domingo, 31 de janeiro de 2021

O verão no Rio é


Uma colônia de férias no Vesúvio. Um show de heavy metal no centro duma supernova. Uma piscina olímpica de chocolate em borbulhas. Uma quitinete nas caldeiras do Titanic. Uma festa januária com 8.695.428 fogueiras. Um cenário que bota Mad Max parecendo o Alasca.

Um cruzeiro de vinte dias por Mordor. Uma reportagem de campo sobre a explosão de Krypton. Uma visita guiada ao núcleo da Terra. Uma colherada de sopa subatômica cozinhada por íons de chumbo. Uma aula de lambaeróbica no Saara. Uma coreografia do Stomp no estômago dum dragão.

Um chazinho com gengibre às bordas do Kilauea. Um ofurô de 24 horas em Timbuktu. Um edredom sobre um motor de ônibus ao meio-dia – na Avenida Brasil. Uma lareira no refeitório do Hades. Uma final de Libertadores em estádio de lava líquida. Um trampo com maçarico na tardinha de Dubai.

Uma degustação de pimentas em Mustafar. Um drinque de magma com especiarias em Vênus. Um piquenique na Gruta dos Cristais de Naica. Uma navegadinha no quinto círculo do Inferno de Dante. Uma corrida de revezamento numa metalúrgica. Uma excursão de torcida organizada ao exoplaneta Kepler.

Um beijo de amor em adamantium fundido (eu disse funnnnndido). Uma velejada no lago ácido da Etiópia. Uma pool party num gêiser da Islândia. Uma pole dance na chaminé do apocalipse. Um camarote VIP para o incêndio de Roma. Um churrasco na laje do Sauron. Uma rodada de chimarrão em Júpiter.

Um tchibum na meiuca da Nebulosa Roseta. Uma hidromassagem no coração do Etna. Um expediente perpétuo de soprador de vidro. Um visto de residência permanente na sauna do fim do mundo. Uma valsa eterna num palco em chamas. Um acampamento no eixo da combustão.

Um banhinho de imersão em caldo verde fumegante. Uma casa de praia numa gigante azul de Órion. Uma hospedagem no miolo da fusão nuclear. Uma sessão de crossfit no Kalahari. Um estábulo de 18 mil mulas sem cabeça. Uma febre cáustica sem pausa, sem folga, sem hora.

Várias brasas, mora.

sábado, 30 de janeiro de 2021

Nós que aqui estamos

Um dos aniversariantes de hoje, o escritor inglês Walter Savage Landor, declarou agudamente: "Não devemos ceder a visões desfavoráveis da humanidade, pois, fazendo isso, levamos os homens maus a acreditar que eles não são piores que os outros, e ensinamos aos bons que eles são bons em vão". Devo concordar com Landor e seus 246 aninhos de pura sabedoria. Não temos, por princípio, o direito de apertar o botão que apertamos por preguiça – o tal botãozito de rotulação automática das gentes, nos piores moldes dum Google Tradutor; afinal, como resumiu o autor mui didaticamente, cair na tentação da metralhadora de amarguras nivela a normalidade humana muito, muuuuito por baixo, e acaba validando exatamente o que pretendemos combater. Típico encaminhamento de profecia autorrealizadora: cravando que a humanidade inteira é uma bosta e virá por isso a destruir-se, eximimo-nos covardemente do compromisso de impedir a destruição (já avisamos, não avisamos?) e reforçamos as condições ideais para essa mesma destruição, que só pode ser evitada caso uma quantidade bem razoável de criaturas creia poder evitá-la – caso uma quantidade beeeem razoável de criaturas não se enxergue nem corrompida demais para executar algo que preste, nem otária demais por tentá-lo. Apesar de toda a perplexidade, de toda a tristeza, de toda a exaustão, não podemos ter a AUDÁCIA de condenar nossa espécie à morte. Sobretudo de antevéspera.

Mais ou menos como em família: questões delicadas são resolvidas no âmbito privado, o apoio é manifestado no público (certo, a Nasa não nos tem dado esperanças de conseguir sair do privado quando a família equivale à totalidade do planeta – mas para melhor efeito psicológico vamos fingir que é o contrário, que é tudo público, que é portanto rude e desleal envenenar quem quer que encontremos pela frente a respeito de nosso clã). Direitinho como em família, há membros que eventualmente passam do point of no return, e há laços que por esse motivo precisam ser cortados, convívios que não mais podem se manter após se terem derivado em violência(s). Casos assim não são os principais componentes de núcleos familiares, entretanto; a maior parte das relações não se constitui de abuso, ameaça de morte, terrorismo e barbaridades afins. A maior parte das relações, em todos os níveis, constitui-se de contatos mais ou menos harmônicos que às vezes se esgarçam, tentativas de acerto misturadas com alguns vacilos, entendimentos-padrão polvilhados de desentendimentos momentâneos: nada a desesperar, nada a desiludir, nada que não tenha jeito. Não é justo etiquetarmos a família como entidade cronicamente inviável devido a situações escabrosas que são o desvio, tanto quanto não é justo darmos a raça humana por perdida com base em exemplos que, longe de a representarem, a renegam.

Sim, maldades e bizarrices se destacam no noticiário, causam fúria e furor, fazem furdunço – porém não são presidentas ou embaixadoras de nossa natureza. Na porção maior do tempo e das estatísticas, a humanidade não mata, não estupra, não rouba; muito ao inverso: acorda antes do galo para sustentar honrosamente os filhos, pesquisa a vacina da covid, pesquisa preços no mercado, lê um capítulo do livro no metrô, recolhe doações, compõe o hit do verão, canta com o caçula os hits do Mundo Bita, bate um bolo, bate uma bola, merenda na escola, liga no aniversário da tia, lava todo o acumulado na pia, malabariza no sinal fechado, malabariza no orçamento, vê um episódio da série logo antes de dormir (para acordar com o galo), compara amaciantes, compara shampoos, come, reza, ama. Na porção ridiculamente maior do tempo, a humanidade somos bem nós – euzinha que lhes escrevo, vocezinhos que me leem –, nós os inofensivos, os indignados, os bem-intencionados, os avassalados pelo horror que tão mais nos assusta quanto mais nos é estranho. Nós que vivemos e fazemos viver, nós regra assombrada pelas exceções, nós sinopse original atacada por um ou outro enredo secundário.

Revogam-se difamações em contrário.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Slipcast

Naquele Dicionário de tristezas obscuras de que já falei há meses e que às vezes revisito, para um ou outro gole de percepção poética, deparei interessantíssima a definição de slipcast (tento mais ou menos traduzi-la aqui de seu original em inglês): "a expressão-padrão para a qual nosso rosto automaticamente volta quando ocioso – divertida, melancólica, zangada –, o que ocorre porque uma forte emoção fica enterrada e esquecida na lavanderia psicológica do dia a dia, levando-nos a vestir um tom não intencional de rosa ou azul ou cinza, ou, em raros casos, um tie-dye de pura loucura". Nem preciso declarar solenemente o quanto adorei esse conceito do sentimentozinho que, embora inapercebido pela consciência no meio da "lavanderia psicológica", tem força e tinta suficiente para ser o alfa de todos os outros, para marcar território em cada pecinha de rotina que estamos batendo na máquina. Sem que propriamente escolhamos, vira nossa cara-default (defô, prefiro), nosso cartão de visitas emocional, com a diferença de ser cartão que estendemos ao não estendê-lo: o superego dormisca, a distração assume o leme e é essa vontade sonâmbula, mas sincera, que pinta à nossa revelia a capa do portfólio.

Podemos não lembrar nunca, nunquíssima o fora que levamos do Ataulfinho ou da Leovegildinha na quinta série, e ainda assim carregarmos eterno um ar de ferida que dói e não se sente, um quê de pássaro abatido em voo: na época bateu hemorragia, fratura imposta, cicatrizou depois – porém a asa não voltou a mesma; perdeu o desmedo, perdeu algo da envergadura. Podemos não passar horas da adultez escarafunchando nossas memórias de férias com os primos, ou de caça aos ovos de Páscoa, ou de correrias na praça com o primeiro pet, e termos enraizado no subsolo do olho o sopro das infâncias, um feitio moleque definitivo. Podemos não sintonizar as sinapses de propósito nas últimas notícias sobre Manaus, nos últimos casos escabrosos do Investigação Discovery, e apesar disso atravessarmos o tempo seguinte com um desalento, um descaimento, um desconsolo estampados em nosso outdoor involuntário. Podemos não ser de cotidiano agressivo, não deitar em nenhum divã cuspindo vespas a respeito de velhos abandonos, não levantar a voz por gosto nem hábito, e mesmo em desacordo com os prognósticos exibir, em stand-by, a raiva latente contra a coleção de burrices humanas. A coisa emana, a coisa nos escapa: pertence totalmente ao trecho de cérebro honesticida, de quase impossível vigilância e refratário a ordens diretas.

Quem espelhamos no por-fora tende a ser (no mínimo) alguns segundos mais ligeiro que o rosto vestido para fins sociais. É a mais genuína e mais selvagem roupa de andar em casa do por-dentro; ainda que a presença de alguém nos obrigue a trajar deliberadamente uma cara mais amável, mais atenta, mais alegre – de modo geral melhorzinha, prestável ao menos para ir ao mercado –, um tanto de nossa slipcast sempre slips, sempre escorrega em qualquer microinstante de desatenção e repouso. Nossa essência, basicamente, transborda feroz como a manga do pijama que foge do casaco, e os profilers agradecem, por sinal; não deixa de ser lindo e fascinante que nosso corpo seja incapaz de mentir todo o tempo, que nosso descanso de tela emocional se traia independentemente dos esforços em contrário, que nosso fundamento biológico se prove incorruptível a despeito de nossa corrupção, que enfim sejamos narradores transparentes para quem quer que esteja ouvindo. REALMENTE ouvindo.

