Ainda vida


A encomenda do Hortifruti chegou com frutas tão lindíssimas, tão plenas em suas cores-base, que não pude deixar de comentar: nossa, mandaram frutas de fruteira, dariam um belo quadro de natureza-morta. Vai daí que me peguei pensando por que pitombas a turma das artes plásticas chama natureza-morta até a imagens de frutas, flores etc. de aparência viçosa e vivíssima, embora naquele estado de limbo rumo à degradação inevitável. E vai daí que considerei o quanto, nesse caso artístico, eu prefiro a correspondente nomenclatura em inglês still life – a rigor, vida em suspenso, simpaticamente traduzível porém como ainda vida: um jeito muito mais "copo meio cheio" de olhar para o que virá sim a perecer, mas que por enquanto se encontra exatamente nisso, num por enquanto repleto de cores, sabores, promessas incompatíveis com a desistência. Uma rosa, um pêssego aveludados mesmo ao toque dos olhos são definitivamente resistência; embalagens recheadinhas de gosto e perfume, portadoras de natureza fresca, pulsante, em prontidão para o consumo ou o plantio até prova em contrário.

Até prova em contrário, não estamos tampouco natureza-mortos, por mais que nos iludamos (ou se iludam) de nossa aparente imobilidade de rotina. Achamos, frustrados, que o tempo escorrido em quarentena é sem palpitação e seiva, e no entanto os açúcares continuam em adoçamento e a polpa em maturação, estejamos ou não enraizados nas velhas práticas; assim emnosmesmados como andamos, não cessamos de agitação viva, não interrompemos (antes intensificamos) o rio de sinapses que o trabalho nos demanda em readaptações, não deixamos de absorver (antes absorvemos mais) ficções escritas e filmadas que vão se entrelaçando modificantemente em nosso DNA emocional, não perdemos a oportunidade (antes as temos aos borbotões, e não pelos melhores motivos) de nos fazer apoio dos amados, essenciais à nutrição alheia. Com ou sem rua, nossas ideias formigam em perpétuo deslocamento; com ou sem viagem, temos acesso a mui suficientes chances – em forma de textos, vídeos, documentários – de visitar realidades inéditas e arrancar preconceitos daninhos; com ou sem o ambiente do emprego, nossas veias fervem de antigos e recentes aborrecimentos laborais, e se, como falam, não está morto quem peleja, então eis que o Google Classroom se revela um elixir de eternidade realmente duca.

Ainda é vida com encontros online, já que verdades ali ditas não param de ser verdades fora do Meet ou do Messenger. Ainda é vida com cultos religiosos acompanhados pela TV, visto que a jurisdição da bênção sacerdotal não está restrita a tantos e tantos metros quadrados. Ainda é vida com crianças estudando pela internet: não consta que o remotamente aprendido tenha maior licença de desexistir do que o aprendido de perto. Ainda é vida com lives de shows e partidas pay-per-vistas – não há o amassamento do público, de fato, nem bebida quente e cachorro-frio comprados por 50 reais em quiosques abarrotados, porém as emoções de músicas e bolas rolando são bem essencialmente similares. Ainda é vida: não estamos congelados em berço esplêndido, estamos lendo, elaborando, supervisionando, inventando, investindo, corrigindo, calculando, editando, rezando, papeando, fazendo cursos, crescendo filhos, dando match em amores, treinando instrumentos, aprendendo línguas. Não fosse vida e ainda assim pareceria imensamente com ela.

O que é da vida não deixa de sê-lo porque foi continuado na tela.

sábado, 24 de abril de 2021

Espelho, espelho nosso


Sabem aquela cena despedaçante da Grazi Massafera em Verdades secretas, na qual sua personagem Larissa vai progressivamente entrando em desespero ao ver a própria imagem devastada, desgrenhada, emagrecida, sem brilho no cabelo e na pele, dentes amarelados e destruídos por efeito do vício no crack? Então: digamos que, se Larissa fosse o Brasil, o Censo seria o espelho.

A questão é que para Larissa HOUVE um espelho, e certamente ele teve um papel importantíssimo na futura decisão da jovem de abandonar o crack.

Em nosso pobre Brasil cracudo de negligências, de opressões, de desmatamentos, de armamentos, de preconceitos, de fake news, de péssimas práticas econômicas, de irresponsabilidades assassinas, porém, são exatamente os fornecedores dessas tantas maravilhas que detêm o poder de colocar em nossas mãos o espelho – sobretudo, são os que detêm o poder de NÃO colocá-lo. E já avisaram: NÃO o colocarão. Eu, hein, pra que essa história de ficar se conscientizando da própria decadência e de repente, sei lá, começar a ter ideias de que o caminho a seguir não é este, é muitíssimo outro e fica muitíssimo longe da atual cracolândia política? Nã, nã, nada de Censo, você está lindo e saudável, está tudo bem; permaneça aí quietinho enquanto sapateamos furibundamente sobre o seu processo de cadaverização galopante.

Queridos: não ter Censo Demográfico é o cúmulo do píncaro do auge do coroamento da glorificação da ignorância, do autoabandono, da autodesistência. Não realizar Censo Demográfico é se saber ou se desconfiar doente e fugir a qualquer hemograma, a qualquer raio-X, a qualquer mecanismo de diagnosticar o foco do mal para tratá-lo, numa persistência obsessiva de morte. Aliás, minto injustamente; a metáfora não assenta redondo, visto que nós – pelo menos nós que estamos inocentes de eleger a necropolítica em vigor – somos pleno Brasil e não nos abandonamos nem temos crush na morte, ao contrário, andamos babando de revolta com a decisão de cabular o recenseamento à nossa revelia. O que assenta como uma luva é a espetacular definição dada no Face pelo meu Fábio: "Cancelar o censo que revelaria o país pós-pandemia é, no caso de um governo genocida, impedir a perícia depois do crime". (Depois do crime e antes do retorno às urnas – vale sublinhar, negritar, italicar e envolver em painel neon.)

Proceder ao Censo Demográfico não é ficar contando carneirinho durante o expediente. Não é um correr de bolinhas no ábaco: é uma radiografia. É acompanhar as flutuações de poder aquisitivo, o impacto dos governos e desgovernos na alimentação e nos hábitos gerais de consumo, as transformações no nível de instrução; é compreender como os espaços urbano e rural vão se reorganizando e por quê, e quais as necessidades que disso vão sendo criadas; é apurar onde faltam hospitais, escolas, saneamentos para servir a núcleos populacionais que se desenvolvem; é entender como os movimentos identitários influenciam mudanças de autopercepção com relação à cor e à crença; é perceber o crescimento de novas organizações familiares, prever alterações no mercado de trabalho conforme as taxas de natalidade e mortalidade, saber até (reforçava um especialista no JN) como planejar campanhas de vacinação articuladas ao tamanho e distribuição de faixas etárias. Recensear é visitar, com a mais empenhada capilaridade, cada cantinhozinho deste continentão de diferenças, a fim de chegar o mais perto do Brasil real mesmo no vácuo do vácuo, no invisível do invisível a quaisquer outros acessos; e é, conhecendo o Brasil real, gerar dados para todos os estudos de todos os setores, possibilitar que os projetos de todas as áreas sejam adaptados a circunstâncias efetivas, não fantasiosas. De que forma trazer remédio a um doente que não se examina? auxiliar uma vítima que não se ouve ou vê? alimentar e instruir vidas que não surgem no radar? abrir estradas e alternativas para deslocamentos que não aparecem no mapa? Saber, saber, saber, saber – eis a única via, a única chance, a única luz passível de criar futuros e salvar uma nação sonâmbula da morte certa.