No final dos contos, somos verdades ambulantes – ou mentirosos por esporte que vieram com o próprio antídoto de fábrica.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Agora eu fiquei doce


OK, a notícia já é velha pela eternidade de dois dias, mas continua sendo intrigantíssimo como o "governo" foi capaz de gastar 15 milhões de taoqueis em leite condensado (vou nem entrar no mérito do chiclete, batata frita e demais itens altamente nutritivos). Algumas hipóteses a serem consideradas:

O Brasil anda fazendo brigadeiro para fora – afinal, tá fácil pra ninguém.

O coiso-em-chefe (segundo fontes do Sensacionalista) garrou de se consolar, até o cúmulo diabético, do rompimento com o ex-coiso-em-chefe americano.

O exército brasileiro (segundo fontes mêmicas) finalmente pensou fora da latinha e resolveu apostar na pintura leite-condensada de meio-fio.

A importação das vacinas anticovídicas está, na realidade, muito mais avançada do que podemos supor; há meses ocorre um tráfico alucicrazy de doses ocultas em inocentes pudins – e, assim que chegarem os 100%tões necessários para a população to-di-nha, a Grande Surpresa será revelada. 

O exercício de homeschooling de uma das netas do coiso envolvia uma comparação de volume entre milhares de embalagens de Leite Moça e, sei lá, talvez um triplex. Vovô só quis dar uma ajudita.

Leite condensado uma pitomba: trata-se do fluido incubador duma espécie nazigaláctica cuja especialidade é atrasar o desenvolvimento dos planetas concorrentes. Logo que a gestação nas latinhas se completa, eclodem espécimes fãs da CBF que se comunicam por meio dum número limitado de sintagmas, tais como "Mito!", "E o PT?" e "Nada contra, desde que não façam na minha frente".

Após descobrir (numa curiosidade de folhinha ou almanaque) que a ambrosia era considerada o alimento dos deuses do Olimpo, o criaturo megalomanizou de vez e declarou que ela passaria a ser a merenda oficial de seu clã.

Na verdade, foi tudo uma tática de embebedamento dos componentes do "governo" com aqueles coquetéis superdocinhos que batem logo – porque ninguém, em sã consciência, continuaria a passar vexame no seu cargo, não fosse a ameaça de viralização dum certo vídeo que inclui um globo espelhado, duas bromélias, a máscara do Darth Vader e o tema de The full monty na festa da firma. 

A utilização se deu realmente numa festa da firma, porém não nos copos.

Toda a leitarada condensada tinha como destino o recheio dum bolo-surpresa de despedida pro mozão, com o tamanho exato dos Estados Unidos e a inscrição cercada de estrelinhas: "You will always be my president". 

Enfim: estou aberta a ideias igualmente plausíveis. Quem adivinhar (para além de qualquer dúvida razoável) ganha um doce.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Proposta de intervenção

É como dizia há alguns dias uma conhecida de Face: redações de ENEM acabam se convertendo, apesar dos temas invariavelmente relevantes, em enfadonhinhas receitas de bolo. Antes o fossem, aliás, porque quase ninguém se opõe a que nasçam bolos à farta, mesmo dos mais simplildos (particularmente prefiro dessas exatas massas neutras, os bolos de bolo que a gente come 5.987.993 vezes sem enjoar nada, só mastigando uma delicadeza com gotas de baunilha); em contrapartida, uma balofa maioria certamente não deseja ler 5.987.993 textos com andaimes iguais, fachadas semelhantes, miolo saborizado com a mesma bat-essência, legos da estrutura dispostos da mesma batforma. Quem dá ou recebe aulas referentes à montagem da dissertação enêmica conhece bem o step by step do negócio – as funções que a introdução PRECISA cumprir, os conectivos sacrossantos que PRECISAM inaugurar parágrafos, a proposta de intervenção que PRECISA ser apresentada para combater a problemática-mor do tema. Varia praticamente nadíssima, e é tal qual minha conhecida observou: inclusive as propostas de intervenção, que em tese demonstram um engajamento pessoal e intransferível do candidato com o que há a ser resolvido, não saem nunca de um padrãozinho mil e mais mil e mais mil vezes reiterado. Campanhas na mídia, introdução de disciplinas nas escolas, projetos de lei (estou aqui parafraseando aos trancos, e de incerta memória, a postagem lida) – sempre essa ladainha dos estudantes, que obviamente fazem o correto e não têm qualquer obrigação profissional de ir muito além por estradas em que são leigos. Como exigir que, em tão pouco tempo de produção textual e biográfica, se aprofundem horrores? Não; redigem o trivial bem redigido, não piram e passam.

Entendo completamente a importância de se avaliar uma criatura pela mínima capacidade de enfileirar ideias, dar liga em argumentos, provar que distingue um portanto de um entretanto e que sabe manejar os todavias e outrossins; entendo que se demande do aluno uma razoável proficiência em sustentar o pensamento sem contradições e desvios bizarros. Entendo, igualmente, que se consiga chegar a uma correção bem mais técnica e objetiva dentro dos moldes da dissertação do que se poderia pretender se o enunciado pedisse um poema, uma descrição, um conto, uma crônica – nem teria cabimento requerer habilidades artísticas de candidatos tão diversos, muitos decididamente voltados para as matérias exatas. Não discuto nada disso. Mas não posso deixar de concordar com a autora do post quando lamenta a nhenhenhice formulaica em que a redação "oficial" acabou se enfiando, com tão estreitinhas frestas (e ainda mais estreitíssimas festas) de respiração, com tão poucas aberturas para que voe quem é de voo, para que se colem os parágrafos com outros métodos menos explícitos e still eficientes, para que se opte por uma abordagem mais literária, para que se prefira atravessar todas as linhas refletindo sobre alternativas em vez de dedicar a maior parte delas a dizer o que a folha de prova já diz. É viável para a banca examinadora? ignoro, e estou autorizada a declará-lo com a liberdade feliz que os alunos não têm de ignorar nadica, eles, os solucionadores do mundo. Acredito, porém, que valeria a pena botar empenho sincero em rever o grande Bhaskara de gesso que o texto mais temido do ano se tornou.

É aquela coisa, a gente não quer só comida; a gente não quer, na universidade, só o pessoal que obedientemente exibe sua eficácia, seu talento de encaixotar na previsibilidade o imprevisível. A gente quer – e está precisando ULTRA de – uma galera com sensibilidade de enxergar o impensado, com criatividade de bolar um planeta que deveria ser ou ter sido, com empatia de se jogar no projeto a ponto de vir com surtadas comoventes: a criação duma moeda sob outros critérios, o desenvolvimento duma língua específica, o envio de uma carta coletiva para o líder da nação (estou pensando, claro, em totais hipóteses, já que não temos líder no momento), o investimento pesado nos estudos do teletransporte. A gente quer gerações menos guiadas, menos treinadas, mais poéticas, mais filosóficas, mais subversivas, mais humanísticas, menos capitalísticas, com repertórios fresh vestidos de amarelo, rosa, turquesa.

Já temos milhões de correntes; precisamos de mais forças contra a correnteza.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Só por hoje


À procura de imagens outras, esbarrei e ri com essa aí de cima: "Make today tolerable" ("Faça [o] hoje tolerável"). Ri a princípio, diga-se – porque é impossível não achar graça do contraste desse "coach realista", ao estilo Dona Anésia, com as mensagens fofinhas-cintilantes-gratiluz de otimismo histérico que andam pela rede –, porém reconheci em seguida que a coisa não é necessariamente cômica, é até bastante sisuda e filosófica; trata-se de um convite à vivência consciente de suas limitações e momentaneamente livre do peso de ser perfeita, afinal. Não é, óbvio, uma rejeição à felicidade ou à perfeição, e sim um elogio ao distensionar da rotina, ao encarar do dia como um job – não como um contrato vitalício de sucesso e bom humor. Grupos de apoio do tipo Alcoólicos/ Narcóticos Anônimos já trabalham há tempos com essa felizofia do êxito em gotas, o só por hoje: só por hoje não bebo, não me drogo, não me desespero, não cedo a meus monstros (e, se ceder, amanhã começo um só por hoje novinho). Só por hoje não me obrigo a alegrias delirantes. Só por hoje me concedo a suficiência dumas vitórias miúdas.

Acredito que, em termos psicológicos, seja de fato muito mais reconfortante agendar-se um pacote tolerável de 24 horas do que um efetivamente bom, DESDE QUE não venha instalado traiçoeiramente o aplicativo É Só Isto Mesmo Que Eu Mereço. Merecemos mundos, merecemos tudos; não fomos de modo algum – ninguéns – programados para o meramente razoável, para o contentamento perpétuo com o qualquer, com o meia-boca. A espécie evoluiria necas se o fôssemos. Não é todo dia, entretanto, que aurorecemos com espírito de escola de samba defendendo o estandarte na Sapucaí, não é todo dia que nos estreamos com alma de quem achou brinquedo novo sob a árvore de Natal; volta e meia, pulso e pálpebras já amanhecem exaustos, o cansaço nubla todas as janelas e só perdoa transparente a da sobrevivência – precisamente a situação em que se mostram mais sufocantes os estímulos, as exigências da autoajuda barata. Enviar ou receber bons-dias fosforescentes, mantralizar querer-poder-conseguir, forçar-se à urgência de estar radiante porque a data é de aniversário são apenas fatores de maior irritação, de consequente desânimo. Nada mais deprimente do que meta olímpica quando o coração acordou de muletas, nada mais chamante à desistência compulsória do que a bandeirada inatingível; há ocasiões expressamente desenhadas para a subsistência, para a manutenção das funções vitais, não para a cura. Menos ainda para a pós-cura.