Que medo há, hein, criaturas governamentais? Vocês mesmas insistem todo dia: a verdade liberta.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Para sua consideração


Comovida aqui com uma dessas historinhas cotidianas que guardam o mundo e que foi postada pela manicure Ingrid Moura no perfil (facebooko) O Lado Bom das Coisas: "Minha cliente de [...] 13h30 desmarcou seu horário às 13h (por motivos de saúde). Mandou por um mototáxi um lanche de sua loja e 50 reais, em seguida um áudio se explicando, pedindo desculpas e avisando que dentro da sacola do lanche tinha 50 reais, que ela não achava justo eu ficar no prejuízo. Gente, eu fiquei muito feliz, não só pelo lanche e o dinheiro (que eu vou abater na unha dela), mas sim por saber que existem pessoas que valorizam nosso trabalho, que nos tratam com carinho. Que não veem em mim só a Ingrid que passa horas do seu dia sentada na mesa fazendo unhas, veem em mim uma profissional, que tem contas, compromissos [...]." Parece óbvio enxergar Ingrid como profissional, não é exatamente o que ela é? – reagiu minha ingenuidade ao primeiro golpe de leitura; mas na sequência dobrei o pensamento: claro, é o que ela é, só que especialmente no Brasil não é como todos a enxergam. Especialmente neste complicado Brasil do sabe-com-quem-está-falando, enxerga-se por tradição secular não o profissional, e sim a profissão, ou mais fielmente dizendo: a função, a posição, a obrigação. Se você passa horas do seu dia sentada na mesa fazendo unhas, subalterna ("raciocinam" os herdeiros emocionais e/ou patrimoniais dos velhos senhores de engenho), é a parte que lhe cabe neste estratifúndio; dê-se por feliz com condescendência e gorjeta, e não espere que fora daqui eu pense por mais de 20 segundos em sua existência.

Mas as pessoas que a gente aprecia topar no caminho – feito a cliente fofíssima de Ingrid – pensam justamente não no ofício, pensam na existência. Têm aquela coisa linda pelas circunstâncias da vida alheia a que chamamos genericamente de consideração, espécie de braço civil e republicano do amor: a habilidade empática de desinstrumentalizar as relações, descoisificar os contatos humanos, descoisificar os humanos em especial. Consideração é a etiqueta social não mecânica, a inteligência da polidez, a PhDice da civilidade, o plus da simples educação que já estava em contrato; não é uma questão de simpatia – se fosse, reinaria absoluta neste nosso império da cordialidade superficial e sorridente –, trata-se antes de um treinamento da atenção, de um exercício refletido. Combinemos que os brasileiros costumamos trabalhar muito mais no registro da simpatia do que no da empatia, esta gêmea-requisito da consideração: sorrimos, fazemos confidências ao cabeleireiro, abrimos a vida ao vizinho de metrô, damos um panetone Bauducco à empregada, rasgos de momento, de impulso e de baixo compromisso; projetarmos responsabilidade sobre as consequências de algo sobre alguém, no entanto, não costuma ser nosso forte, e tanto assim que a belíssima atitude da cliente de 13h30 virou post por seu caráter de exceção. Perdão se julgo mal de mim e de meus conterrâneos (tendo vivido no país desde o útero, infelizmente não creio que seja assim), mas sempre me pareceu que um nosso defeito crônico é nos modularmos em diapasão infantil – tanto no que há de mais repentinamente generoso quanto no que há de mais egoísta e menos ajuizado, prudente e previdente. Vamos admitir que exemplos de infantilidade chovem por aqui a cântaros, começando por "cima" (aliás, aquela criatura que mente, cabula obrigações e quer todos os brinquedos e atenções para si, que nem pirralho mal-educado da terceira série, jamais estaria "lá em cima" se não fosse a imaturidade cognitiva de boa parte do eleitorado, inapto até para ponderar que mamadeiras de piroca são mil vezes mais fantasiosas que todos os Coelhinhos e Noéis).

Consideração pelo outro é coisa de adulto, no mais humanamente aperfeiçoado sentido do termo. Consideração é coisa de gente que não se sente "passada para trás" ao pagar por um serviço do qual não pôde usufruir por motivos de força maior – afinal (reconhece), no bolso dos que normalmente têm recursos para pagar por manicure, faxina etc., a ausência dessa quantia tende a pesar menos do que no bolso de quem presta o serviço em questão. Consideração é coisa de gente que estimula muitissimamente seus funcionários a prosseguirem nos estudos, ainda que o expediente precise ser readaptado e ainda que, como consequência da maior capacitação, os mesmos funcionários venham a alçar outros voos. Consideração é coisa de gente que nem cogita descontar salário de quem está submetido a transporte público e por isso tem eventuais atrasos, ou nem por isso: pessoas não estão reduzidas às dimensões de seus empregos, enfrentam problemas com seus pais ou filhos doentes, estão sozinhas na supervisão do homeschooling, precisam discutir assuntos inadiáveis com seus adolescentes assoberbados de vida, só conseguem namorar os conjes de manhã, you name it; sério que um atraso ou outro vai impedir o trabalho de ser feito com eficiência? Consideração é coisa de gente que se antecipa a necessidades, compreende razões, está mais atenta a contextos reais do que a disciplinas imaginárias, está menos presa a vantagens pessoais do que a justiças coletivas, faz o possível para melhorar ambientes, distribuir oportunidades, abrir espaços, facilitar caminhos. Gente que, como disse Manoel de Barros no domínio da poesia, voa fora da asa: vive habituada a viver além de si e a não parar onde a maior parte das pocket gentilezas fica.

(Senhor: multiplica.)

quinta-feira, 22 de abril de 2021

As contribuições milionárias


Disse um aniversariante do dia que "não somos ricos pelo que temos, e sim pelo que não precisamos ter" – ou em outra versão: "Não somos ricos por causa das coisas que possuímos, mas pelo que podemos fazer sem possuí-las". Boa, Kant, garoto de 297 aninhos completados hoje (dá certo alívio concordar com um dos maiores filósofos já havidos na História); é absolutamente nonsense revista-forbesar um cidadão pela quantidade de traquitanas que têm seu nome na escritura ou na nota fiscal – traquitanas que o sujeito em questão normalmente não inventou, não construiu, não montou, não pintou, não lapidou e não conseguiria de reininhum reproduzir, se necessitasse. Muitississíssimo pior é pedestalizar esse mesmo sujeito por ganhar uma cacetada de números (registrados dentro de outros números) a partir da manipulação de mais números, de entidades que foram ironicamente apelidadas de ações e que consistem, na verdade, em totais abstrações insemeáveis, incolhíveis, inúteis para o mundo. Não faz porcaria de sentido algum atribuir mais consideração e mais milionaridade a criaturas inaptas para aguentar (sem dar piti) demoras de 2 minutos e para lavar decentemente a própria privada.

A Terra segue em frente bastante bem – consideravelmente melhor, inclusive – sem esses comédias que parasitam tempo, espaço, trabalho alheios e ainda são bajulados por isso; a mesma Terra ficaria mil vezes mais insustentável, no entanto, se não pudesse contar com as cabeças genuinamente milionárias, as que se transbordam em curas, vacinas, plantios, engenharias, marcenarias, serviços sociais, lideranças comunitárias, cortes, costuras, arquiteturas, navegações, aeronavegações e demais produtividades. "Mas muitos ricos também tiveram ideias geniais, e também doam grandes quantias para caridade e pesquisa." Claro, houve riquezas principiadas por ideias geniais e eu nem estaria digitando aqui no Windows se não fosse assim, porém dificilmente um saldo bancário engorda de maneira obscena somente por causa de genialidade do dono do saldo; a praxe é que vááááárias genialidades e esforços se coloquem a serviço (e BOTA serviço nessa história) de um primeiro interessado, mas jamais enriqueçam como ele – enquanto familiares mais próximos a ele acabam enriquecendo sem quaisquer genialidades ou esforços. Convenhamos: se bastasse inteligência para a recompensa numérica vir à altura, gênios nenhuns teriam morrido pobres e irreconhecidos, e infelizmente esses não faltaram. Quanto a doar dinheiro para caridade e pesquisa, sorry, mas não fazem nadinha mais que a obrigação – principalmente levando em conta, no primeiro caso, que o aumento global das fortunas tende a estar relacionada com o aumento das misérias, portanto qualquer compensação é ainda uma pálida e desproporcional tentativa; e, no segundo caso, que a obesidade das contas bancárias se deve basicamente a pesquisas alheias anyway, que são os técnicos e cientistas as minas de ouro quase literais (quem, afinal, desenvolve as tecnologias cuja venda enche a burra dos donos do camarote?), além do fato de os próprios mecenas, na condição de humanos, serem igualmente beneficiários e usuários dos remédios e produtos desenvolvidos. Grana para que o planeta gire se arranja: não é uma mera convenção social, seja em pedaços de papel, de metal ou de algarismo? O que não se arranja por simples combinado público são o conhecimento itself e a materialização dele advinda – estes, sim, rebeldemente alheios a que se sente ou não se sente em toaletes folheadas a ouro.

A abastança socialmente valorizada como tal não passa de delírio coletivo, de um pacto estúpido e fetichizante em torno de mistificações; em torno, por exemplo, de nomes escritos em etiquetas costuradas por gente que ganha centavos no processo, e ostentadas por quem seria incapaz de pregar um botão. Não que seja sine qua non pregar botões, vocês entenderam: o sine qua non é justificar a própria existência contribuindo de alguma forma para facilitar a do vizinho, gerando alegria arte beleza alimento ajuda medicina serviço, enchendo de algo melhor os dias, trazendo algo ao planeta em restituição ao que dele absorvemos. Evidentemente, quaisquer noções lógicas de justiça demandariam que os mais cumulados de favores e recursos fossem, também, os mais cumulantes, os mais distribuidores de farturas – mas tão desconcertados são nossos métodos que a tendência é bem contrária, e em geral, conforme comentei, maiores riquezas produzem exatinhamente maiores pobrezas. Não me peçam, pois, "respeito" aos ricos; respeito-os, sim, porém só os originais de fábrica: os que não necessariamente possuem, e sim se fazem fontes de bens jorrados de talento e trabalho.

Ter deixado o planeta melhor do que era em sua ausência – esta, sim, a verdadeira ostentação.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

É de poesia minha vida secreta


Faria hoje 91 anos a incrível Hilda Hilst, uma das maiores versificadoras do desejo, inacreditavelmente captadora do lírico, como se espremesse o mundo e este virasse um sumo que virasse palavra. De seus versos, o mais bonito creio ser – "Um arco-íris de ar em águas profundas" –, assim mesmo sem nem carecença de contexto, assim absoluto; mas tomo outro trecho de outra série para citar também, não só por boniteza como por identificação: "Porque tu sabes que é de poesia/ Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,/ Que a teu lado te amando,/ Antes de ser mulher sou inteira poeta". Tão lindo, tão lindo que quase corta na garganta qualquer explanação.

Não posso, nem à maneira de Hilda nem à maneira de Ariana – o eu lírico feminino que se endereça ao amado Dionísio –, dizer que sou inteira poeta no rigor da palavra; quem dera! poemar feito Hilda, Cecília, Florbela, Adélia, Ana Cristina, praticamente botando estrofes pelos poros, muito e sempre. Fui adolescente de versiler e versiescrever em cascata, conforme convém à adolescência, e até durante as aulas cobria de rimas os cantinhos dos livros didáticos, conforme convém aos livros todos (se não servirem para receber versos nos cantos, SINCERAMENTE, hein). Não que eu não lesse em prosa tanto quanto, e aliás com fúria ainda maior; mas convenhamos: poesia, para redigir, é muito mais portátil, estaciona em qualquer vaguinha de papel, não tem burocracias de enredos e continuidades, dotes que favoreciam a produção frequente e clandestina. Eram linhas e linhas e linhas e linhas bem irmãs daquelas dos oitocentistas da minh'alma (irmãs: não disse que gêmeas, naturalmente), exercícios e mais exercícios de expressão – até que fui deixando de absorver e derramar versos tão de assentada, fui concentrando espontaneamente na prosa as tendências palavreiras, com o auxílio luxuoso dos novos recursos: computador, queridos, este ser prosaico em toda a amplidão maravilhosa do termo. Poema tem aquele potencial de passarinho que se acomoda num guardanapo, se der na cisma; texto paragrafento não, demanda muito pulso folha risco rabisco, ou muita paciência habilidosa com a máquina de escrever, que não era dos meus maiores dons. Havendo enfim a chance da digitação livre, frouxa, a um só tempo rascunho e passação a limpo, direto ao fito e à fonte, pronto! desembestou-se; os parágrafos foram, foram e acabaram fondo, ganhando mais a fundo o terreno que começou a só muito espalhadamente brotar estrofes. Modos que (não me surpreende nada constatá-lo em mim) não veio a se manifestar com clareza a preferência sem um largo componente de praticidade e preguiça.

Mas poesia não é significativamente dócil a esquecimentos e não tolera foras, ao menos quando chega ao grau em que vai trepando por livros didáticos; ela estava, sempre esteve, arraigada demais para murchar e acabou-se. O blog aqui é testemunha dumas recaídas avulsas, e eu poderia alegar com inteira sinceridade que são frutos não apenas de formigamento poético, mas de tédio estrutural sobretudo; o pouco romantismo dessa justificativa honestíssima, porém, não impede que haja sim uma vida secreta – não tão secreta – e toda trabalhada em versos, se bem que não escritos. Dificilmente durmo sem ter olhado o céu da noite; sou tão apegada às pequenas flores de cores distintas envasadas na janela do vizinho que me dói enormemente quando ele retira uma delas, já que se atenua o contraste de cores e o das cores com o dia azul; vou orelhando compulsivamente os pés das páginas para marcar as frases bonitas; não consigo me sentir culpada o suficiente desse crime porque vejo poesia nas imperfeições com que assinalamos nossas leituras; poderia ficar anos olhando um beija-flor; gosto das surpresas proporcionadas pelas desarrumações (um ambiente asséptico é coisa que, feliz ou infelizmente, não consigo e fatalmente não conseguirei); enfio tanto os olhos em qualquer detalhe ridículo que abstraio do diálogo e da cena; por sinal, sou tão arrebatada pela beleza pura ou insólita que abstraio de qualquer um, em qualquer lugar (e a vergonha pelo que deveria ter ouvido e não ouvi, visto que estava raptada pelo comercial?); amo nomes franceses; amo sinestesias; quero os jardins densos, caóticos, indisciplinados, não canteiros medidos e versalhescos; prefiro a imprevisibilidade dos brechós e das gavetas há muito não visitadas; tenho loucura por ser aeroporto de borboletas. Sou inteira poeta? não sou; mas uma porcentagem escandalosamente grande crê que tudo é metáfora de tudo, que o ritmo é primordial e que a rima é um vício.