E então é caso de se autorizar break e fazer ser tolerável. Até o fim do expediente são umas breves horinhas, participar de social não é obrigatório, o profile pode ficar bem low, bem light, somente o nariz para fora d'água. Até o fim da festa (pós-pandemia) não dói tanto concordar com a cabeça, manter o sorriso discreto, ocupar a boca com uns mastigas e bebes, ir tomar um ar ou renovar a maquiagem a qualquer nuvem de treta. Até o fim da reunião, ninguém há de morrer ou matar certamente; fale-se o mínimo protocolar, anote-se o principal, resolva-se algum joguinho mental de números ou letras se estiver demasiado prolixo e voilà, missão cumprida. Até o fim do percurso, do encontro, da aula, da audiência, da sessão, da consulta, é normalmente possível administrar a precariedade, aceitando-a – há livros e celulares para enganar o tempo, lembranças e projetos para adoçar o momentâneo, exercícios de respiração para oxigenar as forças, canções internas para relaxar os minutos, releituras íntimas do visto e vivido para azeitar os próximos episódios. Há meios de garantir a permanência mínima, a existência recuperante em descanso de tela, enquanto a Grande Sombra não se afasta.

Por hoje, basta.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Vocabulargh


Uma amiga de Face declarou/ sondou: "'Friaca' e 'praiana' são duas das palavras que mais detesto no léxico pt-br. Quais as suas?". (Importante esclarecer que a praiana em questão não é desagradável como adjetivo, seu estado natural, e sim como o substantivo que alguns cariocas irritantemente adotam: "Vou pegar uma praiana". Aliás, boa parte da desgraceira aqui descrita está sendo descrita sob nossa oticarioca.) Pessoal contribuiu com a pesquisa e foi despejando, no post, termos com alto índice de odiabilidade segundo as opiniões presentes, como bandalha, gentalha, chupeta, rabicó, cônjuge, bucho, colega, sextou, gratidão – no que devo concordar, porque RANÇO define esse xarope e o embrulha junto com todas as variantes –, resenha, gatilho, breja, top, show. Alguns, é verdade, nem são abomináveis pela forma, mas nauseentos por inexplicáveis ampliações de conteúdo e/ou por insistência no clichê até o vômito. Em qual esquina viramos errado para "resenha" ter escorregado do acadêmico para a socialzinha? Quem ainda aguenta "gatilho" como detonador de QUALQUER coisa, em QUALQUER texto (a esta altura, já rebaixado de metonímia para o rés do chão da catacrese)? Aff, viu.

Também deixei no post minha modesta contribuição de verbetes antipáticos. Filhota, por exemplo, eu odeio desde que Cabral (o Pedro, não o Sérgio) aportou nestas terras; sei que é supostamente carinhoso, mas still. Sempre me pareceu um significante grosseiro, abrutalhado, sem delicadeza, mui diferentemente de filha e filhinha. Outro de minha série "abomino esse troço hediondo porque sim" é predileto – argh! –, que só em situações de autêntico desespero eu empregaria no lugar de preferido ou favorito; não consigo NÃO considerar o termo cafona feito piano de cauda branco, cascata de camarão, roupinha de crochê para vaso sanitário (nada contra predileção, porém; até gosto). O mesmo cafonadar grita diante de casório, que não sou capaz de enxergar como casamento a não ser numa boa festa junina, entre os devidos anarriês.

Cheguei a citar somente essas três aberrações na postagem da amiga, mas completo aqui o raciocínio – surfando no clima casamenteiro, inclusive: boda, gente (assim mesmo no singular), é inviável. Boda não dá. Não vejo problema quando está adequadamente pluralizada, no sentido de aniversário de matrimônio; com o uso que uma Caras da vida faz da palavra, no entanto ("A boda luxuosa de Ostrogôncio Ourides Vilela e Rodoarda Savoia Galaretto"), o coração descompassa de breguite aguda. Esposo, especificamente nessa versão masculina, está para mim na mesmíssima prateleira do intolerável, em que ponho igualmente os enervantes paizão, carrão, barrigão, corpão, corpaço, assíduos em chamadas de site e revista ("Atanagilda exibe o corpão em Trancoso"; "À espera de Valentina Augusta, Eteoclísia Marinho mostra o barrigão de sete meses"; "Hermengardo Cristiano assume o lado paizão"). Além do campo coluna-social-clichê-cafônico, odeio com força toda a seara escatológica da língua: meleca, fedorento, catarro, gosma, chorume e demais porqueiras. Fora, claro, quase todo o vocabulário coach-empresarial, pleno de ridiculices como mindset, case, mentoring, agregar valor, colaborador – que na realidade, em bom português não eufemístico, é funcionário –, sinergia, meritocracia, proatividade. Simplesmente NÃO AGUENTO por mais de 7 segundos o papinho-aranha de quem vive de convencer empregado a verter sangue pelo lucro do patrão.

Me dá gatilho.

domingo, 24 de janeiro de 2021

Trama fantasma


A certa altura do filme de terror O que ficou para trás (His house, Reino Unido, 2020), exibido na Netflix, a co-protagonista Rial pergunta ao marido Bol se ele acha que ela pode ter medo de fantasmas, depois de ter visto tudo que as pessoas (vivas, naturalmente) são capazes de fazer. Bol e Rial Majur são refugiados sul-sudaneses na Inglaterra; em seu país natal, duas facções estão chacinando loucamente uma à outra, e eles só escaparam do horror ao conseguir, fazendo tudo que julgaram necessário, enfiar-se num barco lotado junto com a pequena Nyagak – que, infelizmente, acabou morrendo na travessia rumo à terra da rainha. Do governo de seu país adotivo, o casal recebe um imóvel esculhambado, mas de grande potencial e tamanho, no qual deve bonita e obedientemente se estabelecer cumprindo toooodas as regrinhas, senão não tem oficialização de residência. Logo de cara, no entanto, a casa se mostra muito mais habitada do que é conveniente para um endereço atribuído apenas a duas pessoas. A casa?...

Sim, há fantasmas, o que é uma obviedade e não spoiler – a classificação do longa como terror/ suspense não deixa margens para que se comece a sessão acreditando embarcar num simples drama sociofamiliar, e ainda que o espectador seja notavelmente distraído há de ser sacudido bem cedo: o filme dura pouco mais de hora e meia, não cabem compridas preliminares. A existência de fantasmas é, pois, parte da sinopse. O que se distingue fundamentalmente do grosso das obras do gênero é (digamos, agora com um tantinho de spoilerice) o paradeiro do elemento assombrador, e a maneira como cada um dos corajosos protagonistas se relaciona com esse elemento – maneira que, aliás, mimetiza os respectivos comportamentos diante da (quase) nova nacionalidade e da nova cultura: Bol se considera em his house, procura adotar ao máximo a língua e os hábitos ingleses, enquanto Rial permanece mais leal e dócil à influência do que ficou para trás, embora com extrema força interior e sem desespero. Para ele, os fantasmas consistem em retornos, em coisas que (na sua visão) não devem mais ser evocadas, em ameaças de perder o pouco que foi obtido na Inglaterra; os tormentos de Bol precisam "invadi-lo" – com pesadelos, aparições, visitas –, uma vez que ele é a metade menos voluntariamente introspectiva e mais ligada ao mundo exterior. Para ela os fantasmas estão todos dentro, são todos mil vezes acalentados e íntimos, são dores marcadas na memória e nas cicatrizes, e qualquer nova dor é fichinha perto daquelas ainda sangrantes e paralisantes. Com Rial, portanto, os espectros não são invasivos – são convidativos; sob certo aspecto fazem parte da família, de sua agridoce família de aflições, e podem inclusive se tornar interlocutores em plena mesa da sala. 

Como costuma ocorrer em vidas compostas de trauma e ruptura, a desfantasmização do casal Majur vai requerer o alcance de algum equilíbrio entre ambos; não convém, literalmente, atirar-se nem tanto ao mar – o que foi feito e sofrido pela, na e devido à travessia precisa parar de tentar engolir os motivos de fazê-la; um passado de horror não deve afogar um futuro –, nem tanto à terra – o país de adoção, por mais "pacífico" que seja, não tem todas as respostas nem elimina as marcas deixadas até então. É necessário aos dois companheiros ressignificar sua realidade atual, da mesma forma que o andamento do filme nos faz ressignificar pelo menos dois momentos de interação entre eles: quando Bol diz à esposa que ali poderão começar uma família, ao que ela responde com um olhar de surpresa e censura, e quando Rial acusa o marido de ter esquecido a filha bem depressa, ao que ele, por sua vez, reage com uma angústia quase agressiva. O nó maior só se desata no nós; apenas no ubuntu, no trabalho em equipe, na aceitação das correspondentes cotas de sacrifício, se encontra alguma espécie de apaziguamento, alguma chance de as assombrações desprecisarem se esconder nas paredes. Alguma chance de os buracos da história se fecharem.