Desde o início.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Um peixe transparente e um cabelo que bebe sol


De vez em vez me dou ao colorido desfrute de morar, um pouquinho, numa obra de arte não verbal; se nos hospedamos por dias, semanas, até meses dentro de universos escritos, por que não passar uma tarde ou tomar um café que seja nos pintados? Pois fui hoje fazer visita aniversária a Odilon Redon, pintor francês de produção fabulosíssima – um transbordamento doido que engloba Simbolismo, Romantismo, Realismo, Impressionismo, Pós-Impressionismo e creio que todo damn estilo que lhe tenha dado na telha – cujos 181 aninhos se completam neste 20 de abril. Foram 76 em vida e uma obra de boquiabrir qualquer mortal, tanto pela fartura quanto pelo conteúdo, capaz de povoar os pesadelos mais exigentes (O QUE SÃO seus olhos esbugalhado-voadores e suas aranhas sorridentes, meu Pai??), de acarinhar com flores e borboletas em delicadeza pastel, de escrachar cores vivíssimas e preto-branquices terrivelmente góticas e perfis de mulher serenos, suaves. Fácil não foi, entre mais de 400 portinhas, escolher uma para adentrar com um abraço de cortesia ao autor, mas enfim pulei seduzida para bordo dO barco misterioso (1892) que ilustra aqui o texto, e que tem potencial para dar à luz as lendas mais douradas.

Douradas, sim: vejam a lindeza de vela desse barco e me digam se não é um tecido especial movido a sol, não a vento, muito antes de a tecnologia de impulsão solar estar acessível à humanidade pós-mil-e-uma-nôitica. Porque a cena, sem dúvida, é daquelas dignas de Sheherazade; o casalzito que já se encontra sentadinho na embarcação que abordei diz chamar-se Hisham (ele) e Anisah (ela), dois queridões apreensivos que podem contar unicamente com seu Barco Misterioso para resgatar a filha Nathifa, sequestrada por um gênio apaixonado mauzão – e transformada por ele num grande peixe de transparência chocante, como punição por ela ter resistido a seus avanços e como garantia de que, quase invisível como está, não seja encontrada no oceano pelos pais aflitos. Mas não foi somente a beleza de Nathifa que fez o gênio fissurar na moça; o criaturo sente que há nela um qualquer poder e não sabe identificar qual é, nem ela o confessa. (Sssshhh, eu sei: o tal poder é que os cabelos de Nathifa bebem energia do sol e a absorvem de tal forma que, mesmo deixada em desalimento e cativeiro, a linda não definha um grama.) Foi pela tripla resistência da jovem – à sedução, à fome e às ameaças para revelar o segredo – que o salafrário se exasperou e condenou-a a vagar pelo mar sem poder ser vista pela família nem comunicar-se com ela.

Rá! que ingênuos os vilões; é CA-LA-RO que Nathifa, conhecendo seu poder já de longa data, preveniu-se. Como não saber que uns tais dotes capilares em algum momento chamariam atenções muito inconvidadas? Desde bem criança, a bela filha do casal embarcado foi cortando o cabelo e tecendo, cortando e tecendo, cada ano mais um bocadito; quando, aos dezesseis anos, finalmente achou de boa extensão e largura aquele pano espetacular, entregou-o aos pais para que o usassem nos prodígios que fossem necessários, caso ela (por algum contratempo que já intuía) não pudesse ajudá-los naquilo de que precisassem. Pois pronto, logo depois se deu o sequestro. Amigos da família descobriram o cativeiro de Nathifa, porém não se atreviam a chegar perto enquanto o bruto do gênio estivesse na área; vigiaram tudo em escondidice e viram quando o raptor saiu não com a jovem, mas com uma forma vaga, translúcida que ele jogou no mar, rindo como riem os vilões que acreditam ter atingido o cúmulo da vingança. Não tolos, os parças compreenderam que ali havia treta mágica – e, não tendo conseguido localizar por conta própria a transformoça, relataram tudo a Hisham e Anisah, que por sua vez são bem as cabeças de quem a filha puxou a sua; não era hora de usar o tecido bebedor de sol para ir ao resgate? era: eis que o tecido virou a vela que agora navega, navega, navega sem vento, e que é capaz de iluminar um gordo diâmetro com sua auriluz intensa (nunca uma vela fez tão completo jus ao nome), a única luz forte o bastante para mostrar as formas transparentes de Nathifa no meio de tantas, tão obscuras oceanidades.

A missão ainda não se completou, amados; quisera eu, aqui debruçada na tela e no barco, identificar um trechinho qualquer da jovem-do-cabelo-que-bebe-sol, na esperança de ver se há de bastar o encontro para quebrar o quebranto. Desconfio que sim; por direito, o amor que não se abandona volta ao estado de si mesmo, quando vem à tona.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Amar além da máscara


Faz hoje 23 anos a morte do poeta, ensaísta, diplomata mexicano Octavio Paz, um assombro com as palavras, devidamente nobelizado em vida (foi de Literatura, naturalmente, o Nobel do Paz, conferido em 1990). Lê-lo é ler lindezas seriais, como esta: "O mundo muda quando dois se olham e se reconhecem... Amar é despir-se de nomes". E esta, para salgar um bocadinho a doçura da primeira: "Mas enquanto vivemos não podemos escapar das máscaras nem dos nomes e pronomes: somos inseparáveis das nossas ficções – das nossas facções. Estamos condenados a inventar uma máscara e a descobrir, depois, que essa máscara é nosso verdadeiro rosto". Perdoem quaisquer variações escapadas, há sempre mais versões do que seria desejável, como sabem; mas é bem ilustradamente esse o teor.

O querido Paz nos abandonou no mundo muito antes de saber até que ponto denotativo chegaria a fatalidade das máscaras. Estas que portamos pff2mente, no entanto, são só as segundas, as sobremáscaras, e embora incômodas estão décadas atrasadas em relação às mencionadas pelo autor, no que se refere à contenção do livre respiro. As citadas por Paz não são, em geral, arrancadas do rosto na volta da rua ou do expediente: afivelam-se tão fundo e desde tão cedo na carne – carteiras de identidade vestidas no berço – que tirá-las não é opção. Somos quase que sempre um outro; alguém que, mesmo em criança, fala mais ou fala menos do que o coração pede, ri fora de vontade e engole o choro por vergonha implantada, aprende a ostentar coragens fake e a sufocar a sinceridade do medo, a desenvolver ou fingir indiferenças e a domar o espontâneo dos afetos. Muito dessa máscara, claro – assim como o acessório aporrinhante que a pandemia nos exige para o bem –, é absolutamente essencial ao convívio, ou o mais provável seria matarmos uns aos outros bem mais do que de praxe, tão galopantes e desembestados se mostrariam os bilhões de IDs simultâneos (OK, milhões, talvez milhares: nunca conseguiríamos ter enfiado a população atual no planeta, já que uma das metades defenestraria a outra e até a reprodução da espécie seria no mínimo duvidosa). Só que o mesmo disfarce social que torna viável a comunidade acaba, nada raramente, tornando asfixiada a individualidade, a depender da violência com que o ambiente aferrolha a máscara. Estamos melhorando, estamos melhorando; mas o caminho é ainda doloroso e longo até que os núcleos sociais aprendam a distinguir sabiamente entre o que convém domesticar para o bem comum e o que é, em todas as instâncias, pessoal e inatingível.

Aí vem Octavio Paz e lembra o que pode nos meter um raio-X para além de substantivos, adjetivos e demais rotulações mascarentas: o amor pode. Sua radiação é fina o suficiente para olhar e reconhecer, ainda que a percepção não seja sempre consciente e não signifique um apaixonamento à primeira vista, nem precise efetuar-se no primeiro encontro ou sequer ser romântica; o amor, ou o que virá a ser amor quando convenientemente enraizado, sabe com muitíssima sutileza medir o terreno, descriptografar os sinais, como o marujo com cancha para ler a quantidade de sol no vento ou a futura tormenta numa nuvenzinha. A vaidade, o sonho, o interesse, o desejo, o intento, a pretensão podem enganar-se inventando o escrito onde não há escrita, ou ignorando em benefício próprio aquela que há; o amor não, o amor original de fábrica não se engana – pelo menos da boca para dentro não se engana. Sonda, conhece, adivinha; capta belamente as dores que transbordam pelos buraquitos da máscara (1 micromililitro de dor é o bastante para sua análise pericial); identifica uma solidão com características semelhantes, uma aspiração de feitios complementares, um pavor profundo e irmão, uma inteligência gêmea que escoa para as mesmas conclusões. Não é uma ciência imitável (apesar dos esforços dos algoritmos), dá-se com eficiência e pronto: dessuperbondiza a máscara mais superbondizada e fornece automaticamente – do reconhecedor para o reconhecido – uma lufada de liberdade quase cósmica, o insubstituível oxigênio da aceitação. Aceitaçãããão de fato e de direito, com todos os tracinhos da bateria preenchidos que nem milagre.

Mas uai, o amor é isso – o milagre. A tecnologia máxima de leitura sem idioma e de identidade sem identificação (ou o contrário?). O scanner que dispensa QR code e o grito de chamamento que não olha crachá.

O amor vai aonde a verdade está.

domingo, 18 de abril de 2021

Portão aberto


Meme fofo com catioríneo feliz, orelhas ao vento, passando na minha timeline: "Viva como se alguém tivesse deixado o portão aberto". Esbarrei no mundo com poucas ilustrações e definições tão precisas da joie de vivre; é isso, existir como que em estado de encantamento perene pela mera autorização de fazê-lo, maravilhar-se com o fortuitamente normal como se trajado para uma noite de Oscar. (A falar em Oscar, quem assistiu ao desenho Soul – assistam! –, de que falei aqui recentemente, tem na alminha 22 outro molde perfeito do viver parnasiano, o viver pelo viver, o alumbramento pelo alumbramento; tanto para 22 quanto para o cãozinho corredor do meme, tudo são férias, não mais que de repente e sempre. Um talento a desenvolvermos para ontem.)

Óbvio, estamos em tempo de pandemia declarada e de fascismo explícito, há no Brasil alguns genocídios em curso – de covid, de fome, de agrotóxico, de morte pela polícia, de coração partido e outras figurinhas autocolantes do álbum do apocalipse –, ninguém anda muito exatamente no clima de saltitar pelas ruas como um doguinho no parque. Não sou tralalá da vida para esperar ou defender que o façamos. Porém não podemos tampouquinhamente desistir – nem que seja para tirar da gente nefasta o gosto de nos ver na sarjeta emocional. Qual a alternativa mais lúcida ao aniquilamento das almas de resistência, comemorado e promovido pela fascistaiada? combinarmos de não morrer (com o perdão de Conceição Evaristo pelo empréstimo), combinarmos de existir o mais incômoda e em-voz-altamente possível nas beiradas do horror, nas frestas, nas aberturas onde corre o vento, irritando ao máximo os Comensais da Morte com a nossa permanência movida a energia solar, com a nossa teimosia autossustentável. Se a infelicidade extrema tem sido largamente patrocinada por essa rede afiliada do inferno, nada mais justo do que divulgarmos herculeamente o produto da concorrência.

Como? Nos permitindo. Nos dando o direito sagrado de correr porta afora (me-ta-fo-ri-ca-men-te!) a cada vez que a gangue dos horrores vacilar em fechá-la. Não nos tolhendo em excesso com a nossa triste prudência em comemorar adiantos de vida. Tipo: o Lula voltou a ficar ELEGÍVEL, pode também voltar a ficar PRESIDENTE; vou lá ficar me dando chicotadas de pessimismo e me dizendo "evite alegria", porque eles ainda podem desenfiar da cartola alguma mutreta para tirá-lo do páreo? Eu é que não, amigues! vou me dedicar à doidura de felicidade de abarrotar o feed com posts festivos, vou deixar o coração sapatear um musical da Metro por causa da pesquisa que dá vitória ao barbudinho no segundo turno; vou, sei lá, estar esperançosa até prova em contrário, insuportavelmente. Da mesma forma, se conseguir me manter um tantão de tempo em casa, desonerando a rua e quaisquer outros ambientes de minha presença, vou celebrar como conquista: menos uma para ser vetor de vírus na comunidade. Se, vindo a sair, for com a perspectiva de voltar vacinada, vou celebrar como quando já é Natal na Leader, já é hora. Se encomendar pão francês nas próximas entregas e ele chegar estalando de fresco, vou celebrar como se tivesse recebido delivery de algum estrelado Michelin. Se não for meu horário de corrigir interminabilidades de coisas no Google Classroom, vou celebrar como se me tivessem concedido uma pulseirinha-ingresso da Disney. Aliás, se algum momento no futuro pós-pandêmico-pós-bolsonarista me conceder a graça de voltar à Disney, vou celebrar como se houvesse papado um Nobel (e a grana do Nobel) para o currículo – embora eu prefira que o deem ao Lula.