No fim das contas, é a "herança" deixada por Nyagak para os Majur, da geração mais nova para a mais velha, que melhor metonimiza o teor do longa de Remi Weekes. Na bonequinha surrada (significativamente loura de olhos azuis, e não negra como sua dona, o que comenta com sutileza um passado e um presente coloniais), mora o símbolo de nossos fantasmas portáteis – que são móveis, porém inadequados para um transporte ininterrupto. A não ser, claro, que andemos somente com a porção deles mais leve, mais resistente ao fogo e mais à prova de qualquer destruição.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Fora da caixinha


Estava lendo há pouco sobre trabalhos insólitos/ divertidos/ bizarros que não acreditamos existir, mas que não só existem como – por sua pegada exageradamente específica – costumam render salários até balofinhos. A função de faxineiro de rodovia, por exemplo: nos EUA, camarada ganha polpudo para limpar estradas após acidentes com animais (situação infelizmente comum em excesso no país), com a condição, porém, de estar disponível para jobs em qualquer horário, por motivos evidentes. Outro emprego próspero nas terras do Tio Sam: provador de comida canina, criatura incumbida de averiguar se gosto e consistência das rações e petiscos para doguinhos estão adequados aos clientes (mas não, não precisa engolir, pode fazer o sommelier). Outro: ACONCHEGADOR PROFISSIONAL – juro; leia a matéria linkada, se duvida –, zeloso funcionário apto a receber uns 60 dólares POR HORA para dormir de conchinha, permanecer um tempo abraçado, essas coisas. Só essas coisas mesmo, sua mente encardida, tsc, tsc; não há transa envolvida na transação. 

Entre as ocupações surreais listadas, tem também mergulhador que pesca bolinhas de golf em lagos, a fim de revendê-las; testador de toboágua (quero!!), que avalia se crianças e adultos podem brincar em segurança; escritor de biscoitos da sorte, encarregado de condensar humor, altas profundidades e autoajudas nas famigeradas mensagenzinhas; exercitador de cavalos, que põe os fofos para aquecer em treinos e pré-corridas; madrinha profissional, espécie de BFF de aluguel que não se limita a comparecer à cerimônia, também dá uma força com os preparativos. (Esta última atividade, junto com a do aconchegador que citei acima, me deixou na bad por procuração, confesso: me parece sumamente triste ter a necessidade de alugar afeto e envolvimento emocional de desconhecidos, por mais que se esteja remunerando uma função pré-estabelecida às claras, objetiva, honesta. Não julgo contratantes nem contratados, mas não posso deixar de lamentar amigamente pelos primeiros).

Toda essa diversidade e crazydade de carreiras que há me pôs cismando a respeito de outras tantas que talvez não haja, e poderia – ou deveria. Um personal desarmator de árvores de Natal, hein? olha que beleza; preciso, careço, desde já amo muito (perdoem a mentirinha retórica, na verdade tenho horror a qualquer um mexendo em qualquer coisa dentro de casa. Mas que me desgosta retirar os enfeites, desencaixar os ramos e socá-los todos na caixa onde NÃO cabem, desgosta). Também seria bem-vindona a função de cobrador de livro emprestado, ou muito mais interessantemente: de RESGATADOR de livro emprestado, afrontoso de todas as intempéries, devassador de todos os esconderijos, desbravador de todas as gavetas. Consigo alvissarar, ainda, um nicho grandão de mercado para destrinchadores de briga de vizinho; para harmonizadores de almofada díspares; para brigadores personalizados com bancos, operadoras e demais empresas calamitosas (né advogado não, é tratamento profilático); para ralhadores com catioríneos que fazem cara de São Francisco depois de tentarem demolir a casa; para agendadores particulares da programação da NET que queremos ver, mas de que sempre perdemos a reprise; para puxadores da ficha corrida de cada criatura que aparece para a vacina (xô, fura-fila das trevas!!); para assistidores – com entusiasmo convincente – das filmagens de 6 horas que fazemos das viagens ou festinhas de família; para descafonizadores de ambientes em geral, cargo que, aliás, anda fazendo falta naquele hospital breguééérrimo onde se internou Luciano Hang. O QUE é o piano de cauda BRANCO no lobby, gente?!

Ah, sim, fornecedores de temas e materiais afins para cronistas diários: há vagas. Precisa nem currículo – só trazer um brain que storms o bastante para chover recursos nesta pobre humana.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Kaukokaipuu

Para os finlandeses, essa palavrinha lindônica do título representa a vontade de estar em um local distante, ou mais especificamente: a saudade dum lugar com que se tem alguma relação de ancestralidade e que, mesmo desconhecido, gera uma estranha impressão de pertencimento, como se essa terra outra fosse na verdade a uma – a nossa. Sei do que os irmãos nórdicos estão falando, embora não me encaixe perfeitamente nos critérios: não só não tenho (for the records) nenhuma porção de umbigo enterrada na França, e sim em Portugal, como já tive duas vezes a suprema graça de visitar a pátria do minichef Remy. Ainda assim me encaixo nos critérios, encaixe é coisa que a gente providencia quando apetece e acabou-se; não sou capaz de jurar, afinal, que não abrigue nenhum DNAzito fazedor de biquinho – na Europa é tudo perto, vai lá saber onde minha árvore genealógica andou balançando os galhos em happy hour? –, e além do mais sonhava acorrer a Paris muito antes de a qualquer outro recanto do Velho Cônti, incluindo o pedacinho de chão de uns meus avós. Realmente coube à França a prioridade. Apesar de sempre ter curtido literatura portuguesa, apesar de estar sanguineamente atada, apesar de provavelmente ser elegível para um passaporte luso (na marcha que o Brasil vem engatando, posso salva-vidamente precisar), jamais senti um ora-pois-pois clamando de fato nas veias, enquanto os voilàs gritam. Bufam também, um pouquinho.

Lembro-me d'eu menininhazita apaixonada pela capa de um caderno da Turma da Mônica, em que os personagens se ambientavam franceses com muita boina, Torre, fofura e romantismo; e não por causa dessa capa, mas contando com a participação dela alimentei desde logo uma ideia rosada, sedosa, florida do país representado, criei uma conexão esquisitamente espontânea com o lugar de que nada sabia na realidade, apenas intuía que me dava match. Um tico de anos adiante, fui desenvolvendo relações de devoção com as histórias de Santa Teresinha e das aparições de Nossa Senhora das Graças – tudo, por acaso, conectado à França. Certo, minha mãe não deixou de ter alguma culpa no olhar benevolente que cresci derramando sobre o lar de Rodin e Monet (ela que lá estivera em pequena e amou o país eternamente muito), porém não teve culpa tão larga tampouco; foram mais responsáveis os nossos escritores românticos, bastante afinados com o sentimentalismo francês e dados a epígrafes e mais epígrafes na língua de Victor Hugo. Meus olhos adolescentes tentavam ler, mas não faziam curso, nunca fizeram, foi só inglês que estudaram desde cedo – o que não os impede, hoje, de achar muito mais prazer em correr sobre a língua francesa (uma nossa irmã) do que sobre a inglesa. Esta é mais utilitária e mais íntima de tantas décadas; aquela, entretanto, ecoa mais doce, ressoa mais macia no peito, quase – supremo elogio – como se fosse português.

Isso não significa que eu fale mais de duas frases em francês nem que o compreenda falado, o que exigiria finalmente um estudo em regra. Não. Mas tenho por ele o carinho de quem talvez aprendesse com alegria se o ouvisse de manhã, à tarde e à noite no mercado, na boulangerie, na TV, no cinema, algo que eu não diria hoje de idiomas outros, especialmente não latinos. Se eu moraria na França num dia futuresco, a fim de viver essa imersão e confirmar o impacto prévio de entrar em Paris como quem volta para casa? Mais oui, mes amis. Se eu pretendo pra-valermente sair do Brasil? A ser sincera, não. É, pois, bastante provável que eu transcorra os anos neste pitoresco exílio em minha própria terra natal, a que amo e pertenço sempre (sem muita praticância), tendo como fundo de tela a kaukokaipuuística intuição de que há uma casinha no Montmartre que não estou habitando. Uma fissura sensível mas pacífica entre a porção adaptada, aninhada, aclimatada e preguiçosa que nasceu brasileira e a parte perplexa, arredia e expatriada que nasceu francesa; um embate perpétuo entre a responsabilidade compulsória – ALGUÉM tem de cuidar desta Pindorama, ora pitombas, não é terra de rapina e passagem não! – e a paixão escolhida. De um lado, o estar comprometido, consciente, engajado; do outro, o mal-estar que mais do que nunca sente os pinotes duma alma inatural daqui.

C'est la vie.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Operação Big Hero


Lembro que, quando eu era criança, havia uma mescla indecisa de ansiedade com pré-alívio ao pensar na idade adulta: todas aquelas coisas que me pareciam enigmáticas e inadministráveis, OK, era natural que o fossem, eu não precisava me preocupar... muito; ao crescer, obviamente acabaria aprendendo e entendendo equações, política, imposto de renda, orçamento doméstico, remédios a serem tomados, celebrações de toda espécie e seus motivos, o mistério da distribuição de línguas no mundo (então São Paulo falava português que nem o Rio? mesmo sendo no estrangeiro??), a curiosíssima duração do carnaval que começava e não acabava mais – grandes e pequenos dramas dum cérebro excessivamente jovem e, portanto, excessivamente nebuloso. Era só aguardar ser grandão, os grandões sabiam tudo, virar grandão era a cura absoluta para toda espécie de ignorância. 