Respeitemos o mais rigorosamente as regras do quarentenamento físico; mas, queridos, nenhuns estudos indicam que a alma tem de estar quarentenada. A cada porteirinha que se abrir eu (pelo menos) pretendo me evolar em disparada no susto de felicidade, povoando sem pudor toda chance mental de jardim secreto. Razões práticas: como quem abandona a masmorra e precisa, aos poucochitos, reacostumar os olhos à luz, vou-me fisioterapiando desde logo para suportar sem abalos a surra de claridade que HÁ DE nos inundar em 2023. Dou-me a tarefa da esperança inoxidável e treino para revivê-la – que só na fé teremos conseguido revigorar e reviver a estrela.

sábado, 17 de abril de 2021

Belo belo belo


A lua está que é só um fiozinho, um pedacinho de unha. E é bela assim. A danada é bela de todas as formas, em todos os quartos: esse tiquitito de agora que parece desenho de criança, quase irreal de tão preciso no tracejado de luz; o engordar lento e pressuroso que nos faz todo dia levantar o nariz com esperanças de plenilúnio; a encarnação-rainha, cheia, íntegra, desabusada, extrema; até as situações de pálido emurchecimento, aqueles ares lânguidos de Dama das Camélias que se fina ultrarromanticamente ou de noiva que ainda não se revelou de sob o véu. A danada é bela quando em veneta de luar (quase) agressivo que adentra a cozinha, é bela quando em noites macbethianas de estranheza rosada, é beeeela quando supersized daquele jeito surreal-novelesco, é ainda bela quando mal está, mal se vê – sufocada num edredom de nuvens que a atenuam, dramática. Nosso satélite (privilegiados que somos) é a beleza mesma, a beleza em conserva, em estado de dicionário – ou de planetário; a Beleza maiúscula dos simbolistas, invariável a despeito de suas variações, constância única do que é mutável, fidelidade do que é fluido, do que é fluxo. Da lua veio nossa primeira lição de que o bonito, por atravessar fases, nem por isso se desbonita nunca.

O mar é também desses: deslumbrante em seu turquesa calmo de dia com sol, impressionante em seu cinza feroz de pós-chuva, denso e perfeito na azul-escuridão das horas geladas, soberbo no esparrame de espuma e nas mansidões de piscininha; ÍCONE. Da mesma forma as árvores, impávidas colossas em qualquer estação, com quaisquer tipos de folhagem e porte – enternecedoras como mudinhas, fascinantes como adultas, veneráveis como anciãs, estupendas se de um verde maciço, extraordinárias se róseo-vermelho-outonais, lindíssimas inteiramente nuas ou apenas folhinuas e florivestidas, lindíssimas eretas ou espalmadas, hipnóticas e líricas se cobertas de ramos chorões ou de echarpes de cipó. Não há árvore que não seja obra de arte (sacra) enraizada a céu aberto, museu vivo de harmonias múltiplas, estátua de botar Michelangelo em aviso prévio.

Mas nem só de belezumes in natura vivem os sentidos. Bibliotecas e livrarias, por exemplo, são colírias em todas as suas manifestações, desde o sebinho estendido num chão de rua até o Real Gabinete Português: livros juntos, muitos, disponíveis para o toque (e a posse eventual), com cheiro de tinta nova ou cheiro página-amarelo; livros de capa flamejantemente pensada para a sedução do comprador e livros de capa dura e ares de duque, vaidosos mesmo das próprias remasterizações de ruína. Outros belos eternos: cinemas – sublimíssimos até quando não passam dumas cadeiras e dum lençol estendido, espetaculares em suas velhas e queridas versões de rua, still grandiosos nas versões de shoppping (menos charmosas de pitoresco e mais capazes, entretanto, de projetar à altura as rocambolagens da ficção). Que a beleza, afinal, está no movimento necessário rumo ao cumpra-se, está lindamente nas metamorfoses encaradas a caminho de ser-se.

Beleza não é necessariamente o decidido e impresso. Beleza é o processo.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Ressonetos em honra ao julgamento que se ensaia (em Haia)


RESSONETO DE FELICIDADE

(Sob os bons auspícios de Vinicius)

De tudo, quero o coiso de detento
Antes; e com tal pressa o quero, e tanto
Que mesmo quando brinco, durmo ou janto
Dele se ocupa mais meu pensamento.

Quero viver pra ver o julgamento
Que lhe há de pôr no rosto o desencanto
E rir meu riso e festejar o quanto
Parecerá distante este tormento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe o aluno que hoje ainda não vive,
Quem sabe o primo que hoje ainda mama,

Eu possa lhe dizer por onde estive:
Celebrando afinal, de Brahma em Brahma,
A ruína de um mito aos pés do júri.

***
AS SOMBRAS

(Com as bênçãos de quem? quem? quem? – Raimundo Correia!)

Vai-se a primeira sombra exorcizada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
de sombras voltam aos umbrais, apenas
soa, no julgamento, a martelada...

E às ruas, nossa gente aliviada
(se vírus não houver, nem quarentenas),
exuberando de alegrias plenas,
volta toda em festança e em batucada...

Meu bem, as leis do tempo não perdoam;
os monstros, uns aos outros, se atraiçoam,
como é próprio das hordas infernais;

À luz das consequências, se revoltam...
Tolos! São nossas vozes que hoje soltam
As ordens que vocês não soltam mais!

quinta-feira, 15 de abril de 2021

De um azul inevitável

Eu bem queria gostar desse aniversariante de 178 anos, que aliás merecia toda a consideração e crédito por ser fã da escrita de George Sand e por ter abandonado o Direito para cair nos braços da literatura – duas senhoras cartas de recomendação. Tentei, juro, e nem tão pouco: li duas vezes A outra volta do parafuso, li Daisy Miller e alguns outros contos, então tudo bem, achei que podia com A taça de ouro. Não discuto seja uma obra-prima; mas quase morri, e reconheci que não, eu não gostava de Henry James, ficava no máximo entre ler com alguma indiferença e ler com desespero de tédio, por mais que admitisse sem problemas a genialidade do autor. Leiam Henry James vocês, queridos, continuem sem mim; façam-no feliz como eu não pude, já que nem todas as páginas são para todos os olhos, creio – e não é culpa de ninguém, somos apenas um match literário que não acendeu foguinho. Excellence does not require perfection, "a excelência não requer perfeição", palavras do próprio Henry: o fato de algo ou alguém não ser dotado de irretocabilidade, ou de não ser uma unanimidade de gosto (como é o caso do escritor graças à MINHA degeneração de gosto), não tira desse algo ou alguém a grandeza que lhe pertence solidamente e as homenagens que lhe são devidas; a excelência é uma realidade, a excelência se impõe, a excelência não é desmentida por quaisquer falhazinhas supostas ou reais, tanto quanto o céu não deixa de ser dum azul inevitável e muito acima de nuvens.

A frase de Henry James precisa ser balbuciada diariamente como mantra em várias línguas, precisa ser bordada como lema da bandeira a ser hasteada com – ou melhor, sem – largas solenidades nos domicílios dos perfeccionistas e ansiosos. A gente nããããão carece ficar de neura com cada milímetro abaixo da perfeição para ser excelente que chegue, excelente que é uma lindeza; a gente-revisor não pode se atormentar por causa de ponto final em itálico, a gente-professor não tem como dar conta de todos os recursos didáticos online, a gente-pintor iria enlouquecer se se cobrasse os traços dum Van Gogh (que provavelmente se cobrava os traços dum Rembrandt, que provavelmente se cobrava...), a gente-escritor surtaria em gênero-número-grau (surtar, sim, pode ser em grau) se se autodeterminasse as linhas dum Machado ou os versos dum Bilac, a gente-mãe-pai explodiria em moléculas de angústia se se exigisse a casa perfeita, a escola perfeita, a reação supernannymente perfeita, a resposta freudianamente perfeita, a alimentação sódio-calórico-vitamínico-proteico-organicamente perfeita. Fazer todo o necessário que se consegue, eis a pedrinha filosofal da excelência isenta de loucura: suprir as demandas com energia sincera, com o honesto empenho dos tão dispostos a aprender como serenos em errar; ir até o cúmulo, porém sem autoimolação mental; jogar-se com inteireza nas providências do que é urgente e, se sobrarem horas e calorias, nas urgências do próximo nível – desde que haja um stop muito claro no horizonte. Para uma excelência no viver, convém não se matar.