(Um parêntese para alertar papais e mamães de que nem sempre a confiança infantil numa compreensão futura é assim tão serena, já que os picuchos ainda não estão no futuro e têm várias questões presentérrimas a digerir; adultos parecem ESCOLHER se autoneuralizar e reinventar, com fadinhas e unicórnios, essa época dourada, porém sabemos bem: "despreocupação" é uma pitomba. Criança é um ser tão mais angustiado quanto menos compreende e quanto menos recursos lhe dão para compreender, por acharem que não compreenderia. Eu, sem tendência alguma para romantizar memórias da aurora, nunca esqueci o pavor com que meus 4 ou 5 anos tremeram diante daquela história do "botão da guerra nuclear", ou a neurose momentânea que os meus 7 tomaram do césio-137. Por quê? Porque a gente grande mais bem-intencionada do universo ignora o quanto os pequenos captam entre uma brincadeira e outra – o que não pode ser evitado, mas pode ser amenizado com as informações mais claríssimas. Como eu não pescasse bem a treta do césio, por exemplo, me disseram "que umas crianças tinham brincado com uma substância brilhante sem saberem que era radioativa, e ficaram doentes"; pronto, foi pior: por um tempinho peguei sofrimento de ver qualquer poeira mais ou menos brilhante, sem ter elementos para realizar que, embora no Brasil, a tragédia tinha sido longe e específica, não me faria ficar doente. Provavelmente ninguém percebeu esse breve pânico; eu, no entanto, mais de 30 anos depois me recordo dele com nitidez – e vai daí o alerta, antes de arrematar o parentesão: o fato de ser ingênua não torna a criança mais blindada, torna-a ao contrário mais vulnerável aos horrores do planeta. Prestenção, gente, prestenção. Observem os sinais dados pelos baixinhos a-ten-ta-men-te. Fim do plantão Globo; retomemos a programação normal.)

Qual não tem sido minha surpresa – por que não dizer? o meu mais estarrecido desespero – ao me ver adulta entre adultos que não são os adultos antigamente prometidos, nem concebidos sequer. Claro, sempre houve homens-feitos mauzões, gurias e guris não estão isentos de sabê-lo desde cedinho, até (ou de preferência) por efeito da ficção; mas onde estavam, Senhor? onde estavam tantos homens-feitos BURROS, quando éramos os guris e gurias que olhavam os mais velhos confiados na inteligência humana? Onde estavam, no tempo em que nós-piás éramos diligentemente ensinados a interpretar texto, esses atuais barbados que não sabem interpretar texto? Como é possível que até alguns outróricos heróis da espécie, tipo os médicos que jamais consideraríamos deixar de acatar, tenham virado em parte cúmplices da anticiência, negadores de vacina, receitadores (contra pandemia) de remédio para malária e verme – e na outra parte mantenham a postura científica sim, mas sejam cobrados e questionados por maiores de idade totalmente loucos, totalmente leigos? COMO é explicável que gente que mamou no peito, que nunca teve nenhum comprometimento neuronal, que até ontem entabulava diálogos sem virar um ser hidrófobo, hoje jure-juradinho que houve fraude na eleição americana sim, o Trump tem provas, ele só está dando corda para ver até onde vão os democratas pedófilos satanistas, na hora da posse do Biden tudo vai ser revelado ao vivo, o filho vai sair de lá preso, eles todos serão desmascarados em pool mundial? QUE RAIOS está acontecendo para que milhares, milhões de pessoas antes tão aparentemente cotidianas tenham switchado, sem mais essa nem aquela, para o modo Família Manson

Eu sei, eu também vi O dilema das redes e me encontro aqui quase em desabafo retórico. Sei que a tecnologia prosperou muito mais velozmente do que nosso cérebro é capaz de absorver, sei que os grandes produtos vendidos hoje somos nozes e que o intenso engajamento virtual – especialmente por via whatsappiana – é sucuri que vai se achegando, abraçando, estreitando até esmagar qualquer esqueleto de coerência ou raciocínio. Ainda assim, estudado e sabido, o fenômeno choca, como se acompanhássemos um processo de Alzheimer coletivo, uma deterioração em massa da adultez mental que respeitávamos e à qual enviávamos nossas esperanças de evoluir ao nível Jetsons. Evoluiremos sem dúvida, e sem dúvida já evoluímos consideravelmente mesmo nas ameaçadas agendas humanísticas; mas a mera existência desse povo assombroso, que anda e tecla por aí zumbizado até a negação de si próprio, polui e corrompe todo esforço de vida – é tumor que se hospeda na vida para matá-la. Não conseguirá, sabemos, e por mais que não consiga ainda há de dar muito que sofrer pelo tempo que passarmos limpando a bagunça, superbondeando a verdade estilhaçada, apagando o fogo atiçado, removendo o vômito derramado, remendando as relações molambentas, desatando todos os apocalipses, todos os malfeitos, todas as lambanças.

Dessas crianças.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Prefiro


Um dos maravilhosos poemas de Wislawa Szymborska, "Possibilidades" (de cuja tradução infelizmente fico devendo os créditos), é todo inteirinho feito de preferências: "Prefiro Dickens a Dostoiévski", "Prefiro a cor verde", "Prefiro o ridículo de escrever poemas/ ao ridículo de não escrevê-los", "Prefiro a bondade astuta à confiante demais", "Prefiro os países conquistados aos conquistadores", "Prefiro guardar certa reserva", "Prefiro as gavetas", "Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas" – e mais um borbotão de quereres dos quais pincei, aqui, só uma pouquinha representação. Sem desejar imitar caraduramente a inspiração de Wislawa e já imitando, me dou ao desfrute de listar também umas quantas escolhas miúdas, apenas por um respiro de trivialidade e lalarilarice no meio do circo de pavores em que temos morado:

Prefiro mate com pêssego.

Prefiro colares.

Prefiro que se volte a dar descanso para a palavra gratidão (encheu, gente). 

Prefiro George Sand a Alexandre Dumas. E a Honoré de Balzac. E a Victor Hugo. E a Gustave Flaubert.

Prefiro cerejeiras a cerejas.

Prefiro garimpar feiras a visitar pontos turísticos.

Prefiro que não me telefonem. Nunca.

Prefiro demorar-me em psicologias a debruçar-me sobre fatos. 

Prefiro tudo isento de neutralidade – inclusive as máscaras.

Prefiro a inexistência de provérbios e assemelhados clichês, a não ser que devidamente subvertidos.

Prefiro noventa-porcentomente o silêncio à música.

Prefiro as palavras cruzadas mais impossíveis.

Prefiro desarmar bagagens a desarmar o Natal. 

Prefiro me banhar frio no verão a banhar-me quente no inverno.

Prefiro romances de capítulos ligeiros a grandes massas impressas.

Prefiro vinho tinto a suco de uva, mesmo detestando alcoolices gerais.

Prefiro que não me deem livros; os meus mais afeitos eu provavelmente já tenho, os mais eu provavelmente não leria.

Prefiro pão francês.

Prefiro dizer a verdade, visto que mentir é peripécia de alta insuportabilidade narrativa.

Prefiro não jogar jogo absolutamente nenhum com perfeitamente ninguém.

Prefiro a rota alternativa, a seleção improvável, o caminho desusado, o personagem rejeitado, a data inabitual, o tema insólito, o adjetivo anômalo, o pronome oblíquo, a gramática rock'n'roll, a pegada inédita. 

Prefiro que não me imponham, não me exponham, não me esperem, não se colem, não enrolem, não se demorem.

Muito aproximadamente nunca.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Pangentileza


Para norte-americanos, com seu esparrame de celebrações diárias – umas históricas, umas fofinhas, umas engajadas, umas what-the-hellas –, hoje é o Tenderness Toward Existence Day, algo como um "dia da ternura para com a existência". Não sei por que 19 de janeiro, mas também não sei por que não, e achei o nome da festividade particularmente adorável. Ternura: o que poderia ajeitar quase tudo quanto anda desconcertado no mundo era a ternura, uma forma mais suave, mais lenta, mais contemplativa de amor, sem a urgência das modalidades de amor que demandam algum contentamento, alguma simetria. Na ternura vêm emaranhados respeito, carinho, empatia, enfofuramento, impulso protetor, fascínio das minúcias, em certa medida até orgulho macio da posse (quando é de posse que se trata), do convívio, da presença mesma; é combo melancólico mas açucarado, feito pôr do sol naqueles dias de temperatura acamurçada e desobrigação de tarefa na manhã seguinte.

Nossos primos do Norte, sobrinhos do Tio Sam, especificaram que a data é de ternura voltada para a existência, sem porém especificarem tanto a ponto de esclarecer se é a existência própria. Suponho que a ideia não seja permanecer em cercadinho tão restrito, mas não há como principiar ternuras senão a partir da individualidade, anyway: quem não se permite um olhar de brandura sobre a falibilidade a que está sujeito não vai, certamente, permitir-se um olhar de brandura sobre falibilidades alheias, uma vez que tende a carregar o amargo da autopressão que não se perdoa, não se desfrustra, não se conforma. Claro, ser-se terno nada tem a ver com ser-se permissivo, é inclusive oposto; consentir absolutamente tudo a si mesmo indica uma triste desistência de quem abriu mão de futuros, renunciou ao mínimo de autoestima necessário para investir na própria melhoria – tanto quanto pai e mãe permissivos em excesso renunciam ao esforço amoroso de educar e demonstram, em lugar de afeto, a máxima indiferença. Tratar-se com ternura demanda o não consentimento de errar somado à paciência de ter errado; a severidade que previne adoçada com o perdão que prossegue. Só os bastantemente mansos para acatar suas fraquezas sem concordar com elas conseguem, por extensão, caminhar delicado entre as fragilidades universais.

Todas as ternuras vêm dessa ternura inaugural – aquelas dadas às existências que vivem e às que não vivem, às que ainda são e às já sidas, às mui célebres e às extremamente anônimas. Quero crer seja essa a vibe da celebração americana, global, incondicional, trabalhada na pangentileza, na cosmodoçura: a transigência calma com a aranhazinha que é inquilina da última prateleira, a simpatia tácita pelo vizinho que rega flores, a alma marejada pela dedicatória soterrada no sebo ou pelo monograma bordado na peça de brechó, o tremer clandestino à descoberta da redação escrita aos nove anos, a pureza de comoção com a data de nascimento reproduzida no relógio, a tristura saudosa no guardar dos enfeites de Natal, a alegria de Mega-Sena ante a visita duma joaninha, a benquerença grátis pela noiva que chora no programa, a aflição solidária pelos passageiros de ônibus que se aglomeram na reportagem, o sorriso de bastidores à lembrança dum amigo imaginário, o miniesfacelar-se sobre o pequeno cadáver dum passarinho desabado, a nostalgia de ver vaga-lumes, o cotejar enamorado de estrelas, a memória emprestada ao bibelô de viagem. Ternura pelo miúdo das vidas, pelo flagrante do que foi, pela peça avulsa que metonimiza uma dor e um drama, pelo chão do cotidiano que é afinal onde erguemos tudo – nós-passarinhos às vezes desabados, à revelia pousados permanentemente. 