Compreendo totalmente que se busque a perfeição em âmbito moral, espiritual; adoraria tê-la; mas essa opera em outro registro, não é a ensandecida e inviável perfeição da matéria. São inclusive noções adversárias em algumas esquinas (ou em muitas avenidas), uma vez que aquele que vai se esmerando em sua face imaterial dificilmente considerará razoável que se gastem fortunas, por exemplo, em intervenções estéticas desnecessárias à saúde e só explicáveis pela gana do "corpo perfeito". Para a criatura que se especializa no aperfeiçoamento impalpável e independente de limitações físicas, financeiras, tecnológicas, cronológicas etc., a perfeição é uma via bem-vinda, e a excelência, uma sua estação; para quem se deseja top dos tops universais em termos de profissão, aparência e similarices bem deste mundo, entretanto, a excelência que deveria ser meta vira inimiga, e a meta mesma é depositada sobre uma miragem. Pior do que desfazer-se como miragem: o furor do objetivo irreal leva o iludido para tão longe do oásis de excelência possível, para um tão-além delirante, que frequentemente se torna impraticável retornar ao caminho seguro antes da morte pela sede.

Foco na água, queridos, e em como a distribuiremos, e no quanto é essencial partilhá-la; seja qual seja o peso, o prêmio, o traje, a cara, a conta, o título, o currículo com que venhamos a chegar até ela, só estaremos em excelentes condições se a dermos para o gasto.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Os abismos

Leiam Eça: "A curiosidade, instinto de complexidade infinita, leva por um lado a escutar às portas e por outro a descobrir a América". Se não é assim a citação – porque há variantes –, é quase assim. (De qualquer modo o querido pai do primo Basílio me desculpe, mas não creio tenha havido na "descoberta" da América esse tanto de curiosidade – pelo menos não o mesmo tanto que houve de avidez e ganância; pulsasse a curiosidade realmente, diversíssimos povos teriam sido estudados e poupados, não espoliados e destruídos. Mas enfim.) Aqui de minha parte, a ambição de curiosa incorrigível é grande e, no entanto, seletiva; provavelmente eu seria, como navegadora, uma ótima desbravadora de bibliotecas. Minha curiosidade é muito maiormente a das portas falantes, a dos motores, amores, lendas, micrologias, constâncias e desvios psicológicos, loucuras e desejos humanos, do que a da busca dos big fatos, das hard news. Gosto da História por dentro e pelas beiradas, episódica e representativa; tenho zerérrima paciência para conquistas, reinos, Sacro Império Disso, República Federativa Daquilo, e independências e secessões e o raio que as parta. Nada de muitas granduras. Quero as coisas mais verticalizadas e amiudezadas: que espécie de gente era aquela, como amava, como vivia, como punia, que rituais fazia, com que tretas se avinha; as histórias com agá minúsculo, basicamente, de preferência com inclusão das mais polpudas fofocas psiquiátricas. Nessa toada, meu mundo escorregou para ser Criminal minds, Cold case, garimpos em sebo, Investigação Discovery, programas de vestido de noiva, livros de pleno, de ultra e de pré-Romantismo – só e só as minúcias do humano, desde os olimpos do amor até os abismos d'alma; nem climas nem relevos, nem datas nem arquiteturas, nem leis nem estatísticas nem vidas oceânicas me interessam, a não ser pelo que possam conter ou gerar de lendário. Estou quaaaase Bernardo Soares: "Sobre as emoções tenho curiosidade. Sobre os fatos, quaisquer que venham a ser, não tenho curiosidade alguma".

Eu disse quaaaase; infelizmente, não posso ignorar fatos que desvendam um pouco mais de nossa estranha constituição interna, como os associados à morte do pequeno Henry, por exemplo; a cada descoberta, a cada acréscimo de detalhe sofro o efeito rebote de uma perplexidade maior, de uma sensação mais abrangente e angustiosa de: meu Deus, o que é isso, como pode ser isso. Quem tem a curiosidade da engrenagem mental (psicológica, e não biologicamente falando) inevitavelmente se espanta em topar com novidades obscuras onde pareciam existir apenas velhidades tristes. No caso, as impressões imediatas já apontavam para a horrorosa praxe do padrasto abusivo, ameaçador, violento, o que bastaria para chocar qualquer portador de miocárdio; porém o desenrolar não cessa, os depoimentos das ex do tal doutor mostram um matador de criança em formação – a escalada de agressões não deixa dúvidas de que, mais dia menos dia, o ódio voltado aos pequenos teria o desfecho de agora –, e o histórico de ações e mensagens da mãe... reticências para respirar... não é que choque mais ainda, mas me aturde de maneira diferente. Por onde, observando o que surge nos jornais todos os dias, se acaba de entender o humano? A mãe que até prova em contrário sempre fora dedicada, carinhosa, aparentemente teve logo a noção dos maus-tratos dirigidos ao filho, e no entanto tentou "administrá-los" (como se fosse possível) em vez de eliminar-lhes a fonte! Que de algum modo fosse ameaçada, aberta ou veladamente, vá: é uma hipótese plausível, embora não uma justificativa. Mas essa suposta pressão combina com o fato de a investigada fazer selfie semissorridente na delegacia? ir ao salão dar um trato em pé, mão e cabelo logo após a morte do filho único? mostrar interesse em cursos de inglês e culinária horas após o enterro? Sem me atribuir o direito de julgar o que não me cabe, compartilho pelo menos isto: a imensa frustração de olhar, olhar e continuar atônita com quantas veredas nos atravessam, quantos paradoxos nos formam. Quem dera explicar. Quem dera compreender.

Me perdoem o exercício de elucubração a respeito de circunstâncias tão hediondas; não é a curiosidade mórbida de escarafunchar o sofrimento, é a vontade analítica de abrir psiquês e flagrar como raios, afinal, a espécie funciona, e por que faz o que faz. É a vontade sincera não de tacar pedras em Monique (o que aliás seria covardia pela impossibilidade de ela vir aqui defender-se), mas sim de ter instrumentos para mapeá-la. Só um profissional que a atendesse há muito os teria. Arrisco, entretanto, uma constatação, por saber que não se trata de um apontar de dedo: nas mensagens para o pai de Henry, Monique demonstrou a intenção de inscrever o garotinho num curso de teatro, o que representaria mais uma atividade entre as diversas que ocupavam sua agenda infantil. Dias atrás, ao sabê-lo, comentei que ela talvez estivesse procurando afastar o menino do padrasto pelo máximo de tempo. Vendo sua reação, agora, de buscar novos cursos para si, pensei tristemente se não continuava reproduzindo uma espécie de mecanismo de fuga, uma tentativa inconscientemente desesperada de se afastar também. O quanto conseguisse. O quanto pudesse.

Pode ser, pode não ser; sei lá – sou terrivelmente leiga no assunto, e mera espectadora, como quase todos, dessas notícias partidoras d'alma. O que unicamente me compete é tentar extrair, do que nos chega, alguma percepção mais ampla do que realmente somos ou podemos vir a ser; tentar recolher dados do que nos torna mais ou menos letais. Não é descobrir a América, mas também em nós o navegar é preciso: tem que ser autoconhecedor quem quer fazer o mundo passar além da dor.

terça-feira, 13 de abril de 2021

Em busca


Para sobrevivermos ao atual Brasil, precisamos andar agarraditos ao teor dumas palavras de Santo Agostinho: "Nada estará perdido enquanto estivermos em busca". Este inferno de Dante que atravessamos é só isso mesmo, uma estação, um atravessadouro; é daqueles quadros borrasquentos que vemos nos museus e que parecem aterrorizantes com sua tempestade cinza – mas que, lembremos, representam apenas um flash, uma polaroid da travessia; a travessia não acaba na tempestade, acaba no porto. "Ou no naufrágio." Nem no naufrágio, já que os náufragos dificilmente se conformam em afogar-se e tendem a flutuar sobre cada pedacinho que lhes resta. Nossa missão possível, se decidirmos aceitá-la (decidimos), é nos agrupar com o máximo de náufragos irmãos e sobre o máximo de pedacinhos resgatados: eis que, rebeldes e desobedientes ao que se quer impor como "destino", faremos nossa própria ilha de madeiras amarradas, nosso próprio continente de braços unidos, nosso país alternativo que não se dobra. Que não soçobra.

Nada, nada está perdido enquanto há gente insistindo: MSTs produzindo e colhendo, MTSTs cozinha-solidarizando-se, Teresas Cristinas fazendo lives de puro amor, Gilbertos Gis cantando "Volare" com a neta, deputados e senadores lutando por CPI e impeachment, voluntários doando sangue e alimento, profissionais da saúde levando vacina em barquinhos até os pacientes, cientistas prosseguindo com experiências, universitários realizando pesquisas, ambientalistas se recusando a desistir de preservações. Pessoas continuam gerando filhos, filmes, livros, continuam se apaixonando e se casando, continuam descobrindo talentos, montando álbuns, compondo músicas, debatendo questões, lendo para cegos, aprendendo LIBRAS, ensinando a cozinhar. Nada está normal – mas perdido também não está; nem pandemias nem fascismos são eternos, nem vírus nem fascistas resistem a tudo; nossa terra já aí estava muito antes e permanecerá por muito tempo depois. Eles passarão; nós passarinho.

Nós, a maioria, estamos em busca, não estamos quietos, embora talvez pareçamos. É apenas a necessidade de isolamento imposta pelos protocolos covídicos que nos afasta das ruas, ou do contrário seguiríamos por aí às hordas, indóceis de protesto. O que não fazemos nas ruas fazemos em família, nas lives, nas redes, nas janelas – insuficientemente, eu sei, porém o suficiente para assinalar a teimosia da busca, para não deixar dúvida de que estamos na área, atentos, tubarônicos, rondando as possibilidades e aguardando as brechas. Se procuramos brechas, se encontramos focos de luz entre as ruínas, é que a perda não se tornou nem se tornará efetiva: perdas se efetivam somente quando o lado vitimado cessa de querer e existir. Alguém aí nessa vibe? não mesmíssimo. Assim como o José de Drummond, a gente não morre, a gente é duro (em nossa versão coletiva, ao menos), a gente marcha ainda que sem o para-onde. Nosso para-onde somos, mutuamente, os uns e os outros.

Nada está perdido enquanto não nos perdermos de nós – os recíprocos faróis.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Quais erros


Definiu extraordinariamente Scott Adams, cartunista norte-americano que deu à luz os hilários quadrinhos do personagem Dilbert: "Criatividade é permitir a si mesmo cometer erros. Arte é saber quais erros manter".

Não é? a estupidez do mau senso comum precisa largar dessa história de que arte é bagunça, ou de que qualquer bagunça estética que se cuspa numa superfície pode ser arte. Esclareço que NÃO estou julgando nem criticando obras que tenham sido selecionadas para exposições e que, por suas características inusitadas demais para o gosto médio, geram ou geraram aqueles velhos comentários entre risos: "Mas rapaz, isso daí eu também faço"; "Minha filha de três anos desenhou um troço bem parecido ontem". Estou, muito opostamente, criticando os pseudoartistas e os pais de supostos Picassos de três anos que se dão ao desfrute de fazer esses comentários. How dare you? te enxerga, meu consagrado; a peça ali exibida não nasceu duma topada que um transeunte deu na rua, foi pensada, deliberada, imbuída de um propósito, de uma proposta. O autor ou autora selecionou e misturou cores, recolheu e mixou materiais, lixou, colou, cortou, esculpiu, mediu, filmou, inventou uma técnica, decidiu uma irreverência, deixou para o título 90% do impacto da coisa, não importa: produziu algo com uma visão, uma mensagem e/ou o broto de um debate em mente – produziu algo que você, especialista de WhatsApp, crítico de churrasco, ovo-colombamente faria, mas não fez. Não foi você que meteu um mictório na exposição sem ser para uma reforma nos banheiros do espaço. Não foi você que reproduziu uma série de retratos da Marilyn com colorações distintas. Não foi você que pintou formas retangulares de cores primárias. Então baixe docemente a bolinha, ó protoColombo da arte moderna/contemporânea, e preste atenção aos erros e acertos que os verdadeiros fazedores resolveram manter.

Tem embuste entre os artistas? Tem embuste em todo lugar; presume-se, no entanto, que o acervo de galerias, museus e instituições afins passe por curadorias que não selecionam obras de orelhada, que seguem critérios técnicos, estilísticos, lá quais forem. "Tá, mas e quando são vendidas por um preço absurdão pinturas que na verdade foram feitas por criancinhas e elefantes?" Pode acontecer, e quando acontece o mais usual é que se saiba perfeitamente que tais e tais telas foram pintadas com a tromba; também se agrega valor com o pitoresco. Quanto a miniMonets, bem, não duvido de que aconteçam mistificações da parte de pais que desejam "provar" que aqueles rabiscos qualquer um faria, porém nada impede que haja rabiscos infantis dotados de inconsciente potencial artístico; crianças são pequenos humanos, afinal, e seu estágio de liberdade criativa assemelha-se muito àquele buscado por boa parte dos mestres adultos – o próprio Picasso afirmou que "todas as crianças nascem artistas, mas a dificuldade está em continuar a sê-lo quando crescem". Continuar a sê-lo implica desenvolver o discernimento sem perder a pureza de selva dos primeiros impulsos criadores, sem desonrar o material colhido na bruta mina: pacotão explosivo do arranque com a lucidez, do rompante que se entrega com o entendimento que se pensa.

Arte não é só fazer, é fazer de propósito – abraçar com diligente lealdade o chamado erro, inclusive. O não artista dança valsa quando ele e todo mundo ouvem valsa; o pseudoartista acha superconceito dançar samba de gafieira quando ele e todo mundo ouvem valsa; o artista cria uma cabine onde ele ouve e dança valsa enquanto todos os demais, descabinados, ouvem e dançam samba de gafieira. É erro? sim – fora da cabine.

A arte é construí-la.