Ternura, esse amor de cetim. Esse amor de seda. Esse sistema de meditar para fora, adotando devagar tudo que é como se precisasse dum canto de ninar para ser consolado do tempo.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

O que será, que será


Adoro essas histórias. Em 2015, o colecionador de câmeras irlandês William Fagan comprou uma Leica III fabricada 80 anos antes. Dentro da máquina, veio o brinde que faria a loucura de qualquer ser humano minimamente romântico e curioso: 22 fotos de um casal em viagem pela Europa na metade do século passado. Fagan, como pessoa de sensibilidade vintage que deve ser (ninguém coleciona velhos equipamentos fotográficos à toa), embarcou na naturalíssima trip de descobrir quem são ou eram os retratados, e recorreu à ajuda da amiga Mella Travers – dona do estúdio The Darkroom – para restaurar as imagens o mais detalhadamente possível. Após a divulgação das fotos no site Macfilos, começou um furduncinho nas redes em busca da identidade do casal viajante, infelizmente ainda não obtida; sabe-se, porém (AMO essas análises de especialistas, CSI style), que o carro flagrado pela Leica foi registrado por volta de 1948, e que os comerciais, veículos, desenhos de cidade etc. pilhados pela câmera correspondem marromeno ao ano de 1951. Certo, também não gosto nada de enredos incompletos, mas prometo que Fagan está se esforçando em sua missão indiana-jônica, escarafunchando pistas e incentivando o contato de gente que reconheça os heróis fotografados. Inshalá.

Enquanto a verdade não vem lindamente epilogar essa trama de tamanho potencial cinematográfico, não custa lhe dar uma ou outra sugestãozinha de roteiro, elaborando vidas plausíveis para o casal armazenado na Leica mágica. A moça sorridente de vestido claro estampado poderia (exemplo) ser uma francesita recém-casada de 21 anos, chamada Anne-Marie Beauvau – para seu marido, Albert, apenas Marie ou Mariette. Ele, engenheiro quase trintão, é tão tímido quanto Marie é fazedora incandescente de amizades, e percebeu que se apaixonara pela filha do velho cliente de seu pai quando começou a errar cálculos e ter vagos embrulhos no estômago, dias após uma reunião na casa da jovem em que ela fora a única a lhe dar largos minutos de atenção, contando sobre seu sonho de cuidar de animais e conhecer boa parte do planeta. Apesar de descrer em suas chances com a menina cultíssima que era a alma das festas, Albert a pescou com suas fotos amadoras de aves e paisagens, ensinou-a a usar a câmera de estimação e teve o primeiro beijo roubado por ela numa sessão de cliquices ao ar livre. Na lua de mel, claro, uma road pela Europa, para começar a realizar os projetos balofos e julio-vérnicos de Marie, a quem o engenheiro não nega nadinha. Por infelicidade, a querida e cupida Leica escapuliu do carro sem que ambos percebessem, no solavanco brucutu duma estrada horrenda; foi encontrada por um caminheiro que, precisando de uns trocados, empenhou-a na casa do ramo mais próxima. Da casa de penhores, a câmera passou a um ou dois antiquários até pular no colo de William Fagan, herdeiro da lua de mel nunca revelada.

Ou: a jovem protagonista dos cliques é a americana de ascendência italiana Betty Panazzolo, que acabou agorinha o high school e, contra a vontade dos pais, se inscreveu numa universidade inglesa com a intenção de estudar literatura medieval e similares medievalices. Assim como a Catherine Morland de sua amada Jane Austen, Betty passou a adolescência imersa em romantismo gótico; é introvertida, romanesca mas tinhosa: praticamente fugiu de casa, antecipando a ida para a Inglaterra, a fim de se desembaraçar da pressão feita pelos familiares para que se casasse com o primo de segundo grau, Tiziano (Tizzo). Na terra da rainha, a rebelde fofa conheceu o escritor Hector Bronwen, palestrante em sua faculdade – com quem, por dois ou três meses, trocou algumas cartas. O caladão e intenso Bronwen acabou "sequestrando" sua Honey Betty para uma trip intelecto-amorosa pelas zoropas, durante as férias universitárias; em seguida, no entanto, desapareceu da vida de sua musa, pois já sabia ter a saúde fatalmente abalada e queria que o relacionamento de ambos terminasse flutuante e lírico, sem peso para a juventude de Betty. Ela inconformou-se, quase perdeu um semestre letivo caçando o rastro de Hector, porém só o descobriu por um amigo comum após a morte do autor, cujos pertences haviam sido leiloados para cobrir dívidas – inclusive a velha Leica, que guardava a primeirúltima viagem do casal e acabara esquecida por Bronwen com o agravamento de sua doença. Sniiiiif.

Por ora, tudão pode ser: as cenas princípias dum casamento eterno, uma fugidinha de ligações perigosas, as férias de primeiras bodas, o percurso feliz até um orfanato onde seria adotado o filho mais velho, a expedição de um casal de cineastas à cata de narrativas e locações suspiráveis. Todos os enredos brincam de ser verossímeis dentro dessa cápsula de amor (me deixem pensar que só pode ser amor) cristalizada há sete décadas, aguardante de que alguma fala a descriptografe, de que alguém a tire de seu talvez – e a escreva como era uma vez.

domingo, 17 de janeiro de 2021

Memórias do que nunca


Acho engraçadíssimo quando pessoas postam fotos ou trechos de coisas já havidas, porém havidas tão inacreditavelmente que os tais trechos e fotos precisam vir acompanhados do invariável: "Esse(a) desenho/ filme/ novela/ cena/ comida/ banda/ brinquedo existiu mesmo ou foi um delírio coletivo?". É também invariável o fato (desolador) de a coisa ter existido mesmo, não ter sido o delírio coletivo cuja ocorrência talvez salvasse a Terra a nossos próprios olhos; mas sshhh, abafa. Como, afinal, conservar o mínimo de utopia e fé num planeta capaz de COMETER sandália plástica transparente, Restart e As aventuras de Sharkboy e Lavagirl? Fingindo demência, naturalmente; a humanidade já anda com problemas de mais sob o Sol para ainda se ver obrigada a ser 100% sincera no currículo.

Antes que este texto se autodestrua em nome da paz universal, retornando ao pó as memórias absurdas que do pó vieram, permitam-me o exercício perverso de evocar uns tantos delírios coletivos que obviamente nunca aconteceram, sei nem do que vocês estão falando. Aquela bebida multicoloridamente indefinível dos anos 90, Fruitopia – lembram? vou jurar que jamé, mas cheguei a bebericar umas experimentadas e até hoje não entendi o bagulho; confesso interesse em que algum Globo Repórter desvende do que se compunha, de onde surgiu, que triste fim levou, se sumiu porque foi para a Record. E as novelas que ninguém, ninguenzildes da silva sauro parece ter acompanhado ou se dá ao menor trabalho de incluir em qualquer resgate de programação? Tipo (segurem esse forninho): Salomé; Começar de novo; Quem é você? (o mesmo lhe pergunto, quereeeda); Bang bang; Tempos modernos; As filhas da mãe; Antônio Alves, taxista (OK, era do SBT, meio que não conta – mas tinha Fábio Jr., gente); Três irmãs; Sabor da paixão; Desejos de mulher; Agora é que são elas. A total inacreditabilidade de tramas assim terem sido nossas contemporâneas bem vale um brevíssimo espanar nesse álbum maluco, por pura diligência arqueológica. Realmente brevíssimo. Pronto, chega.

E as madeleines insólitas em forma de brinquedo? Os monstrinhos-fantoches-boxeadores lutando ao som do jingle eterno (o que aliás é curioso para algo que jamais ouvimos): "Laaaango Laaaaango, Lango Lango Lango". O Vovô Alegria da Eliana – de olhos, óculos e nariz esbugalhados – exclamando frases nhoooom ao ter a barriga apertada. O fofíssimo Furby derretendo almas molinhas com suas tagarelices e olhares encantadores. O nojentíssimo NEB (boneco ET desgracento de feio, com vísceras de geleca) sendo diariamente estripado por futuros cirurgiões ou serial killers. O fabuloso Vira Monstro Vira Herói permitindo aos pequenos desenhar mil personagens distintos ao combinar e recombinar os moldes. O jogo dos hipopótamos comilões tentando devorar o maior número de bolinhas. Houve mesmo essas entidades, neste mesmo mundo? existiram de se pegar? Afora as animações e similares a que só podemos ter assistido em transe, nalgum criançaverso: Defensores da Terra, Candy, Cãezinhos do canil, O Vira-Lata, Feiticeira Faceira, Estrela Fascinante Patrine, Joca e Dingue-Lingue, Grande Polegar: detetive particular, O patinho Duque, Os Muzzarelas, Ursuat, Fantasminha legal. Posso ficar aqui encompridando a lista o dia inteiro, mas já estão todos suficientemente deprimidos e chocados com a amostra de tudo que não lembrávamos que nunca existiu. 

E se em alguns casos o cérebro, plantando silêncio por cima, determinou que muito nesse tudo realmente desexistisse – ssshhh, deixa quieto, não sou eu que vou persistir em acordar quem os neurônios sepultaram sob suas escolhas de afetos logísticos. Nenhuma saudade me obriga a exumar "tempos melhores": estão todos vivos e bem, aguardando lá na frente em estradas que sempre vamos construir agora.

sábado, 16 de janeiro de 2021

Como matar seu dragão


Norte-americanos metem em todos os dias as celebrações mais hilárias e inusitadas, como hojezinho mesmo – o Appreciate a Dragon Day. Por que carambolas atômicas alguém achou fundamental que houvesse uma data para apreciar dragões, não faço ideia (nem São Jorge tampouco; aliás, #xatiado, hein), mas a festividade esdrúxula acabou me lembrando um dito ótimo de G. K. Chesterton: "Contos de fada não dizem às crianças que dragões existem. Crianças já sabem que dragões existem. Contos de fada dizem às crianças que dragões podem ser mortos". 

(Claro, crianças que não sejam pequenos estripadores em formação não estão empenhadas, espero, na morte do fofinho Banguela, de sua namorada fofinha ou de Mushu, o amiguito eddie-mârfico de Mulan. Vocês sabem bem de que tipo de dragão Chesterton está falando, não sacrifiquem.)

Adoro a tirada do escritor porque representa à perfeição uma das "funções", um dos efeitos mais fantásticos e transcendentes da literatura: o de visualizarmos e elaborarmos nossos próprios dragões. Nisso ela é (desconfio será sempre) superior às artes suas irmãs, teatro e cinema/TV, que por ela passam. Por quê? porque na literatura temos o maior acesso possível aos interiores dos interiores, às oscilações e dramas e dilemas e pensamentos e monstros íntimos, o que no audiovisual está atrelado a diferentíssimos recursos, a interesses e interessados bastante diversos – e é por eles suplantado. Não é viável que transposições de páginas para a tela esmiúcem o passo a passo da narrativa interna do personagem, uma vez que, boa parte do tempo, são limitadas pela narrativa externa: gestos, olhares, silêncios, reflexos parcialmente denunciando o que as palavras não estão presentes para escarafunchar. Nas mídias semoventes e faladas, aquela pequena vida fictícia se dá a nós (como que) em público, sem condições de desnudar-se inteira; no livro, porém, seus sentires e pensares se extravasam nuamente – tão próximos, tão a sós conosco, tão no ritmo por nós controlado, que após um período razoável de leitura amalgamam-se aos nossos feito um espelhinho que tiramos do bolso e colamos à altura da voz.

Providenciada essa identificação de alcova, ficamos expostos a um cada vez mais largo repertório de humanices: as nossas, as nossas relidas, as nossas espelhadas, as nossas submersas, as nossas quase completamente transformadas a ponto de não percebermos com imediata consciência a própria posse. E ali também, entre os modelitos humanos pendurados no gigantoso closet literário, moram nossos dragões – na insaciedade crônica de Emma Bovary, na confusão atormentada de Raskólnikov, na angustiante solidão de Hester Prynne, na amargura ressentida de Heathcliff. Nem sempre (fato) os dragões são mortos em linhas de capítulos finais como nos seria de preferência e gosto; não raro os protagonistas sucumbem, a coisa termina em dor de tempestade ou dor de vento frio; mas mesmo a desgraceira ficcional não foge ao nobre compromisso de matar dragões: se os personagens não se salvam, salvamo-nos nós de fantasmas ora retrabalhados, ressignificados, exorcizados por vidas que não vivemos. Estando felizes nossas pessoinhas de papel favoritas, estamos sinergicamente felizes; despedaçando-se elas em seus embates, permanecemos seguros e só metaforicamente despedaçados, aprendendo por catarse com as vítimas que não somos nós. 

Não carece Príncipe Encantado para nos abrir a porta da torre: basta o descer das livres e espontâneas escadas com a certeza de que não nos é estranho o que voa lá fora.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Somente a verdade


Foi divulgado ontem: depois de passar consideráveis 26 anos no corredor da morte, o norte-americano Eddie Lee Howard foi inocentado das acusações de estupro e assassinato duma senhorinha mais do que octogenária. Ao que consta, a condenação inicial se baseou em marcas de mordidas que, revistas agora pela perícia forense (devido ao pedido de revisão do caso providenciado pela defesa de Howard), provaram-se inconsistentes e foram completamente descartadas. Eddie saiu do corredor maldito em dezembro e se viu definitivamente exonerado de toda a treta, pela Suprema Corte do Mississippi, no último fim de semana. O #sextou mais sextado duma vida inteira. 

Casos como os de Eddie não passam por criaturas minimamente sadias do córtex sem levantar as questões que gelam a espinha: e se a execução já houvesse ocorrido? e se não tivesse havido condição de o réu alcançar uma reanálise das evidências? e se tais circunstâncias já se combinaram – e se é quase uma grosseria irônica: CERTAMENTE já se combinaram – dezenas, centenas, milhares, milhões de vezes nos sistemas penais dos EUA e dos outros pena-capitalizadores pelo mundo, levando ao assassinato oficial dum número insabido de inocentes? Digo "oficial" porque, claro, sabemos bem a metralhadora giratória que os Estados costumam ser na cotidiana e clandestina missão de exterminar pobres, pretos, povos nativos, imigrantes e demais minorias étnicas/econômicas; nações como a nossa praticam há décadas, com proficiência, os homicídios do oops (oops, a bala perdida pegou mais um menino negro; oops, a queimada comprometeu seriamente as terras indígenas); mas me atenho aqui às que somam, a esse horror diário em off, o horror on e legislativo da morte prescrita em tribunal. A morte naturalizada como alternativa de civilização – coberta de ritos, atas, burocracias, meritíssimos, e nem por isso isenta de negligências, discriminações e processos viciosos. Nem por isso menos bárbara.

Porque não posso não ver o ato de matar um ser humano como barbárie (a não ser quando se trata da ÚNICA chance de defesa pessoal ou de outrem, e estritamente em circunstâncias de risco físico, não de sustentação da propriedade). Isso independentemente de inocência ou culpa do réu: uma vez que o sistema carcerário já tenha o sujeito em custódia e se responsabilize por afastá-lo da sociedade – sendo caso de crueldade incapaz de convívio –, inexiste a ameaça iminente que justificaria a ação radical, e todo ato de destruição por parte do governo configura apenas vingança. "Ah, mas e se o cidadão tivesse matado ou estuprado sua mãe, seu filho, sua filha? Você não ia querer que ele morresse?" Humanamente, muito humanamente, talvez até quisesse, num movimento compreensível de raiva e dor profunda; porém não são nem devem ser as vítimas que tomam para si o julgamento público: é o Estado, que em tese não tem como combustível a vendetta e, em tese, ali está para garantir a impessoalidade da coisa. Com ódio não vemos, nunca vemos, e definitivamente também não estamos livres – ainda que o processo não seja conduzido diretamente pelos mais afetados – de contaminar raciocínios e evidências com a pressa e a pressão da mídia, os interesses políticos, os preconceitos inconfessos. Se, entretanto, o sistema se corrompe e mais tarde é flagrado injusto (como na história de Eddie Howard), tem uma mínima chance de devolver a liberdade àquele que privou da liberdade, ou de devolver os bens àquele que privou dos bens; o tempo de prisão obviamente não pode ser devolvido, mas havendo vida há sempre uma brecha para que algo significativo se construa. Não havendo vida, fecha-se totalmente o portal, o que me faz eterna e intransigentemente advogar sem pestanejos: ninguém pode tomar a um condenado aquilo que não lhe poderá de algum modo devolver, em situação de erro absurdo. Não produzimos vida; não cabe a nós tirá-la.

Para Eddie, a quem ela recém-foi restituída dentro das curtas possibilidades humanas, todos os meus votos mais quentinhos; sobretudo que lhe tenha restado muito mais agudeza e generosidade no ler o mundo do que este empregou em lê-lo. Que essencialmente, para a melhor pessoa que ele viria e virá a ser no caminho, o tempo de injustiça não tenha sido letal.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

O segredo dos seus olhos

Hoje faz 180 anos uma dama grandíssima, imensíssima das artes: Berthe Morisot – tão desconhecida de nome pelo mundão de gente que (com justiça, claro) venera Monet, Cézanne, Degas, Renoir, Manet, e no entanto tão impressionista e impressionante quanto seus coleguinhas pintores (do último que citei Berthe foi, inclusive, mais do que colega e amiga; virou cunhada, ao se casar com o irmão do artista, Eugène Manet – embora a fofoca da Ilha de Caras impressionista não tenha aqui a menor importância. I mean, tem um bocadinho, pelo que narro a seguir:). Berthe e sua irmã Edma estudaram arte desde cedito, pintavam juntas, até que Edma se casou, mudou-se, ficou mãe e passou, entre mil cuidadices domésticas, a contar com pouco tempo para os pincéis. Cartas consolavam ligeiramente a saudade, mas Berthe reclamava da distância entre ambas e entre Edma e a arte favorita; a outra, haja vista suas palavras para a caçula, não parecia lamentá-lo menos: "Tenho sempre você em meus pensamentos, querida Berthe. [Penso] estar em seu estúdio e poder escapar, nem que por meros 15 minutos, respirar a atmosfera que dividimos por tantos anos". Aquela face dolorosa, dolorosamente terna da vida quando muda.

Dolorosamente terno é a precisa definição do quadro mais famoso de Morisot, Le berceau (O berço), acima reproduzido. Se já é notável a agridoçura que salta da imagem sem qualquer contexto de contemplação – percebam os olhos entre exaustos e amorosos da mãe que vela, os olhos perfeitamente indefinidos e oscilantes do "que perfeição da natureza" até o "onde fui me meter" –, a impressão se torna ainda mais viva e comovedora ao sabermos que a mãezinha cansada é justamente a mana Edma Morisot; e o bebezito, sua filhinha Blanche Pontillon. Trata-se do exato flagrante, produzido pela artista "que permaneceu", da artista que de certa forma "se foi" após o advento de marido e prole; mais admiravelmente, trata-se dum flagrante ambíguo, que não julga a modelo nem se posiciona contra ou a favor de suas escolhas, permitindo antes que os pincéis captem o que considero uma das maiores inteirezas da maternidade: sua respeitável ambivalência.

Sono e devoção, ternura e desespero, remorso e encantamento, absolutamente tudo é cabível no olhar de Edma (Dostoiévski não o descreveria em menos de 48 páginas, acredito). Conforme alguém já observou, há uma tocante correspondência entre o braço esquerdo da mãe e o bracinho direito da filha, ambos apoiadores dos respectivos rostos – porém numa, eu diria, realmente sustentando o peso da cabeça (e de suas responsabilidades, por metonímia), e na outra descansando com entrega e leveza, próprias de quem se sente cuidado e possivelmente conservará os olhos sempre fechados ao impacto de sua existência sobre aquela outra. É o drama silencioso da entrega materna versus a realidade pouco romântica da parentalidade; a completude dum amor possante versus a quebra da individualidade antiga; a realização versus a frustração. É enfim humano, humaníssimo, atualíssimo a despeito das roupas e móveis de época: o gesto, o olhar capturados pela genialidade de Berthe atravessam gerações falando com fluência a língua de todas as mães que já velaram os filhos adormecidos, perguntando-se, fatigadas e inseguras, quem as velará.

Costuma ser – no mais amplo espectro de contemplados e de contempladores – onde se depositam todas as verdades: no olhar que se lança ao túmulo e no olhar que se envia ao berço.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

O vício do muito


Segundo uma interessantíssima frase da escritora austríaca Marie von Ebner-Eschenbach, "contentar-se com pouco é difícil; contentar-se com muito, impossível". Não é dessas falas de que se sai incólume. Que seja difícil contentar-se com pouco, vá: em regra os humanos somos mesmo (felizmente) movediços e queredores de melhorias; assim deve ser, e se chegamos até aqui é porque assim foi – ou seríamos criaturas exclusivamente voltadas para a sobrevivência, satisfeitíssimas da baixa expectativa de vida de nossos corpitos naturalmente frágeis, desligadas da arte, da filosofia, das ciências em geral. Beleza, pertencemos a uma espécie que quer mais. A segunda parte do aforismo já é mais intrigantinha: é impossível contentar-se com muito. Intrigantinha até a página 3, porém, uma vez que quem nasceu embalado na rede do capitalismo e devidamente informado sobre os precedentes mercantilistas & cia. há de refletir só um bocaducho antes de acenar que sim com a cabeça, como quem reconhece bem uma pessoa que vem dando problemas na família já de loooonga data. Yes, yes, meu amigo, é direitinho isso daí, pessoal em mais humildes condições tem até chance de se saciar com o seu tanto – mas os viciados numa riqueza obscena não se saciam nunca, nunca, nunca.

Porque é um vício, e particularmente hediondo. Se álcool, cigarro, drogas saem derrubando corpos e famílias, a fissura nesse muito-mor da posse ilimitada sai retroescavando apenas o mundo inteiro, cega, voracíssima, autodestrutiva inclusive – já que, ao que se sabe, não existia planeta alternativo até o fechamento desta edição. A fissura no muito é monstro engolidor de árvores, destruidor de ares, poluidor de águas, deformador de almas, roubador de artes, guerreador por petróleo, conspurcador de recursos, estuprador de culturas, manipulador de dados, especulador de abstrações, catalisador de tragédias, explorador de lutos, desempregador desdignificador escravizador coisificador de gente, privatizador do que é público, se-apossador do que é comum. Ao milionário consome a larica de ser bilionário, ao bilionário corrói a fome dos trilhões; mesmo ante a impossibilidade humana de aproveitar numa só vida os 87 imóveis, de passear nos 235 carros, de usar os 10.958 vestidos, de portar as 21.704 joias, todo lucro continua sendo inaceitavelmente pouco: urge fechar mais agências, demitir mais funcionários, vampirizar mais os remanescentes. Para quê? Para virarem 21.896 as joias inúteis.

A coisa é mais abissal quando se constata nas peças exploradas, esmagadas, demitidas, vampirizadas a mesma febre do ouro que atormenta esses Patinhas, Scrooges e Smaugs – só que sem o ouro. Nem entre vírus pandêmicos há contágio pior do que aquele que se verifica entre os magnatas zumbizados pela ostentação e os pobres mortais (ou mortais pobres) zumbizados pela impressão alucinógena de serem magnatas. Não vem do nada, claro; ricaços são mestres em – ou donos de – todas as estratégias de marketing amansadoras de gente assalariada; mas o sono de Kali Ma vai mil vezes além, e não somente anestesia vários dos que têm o coração arrancado como, pasmosamente, transforma as vítimas do sacrifício em tietes dos sacrificadores. Tamanha é a hipnose que os peões do tabuleiro se identificam não com quem são, mas com quem gostariam de ser, o que os persuade a expor seus pescocinhos individuais pelo rei no qual se enxergam em vez de se agruparem para o xeque-mate.

Milionaridades de vezes mais do que os outros vícios, o vício do muito, do tudo há que ser vigorosa e rigorosamente contido, sob pena de implodirmos o pouco espaço que temos na galáxia. Mais vale um bilionário maluco de algema na mão (motivo vai ter, não se preocupem) do que 102 jatinhos voando.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Um elo a mais

Foi autoridade estrangeira que disse, em reportagem do Jornal Hoje sobre a segunda onda covídica pelo mundo: "Qualquer contato desnecessário que você tenha é um elo a mais de uma corrente que pode chegar a uma pessoa vulnerável". Se houver uma ou duas palavrinhas aí readaptadas inadvertidamente, perdão; ouvi de momento e transcrevi de memória; porém o teor, juro, era rigorosamente esse. Anotei a fala por me impressionar, num susto, a realidade quase sufocante em que procuramos não pensar (empenhados por motivos compreensíveis em evitar o enlouquecimento), mas que deve sim ser pensada hora a hora, minuto a minuto, nos dando assim na cara no meio da tarde, se preciso. Mesmo procurando me embolhar o mais embolhadamente no recesso do lar, saindo o minimíssimo possível, levei na cara e ganhei manga coletiva para chupar: se deixamos nossa casa sem urgência ou abrimos nossa casa sem urgência, somos transmissores, pronto. Podemos não pegar o corona – ou ele pode não nos pegar –, a pessoa com quem tivemos contato supérfluo pode não pegar o corona, e sermos ambos transmissores potenciais do corona. Elos distraídos duma cadeia assassina que vai enforcar sempre o pescoço mais fraco.

Nenhuma novidade, nada ouvi que já não soubesse a rodo e contra o que já não procurasse lutar há cerca de um ano. Às vezes a obviedade bate à porta com uniforme inédito, entretanto, ou são os olhos-ouvidos-neurônios que recém-nascem para alguns aspectos do mesmo óbvio. Escutei a declaração num meio ou fim de matéria e tive o calafrio inaugural de imaginar quantos contrabandos negligentes de vírus já não fizemos, quantas coadjuvações no circuito de morte não assumimos, em quantas ocasiões não fomos desleixada carona de corona. É tão estarrecedor (não vim hoje melhorar o dia de ninguém, eu sei) que nossas naturais luzinhas vermelhas de defesa costumam nos proibir entrada nesta sala de pensamento soturno; mas WTF, aqui ninguém é criancinha berrando com os Monstros S.A. que não possa receber visita da verdade. Sim, em cada vacilozito piquituchito estamos possivelmente assinando o contrato de um-elo-a-mais nos quadros da covid, estamos virando degrau a mais rumo ao topo do gráfico.

Na festa a que comparecemos (please, este nós é apenas retórico) quando nos sentíamos formidáveis, uma nossa gotícula contaminada e relapsa foi parar em outro comensal que não usou máscara em casa no dia da faxineira, que só podia contar com a mãe de 76 anos para tomar conta dos três filhos. Na ida ao banco uma semana depois de abraçar feliz-natalmente o vizinho, um nosso espirrito que escapou da máscara e foi dado sobre o caixa eletrônico encontrou a mãozinha e a boquinha do pequeno curioso que acompanhava o pai, que tinha asma braba de nascença. Na corrida de meia hora desmascarada que demos naquela manhã, atendemos animadamente o celular quando cruzávamos com um gari cuja esposa, diabética, estava grávida. Na loja de brusinha em que passamos rapidito após fazer o teste covídico no laboratório ("tem que aguardar uns dias para o resultado, senhora"), demos uma também rápida tossida ao trocar de máscara, que já estava úmida – não vimos, mas foi a dois passos e meio do telefone que fica sobre o balcão do caixa, e que é utilizado pela dona da loja, que frequentemente trabalha como voluntária distribuindo quentinhas aos sem-teto. Um elo a mais, insabido, indesconfiado, inapercebido; um que, sem nós, talvez nunca houvesse.

Parece e é cruel, cruel, cruel, porém fica excessivamente mais cruel não o saber nem dizer, considerando que essa descabeçada ignorância arrebanharia mais vidas em vez de salvá-las. Se a verdade é dama indelicada, espeta agudo e soa demasiado brusca, seja: antes um terrorismo do bem, severo e franco, que melosidades positivas para boi (bota boi nisso) dormir. De "boas" e saltitantes intenções, UTIs de mais pelo mundo já estão cheias.